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Archive for the ‘Entrevistas’ Category

Que os leitores desculpem estes nossos comerciais e o fato de estarmos advogando em causa própria. Mas é que dois ou três itens desta entrevista podem ser de algum préstimo para os coleguinhas tradutores. Sempre me perguntam o que é necessário para traduzir poesia e sempre respondo de maneira convencional. Desta vez, resolvi rasgar o verbo e afirmar que é preciso ter paixão, dedicação integral. Podem acreditar que é verdade.

A entrevista está rolando no jornal internético GGN – o jornal de todos os Brasis, publicado sob a égide de Luís Nacif, aos quais, mais uma  vez agradeço pela homenagem, bem como ao Gilberto Cruvinel e ao Emmanuel Santiago pela elaboração das perguntas. A transcrição é feita na íntegra, inclusive com um glossário dos termos poéticos.

A tradução integral de Ivo Barroso

“Faço da tradução um programa de vida, amor fiel, constante e desesperado”, diz o tradutor dos sonetos de Shakespeare.

A tradução integral de Ivo Barroso

por Gilberto Cruvinel e Emmanuel Santiago

  

Agradecimento à Denise Bottmann pela colaboração imprescindível

Quando a hora dobra em triste e tardo toque

E em noite horrenda vejo escoar-se o dia,

Quando vejo esvair-se a violeta, ou que

A prata a preta têmpora assedia;

Quando vejo sem folha o tronco antigo

Que ao rebanho estendia a sombra franca

E em feixe atado agora o verde trigo

Seguir o carro, a barba hirsuta e branca;

Sobre tua beleza então questiono

Que há de sofrer do Tempo a dura prova,

Pois as graças do mundo em abandono

Morrem ao ver nascendo a graça nova.

Contra a foice do Tempo é vão combate,

Salvo a prole, que o enfrenta se te abate.

 

William Shakespeare, Soneto 12

 

O mineiro Ivo Barroso é um dos nossos maiores tradutores de prosa e poesia para a língua portuguesa. É o responsável por traduções definitivas para o português de poetas como Arthur Rimbaud, Eugenio Montale, T.S.Eliot, Charles Baudelaire e William Shakespeare.

Em sua longa trajetória, participou de publicações que foram marcos na imprensa brasileira como o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil e a Revista Senhor de que foi um dos fundadores.  Foi ainda assistente na edição de grandes enciclopédias como a Delta-Larousse, a Mirador e a Enciclopédia do Século XX. Em Portugal, foi redator-chefe da revista Seleções do Reader’s Digest. Trabalhou ao lado de figuras inesquecíveis das letras e do jornalismo como Mario Faustino, Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar, Paulo Francis, Ivan Lessa, Luís Lobo, Carlos Lacerda e Ênio Silveira. Como tradutor, trabalhou e conviveu com figuras fundamentais da atividade como Antônio Houaiss, Manuel Bandeira e Paulo Rónai.

Sua obra inclui realizações notáveis como a tradução da obra completa do poeta francês Arthur Rimbaud, o teatro completo de T. S. Eliot, a organização da edição da poesia e prosa de Charles Baudelaire (o mais completo repositório da produção baudelairiana em português) e a edição de um volume que analisa todas as inúmeras traduções em português e uma em francês (de Didier Lamaison) do poema “O Corvo” de Edgar Alan Poe. Neste trabalho, Ivo revelou ao público brasileiro o trabalho de um tradutor e jornalista mineiro pouco conhecido, Milton Amado, que fez a melhor tradução para o português do poema clássico de Poe em 1943.

O programa que norteia a atividade de tradução de Ivo é o que se pode chamar de tradução integral, ou seja, aquela que se empenha em manter na outra língua todos os aspectos semânticos do poema: o significado, a métrica, o esquema de rimas, os efeitos sonoros, o estilo e o efeito ou a qualidade poética. E um dos trabalhos de tradução que talvez mais lhe tenha trazido popularidade foi a versão para o português de 50 dos 154 sonetos de Shakespeare, trabalho notável de décadas, que mereceu do consagrado filólogo e tradutor do Ulysses de James Joyce, Antônio Houaiss, o prefácio ao livro William Shakespeare – 50 Sonetos, do qual destacamos:

“Mas houve e há traduções: as que, infiéis, são fiéis ao dito traduttore traditore, e as que, fiéis, são obras de amor. Que é, nas condições modernas, vale dizer, com a repetibilidade tipográfica, tradução de amor? A que se paga das penas do ato amoroso, mas não se paga venal, mercantil, monetariamente — em sociedades como as que vivemos, em que tudo tem seu preço, seja caráter, honra, dignidade, saber, pudor, generosidade, amor (pois que há amor comprável e pagável, e continua a havê-lo sem preço, para alguns, impagável). As traduções de amor aqui estão.

Quando se vê a solução de Ivo Barroso — numa lição da dialética do senhor e do escravo, que impõe, sendo imposto, que subordina, subordinando-se, que escraviza, escravizando-se —, vê-se que ela atingiu o cerne da expressão shakespeariana

Pois, de fato, foi isso, é isso que nos dá Ivo Barroso com os seus sonetos shakespearianos, aceitando o mais desigual dos desafios, que é o do tradutor por amor — já que ele sabe que a um só original podem corresponder mil soluções e que a sua deve ser, por amor, a mais pertinente.

Quando a vida ameaça ser embrutecida por urgências desumanizadoras, é um bem dedicar algumas horas, ao longo de alguns meses, na comungação de arte-artifício-artesania tão belos como os que nos oferece Ivo Barroso com seus sonetos reinventados sobre a mais pura matéria-prima da poética universal”

Nesta entrevista, concedida por email com exclusividade ao Jornal GGN, Ivo nos conta passagens marcantes de sua trajetória e analisa alguns aspectos curiosos do ofício de traduzir, como por exemplo, é preciso ser poeta para traduzir poesia?

 

Jornal GGN: O senhor nasceu na cidade de Ervália, região da Zona da Mata mineira. O acesso ao livro na sua cidade, por não ser tão fácil na época como é hoje, tornava-o um objeto de desejo na sua infância?

Ivo Barroso: Em Ervália não havia livrarias nem bancas de jornal, mas desde crianças recebíamos pelo correio o Suplemento Juvenil e o Gibi. Depois meu pai nos deu os 15 volumes do Tesouro da Juventude e fiz do Livro da Poesia a minha leitura predileta. O primeiro verso que aprendi de cor foi aquele “Deus”, de Casimiro, que me deslumbrava, não tanto pela lição religiosa explícita, mas pelo verso “Erguendo o dorso altivo sacudia /a branca espuma para o céu sereno”, que até hoje considero um dos mais belos da língua. Vieram depois as coleções Jackson, com Machado e Humberto de Campos, dos quais li algumas obras sem muito entusiasmo. Mas Humberto de Campos me ensinou um macete de que me vali depois para uma série de sonetos: ele começava o verso descrevendo uma personagem histórica ou mitológica e, ao se aproximar da chave de ouro, entrava com um “Assim como fulano, também eu andei etc.” Comparei-me a beduínos, a Ícaros, a judeus errantes por causa de alguns amores não correspondidos que só haviam na minha imaginação…

Jornal GGN: Que influência tiveram no seu gosto pelas letras e pela poesia os livros que marcaram sua infância e os primeiros poetas com os quais teve contato (Machado de Assis, Humberto de Campos)? Augusto dos Anjos foi especialmente importante para o desenvolvimento do seu gosto pela poesia?

IB: Sobre Machado e Humberto de Campos já falei en passant; já a descoberta de Augusto dos Anjos se deu mais tarde, quando já morava no Rio (na década de 50), após encontrar por acaso, na estante de um vizinho, um exemplar do Eu. O dono do livro ficou tão desconcertado com meu entusiasmo pela leitura que acabou me dando de presente o volume. Era fatal que, como no caso de H. de Campos, eu passasse a fazer versos “científicos”, um dos quais começava “A vida é o resultante grau da orgânica / evolução da célula”, para perplexidade de meus professores de ciências no Colégio Vera Cruz.

Jornal GGN: O curso de línguas e literaturas neolatinas na Faculdade Nacional de Filosofia foi determinante na sua formação literária e no seu interesse pela tradução?  Que mestres foram importantes nesse período? Qual foi seu primeiro trabalho profissional como tradutor?

IB: Na Faculdade foi que fiz intimidade com a poesia, graças ao entusiasmo de professores como José Carlos Lisboa, Élcio Martins, Marcella Mortara e Luce Ciancio. Eu já me interessara antes pelo estudo de línguas e, num caderno com data de 1945, recolhi várias traduções de poetas espanhóis, franceses e ingleses. Mas foi na Faculdade que recebi os verdadeiros estímulos para com minhas pendências tradutórias. A professora de italiano distribuía em aula um poema mimeografado e nos pedia para traduzi-lo. Verti, em versos rimados e metrificados, um soneto de Miguelângelo, que foi lido em classe e comentado entre os demais colegas. Luce Ciancio foi quem mais me incentivou a continuar traduzindo e chegou mesmo, ela própria, a passar para o italiano alguns de meus poemas. Do ponto de vista profissional, traduzir por dinheiro, minha primeira experiência foi um livro de economia (o editor a quem fui pedir trabalho soube que eu era funcionário do Banco do Brasil).

Jornal GGN: Quais qualidades são necessárias para exercer com sucesso a atividade de tradutor de poesia? Para traduzir poesia é necessário ser poeta?

IB: A tradução de poesia exige um conhecimento fundamental da arte poética (métrica, rima, escolas, estilos, etc.), já que não se trata de reproduzir apenas o que está dito, mas igualmente a maneira, a forma pela qual foi dito. Embora haja casos esporádicos de tradutores de poesia não-poetas, eu diria que é necessário ser poeta, sim, e em tempo integral, ou seja, exercer ou ter exercido a função ao escrever seus próprios versos. Se o tradutor não sabe, por exemplo, o que é uma aliteração1 (ou qualquer outro recurso poético) não irá tentar reproduzi-la no texto traduzido, falseando ou pelo menos empobrecendo o resultado final de seu trabalho. Mas há – ou havia, no passado – casos contrários, ou seja, grandes poetas-tradutores que procederam diante do texto poético original como se ele estivesse em prosa, ignorando todos os recursos formais que o habilitavam como poesia. É o caso típico da tradução de “O Corvo”, de Poe, por Baudelaire e Mallarmé.

Jornal GGN: Entre os grandes tradutores quando o senhor começou na atividade, algum o ajudou especialmente no início? Com quem aprendeu as técnicas do oficio? Que importância teve Manuel Bandeira no início de sua atividade como tradutor?

IB: Desde o início, sempre fui grande leitor de poesia traduzida, em especial a de Guilherme de Almeida e Onestaldo de Pennafort. Porém, meu deus-tradutor, por essa época, era mesmo o Carlos Potocarreiro, com sua genial versão do Cyrano de Bergerac, que me dava lições de inventividade e talento na resolução dos problemas linguísticos e no uso requintado de um vocabulário castiço. Mais tarde, encontrei em Bandeira o mestre exemplar e foi ele quem me incentivou a levar avante as minhas tentativas iniciais de traduzir os sonetos de Shakespeare. Também Mário Faustino e alguns outros escritores muito concorreram para que eu me dedicasse à tradução de poesia.

Jornal GGN: Como era o prestígio da atividade de tradução quando começou e como é hoje?

IB: Quando comecei a traduzir a atividade não passava de um “bico”: traduzia-se para ganhar um dinheirinho a mais. A atividade era mal remunerada (e essa pecha parece ter perdurado por muito tempo…). O nome do tradutor era quase sempre omisso e só raramente aparecia embaixo do título do livro. Considerei-me um vitorioso o dia em que, pela primeira vez, meu nome saiu na capa de um livro.

Atualmente já começa a haver uma distinção entre os leitores, que procuram ver quem traduziu o livro que vai comprar, pois alguns nomes já lhe asseguram um selo de qualidade. Temos hoje uma verdadeira equipe de grandes e consagrados tradutores que são disputados pelas editoras quando insistem na qualidade de seus produtos.

Jornal GGN: Qual a grande dificuldade do trabalho de tradução? E o grande segredo? E o que é imprescindível?

IB: Traduzir, em geral, é um ato cansativo: enfrentar dezenas e mesmo centenas de páginas, uma após outra, linha por linha, palavra por palavra… Hoje, mesmo com o computador, que permite a justaposição de um dicionário ao texto que se está traduzindo, a tarefa exige um esforço considerável, e os tradutores mais rápidos conseguem no máximo vencer uma página a cada 20 minutos. Já no caso de traduzir poesia, tal cálculo não pode ser feito e qualquer tipo de avaliação será sempre precária. Não há grandes nem pequenos segredos para traduzir: conhecimento da língua, principalmente da língua pátria, bons vocabulários auxiliares, sendo imprescindível a honestidade em relação ao que se traduz.

Jornal GGN: O trabalho de tradução de um poema deve, segundo o senhor já disse, levar em conta o sentido do poema, os efeitos sonoros, a métrica, as rimas, o jogo de palavras, os trocadilhos, os duplos sentidos, as polissemias2 e ainda procurando obter o efeito poético equivalente na outra língua. Podemos comparar isso a uma atividade de malabarista ou de andar na corda bamba, como o senhor já afirmou em artigo. A imagem de um brinquedo de armar ou de encaixe, onde se vai por tentativa e erro até que se obtenha a solução que contemple todos os aspectos montados no verso é adequada para esse desafio?

IB: De um modo geral, o tradutor começa fazendo uma transposição literal do verso, ao mesmo tempo em que procura ajustá-la à métrica adotada (no meu caso, decassílabo). Dessas tentativas vai surgir o primeiro verso traduzido aceitável, isto se a palavra final ensejar a possibilidade de rima e, neste caso, consulta-se imediatamente o 3º verso para ver quais são as chances de acerto. Assim por diante, de modo que vamos tendo uma espécie de colcha de retalhos que precisa ser ajustada (métrica e rimicamente). Depois disso, a “colcha” deve ser reelaborada à procura de versos melhores, mais bem feitos, mais sonoros, mais significativos em português. O resultado final será uma colcha que perece feita sem as emendas dos retalhos, como um painel completo em si mesmo.

Jornal GGN: Se o tradutor não tem pleno domínio fonético na língua da qual traduz, não tem fluência oral, mesmo assim ele consegue imaginar como o verso todo, em conjunto, deveria soar, consegue perceber detalhes como, por exemplo, as aliterações em um verso?

IB: O ideal seria o tradutor conhecer o trabalho também do ponto de vista fonético, para avaliar sua fluência, seu andante ou seus tropeços. Não tendo esse domínio, resta-lhe a imaginação e a perícia para encontrar as equivalências requeridas.

Jornal GGN: A atividade de tradução muda sua perspectiva como leitor? E como escritor?

IB: No meu caso pessoal, a tradução de grandes poetas (Shakespeare, Rimbaud, Montale, etc) aguçou minha capacidade crítica, impondo-me uma rigorosa fiscalização da qualidade de meus próprios trabalhos. Ao mesmo tempo que me serviu de escola e incentivo.

Jornal GGN: Quem deu estímulo e apoio decisivos para sua primeira edição dos sonetos de Shakespeare traduzidos? Nas pesquisas que fiz, vi que pelos menos dois nomes aparecem ligados à edição das suas traduções dos sonetos: Antônio Houaiss e Carlos Lacerda. Pode nos contar qual foi a participação de cada um para a edição do livro?

IB: Devo inicialmente a Mário Faustino o incentivo para que eu me dedicasse à tradução de poesia. A Antônio Houaiss por analisar a qualidade literária dessas traduções e finalmente a Carlos Lacerda por tê-las editado.

Jornal GGN: Se, como o senhor já afirmou em relação ao professor e crítico francês Henri Meschonnic, nem sempre o conhecimento teórico assegura a realização poética, o que é preciso para poder enfrentar uma tradução como essa dos sonetos do Shakespeare?

IB: Dedicação integral. Fazer disso um programa de vida. Convívio permanente com a obra. Muito trabalho manual, dezenas e dezenas de tentativas para acertar um verso. Leituras infinitas de comentários, de outras traduções (até mesmo as péssimas), na sua e em outras línguas. Enfim, amor fiel, constante, desesperado, não correspondido pois que o resultado final será sempre aquém do que se espera.

Jornal GGN: Como foi a repercussão da sua tradução dos sonetos do Shakespeare? Gostaria de traduzi-los todos ou, ao menos publicar mais alguns (como os sonetos CXXIX e LXXXVII) quando alcançarem o padrão esperado, como o senhor afirma, ou já considera encerrado esse trabalho?

IB: A edição original saiu num coffee-table book (30X40 cm), encadernado, profusamente ilustrado, em edição fora do comércio destinada a bibliófilos. Pouco tempo depois, a Nova Fronteira lançou uma edição comercial com os 24 sonetos, recebendo críticas favoráveis. Edições sucessivas englobaram 30 sonetos e depois 42, finalizando com a dos 50 sonetos, que considero definitiva. Essas edições sequenciais e seus respectivos acréscimos atestam a ampla aceitação do público. Desde o princípio havia definido 50 sonetos (ou cerca de 1/3 do total) como sendo a minha meta, pois não estava disposto a passar boa parte de meu resto de vida envolvido com o Vate. Com essas duas últimas edições diferentes dos 50 sonetos considero encerrada a minha lida.

Jornal GGN: Em relação à tradução de poesia, o senhor considera, no geral, mais difícil o verso metrificado ou o verso livre? Embora no verso metrificado haja mais limitações, como o número de sílabas, os ictos3 e as rimas (quando as há), parece que existem, também, critérios mais “objetivos” quanto ao sucesso da tradução, ao passo que, no verso livre, o ritmo e a musicalidade tendem a ser mais intangíveis e mais plásticos. O que o senhor pensa a respeito?

IB: Acho que a tradução de versos livres permite uma participação maior do tradutor ao transladar o sentido do poema pois deve manter principalmente o “clima” em que ele é expresso mediante uma escolha e posicionamento especial dos termos. Já traduzi uns dois ou três poemas em versos livres que me deram mais trabalho (indecisões, alternância de escolhas, etc.) do que os de forma fixa. O importante é manter a plasticidade do original, verso livre está mais próximo do pictórico do que do lírico.

Jornal GGN: Na tradução do poema “Mémoire”, de Rimbaud, o senhor optou por substituir os alexandrinos e as rimas do original pelo verso livre e branco. Em quais condições o senhor considera justificável a adaptação do esquema formal do texto fonte às especificidades de nossa língua?

IB: Aconteceu aqui precisamente o que procurei dizer na resposta anterior: as tentativas de manter métrica e rima desfiguravam totalmente o fluxo não cadenciado dos versos. Acabei me convencendo de que se tratava de um poema “plástico” e que era necessário manter suas – digamos – circunvoluções. A solução foi uma sequência musical de equivalências, se é que isto faz sentido.  Tal técnica não funcionaria no “Bateau Ivre”, que requer um equilíbrio especial entre ritmo e rimas, obtido pelo emprego virtuoso dos enjambements4 de alexandrinos5, e a sua não-manutenção desequilibraria totalmente o andamento do poema.

Jornal GGN: Nos anos 50, o senhor trabalhou na Revista Senhor desde o primeiro número, onde teve contato com grandes nomes do jornalismo como Nahum Sirotsky, Ivan Lessa, Luiz Lobo e Paulo Francis. Pode nos contar o quanto essa experiência foi desafiadora no que se refere aos trabalhos de tradução?

IB: Entre outros colaboradores de peso, havia o Paulo Francis, que já me conhecia do Suplemento Dominical [Jornal do Brasil]. Foi ele quem me entregou a tradução das novelas que saíam em cada número, todas de grandes qualidades literárias (Hemingway, Mary McCarthy, Mark Twain, etc.), além dos contos. A qualidade dos trabalhos permitiu-me a condição de colaborador e escrevi várias matérias além de publicar poemas meus e traduzidos. O espírito de equipe da Senhor me permitia manter a qualidade dos trabalhos traduzidos sem que a urgência de entrega nela interferisse.

Jornal GGN: A tradução da obra completa de Rimbaud foi um trabalho de toda uma vida. Além disso, a correspondência do escritor foi publicada de forma bastante original. Pode nos contar um pouco quais aspectos considera mais importantes nesse trabalho? Qual foi a importância de Ênio Silveira e Alceu Amoroso Lima nesse trabalho?

IB: A obra completa foi publicada em três volumes: Poesia, Prosa Poética e Correspondência. Para as cartas que Rimbaud trocou com a família durante sua permanência na África adotei o expediente de não só traduzi-las mas comentar as circunstâncias em que foram escritas. Disso resultou uma biografia completa de Rimbaud lastreada em documentos. Dr. Alceu me elevou às alturas ao considerar extraordinária a minha tradução da “Saison”, conforme grifou na dedicatória do livro que me ofereceu já em nossa primeira leitura em conjunto. Ênio foi o editor corajoso que enfrentou a ditadura para manter o prefácio de Alceu na tradução.

Jornal GGN: O senhor escreveu uma série de artigos sobre o período que trabalhou com Antônio Houaiss nas Enciclopédias Delta-Larousse, em 1972, e Mirador, em 1976, e sobre o que aprendeu com o grande filólogo e consagrado tradutor. Conte-nos um pouco sobre sua grande amizade com Houaiss.

IB: Com Houaiss aprendi tudo, desde editoração até arte culinária. Fui seu assistente, seu colaborador, seu amigo e dele recebi vários prefácios e apreciações por escrito. Dediquei-lhe o primeiro volume da obra completa de Rimbaud e escrevi sobre sua obra tradutória (Ulysses) no livro congratulatório de seus 80 anos, que seus amigos patrocinaram. Em meu blog Gaveta do Ivo falo longamente sobre esse convívio e esse aprendizado.

Jornal GGN: O senhor publicou o livro O Corvo e suas traduções, onde resgata o trabalho do mineiro Milton Amado, um tradutor praticamente desconhecido, e demonstra de forma exemplar que a tradução dele para o poema “O Corvo” de Edgar Allan Poe é genial e superior até às traduções de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Conte-nos um pouco sobre essa história.

IB: Eu via com tristeza, na época em que me iniciei no jornalismo, que o nome dos tradutores era quase sempre escamoteado das folhas de rosto das traduções, geralmente assinadas por figuras de destaque de nossas letras que apenas lhes haviam emprestado o nome. O caso mais gritante era o de Milton Amado, modesto escriba da província, que fizera uma tradução genial de “O Corvo”, de Allan Poe, e cujo nome nem sequer aparecia no livro. Tive oportunidade de escrever um artigo para a revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, de que eu era um dos conselheiros, demonstrando criticamente que a tradução de Milton era superior às de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Creio haver contribuído um pouco para que o nome dos tradutores hoje apareça sempre nas folhas de rosto dos livros e, em alguns casos, até mesmo na própria capa.

 

A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,

Arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.

De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia

E a sossegá-lo eu repetia: “É um visitante e pede abrigo.

Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.

É apenas isso e nada mais.”

 

Edgar Alan Poe, “O Corvo”, tradução de Milton Amado

 

Jornal GGN: Há algum autor fundamental da literatura universal que, na opinião do senhor, ainda não foi devidamente traduzido ao português?

IB: Certamente que há, mas tudo depende de critérios e gostos. Tenho insistido com os editores para que lancem no Brasil os livros do escritor sueco Stig Dagerman, até agora sem êxito. É pena, os editores portugueses já publicaram todos os seus livros. Em matéria de poesia, acho que até hoje não tivemos uma edição condigna do importantíssimo César Vallejo, que revolucionou a poesia hispano-americana. Eu gostaria de ter traduzido Pedro Salinas, que tanto encantou meus dias de faculdade…

Jornal GGN: No momento, passamos por um intenso debate sobre a reforma do Ensino Médio, no qual o papel da literatura na formação intelectual e afetiva dos alunos praticamente não tem sido discutido. Na opinião do senhor, qual é a importância do ensino de literatura nas escolas? Considera que a poesia dos grandes poetas ainda é capaz de atingir o leitor jovem, de ainda o emocionar?

IB: Acho o ensino de literatura imprescindível, mormente agora que o livro está ameaçado de desaparecer. Os jovens são susceptíveis à boa poesia, o problema é que os meios de que ora dispõem (celular, TV e Internet) só lhes servem o que há de pior. A escola tem a obrigação de ensinar os valores perenes, pois só eles têm a capacidade de emocionar.

 

Por que meu verso é nu de novas galas,

Alheio a variações, bruscas mudanças;

Por que com o tempo não pude enxergá-las,

Novas modas, e métodos, e nuanças?

Porque eu escrevo sempre igual, e dou-me

De expressar sempre o velho galanteio,

Que cada verso quase diz meu nome,

Revelando seu berço e donde veio?

Ó doce amor, é sobre ti que escrevo,

Tu e o amor meu repertório vasto;

A velhas frases dou novo relevo

Para gastar de novo o que foi gasto:

Pois como o sol é sempre novo e antigo

Meu amor te rediz o que eu te digo.

 

William Shakespeare, Soneto 76

 

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Blog de Ivo Barroso: Gaveta do Ivo

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Notas

 

  1. Aliteração:  repetição de fonemas (unidade sonora) idênticos ou parecidos no início de várias palavras na mesma frase ou verso, visando obter efeito estilístico ou sonoro na prosa poética e na poesia.

 

Veja, por exemplo, o verso de Caetano Veloso:

“Acho que a chuva ajuda a gente se ver”.

 

Observe estes versos que compõe a coletânea “Ou isto ou aquilo”, de Cecília Meireles:

 

“Olha a bolha d’água

no galho!

Olha o orvalho!”

 

  1. Polissemia: os muitos significados que uma mesma palavra é capaz de assumir. No dia a dia, restringimos o uso da polissemia para evitar a ambiguidade, mas na literatura, e principalmente na poesia, ela é utilizada de maneira mais livre.
  2. Icto: em versificação, sílaba tônica que, de um verso a outro, deve aparecer sempre na mesma posição. Por exemplo, nos famosos versos de Camões “Alma minha gentil, que te partiste/ Tão cedo desta vida descontente,/ Repousa lá no Céu eternamente/ E viva eu cá na terra sempre triste”:
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Al/ ma/ mi/ nha/ gen/ til/ que/ te/ par/ tis/ te
Tão/ ce/ do/ des/ ta/ vi/ da/ des/ con/ ten/ te
Re/ pou/ sa/ lá/ no/ Céu/ e/ ter/ na/ men/ te
E/ vi/ v’eu/ cá/ na/ ter/ ra/ sem/ pre/ tris/ te

 

Verifica-se que, obrigatoriamente, as sextas e as décimas sílabas poéticas são tônicas (ictos).

  1. Enjambement: também conhecido como “cavalgamento” ou “encadeamento”, é a interrupção de uma unidade sintática ao final de um verso e sua continuidade no verso seguinte. Exemplo de Olavo Bilac:

 

E paramos de súbito na estrada

Da vida: longos anos, presa à minha

A tua mão, a vista deslumbrada

Tive da luz que teu olhar continha.

 

Temos três casos de enjambements nesta estrofe: “(…) na estrada/ Da vida (…)”, “(…) presa à minha/ A tua mão (…)”, “(…) a vista deslumbrada/ Tive (…)”.

Alexandrino: Verso de doze sílabas poéticas, como uma cesura (pausa) na sexta sílaba poética, dividindo o verso em dois hemistíquios.

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Em dezembro de 1998 fiz várias visitas ao poeta João Cabral de Melo Neto a fim de entrevistá-lo para o Suplemento Prosa & Verso de O Globo. Durante quatro quintas-feiras estive em conversa com ele em seu apartamento da praia do Flamengo, um belo prédio de estilo francês com pé-direito alto e amplas janelas dando para o Aterro. A aproximação com o poeta fora feita por sua esposa Marly de Oliveira, nossa antiga colega no Clube dos Doze, nos idos de ´50, quando todos queríamos ser poetas editados. João Cabral não passava por momentos favoráveis: com o agravamento de seus problemas visuais estava quase cego, atormentado ainda pelo velho estigma de uma dor de cabeça (enxaqueca) que o perseguia desde sempre. Logo no primeiro instante afastou a ideia de entrevista e disse que podíamos conversar à vontade pois queria saber muita coisa a respeito do que os leitores achavam de sua poesia. Chegou mesmo a me perguntar numa das vezes se ele seria lembrado depois de morto. Eu lhe disse, com toda a sinceridade, que sua obra era um divisor de águas da poesia brasileira: AC (antes de Cabral) e DC (depois dele). E tive de lhe mostrar o quanto nós, os poetas mais jovens, devíamos à sua estética seca e destituída de pieguismo. Mas creio que ele não gostou muito (pelo rictus da face) quando lhe disse que o considerávamos o nosso Ezra Pound. Certa vez, com dificuldade, levantou-se da sala e foi buscar os dois volumes de seus versos que tinham saído pela Nova Fronteira, no ano anterior: “Serial e antes” e “A educação pela pedra e depois”. Neles conseguiu escrever dedicatórias muito simpáticas, embora com letra irregular. Numa delas: “A Ivo Barroso, seu já amigo, João Cabral de Melo Neto”. Durante as conversas, que transformei em entrevista (com sua aquiescência) fiz-lhe uma pergunta que todos queriam saber naquela altura; se ele, apesar de não ter tratado do tema amor em seus livros, havia feito um retrato poético da esposa em “Sevilha andando”, um de seus últimos livros. A resposta está nesta entrevista que saiu no Prosa & Verso de 9 de janeiro de 1999, encimada pelo mesmo retrato que aqui reproduzimos.

joao-cabral

─ João, como foi sua infância? Você era um menino triste?

JOÃO CABRAL DE MELO NETO: Tive uma infância feliz. Fui menino de engenho e lia muito desde criança. Havia livros em casa, meu pai era advogado e gostava de Eça de Queirós. Minhas primeiras leituras de poesia deixavam-me insensível, achava aquilo tudo muito chato. Só fui gostar de poesia depois que conheci os poetas modernos, principalmente Drummond e Bandeira, já então no Recife, quando meu pai vendeu o engenho e se mudou para a capital. Foi lá que fiz os primeiros estudos e encontrei duas pessoas que marcaram minha formação: Willy Lewin, que me iniciou na literatura, e Vicente do Rego Monteiro, nas artes plásticas. Lewin me emprestava livros franceses, e Vicente, que estava voltando de Paris, onde fora estudar pintura, trouxe uma coleção de livros sobre pintores. Também com relação à pintura, só fui achá-la interessante depois que conheci os pintores modernos. Quando morei na Espanha, conheci Miró, de quem fiquei amigo. Embora não os conhecesse pessoalmente, convivi com a pintura de Dali, que achava um charlatão, e a de Picasso, que considero o gênio das artes plásticas.

─Por falar em Espanha, acha que sua poesia teria sido a mesma se, em vez de ter passado ali uma grande temporada, tivesse sido designado para a França ou a Inglaterra?

JOÃO CABRAL: A literatura espanhola ajudou-me a fixar alguns objetivos a que eu me predispunha, deu-me coragem para prosseguir no caminho da concretude. Minha ida para a Espanha como primeiro posto e voltando a servir ali em várias outras ocasiões fez com que me identificasse com aquele país. Sevilha é das minhas admirações mais profundas, o que fez talvez com que não me importasse muito com outras paisagens culturais do mundo. Além disso, conheci em profundidade a literatura espanhola antes de conhecer bem a portuguesa e acho-a superior, mais rica que esta. Dentre os poetas portugueses, costumo destacar Cesário Verde, um dos poucos que me parece isento de sentimentalismos. Na verdade, sem a influência da poesia espanhola eu não teria feito o mesmo tipo de poema.

─ E quanto à literatura inglesa, quais são suas preferências?

JOÃO CABRAL: Quando fui servir em Londres, em 1950, comecei a ler os poetas ingleses desde Chaucer e me interessei principalmente pelos metafísicos, que de metafísicos não têm nada. Dos posteriores, os que mais me chamaram a atenção foram George Crabbe (1754-1832) e Wilfred Owen (1893-1918). Depois me interessei por W H. Auden (1907-¬1973), mas não posso dizer que os ingleses tenham concorrido significativamente para o rumo da minha poesia.

─ Além da poesia e da pintura, que outra atividade artística o atraía?

JOÃO CABRAL: 0 cinema, por exemplo. Em Londres, filiei-me a uma meia dúzia de clubes de cinéfilos, de modo que podia ver um filme importante por dia, variando de clube. Foi assim que vi todos os clássicos russos, franceses e ingleses que me interessavam. Depois disso, o cinema perdeu muito para mim, pois sempre tinha a sensação do déjà vu.

─ Quem ligado às artes você conheceu na Inglaterra?

JOÃO CABRAL: Estive num almoço literário em homenagem a Eliot, mas não houve uma aproximação entre nós. Fui lá a convite e levado por Beata Vettori, que era minha colega no consulado e conhecia muitas pessoas no mundo das letras inglesas. À porta havia um aboyeur que anunciava aqueles que chegavam, geralmente dizendo-lhes o nome, a atividade exercida ou a função que ocupavam. Pude observar que Eliot permanecia imóvel mesmo diante de nomes importantes da poesia inglesa, mas se levantava solícito e corria ao beija-mão de qualquer dama do society inglês que chegava. Claro que isso não diminuiu em nada a admiração que tenho por sua obra. Considero “‘The Waste Land” e os “Four Quartets” os livros fundamentais da poética de nosso século. Já suas peças, como “Murder in the Cathedral”, por exemplo, me parecem grandes discursos poéticos destituídos de dramaturgia.

─ Quais são os seus poetas franceses preferidos?

JOÃO CABRAL: Gosto principalmente de Baudelaire, e de Valéry, sobretudo o Valéry teórico, pois o poeta me parece um tanto preso à tradição melódica. E de Mallarmé, por seu cuidado com a construção do verso.

─E no Brasil, quem destacaria?

JOÃO CABRAL: Sempre achei Drummond, Murilo, Joaquim Cardozo e Bandeira grandes poetas. Sobre os vivos, é difícil opinar, pois se esqueço algum me sinto mal.

─Quando diplomata, gostava da vida social, teatros, restaurantes?

.JOÃO CABRAL: Frequentava os tablaos na Espanha. Nunca fui um “gourmand” e muito menos um “gourmet”. Nunca me preocupei com comida no sentido seletivo ou esnobe do termo, de bons restaurantes, cozinheiros famosos. Na Espanha, vez por outra, ia a Cádiz comer mariscos, mas sempre em função de algum convite ou dever de ofício. O mesmo em relação a bebidas. Não sou apreciador de vinhos de mesa. Além do uísque dos coquetéis diplomáticos. sempre preferi o xerez e a manzanilla, vinhos que se tomam para conversar.

─Você que é o poeta mais premiado do Brasil, qual sua atitude diante dos prêmios literários?

JOÃO CABRAL: Acho bom recebê-los. Um prêmio literário dá satisfação a quem o recebe. Mas nunca andei “cavando” nada para isso. Minha única interveniência na consecução de um prêmio — o que recebi com o poema “O Rio” — foi inscrevê-lo no concurso, o que era obrigatório. Os outros vieram por via natural.

─ E o que pensa do Nobel?

JOÃO CABRAL: Nunca pretendi recebê-lo. Creio que a Academia Sueca não tem acesso direto à língua portuguesa, lendo seus autores (se os lê) por meio de traduções. Pelo pouco que li da tradução de meus livros acho que as perdas são grandes e sempre achei que havia outros brasileiros que o mereciam mais que eu. Desconfiei da possibilidade de ele vir a ser dado a um escritor de língua portuguesa, mas agora que foi concedido a Saramago, certamente levará outro século para que se lembrem novamente de nossa língua.

─Que significa para você a poesia? Se não fosse poeta, o que seria?

JOÃO CABRAL: A poesia é um trabalho, uma função, um ofício. Sempre quis ser um crítico literário, mas nunca me senti com capacidade suficiente para exercer a crítica. Passei a escrever, a fazer, a construir poesia, aquela poesia que eu, como crítico literário, gostaria de ver que alguém fizesse. Se não tivesse sido poeta, talvez fosse um diplomata melhor.

─Qual o sentido da vida ?

JOÃO CABRAL: Não gosto dessas questões metafísicas. Posso dizer apenas que com a idade nossas certezas ficam um tanto duvidosas.

─Em sua poesia, como você próprio já disse, o tema do amor está ausente. Mas, “Sevilha andando” não será um grande poema de amor à Marly? Em outras palavras, Sevilha=Marly?

 JOÃO CABRAL: É. Os críticos têm dito muita coisa sobre a minha poesia que jamais me passou pela cabeça. Mas você acertou. “Sevilha andando” é ela mesma.

E podemos esperar outro livro, que você estaria ditando, já que não consegue mais escrever?

JOÃO CABRAL: Não, estes dois foram meus últimos livros. Escrever poesia era para mim um ato visual, de trabalho quase manual com a palavra. Sem isto não consigo fazer poemas. Nunca os fiz na mente, a não ser uma ou outra ideia, que em seguida guardava no papel. Também não consigo “ouvir” poesia, que só se concatenava em meu espírito mediante sua forma no papel. No entanto, todos os dias minha mulher lê algo para mim, sempre uma releitura de meus livros. Há alguns meses, minha filha Inez tem passado por aqui de manhã e sempre lhe peço também que me leia alguma coisa. Mas abandonei o fazer poético porque, além da vontade, também as forças me vão faltando com o tempo e o sofrimento.

 capas

 

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Vida Boa

Um bancário com alma de poeta

Devo meu casamento à minha entrada no Banco do Brasil. Explico. Em 1953, a Sílvia, minha então namorada, me deu um ultimato: disse que eu precisava ter um emprego fixo, que me permitisse seguir uma carreira, para que pudéssemos enfim nos casar. Não me adiantou argumentar que não tinha temperamento ou habilidade para ser bancário, já que pretendia me tornar jornalista e poeta e estudava línguas e literaturas neolatinas na Faculdade Nacional de Filosofia. Mas o amor foi maior e segui a orientação dela: fiz cursinho, passei no concurso e, em janeiro de 1954, aos 24 anos, tomei posse no BB.

Ah, o casamento aconteceu em 1956, e ainda bem que dei ouvidos à Sílvia. Depois de 35 anos de uma auspiciosa carreira, aqui e no exterior, me aposentei em 1989 com a sensação do dever cumprido e com a felicidade de ter sido um bom profissional, que soube aproveitar todas as oportunidades que lhe foram oferecidas ao longo dos anos. Depois de aposentado, intensifiquei minha atividade literária escrevendo para jornais, publicando meus próprios livros e traduzindo cerca de 30 autores consagrados do inglês, francês, espanhol e italiano.

Comecei a traduzir por curiosidade. Ao longo da vida, fiz traduções por desafio, para ganhar dinheiro e para minha satisfação pessoal. Algumas, no entanto, foram feitas por amor, ou seja, por dedicação absoluta – sem pensar na publicação e muito menos na remuneração –, e me trouxeram aquela euforia inigualável própria do ato criativo. . Fui um dos selecionados pelo Prof. Paulo Rónai para traduzir trabalhos da Coleção dos Prêmios Nobel de Literatura; auxiliei Antônio Houaiss na Grande Enciclopédia Delta-Larousse e Carlos Lacerda na Enciclopédia Século XX. Por alguns trabalhos recebi prêmios, como o Jabuti, pela tradução de Os Gatos, de T. S. Eliot, outro pela Novela do Bom Velho e da Bela Mocinha, de Ítalo Svevo  e o da Academia Brasileira de Letras, pelo Teatro Completo, igualmente de  Eliot, Também traduzi Shakespeare, Rimbaud, Hermann Hesse, Calvino, Kazantzakis, Umberto Eco e vários outros.

Minha carreira bancária teve início na seção de Imposto Sindical da agência Centro, no Rio de Janeiro. Trabalhei depois em Cobranças no Interior, Cadastro e na Administração do Edifício Sede (todos onde hoje funciona o CCBB). Já comissionado fui servir na Gerência de Exportação da Cacex, onde me especializei em política do cacau, tendo representado a Carteira em várias reuniões internacionais. Em função desse trabalho, fui indicado, num convênio entre o Banco do Brasil e o Itamarati, para exercer as funções de adido comercial do Brasil na Holanda, de 1968 a 1970. Por esse trabalho de promoção comercial recebi a condecoração de Cavaleiro da Ordem de Oranje-Nassau.  Em 1973, tirei licença sem vencimentos e fui para Portugal como redator da revista Seleções do Reader’s Digest. Em 1978, voltei ao Banco como subgerente da agência de Lisboa, onde permaneci por cinco anos. Em 1983 fui transferido para a agência do BB em Londres, realizando assim o meu grande sonho de morar naquela cidade incrível. Em 1985, fui designado  para a Suécia, como primeiro gestor do escritório de representação do Banco em Estocolmo, onde me aposentei em 1989.

Antes de voltar definitivamente ao Brasil, eu e Sílvia, que é cantora lírica, realizamos outro sonho e vivemos mais quatro maravilhosos anos na França, onde pudemos desfrutar de toda a cultura europeia, que tanto amamos, e pude me dedicar ainda mais ao estudo dos autores que ia traduzindo.

Comprava e colecionava todos os livros, revistas e recortes que podia sobre a vida/obra do diabólico Arthur e cheguei a ter umas três centenas de livros correlatos. Quando regressei ao Brasil, em 1993, encontrei no editor José Mário Pereira, da Topbooks, um entusiasta pela obra de Rimbaud e com ele vim a editar os três volumes, Poesia Completa, Prosa Poética e, finalmente, a Correspondência, que saiu em 2009. Para fugir à tentação de voltar a rever a obra do poeta, doei todos os 180 livros de minha coleção “rimbaldiana” à biblioteca do Centro Cultural Banco do Brasil.

Aos poucos, fui publicando minhas próprias obras. Os livros de versos Nau dos Náufragos (1982) e Visitações de Alcipe (1991) foram editados em Portugal. No Brasil, publiquei A Caça Virtual e Outros Poemas (2001, finalista do Prêmio Jabuti de poesia daquele ano), editado pela Record. Organizei os livros Poesia e Prosa, de Charles Baudelaire (Nova Aguilar, 1995) e À Margem das Traduções, de Agenor Soares de Moura (Arx Editora, 2003). Escrevi o ensaio O Corvo e Suas Traduções (Nova Aguilar, 2000 – 3ª edição, 2012, pela LeYa-SP) e o manual Poesia Ensinada aos Jovens (Tessitura-BH, 2010). Para o Banco do Brasil, especificamente, escrevi o livro A Moeda no Brasil, que vem sendo periodicamente reeditado desde 2000, e traduzi o extenso catálogo da Exposição Paris 1900, realizada no CCBB em maio/junho de 2002.

Atualmente, vivo no Rio de Janeiro dedicado exclusivamente aos meus trabalhos literários e jornalísticos, e claro, a acompanhar de perto e a me maravilhar com as apresentações líricas da Sílvia, cuja voz permanece a mesma de quando me apontou o caminho glorioso do Banco do Brasil.

Saiu na revistinha da PREVI (Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil) em seu número de maio de 2013.

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Um Senhor em meu lugar

Em 1959, embora já trabalhasse no Banco do Brasil, eu dava meio expediente na Editora Delta, à travessa do Ouvidor, 66 – 3º andar, no Rio de Janeiro. Não consigo me lembrar como fui parar nessa empresa, provavelmente porque a essa altura, já colaborando com o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil e com dois livros traduzidos para a Civilização Brasileira, eu andasse buscando trabalhos extras onde quer que fosse. Soube que a Delta estava preparando uma enciclopédia e lá havia verbetes para tradução. Creio que comecei por aí, mas acabei indo trabalhar com o Dr. Pedro Lorch, um dos sócios da firma, na edição, para o público jovem brasileiro, de uma adaptação da enciclopédia juvenil norte-americana, Our Wonderful World. Toda semana, no  4º andar da editora, reunia-se um grupo de intelectuais (um brain storm, como dizia o Dr. Pedro) para opinar sobre as matérias que deviam entrar em tradução no livro e sobre as que precisavam ser adaptadas ou suprimidas. Eu devia atuar como uma espécie de secretário silencioso, anotando as sugestões. De posse delas, competia a mim encontrar os livros em que tais sugestões apareciam, copiá-las e conformá-las ao espaço a elas destinado no livro. Onde aparecia no original inglês, por exemplo, o diário de navegação de Colombo, a sugestão óbvia era trocá-lo pela carta de Caminha, e eu devia examinar o livro e achar os trechos correspondentes para depois adequá-los às páginas de nossa enciclopédia. Esse trabalho era feito na biblioteca do 3º andar, onde eu trabalhava sozinho, pesquisando os livros que lá havia e outros que eu podia encomendar à vontade às livrarias associadas da Delta. Nesse verdadeiro paraíso, sonho dourado do jovem poeta e escritor que então eu era, além de conviver com grandes intelectuais como Anísio Teixeira, Otto Maria Carpeaux, Aurélio Buarque de Holanda, Antônio Houaiss, Darcy Ribeiro, Péricles Madureira de Pinho e outros, eu ficara conhecendo o Carlos Scliar, que tratava das ilustrações e da paginação do livro, e chegou a montar seis cadernos da nossa enciclopédia (que guardo até hoje como relíquia). Mas quando estava mais me deleitando com aquele banho lustral, apesar das dificuldades crescentes para encontrar as fontes sugeridas nas reuniões, Scliar me informou que a obra ia ser descontinuada para dar lugar a um novo projeto que acabara de ser aprovado pela  Delta: a criação de uma revista. Senti-me ameaçado e mesmo despedido e fui falar com o Dr.Pedro, que me disse ser verdade, que a enciclopédia entraria em recesso e eu devia desocupar a biblioteca para a nova turma que chegava. Mas não estava despedido, apenas perderia a exclusividade da sala, pois ela seria transformada em redação. Sem dúvida teriam um lugar de tradutor para mim na futura revista. O mal é que  eu  ia  ficar  sem   o  “ bico ” que , confesso, graças à proteção de (são) Pedro Lorch, era bem remunerado. Mas vibrei quando me garantiu que eu não sairia da editora, talvez apenas da biblioteca. E a minha catedral refrigerada e silenciosa, onde eu fazia as minhas pesquisas e condensações, se viu um dia, de repente, invadida por uma turma ruidosa e descontraída que vinha criar a revista Senhor.

Quando cheguei de manhã, já encontrei a sala ocupada. À mesa, que eu considerava minha, estava sentado um senhor forte, de terno e gravata e fumando cachimbo, uma gravata dessas coloridas de entrevista na televisão. Ao lado dele, na mesinha onde eu escrevia à máquina, uma jovem senhora, com todos os clichês de secretária do chefão. Tratava-se de Nahum Sirotsky, jornalista da pesada, que estava vindo da Manchete depois de passar por vários jornais e revistas de prestígio e ter sido jornalista acreditado junto à ONU, em Nova York. É possível que tenha trazido de todos esses postos avançados uma certa pinta de americano, pois só aprovava os trabalhos ou sugestões de seus auxiliares com um  okie dokie, que era também correspondido por eles. E eles eram: Paulo Francis, Ivan Lessa, Luís Lobo, Adirson Barros, e na parte gráfica, além naturalmente do Scliar (que como eu já estava na casa), Glauco Rodrigues e Jaguar. Com a presença dos irmãos Weissmann (Simão e Sérgio), os sócios da Delta mais diretamente ligados à revista, Nahum fez um briefing sobre os objetivos da publicação que seria destinada a homens mas dirigida às mulheres de bom gosto; trataria de política e literatura em pé de igualdade; primoroso apuro gráfico; um estudo de fotógrafos premiados, mostrando moças bonitas e descoladas; muito humor, escrito e desenhado; ensaios sérios ao lado de dicas frívolas e maneirosas. Enfim, uma revista que pretendia ser uma New Yorker ou uma Esquire  mas com a nossa sem-cerimônia tropical. E apresentou um “boneco” do que seria o primeiro número: artigos de Carlos Lacerda, Otto Maria Carpeaux, Anísio Teixeira, Odilo Costa Fº, Reynaldo Jardim, Clarice Lispector,  Flávio Rangel, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos,  além de poemas e uma novela completa.

 **

Nahum, com seu cachimbo, juntamente com os okie dokies Ivan Lessa, Luiz Lobo e  Paulo Francis, pareciam todos empolgadíssimos como que antevendo a revolução gráfica que iriam causar no mundo editorial. Diferentemente do que ocorrera na enciclopédia, eu agora me sentia de todo sem função no meio daqueles rapazes agitados que se comportavam como estrangeiros (ou pelo menos com a ideia que eu fazia de estrangeiros). Continuei a ter uma mesinha com máquina de escrever que a bem dizer não usava, já que era continuamente compartilhada com os dinâmicos redatores. O mais lépido e trepidante deles,  Ivan Lessa, havia recém-chegado de Londres, onde morava, e produzia ideias em cascata,  parecendo estar ao mesmo tempo em todos os cantos e banheiros da editora. Luiz Lobo , mineiro já aclimatadamente carioca, distribuía seu sorriso matreiro mesmo tratando dos assuntos mais sérios, nos quais sempre introduzia um viés malicioso. Francis chegara na base do low profile, pois dias antes tinha sido o protagonista de um episódio então comentado a sottovoce pelos redatores da revista: ele fizera a crítica de um espetáculo teatral da companhia Tônia, Celi, Autran, e marcara a bobeira de insinuar que seus componentes formavam “um trio amoroso”. Dias depois, numa apresentação pública, Celi encontrara Francis na plateia, tirara-lhe os óculos e lhe aplicara um tabefe no rosto. Eu, que   já o conhecia dos tempos do Suplemento do JB e sabia de sua ampla cultura literária, logo me aproximei dele e antes de sair o primeiro número, em março de 1959,  ele já me “distinguia” com a encomenda da tradução de “As Neves do Kilimanjaro”, de Hemingway, para sair no lançamento da revista, onde acabei aparecendo em dose dupla, pois, nesse número inaugural, saiu também a minha tradução de um conto de Ray Bradbury, En la noche, apropriadamente ilustrado por Jaguar. Francis gostou tanto do trabalho que até escreveu uma nota de abertura dizendo que eu havia propositadamente usado os tratamentos tu e você na mesma frase para dar aos diálogos maior fluência e naturalidade.

Eu logo me integrava na equipe da Senhor e passei a traduzir sistematicamente todas as novelas e também alguns contos esparsos e poemas. Nahum chegou a me encomendar um artigo  “Para inglês ver”, que saiu no número de abril de 1959. Passei a “viver” o clima de agitação da revista, indo lá todos os dias, mesmo quando não tinha trabalhos para receber ou entregar. Um de seus financiadores, o jovem Sérgio Waismann, que também fumava cachimbo, entusiasmado com a dinâmica de Nahum, gostava de circular pela redação conversando com as figuras importantes que nos visitavam ou vinham trazer suas colaborações, e me tratava como um velho funcionário da casa. Tudo cheirava a sucesso. Grande foi a euforia dos patrocinadores e maior ainda a dos redatores com o lançamento dos primeiros números, largamente elogiados pela imprensa, embora as vendas ainda fossem inexpressivas e as firmas se mostrassem arredias diante dos altos padrões de qualidade exigidos para a colocação de anúncios.    Mas, ao fim de três meses, as finanças começaram a andar mal e os demais sócios resolveram estabelecer um dead line para saírem do vermelho. Contrataram então Ivan Meira e Edeson Coelho para comandar a publicidade e eles apareceram à frente de um grande séquito com a aura de trazerem consigo as contas publicitárias mais gordas do país. Contudo a vinda deles implicou apenas em acréscimo da folha de pagamento e a consequente redução do dead line antes imposto. Em fins de 1962, Reynaldo Jardim, que já havia assumido o lugar de Nahum, e o Edeson Coelho, o corifeu do gigante publicitário, assumiram o patrimônio da revista. Fui mantido em meu cargo de tradutor oficial e minha última colaboração neste setor foi a novela “Amor no trem ”, de Mary Mac Carthy, em setembro de 1962. Reynaldo, não podendo pagar os altos direitos autorais exigidos pelas editoras estrangeiras das novelas, resolveu substituí-las por uma seção chamada “Balaio”, que era uma espécie de suplemento literário com notas sobre livros, teatro, cinema, etc. Nela publiquei, no mês seguinte, um texto sobre Hermann Hesse, que havia falecido em agosto daquele ano.   Com a nova direção, a revista em seguida mudaria de endereço, deixando a travessa do Ouvidor. Seriam ainda editados alguns números, com novo rumo editorial, que dava maior ênfase aos assuntos econômicos. Acabou encerrando definitivamente suas atividades em janeiro de 1964.  E assim fiquei de novo sozinho na biblioteca, de volta ao trono, aguardando que um novo milagre viesse a acontecer…

Saiu no jornal (papel e JPG) O TREM ITABIRANO em setembro de 2013.

Nota: Se querem saber como acabou a história, é só ler a parte final do post de 27.05.2012 (Lembrança de Houaiss) aqui

fábulas

POR FIM, AS VERDADEIRAS FÁBULAS DE LA FONTAINE

Jean de La Fontaine (1621-1695) não escondia o jogo e informava desde o início a origem  de sua inspiração: “canto aqueles heróis cujo pai foi Esopo” e “me sirvo de animais para   instruir os homens”. Essa declaração consta do prólogo de sua primeira coletânea de fábulas (124) dedicadas a Monseigneur Le Dauphin, o filho mais velho do rei Luís XIV, o qual, naquele ano de 1668 contava apenas 8 anos e 5 meses de idade. Era essa a maneira notória com que os escritores da época buscavam a proteção de um mecenas para poder exercer seu ofício literário sem se aterem às preocupações domésticas. A oferta surtiu efeito e La Fontaine foi agraciado pelo rei com uma pensão anual de mil francos, além de fazer amizade com Nicolas Fouquet, superintendente das finanças reais, que lhe arranjou um emprego para o ajudar em sua obra poética. Certamente as coisas seriam ainda melhores se o delfim tivesse ascendido ao trono, mas ele morreu antes do pai e a coroa terminou cabendo a um bisneto de Luís XIV. Por outro lado, Fouquet se indispôs com o rei, perdeu o emprego, e quase arrasta nas más graças  La Fontaine, cuja sorte no entanto  permitiu com que duas  damas da corte, as duquesas de Bouillon e a de Orleãs, o hospedassem em suas mansões. Como não podia deixar de ser, o escritor acabou sendo recebido na Academia Francesa em 1684, apesar de certa oposição que o rei fazia ao seu nome, por ver, em suas Fábulas, alusões desagradáveis aos procedimentos da Corte

Ao longo de 25 anos (1668-1693), La Fontaine produziu e editou um total de 243 historietas,  divididas em 12 tomos, que se tornaram dos livros mais lidos da literatura francesa, e, no dizer de um de seus antigos editores, lhe asseguraram o lugar de “o mais francês de nossos poetas, o que embala nossa infância e cujas fábulas sugamos, de certa forma, junto com o leite materno”

Essas fábulas, apesar de lidas por crianças de todo o mundo, não se limitam a ser especificamente um livro infantil; os ensinamentos morais que delas derivam se aplicam não só aos homens comuns, mas aos governantes e poderosos. Além disso, a livre expressão de seu estilo, a recorrência a termos técnicos de diferentes artes e ofícios, suas alusões à história, à mitologia e aos costumes populares exigem uma leitura adulta e, em alguns casos, até mesmo inquiridora. Eis a razão porque certas edições aparecem pontuadas de notas, algumas bastante curiosas, como a do entomólogo Jean-Henri Fabre (1823-1915) que apontou erros científicos no comportamento dos insetos da fábula A Cigarra e a Formiga.  Certamente o cientista não soube ler o poeta que, desde o início, dando vozes aos animais, pretendeu criar uma feérie, uma fantasia, e não escrever um tratado zoológico…

As fábulas de La Fontaine atraem principalmente pelo “descompromisso” de sua leitura, pela liberdade de seus versos de metros variados e rimas não pretensiosas, recheados de expressões familiares, fazendo da linguagem animal um pastiche da humana. Era natural que o texto viesse a exercer fascínio sobre os tradutores de todas as línguas e, em português, temos inúmeros exemplos, desde os clássicos Manuel Barbosa du Bocage, Filinto Elísio, Curvo Semedo, Jaime de Séguier e Gonçalves Crespo aos nossos Machado de Assis, Raimundo Correa e o quilométrico Barão de Paranapiacaba. De tempos em tempos, o livro é revisitado, a linguagem atualizada, como aconteceu em nossos dias com as traduções de Milton e Eugênio Amado em 1989 e a do poeta Ferreira Gullar em 1997. E agora nos chega a boa surpresa neste volume das Fábulas Selecionadas de La Fontaine, edição encadernada em cor azul da Cosac Naify, com ilustrações do artista norte-americano Alexander Calder e tradução (como sempre impecável) do nosso Leonardo Froes. Como alguns de seus predecessores famosos (Jean de Granville, Karl Girardet, Gustave Doré, Marc Chagall, etc), Calder, o famoso criador dos móbiles e das esculturas monumentais, também se apaixonou pelas fábulas e selecionou 36 delas para ilustrar. O resultado foi a criação de desenhos um tanto cômicos e bem arejados que diferem das concepções macambúzias de seus antecessores. E exibem uma dinâmica gestual que se casa perfeitamente com a naturalidade da exposição poética de La Fontaine. Em pé de igualdade,notórios são os acertos do tradutor: sem se afastar uma sílaba que seja da métrica original, Leonardo Froes consegue traduzir integralmente sem adaptar, sem reescrever, sem copidescar. O texto francês posto em cotejo permite ao leitor seguir a habilidade com que ele translada não só o sentido, mas as mesmas palavras, ditas na mesma forma em que  estão no original. As múltiplas adaptações de todo gênero, que inundaram o mercado de livros infantis, só serviam para falsear o texto, descaracterizar o estilo do autor. Felizmente com esta bela edição da Cosac Naify, as crianças poderão conhecer o que lhes vinha quase sempre adulterado, os leitores adultos reavaliar um texto que lhes parecerá inteiramente novo e, aqueles que se interessam diretamente pela exaustiva arte da tradução, aplaudir a segurança com que Froes vai assimilando e reproduzindo cada verso do francês.#

Saiu no  Prosa & Verso (O Globo) em 17.08.2013 com o título “Cálder, Fróes e as Fábulas de La Fontaine”

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Lembrança: Souvenir, souvenir, que me veux-tu ? (Verlaine). Eu saía de casa no square (espécie de rua particular) du Trocadéro e descia  pela rue Sheffer à esquerda em direção da rue du Passy. E era só continuar pela rue du Passy que se chegava à Chaussée de la Muette já na entrada do parque  Ranelagh onde se encontra o excelente museu Marmottan com suas 65 telas de Monet, doadas por seu filho Michel em 1971. O parque é dedicado às crianças e tem um teatro de marionetes (guignol) e um carrossel. Mas antes,  logo à entrada, está a enorme estátua de La Fontaine com o indefectível corvo trazendo en son bec un fromage. Voilà!

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suplemento 001

Em dezembro do ano passado, o Suplemento Literário do Minas Gerais publicou a entrevista que pode ser lida abaixo. Está nas páginas 12 a 17, sendo que esta última estampa a tradução do poema To Helen/A Helen, de Edgard Allan Poe, que eu mantinha até então inédita. Enjoy it.

ENTREVISTA AO SUPLEMENTO

Você é nascido em Ervália no ano de 1929. Que lembranças têm deste período? Quais leituras? É verdade que gostava de Machado de Assis e de Humberto de Campos? Deste último é verdade que você fez muitos sonetos imitando seu estilo?

Tenho grandes recordações de minha infância numa cidadezinha interiorana com meu pai farmacêutico e um tio fazendeiro: peraltices, tomar banhos de rio, empinar papagaio, correr atrás das tanajuras… A Filarmônica São Luiz Gonzaga… A escola de Dª Nenzinha… Ah! tantas lembranças que levei comigo até mesmo  pelos vários  paises da Europa por onde andei. Escrevi um longo poema (Rapsódia Hervalense) de louvor à minha terra e ainda hoje mando livros para a biblioteca de . Sempre houve leituras, sim, muitas: fui um dos primeiros assinantes de O Globo Juvenil e do Gibi. Não havia livrarias nem bancas de jornal no Herval de então, meu pai comprava coleções de livros de vendedores itinerantes: O Tesouro da Juventude e todos os clássicos  Jackson, encadernados. Machado de Assis  e Humberto de Campos foram os dois primeirospoetasque li em livro, quando começava a fazer versos. Gostava do “macete” de H. de Campos: ele começava com uma lenda da mitologia ou da história antiga e, no fim do soneto, entrava com umtambém eu… etc”. Fiz muitos sonetos com esse tipo de fecho em que me comparava com o personagem principal, mas geralmente me reservando condições de total inferioridade. 

Augusto dos Anjos também foi um autor importante deste período?

Augusto dos Anjos foi a grande revelação poética, no Rio, nos anos 45. Era o único livro de versos na biblioteca de um vizinho que soube de meu gosto pela leitura. Ele ficou surpreso de me ver lendo o Eu, sempre relegado ao fundo de sua estante, e me deu o livro de presente. Li-o inúmeras vezes, sublinhando as palavras que eu não conhecia, que eram praticamente todas. Eu sabia dezenas de sonetos dele de cor e até hoje me lembro de alguns. Inútil dizer que o considero um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos.

Você foi aluno da antiga Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro, onde fez o curso de línguas e literaturas neolatinas. Este período foi importante para a sua formação? A universidade teve alguma importância na sua formação?

Foi um período de verdadeira formação literária. Tínhamos professores excelentes, além de Manuel Bandeira (que acabara de aposentar-se): José Carlos Lisboa, que nos ensinou a amar em sua totalidade a literatura espanhola; Luce Ciancio, que nos envolvia na cantante língua italiana; gênios precoces como Élcio Martins, que nos faziam ansiar pela cultura… Foi que desenvolvi meu gosto pela tradução de poesia: os trabalhos de casa, de interpretação de versos e questões gramaticais, eram tomados por mim como verdadeiros desafios e quase sempre apresentava meus deveres sob a forma de traduções rimadas e metrificadas.

Você desde muito cedo se dedicou à tradução de poesia. Já na década de 60, integrou o movimento Concretista que tinha no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, seu veículo de expressão, no qual publicou várias de suas traduções e poemas originais. Que lembranças tem da época do Suplemento do JB?

aqui uma pequena inversão: eu integrava a redação do Suplemento Literário do Jornal do Brasil, quando este, no Rio,  deu acolhida ao movimento concretista vindo de São Paulo. No Suplemento eu havia publicado muitos poemas originais e traduções, além de artigos de crítica literária. Com a adesão do Suplemento  ao  concretismo, muitos dos colaboradores passaram a fazer poemas concretos, ou supostamente concretos, pois não sabíamos bem do que se tratava. Eu mesmo cheguei  a publicar vários, e, mesmo depois de considerar o movimento ultrapassado, recolhi alguns que considerei “válidosem meu livro “A Caça Virtual e outros poemas”, sob a rubricapoemas da fase concretista”. Mas o concretismo serviu para nos conscientizar da necessidade de conhecermos línguas e usar a tradução como  aprendizado poético. O Suplemento representou para mim uma entrada na maturidade: o convívio com pessoas altamente integradas no fazer literário, como Mário Faustino, Ferreira Gullar e Reynaldo Jardim não nos servia de rumo como também de estímulo em nossas próprias criações. Foi um aprendizado permanente e de alto nível.

Recentemente li o seu texto sobre sua participação na revista Senhor. Lá fez importantes traduções. Seria legal o senhor falar um pouco deste período.

Eu trabalhava na Editora Delta quando ali foi criada a revista Senhor. Nela colaborei desde o primeiro número com  a tradução da novela As Neves do Kilimandjaro, de Ernest Hemingway.  Paulo Francis, Luís Lobo, Ivan Lessa eram as grandes figuras da redação, dirigidos por Nahum Sirotsky. Todos com grande experiência jornalística, inclusive adquirida no exterior, queriam criar (e criaram) uma publicação avançadíssima em termos gráficos e de conteúdo. Era uma revista que conjugava os assuntos mais sérios com boas doses de gozação e humorismo. Francis foi meu grande incentivador no campo da tradução; gostava do meu trabalho e sempre me entregava os textos mais difíceis para traduzir.  Foram várias novelas e contos, mas houve também poemas (traduzidos e originais) além de um artigo Para inglês ver, de crítica literária.  O convívio com aqueles jovens avançados (que eu chamava de estrangeiros) serviu muito para quebrar um pouco a minha crônica timidez.

O senhor trabalhou com Paulo Rónai na Coleção dos Prêmios Nobel de Literatura. Poderia falar um pouco desta amizade?

Paulo Rónai era de uma seriedade extrema, sempre determinadoobter a perfeição em seus trabalhosSua edição dos 98 volumes da Comédia Humana, de Honoré de Balzac, para os quais escreveu prefácios, selecionou e encomendou traduções e revisou tudo linha por linha, é um dos maiores monumentos da editoração no Brasil. Conheci-o por ocasião em que dirigia a Coleção dos Prêmios Nobel de Literatura, constante de volumes dedicados aos ganhadores da láurea, desde sua primeira atribuição, em 1919, ao poeta francês Sully Prudhomme.  Para a edição dessas obras em português (limitadas em princípio a 40), Rónai havia escolhido os melhores escritores brasileiros de então ou selecionado as melhores traduções existentes. Recomendado por meu trabalho no Suplemento e na revista Senhor, ele me convidou, de início, para traduzir o Colas Breugnon, de Romain Rolland, logo me prevenindo que se  tratava de um livro escrito numa prosa imitativa das narrativas do século XVIII, quase sempre rimada e cheia de expressões coloquiais. O resultadopor ele julgado satisfatório – estimulou-o a confiar-me outro livro, as Poesias, do escritor nacional sueco, Erik Axel Karfeldt. Como lhe expusesse meu total desconhecimento do sueco, Rónai disse que confiava em meus dotes poéticos para um bom resultado: deu-me a edição francesa em prosa e o original sueco, este para eu sentir a estrutura da língua e observar a disposição dos versos. Ele novamente aprovou o resultado. E a ironia foi que, anos depois,  morei durante 5 anos na Suécia,  aprendi algo da língua (pelo menos para ler) e pude verificar que a “traduçãonão fora tãoquanto a princípio imaginei.   

O senhor também trabalhou com de Antonio Houaiss na Grande Enciclopédia Delta-Larousse.   Poderia falar um pouco desta amizade?

Acabo de publicar em meu blog Gaveta do Ivo minhas lembranças de Antônio Houaiss, numa sequência de quatro postagens. Nelas evoco o longo convívio que tivemos no âmbito da Enciclopédia Delta Larousse, convívio este que logo se transformou em estreita amizade, em total devoção de minha parte. Houaiss era um trabalhador braçal da literatura, como ele próprio disse, dínamo incansável para quem não havia tarefa impossível. Aprendi com ele que a dedicação e o amor a um trabalho são capazes de vencer até as dificuldades aparentemente intransponíveis. Aliás, tudo aprendi com ele, inclusive a gostar de restaurantes estrelados. Dois de meus livros (Sonetos de Shakespeare e O Torso e o Gato) nasceram por estímulo seu e apresentação sua. Tive a satisfação de dedicar-lhe a Poesia Completa de Rimbaud e tracei seu perfil de tradutor no volume gratulatório que lhe oferecemos por ocasião de seu 80º aniversário.  Antônio Houaiss foi uma figura miliária no meu percurso de escritor.

A sua tradução dos sonetos de Shakespeare me parece que começaram a ser feita na época que o senhor morava na Holanda, no final dos anos 60. É isto? Poderia contar um pouco?

A primeira tentativa registrada por mim de traduzir um soneto de Shakespeare data de 1947, quando eu tinha 18 anos. Era o XXIX (Quando longe da vista humana e da fortuna), que traduzi em alexandrinos. No final dos anos ´50 devia ter uns 4 ou 5 prontos, então em decassílabos,  com os quais obtive uma espécie de passe livre nas páginas do Suplemento, sob a égide de Mário Faustino; entre eles estava o LXXI (Não lamentes por mim quando eu morrer), que me granjeou a simpatia de Manuel Bandeira. A fase de trabalhos sistemáticos, no sentido de traduzir um considerável número deles, ocorreu de fato na Holanda, onde residi entre 1968/70. encontrei uma edição integral bilíngue (inglês-neerlandês) e fiquei conhecendo o tradutor, que me pôs à mostra as dificuldades do texto, mas também me deu ânimo para prosseguir. De volta ao Brasil, tive a primeira edição publicada em 1973, com apenas 24 sonetos traduzidos. Em 1991, eram 30 e em 2005, por brincadeira numerológica, publiquei uma edição com 42, número que era o inverso dos 24 da edição inicial. Como havia  fixado para mim mesmo a meta dos 50, foi com uma espécie de alívio que encerrei minhas lutas de anjo com o Vate neste ano de 2012, com uma edição especial da Nova Fronteira.

Seria legal também o senhor conta um pouca do seu monumental trabalho de tradução do grande Arthur Rimbaud. Poderia falar disto?

A história com Rimbaud é mais longa. Um dia, no Suplemento, levei ao Reynaldo Jardim uma tradução do Soneto das Vogais, de Rimbaud, que eu encontrara numa antologia. Reynaldo me fez ver que o soneto havia sido bastante traduzido em português, mas achando boa a tradução insistiu para que eu fizesse outras do mesmo poeta, principalmente os poemas em versos da Saison, que eu não conhecia. Ao enfrentá-la tive uma espécie de choque traumático e me meti na cabeça que os havia de traduzir. Coincidentemente, o editor Enio Silveira (que publicara uma tradução anterior da Saison e das Illuminations), estava à procura de alguém que lhe fizesse uma nova, com os poemas em versos devidamente traduzidos em métrica e rima. Acabei lhe entregando a tradução na véspera de minha partida para a Europa (dezembro de 1972), inclusive com a corajosa apresentação que o Dr. Alceu Amoroso Lima escrevera para ela, ante minha total surpresa e absoluto encanto. O livro que devia sair em 1973, no centenário de publicação da obra,  acabou aparecendo em 1977, pelo motivo que eu vim a saber muitos anos depois: a tradução fora obstada pela Censura oficial da ditadura porque no prefácio do Dr. Alceu ele se referia a  Ênio Silveira como “o mais perseguido e o mais perseverante de nossos editores”. Durante minha permanência na Europa (1973-1993), sendo os 4 últimos na França, decidi traduzir a obra completa, inclusive a correspondência. Comprava e colecionava todos os livros, revistas e recortes que podia sobre a vida/obra do diabólico Arthur e cheguei a ter umas 3 centenas de livros correlatos. Em Paris, em contato com a Société des Amis de Rimbaud tive finalmente um insight que me permitiu o deslanche: parar de ler, abandonar tudo e tratar apenas de traduzir a obra, pois todos os dias saía alguma coisa sobre a obra de Rimbaud que alterava, contestava, acrescentava ou subtraía algo a toda a literatura específica existente, e se eu fosse me deter em cada um desses detalhes jamais terminaria a tradução a que me propunha. Quando regressei ao Brasil em 1993, encontrei no editor José Mário Pereira, da Topbooks, um entusiasta pela obra de Rimbaud e com ele vim a editar os três volumes, Poesia Completa, Prosa Poética e, finalmente, a Correespondência, que saiu em 2009. Para fugir à tentação de voltar a rever a obra, doei todos os livros de minha rimbaldiana ao Centro Cultural do Banco do Brasil. 

O senhor também já traduziu  Eliot:  Os Gatos (Old Possum’s Book of Practical Cats). Pergunto: o que pensa das traduções de Eliot feitas no Brasil?

Eu morava em Londres quando o musical de Lloyd Weber es­treou. Curioso por saber que tipo de tratamento o texto de 0ld Possum’s Book of Pratical Cats havia sofrido na encenação, fui com José Guilherme Merquior, que era meu vizinho, ver a peça, curiosos de saber se o músico tinha respeitado integralmente os versos do poeta ou se acrescentara ou suprimira trechos na adpatação para o palco. Verificando que o texto tinha sido integralmente respeitado, recebi de José Guilherme a intimação de traduzi-lo em protuguês. Mostrando-lhe uma primeira tentativa, recebi dele a intimação (e de­pois a cobrança reiterada) de traduzir o livro inteiro. Durante muitos anos, andei à procura de rimas pirotécnicas, jogos de palavras, polissemias e corres­pondências que pudessem dar ao leitor brasileiro a equivalente impressão dos versos humorísticos de Eliot.

Diferentemente de meu habitual processo tradutório, que consistia em manter-me o mais próximo possivel da letra do original, tive então que necessariamente recorrer  a um trabalho de recriação, optando por substituir o referencial inglês, quando ininteligível ou pouco familiar ao leitor médio brasileiro, por equivalências que, sem traírem o texto original, funcionassem da mesma forma no território de nossa língua. Esse esforço de reelaboração isotópica foi para mim, no entanto, um período igualmente de recreação, pois à medida que ia encontrando soluções sen­tia aumentar minha possibilidade lúdica, brincando e me divertindo com os versos da maneira como o próprio Eliot deve ter procedido ao criá-los. O livro saiu em 1991, ganhou prêmio Jabuti de tradução daquele ano e foi naturalmente dedicado à memória de  Merquior, que então havia falecido.

A obra poética de Eliot foi inteiramente traduzida por Ivan Junqueira e o teatro completo por mim. A apreciação cabe, pois, aos leitores.

Uma de suas últimas publicações foi O Corvo e suas traduções, aliás em 3ª edição. Poderia falar um pouco a respeito desse livro?

O livro nasceu de um pequeno ensaio que publiquei, em fevereiro de 1994, na revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, de que eu era um dos redatores. Desde que li – muito tempo antes – a tradução de O Corvo, de Edgar Allan Poe, feita por Milton Amado, achei-lhe qualidades poéticas superiores às três outras mais conhecidas, ou seja, a de Machado de Assis, a de Fernando Pessoa e a de Gondin da Fonseca. Foi para manifestar essa minha opinião, baseada em evidências crítico-literárias, que recorri à revista. Tempos depois, tive uma conversa com meu amigo Carlos Heitor Cony sobre o poema e suas traduções. Ele não conhecia nem meu ensaio nem a versão de Milton, mas ficou convencido de minhas razões a propósito da primazia desta sobre às que ele conhecia. E escreveu a propósito uma crônica, publicada inicialmente na Folha de S. Paulo. Foi tal o número de cartas que chegaram à redação pedindo cópias do trabalho do Milton, que Cony me incentivou a publicar o ensaio em livro, juntamente com algumas traduções, inclusive as francesas de Baudelaire e Mallarmé. A primeira edição saiu pela Lacerda Editores em 1998, editora associada à Nova Fronteira, que detinha na época os direitos autorais da tradução de Milton. Uma segunda edição, revista e aumentada, apareceu pouco depois, em 2000, e agora, estando esgotada por longo tempo, veio à luz a 3ª, pela Editora LeYa, de São Paulo. Nela incluí a tradução francesa de Didier Lamaison, que, a meu pedido, dotou a língua de Baudelaire de uma tradução rimada e metrificada, num esforço semelhante ao de Milton Amado para o português.

Que evidências crítico-literárias o senhor tem para considerar a tradução de Milton a melhor?

Milton acertou a “embocadura” do poema, ou seja, percebeu que ao verso duplo de 7 sílabas de Poe (7+7) correspondia em nossa língua (pelo menos no português do Brasil) a um verso duplo de 8 sílabas (e não de 7), com o que acertava o andamento do poema. Lido em inglês e na tradução de Milton, nota-se a mesma cadência, a mesma fluência discursiva, o que não se dá, por exemplo, na tradução de Pessoa, que, desejando seguir à risca a métrica do original,  se manteve escravizado ao verso de sete sílabas. Daí resultou em Milton, à semelhança da métrica utilizada em Poe,  um verso longo com cesura (todos têm 16 sílabas métricas, fora o refrão, que acelera o ritmo para 8). Além disso, para evitar a monotonia das rimais em “ais” (ore, em inglês, aqui no esquema representadas pela letra b), em vez da notação a/a // b // c/c/ b // b / b, ele usou a/a // b //c/c/c /d// d /d //b ou seja, utilizou no 4º verso o mesmo sistema de rimas tríplices usado por Allan Poe apenas no 3º.

Mas não são essas tecnicalidades que tornam sua tradução surpreendente e sim a capacidade de fazer grandiosos versos em português, encima dos parâmetros poeanos. Se em alguns casos o sentido não é exatamente o mesmo em inglês e português, a carga emotiva do versoem suma a sua poesiaencontra em nossa língua uma correspondência perfeita:

Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda

Algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora

— essa mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora

e nome aqui não tem mais.

(…)

A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina

arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais (…)

Milton Amado, com sua tradução, alcançou aquele momento com que sonham todos os tradutores de poesia: o da transmigração absoluta do conteúdo e da forma de um poema para o território de sua própria língua, dando-lhe a identidade de uma vida autônoma. Mas esse verdadeiro gênio poético, que doou nossa língua de uma tradução que é sósia perfeita do original, continua desconhecido e às vezes relegado à menção subsidiária a que vivia condenado. Milton é um orgulho para Minas Gerais, terra de grandes poetas. Tímido, pobre, na sombra, nunca teve em vida o reconhecimento de seu valor. Que os mineiros saibam agora todas vezes que declamarem “Foi uma vezeu refletia, à meia-noite erma e sombria”, que estão citando Edgar Allan Poe mas pela voz de Milton Amado.

 

 

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Momento em que o palestrante fazia a entrega oficial da Coleção Rimbaud ao Centro Cultural Banco do Brasil, representado na cerimônia pelo seu diretor Luiz César Rossato.

TEOR DA PALESTRA

Para os leitores da Gaveta que não puderam comparecer ao evento e para aqueles que residem fora do Rio reproduzimos aqui as linhas gerais da palestra que ensejaram várias complementações de improviso.

A entrega oficial que faço nesta solenidade ao CCBB de minha coleção de livros de e sobre Rimbaud, e sobre os quais tecerei algumas considerações nesta palestra, foi precedida de outra manifestação que merece registro.

Precisamente neste mesmo dia 22 de novembro, em 1998, o CCBB abria suas portas para um evento que se denominou “Semana Rimbaud”, em homenagem ao 140º aniversário da data de nascimento do poeta de Charleville. Um belo estandarte com a imagem estilizada do poeta descia do topo da abóbada até quase o chão da pérgula deste Centro Cultural. Houve uma exposição bioiconográfica, documentando a trajetória de Rimbaud, desde suas primeiras incursões literárias até sua ida para o continente africano, incluindo reproduções de manuscritos, fotografias e livros; uma sala de exibição de slides e declamação de poemas em francês e em português, e duas conferências sobre a obra-vida do poeta e a experiência de traduzi-lo em português. Houve também o lançamento do segundo volume de suas obras completas – o Prosa Poética – editado naquele ano pela Topbooks, que já havia lançado dois anos antes o volume primeiro, das Poesias Completas. O CCBB resgatava, assim, de forma brilhante uma das figuras mais icônicas da poesia francesa – para não dizer universal –, afirmando com isto sua condição de divulgador cultural em todas as áreas.

Agora, transcorridos catorze anos daquele evento, o CCBB volta a festejar a figura do Poeta no momento em que coloca à disposição dos leitores em sua biblioteca a coleção de livros sobre a vida e obra de Rimbaud, que seu tradutor aqui presente vem de doar a esta instituição. São livros amealhados num espaço de tempo que remonta ao ano de 1954, quando levei ao editor do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil uma tradução do Soneto das Vogais, que eu achara numa revista. Ele argumentou que o soneto já havia sido traduzido diversas vezes em português e que era melhor eu traduzir outro poema que fosse menos conhecido. Encontrei na livraria franco-italiana que funcionava na Faculdade de Filosofia, onde eu estudava, e onde é hoje a Maison de France, esta pequena antologia de suas obras organizada por Claude Edmonde-Magny, na coleção poètes d´aujourdhui, editada pela Pierre Seghers em 1952. Este livro foi a porta mágica que me introduziu ao mundo de Rimbaud. O achado, nele, de Une Saison en Enfer me transtornou de tal forma que passei a ler sistematicamente tudo o que pudesse encontrar sobre o poeta e sua obra. Quinze anos depois, em minha primeira ida a Paris, corri para as margens do Sena em busca dos famosos bouquinistas para adquirir, por 5 francos, aquela edição que era considerada a bíblia rimbaldiana dos estudantes pobres: o Poesies, das edições Aux Quais de Paris, de 1966, livro que me acompanhou por quase 50 anos em todos os lugares em que morei, até esta data em que irá ocupar uma estante da biblioteca deste Centro Cultural Banco do Brasil.

Em 1973 eu já me considerava um cultor da poesia de Rimbaud e possuía uma boa dezena de livros, inclusive a Obra Completa, editada por Antoine Adam para a Bibliothèque de la Pléiade em 1972. Então fui procurado pelo editor da Civilização Brasileira para que eu traduzisse a Saison. Ora, já havia duas traduções anteriores, publicadas no Brasil cerca de vinte anos antes. Mas o editor queria uma NOVA tradução e fazia questão de que os poemas entremeados na prosa do Poeta fossem traduzidos em versos equivalentes, rimados e metrificados, o que não ocorrera nas versões anteriores. E mais, que a tradução ficasse pronta naquele mesmo ano de 1973 para ser lançada em 1974, por ocasião do centenário de nascimento de Rimbaud. Em circunstâncias pouco favoráveis, pois me preparava naquele ano para ir morar no Exterior, acabei passando realmente por um inferno para traduzir, em pouco mais de um mês, aquele livro perturbador, definitivo, que inaugurava uma nova linguagem na poesia universal.

Aguardei em Lisboa, onde então morava, o lançamento da obra que estranhamente só ocorreu em 1977, quatro anos depois… Com uma segunda edição saída em 1983, animei-me com a boa acolhida daquela e convenci-me de que devia traduzir as poesias completas de Rimbaud, mas ainda que tivesse sérias hesitações quanto às Iluminações, que considerava intraduzíveis. E toca a comprar, a ler, a anotar tudo quanto era livro de e sobre Rimbaud que me aparecia pela frente.

Minha longa permanência no Exterior permitiu-me adquirir praticamente as obras fundamentais de que necessitava, tais como todas as edições das obras completas em francês: a da Pléiade, a da Garnier, Oeuvre-vie, de Alain Borer, 1991, e até a de Pierre Brunel, do Livre de poche. Mas não fiquei nas francesas, adquiri todas as edições completas italianas (quatro), as de línguas inglesa e espanhola, e até mesmo um volume Lyrik och prosa, traduções de Gunnar Ekelöf, em sueco, quando morei em Estocolmo, de 1983 a 1988. Aqui um intermezzo curioso: eu queria saber como o tradutor sueco tinha resolvido a famosa questão do “Je est un autre”, que tanto perturba os tradutores das línguas latinas. O impacto da frase está exatamente na violentação da conjugação verbal, com o sujeito na primeira pessoa e o verbo na terceira, como se Rimbaud quisesse dizer, na sua linguagem inédita e pessoal: Eu não sou eu, o que chamam de eu é um outro ser. Pois bem: minha decepção com o sueco é que naquela língua o verbo não tem flexão e tanto Je suis (eu sou) Je est (eu é) são equivalentes Ik är, ham är, como se conjugássemos eu é, tu é, ele é, nós é… (bom, os mineiros às vezes dizem assim).

Em seguida passei a me interessar pelas biografias: tinha todas as francesas (a mais importante das quais é a de Jean-Jacques Lefrère, que só saiu em 2001 pela Fayard), a pioneira da estudiosa irlandesa Enid Starkie, a primeira a tratar o assunto com técnicas bibliográficas atuais, ou seja, valendo-se de documentos e não da tradução oral, e bem assim a mais recente, Graham Robb, publicada em 2000. A biografia de Enid Strakie, que saiu originalmente em 1947, permaneceu por muito tempo a fonte biográfica mais rigorosa de Rimbaud para despeito dos estudiosos franceses que só foram traduzi-la 35 anos depois. Mas não abri mão das anteriores, a de Paterne Berrichon, cunhado de Rimbaud,; a do coronel Godchot (obra raríssima) que fará um verdadeiro panegírico ao pai de Rimbaud, e não ao filho, que vê com grandes restrições; as de Rolland de Renéville, a fantasiosa Vie aventureuse de Rimbaud, bem como as memórias de seu amigo Delhaye e de seu professor Izambard. No campo da crítica analítica comprei desde logo as obras de Etiemble, Le mythe de Rimbaud, em vários volumes, bem como as da chamada “crítica psicanalítica”, responsável pela decodificação dos significados ocultos de Rimbaud. Interessei-me pela personalidade de Vitalie Cuif, a mãe de Rimbaud, figura polêmica sobre a qual adquiri os três livros então existentes.

Quando morei na França em 1989-94, já estava decidido e começara a traduzir a poesia completa de Rimbaud. Vasculhava as livrarias e bouquinistas à cata de livros sobre a obra, não raro me embaralhando com os argumentos às vezes conflitantes que os críticos teciam a propósito de seus trabalhos. Um dia, na Société des Amis de Rimbaud, que eu freqüentava para ler as revistas especializadas e as críticas mais recentes, fiquei conhecendo Alain Borer, um dos maiores estudiosos da obra do infernal garoto de Charleville. Sabendo de minhas constantes pesquisas e de minha intenção de traduzir a obra completa de Rimbaud, deu-me um conselho: “Pare de ler, procure esquecer o que já leu, concentre-se no texto pois ali está a palavra final e vá em frente. Se não, você jamais traduzirá essa obra sobre a qual todos os dias sai alguma nova interpretação.” Assim fiz, em 1992 vim ao Rio com a poesia completa traduzida e acabei encontrando o editor da Topbooks, que com entusiasmo se prontificou a editá-la, o que fez em 1994, insistindo para que eu continuasse com a obra completa, o que fiz lançando o segundo volume – Prosa Poética – na Semana Rimbaud deste CCBB, quatro anos depois.

Faltava o terceiro e último volume – A Correspondência. Rimbaud, depois de compor as Iluminações, deve ter percebido, com sua aguda consciência crítica, que havia atingido o ápice da poesia, que não havia nada mais além senão a repetição, o espelho de si mesmo. E abandona definitivamente a poesia para tentar enriquecer-se comerciando na África. Há cerca de 25 cartas que escreveu durante a sua “vida literária” e mais de uma centena que da África dirigiu a seus “familiares”, estas totalmente destituídas de qualquer nuance estilística. Aos seus “Chers amis” (caros amigos), como chamava a mãe e a irmã, relata suas atividades comerciais, seus deslocamentos, suas explorações de territórios virgens, seus problemas financeiros, funcionais e seu desesperado esforço em amealhar ouro para voltar rico à França a fim de viver de rendas. São aparentemente cartas de pouco interesse mas muito reveladoras da personalidade de Rimbaud. Muni-me de vasto material livresco para bem traduzi-las: todos os livros existentes sobre sua permanência na África (a Correspondence 1888-1891, de Jean Voellmy, o Rimbaud – l´heure de la fuite, de Alain Borer, as Lettres de la vie littéraire, de Jean-Marie Carré, Rimbaud da Arábia, Rimbaud na Abissínia, Rimbaud à Aden, Rimbaud ailleurs, Un sieur Rimbaud se disant négociant (obra raríssima de Alain Borer). Mas a tradução se arrastava, interrompida, eu queria ler mais e mais, esquecido da lição que antes tivera. Mas eu sabia o porquê. Conhecendo bem a biografia (as biografias) de Rimbaud, sabia que mais cedo ou mais tarde haveria de chegar no momento dramático em que lhe amputam a perna cancerosa no Hospital de la Concepcion, em Marselha. E sua angônica travessia do Harar a Warambot numa liteira, transportado por dezesseis carregadores por 300 quilômetros de deserto. Como voltar a essas cartas e à que sua irmã escreve à mãe Vitalie narrando a agonia do poeta?!

O livro saiu finalmente em 2009, perfazendo a trilogia, no mesmo ano em que se publicava na França pela primeira vez a edição integral dessas cartas, organizada por Jean-Jacques Lefrère.

A partir de então, toda vez que me sentava diante do computador, eu tinha à minha frente duas longas prateleiras de livros de e sobre Rimbaud, a maior parte deles trazendo sua imagem na lombada. Eu ainda não estava isento de sua presença mesmo depois de ter, ao longo de tantos, anos me dedicado à missão de traduzir-lhe a obra integral.

Alguns daqueles livros eram verdadeiras raridades: o de Paterne Berrichon, o cuhado, com o título Jean-Arthur Rimbaud, Le Poete, trazia a data de 1912, ou seja tinha um século de existência e provavelmente já estava comigo havia meio século. O Album Zutique, fac-simile do famoso caderno em que os Villains Bonshommes, amigos de Rimbaud e Verlaine, consignavam seus improvisos sob a forma de versos ou desenhos e no qual Rimbaud colaborou inúmeras vezes, com suas iniciais e pseudônimos, atribuindo essas produções aos seus desafetos. A tiragem desse álbum foi reduzidíssima, o que representa além de sua importância eminentemente artística um inestimável valor pecuniário. O que seria feito deles quando os meus olhos já não os pudessem ver? Temendo por um destino menos glorioso, resolvi em bom momento doá-los à biblioteca do Centro Cultural Banco do Brasil. Foi no Banco que fiz minha carreira profissional, nele passei 37 anos de minha vida, em nenhum outro lugar os livros estariam mais seguros e desempenhando um melhor papel cultural, já que sua leitura seria franqueada a outros que, como eu, se interessassem pela obra sem par desse Jean-Arthur Nicolas Rimbaud. Neste momento, faço a entrega oficial de todos os meus livros, revistas especializadas, publicações várias, tapes, manuscritos, os originais datilografados de minha tradução, e vários outros documentos no total de 170 itens ao Centro Cultural Banco do Brasil, onde sei que serão guardados com o mesmo zelo com que até hoje os conservei.

Surpreendeu o número de jovens que acorreram à palestra, dela participando ativamente com perguntas que se prolongaram por cerca de 45 minutos após a locução.

Os leitores que assim desejarem poderão fazer perguntas sobre a obra de Rimbaud como se estivessem presentes à palestra. As respostas serão dadas aqui mesmo na Gaveta.

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Wallace Fowlie, professor emérito de literatura francesa da Duke University (Carolina do Norte, EUA), passou a vida ministrando cursos sobre Proust, Rimbaud, Mallarmé, Gide, Claudel e Dante, mas sua maior atenção e estudos fo­ram dedicados ao “insigne pas­sante” de Charleville, de quem acabou tradutor da obra com­pleta. Não foi o primeiro em in­glês, nem sequer o melhor: Oliver Bernard, Paul Schmidt, Louise Varèse, Bertrand Mathieu e Wyatt Mason também por ela se aventuraram, mas só Norman Cameron e Enid Rho­des Peschel conseguiram dar, por fim, ao leitor norte-ameri­cano, respectivamente, uma equivalência poética e una interpretação textual condignas da obra rimbaldiana.

Fowlie, contudo, foi quem le­vou mais longe o culto à obra e à vida do poeta, pois além de traduzi-lo, passou, depois de aposentado, a dar conferências nas universidades e colégios do país, divulgando a obra traduzi­da. Pode despertar admiração ou curiosidade o interesse que os jovens estudantes america­nos demonstravam à época por essas conferências sobre um es­critor francês que lhes era (e ainda é) desconhecido; mas a verdade é que Fowlie tinha um “gancho” explícito e infalível: em 1968 recebera o bilhete em que um cantor sem nome (para ele) lhe agradecia “por ter feito a tradução de Rimbaud, pois, não lendo bem o francês, só as­sim pôde apreciar devidamente o poeta”. Esse cantor era o já fa­moso roqueiro Jim Morrison que, em breve, passaria a ser visto, por suas atitudes performáticas, como guru xamanístico, fauno psicodélico e rebelde com (ou sem) causa, consagran­do-se ídolo da geração beat. Fowlie, dando-se conta, em seguida, do passaporte para a juventude e a popularidade que tinha em mãos, passou a anunciar suas conferências como sendo um paralelo entre os “dois poe­tas malditos”, com o que, se por um lado conseguia seu obje­tivo de divulgar a obra de Rimbaud, por outro procedia politi­camente correto agradando ao público jovem, por equiparar o roqueiro americano ao maior poeta francês da modernidade. As conferências – uma delas in­titulada Traduzindo Rimbaud para um Cantor de Rock fize­ram sucesso, pois Fowlie conseguia transmitir algum Rimbaud em troca de muitos esclareci­mentos sobre “a obra” de Morrison, num perfeito entrosamento com a audiência, que via ne­le um “um erudito avançado”.

O livro “Rimbaud e Jim Morrison” (Elzevir, 2005) é uma síntese de tais conferências, apresentadas com levíssimas modificações em dezenas de campi universi­tários. Louve-se desde já o em­penho com que o velho mestre se dedicou ao estudo do “cantor desconhecido”, guardando de cor os locais e datas das per­formances, títulos das músicas, gravadoras, etc., etc., valendo-­se para tanto das biografias de John Densmore, de Jerry Hopkins/Daniel Sugerman e de Ja­mes Riordan/ Jerry Prochnick. Compreende três partes, as duas últimas dedicadas respecti­vamente a Rimbaud e a Jim Morrison, e a primeira ao “feliz descobridor da dupla”, o pró­prio professor Wallace Fowlie. Nesta. com uma profusão de de­talhes que faz pressupor revela­ções inéditas sobre os persona­gens principais (o que aliás não acontece), Fowlie conta como traduziu a obra de Rimbaud, es­clarecendo com Louise Varèse (esposa do compositor Edgar Varèse) dúvidas mútuas e co­mo foi “despachado” por Etiemble, que ìhe disse: “Estou relendo Rimbaud e cheguei à conclusão de que não entendo sequer uma frase escrita por ele.” Conta também como pre­parava as conferências, exami­nando de antemão a tribuna, o microfone, a colocação da assis­tência, etc. e registra a hora em que chega com precisão de se­gundos e até quantos copos de água bebeu durante a palestra.

A análise que faz da vida e da obra de Rimbaud é um tanto “digest”, e a interpretação de algumas “plates” das Ilumina­ções possivelmente discutível diante da montanhosa exegese que hoje circunda cada frase e até cada palavra do poeta. Mas para o leitor iniciante e desejo­so de conhecer os motivos que fazem de Rimbaud o quebra-di­ques da poesia moderna, o li­vro é mais que útil porquanto escrito por alguém que convi­veu com essa obra e admirou-a durante toda a vida e procura aqui incentivar sua Ieitura.

O grande problema do livro é o possível equívoco que o subtítulo “os poetas rebeldes” pode ocasionar. Jimi Morrison é poeta? E aqui entra em cena a ferrada discussão se letra de música (lyrics) é poesia. Morrison, à semelhança de Rimbaud, em dado momento de sua vida quis mudá-la, depois de ter seguido a fórmula do poeta com “o desregramento de todos os sentidos”, frase aliás que tem sido mal inter­pretada, pois na verdade o que Rimbaud parece querer dizer com isso tem mais a ver com a hipersensibilidade do que com o mero deboche. O popstar, desgastado com o processo que sofreu por ofensa ao pudor público, muda-se para Paris onde pretende dedicar-se à poesia e ao cinema. Mas a morte, em circunstâncias bas­tante controversas, o leva precocemente, como fez com Rimbaud – embora lhe dando a glória póstuma de jazer no Père Lachaise.

A obra “literária” de Jim Morrison está hoje contida em dois volumes bilíngues, edita­dos na França: Lords and New Creatures (Seigneurs et Nou­velles Créatures) e Une Prière Américaine et Autres Ecrits.

Nela não há a esperada influência de Rimbaud, a não ser em duas ou três frases muito diluí­das; predomina o “verso her­mético” e a “referência pes­soal gratuita” (private notes), conhecidos inibidores da ver­dadeira expressão poética. No conjunto, o escritor não chega a ser urna promessa, proceden­do acertadamente seus admira­dores americanos em conside­rá-lo apenas o grande perfor­mer e compositor vocalista do The Doors. Mas Fowlie capri­cha na análise de suas letras e se esforça para valorizar suas “realizações poéticas’.­

Louve-se neste livro de divul­gação sua inquestionável boa qualidade e a fluente tradução de Alexandre Feitosa Rosas, que um ou outro cochilo da re­visão não chega a arrepiar.

(Fonte: Cultura – O Estado de S. Paulo – 23.01.2005 – Na onda de dois poetas malditos)

                              RIMBAUD NO PEN CLUB

                        (mesa-redonda – outubro 2004)

Quis o Pen Club do Brasil – na pessoa de seu Presidente Geraldo Holanda Cavalcanti e de sua Vice-Presidente Bella Jozef – que o sesquicentenário de nascimento de um dos mais importantes poetas franceses – Arthur Rimbaud – não passasse inteiramente esquecido do público brasileiro e resolveu promover este encontro com três tradutores do poeta – Xavier Placer, Ledo Ivo e Ivo Barroso – que aqui viriam falar de sua experiência com essa monumental obra poética e, na medida do possível,  manter com o público presente uma conversa informal sobre a vida e a obra de Rimbaud.  Xavier Placer, [que infelizmente não pôde, à última hora, comparecer por motivos de saúde] foi quem primeiro deu forma de livro no Brasil à obra de Rimbaud com Uma Estação no Inferno, de 1952, nos Cadernos de Cultura do MEC editados por Simeão Leal; o grande poeta e acadêmico Ledo Ivo, foi o primeiro a traduzir entre nós As Iluminações em 1957, juntamente com a Saison a que deu o excelente título de Uma Temporada no Inferno; e este que vos fala, que espera concluir brevemente a tradução do terceiro volume da obra  de Rimbaud,  de que a Topbooks relança nesta ocasião a terceira edição da Poesia Completa.

Em 1994, para homenagear o centésimo quadragésimo aniversário de nascimento de Rimbaud, o Centro Cultural Banco do Brasil organizou toda uma Semana Rimbaud (que na verdade se estendeu de 22 de novembro a 10 de dezembro), durante a qual foram realizadas palestras, exposições, mostras fotográficas que reproduziam fotos e manuscritos, exibição de filme, declamação de poemas e lançamento de livro. Agora, em 2004, por ocasião do sesquicentenário de Rimbaud, acreditávamos que manifestações culturais semelhantes pudessem ser ainda mais expressivas, programadas pelos centros de divulgação, com apoio de outras entidades nacionais e estrangeiras, à semelhança do que está ocorrendo na França, na Itália e no Japão, para citar apenas esses três países. Contudo, em decorrência de problemas da programação desses órgãos (que é feita com uma antecedência às vezes de até um ano), não foi possível a inclusão em 2004 de nenhum evento ligado ao sesquicentenário de Rimbaud, e a data passaria esquecida do público brasileiro não fosse a inserção, em alguns jornais e revistas, de pequenas notas ou artigos referentes ao poeta. A revista Continente, de Recife, a que mais extensamente tratou do assunto,  estampou em sua capa o retrato do poeta  e publicou matéria bastante variada, inclusive um roteiro de Charleville e uma longa carta em que Rimbaud descreve sua travessia dos Alpes, a pé; o suplemento Mais!, da Folha de São Paulo, também publicou uma carta, uma das últimas, em que o poeta informa à família sua hospitalização em Marselha às vésperas de ter a perna direita amputada; o suplemento Magazine, do jornal O Tempo, de Belo Horizonte, também deu capa à matéria tratada sob a forma de entrevista. Afora isto, o silêncio em torno do sesquicentenário de Rimbaud — tão celebrado com alarde nos países cultos – foi aqui total e unânime. Nenhuma entidade cultural, brasileira ou estrangeira, promoveu qualquer evento em comemoração à data, e é com grande satisfação que vemos o Pen Club assumir a incumbência de romper este pesado e inexplicável silêncio .  Se quiséssemos tirar conclusões apressadas, poderíamos imaginar que a importância de Rimbaud decaiu muito nestes dez anos. Mas a verdade é que ele é cada vez mais estudado e lido no mundo culto e nesse interregno surgiram pelo menos duas novas e importantes biografias: a de Graham Robb, em 2000,  e a de Jean-Jacques Lefrère, considerada agora a mais completa, em 2001. Inúmeros artigos e livros foram publicados no período e, agora em 2004, além de duas novas edições das obras, saíram dois novos estudos sobre Isabelle e Vitalie, respectivamente a irmã dedicada e a mãe autoritária do poeta. A Sorbonne organizou um amplo debate sobre Rimbaud que reuniu os nomes mais expressivos da poesia francesa. O que Etiemble, já lá se vão muitos anos, designou de “O Mito de Rimbaud”, quando em 1968, catalogava cerca de 15.000 obras (livros, artigos, comentários) sobre o poeta e sua obra, já deve ter pelo menos triplicado neste período. E a influência de Rimbaud, que era palpável de Proust a Borges, passando por Serge Gainsbourg e Cartier-Bresson, continua a inspirar e contaminar a obra dos poetas novos em todo o mundo. A Itália tem três edições diferentes da obra completa. O Japão, outras tantas. No Brasil suas traduções estavam desde muito esgotadas, mas a presença de Rimbaud se manifesta em cada novo livro de poesia, aqui e algures, pois ele criou uma linguagem nova que se identifica como sendo o idioma da poesia moderna.

Os participantes desta mesa falarão sobre sua experiência em traduzir a obra de Rimbaud e responderão a eventuais perguntas da audiência. É a nossa modesta contribuição ao sesquicentenário do Poeta. Modesta, mas ainda mais significativa por ter sido a única.

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Foi o editor José Mário Pereira quem promoveu meu encontro com João Antônio. Eu tinha grande admiração por ele e sabia que ambos achávamos genial o livro “Desabrigo” (1942), de Antônio Fraga, a obra-prima que havia instaurado uma linguagem nova em nossa literatura. Também admirava muitíssimo o livro de estreia de João Antônio, “Malagueta, Perus e Bacanaço” (1963) e sabia das circunstâncias de sua publicação (a casa dele pegou fogo e destruiu o manuscrito original, que foi refeito inteira e imediatamente de memória). José Antônio nesta altura já morava sozinho, sem a família, aqui no Rio, levando uma vida dentro de padrões semelhantes aos de seus personagens, indivíduos pobres, do submundo, “órfãos do olhar humano e da fortuna”. Vivia de seus direitos de autor e de colaborações para os jornais. Estávamos em 1995, eu acabava de lançar pela Nova Aguilar a “Poesia e Prosa de Charles Baudelaire”, e João Antônio, que trabalhava na Tribuna da Imprensa, quis fazer comigo uma entrevista, que respondi por escrito. Não mais nos encontramos. Ele veio a falecer no ano seguinte, em seu apartamento de Copacabana, absolutamente só, e o corpo só foi encontrado  15 dias depois.

***

JA – Qual a importância, hoje, para o leitor brasileiro, da poesia e da prosa de Charles Baudelaire?  Você não acha que, com a trepidação da vida moderna, toda aquela história de satanismo, de dandismo, de spleen já perdeu sua razão de ser?

IB – Baudelaire é o mais importante poeta internacional da França, sua influência se exerceu sobre a poesia de quase todos os países. O conhecimento de sua poética (e bem assim de sua estética) é e será imprescindível para toda pessoa, de qualquer quadrante e de qualquer época, que pretenda um mínimo de conhecimento no terreno da poesia e da estética modernas. Sem falar na pura exaltação lírica que o desfrute de sua poesia proporciona no leitor. Achar que suas concepções estéticas ou sensoriais perdaram a razão de ser seria o mesmo que condenar a leitura de Homero porque o homem de hoje não acredita mais em mitos.

JA – Mesmo em tradução ?

IB – Mesmo em tradução. Até as traduções menos fiéis e menos “baudelairianas” de certos poemas de As Flores do Mal carreiam para os leitores — seja pelo tratamento do tema, seja pelo inusitado das imagens, seja pelas palavras empregadas –- uma sensação de estranha beleza e excepcional sensibilidade.

JA – Barroso, depois de sua divulgação da obra poética de Rimbaud, por quê Baudelaire ? Por quê ?

IB – Bem, na verdade Baudelaire é o grande precursor de Rimbaud, a quem ele chamou de “un vrai dieu”. Meu interesse pelo autor de As Flores do Mal antecede a devoção à obra do poeta de Charleville. A primeira tradução que fiz de um poema francês foi precisamentea de L’Homme et la Mer, há exatamente meio século. Era natural que eu quisesse ver sua obra reunida num volume e surgiu-me a oportunidade de fazê-lo.

JA – Quer dizer que você não entra aí como tradutor…

IB – Não, o escopo foi mais abrangente. Meu trabalho foi o de organizador da edição, aquela função para a qual os italianos têm a bela expressão a cura di. Li tudo o que havia em português de e sobre Baudelaire, selecionei o que me pareceu melhor, mandei traduzir o que faltava para um conjunto de cerca de 80% de sua obra completa, procedi a uma harmonização estilística do conjunto, fiz a nota introdutória em que são expostos os critérios adotados e redigi um bom número de notas que aparecem no final do volume.

JA – Logo, nenhuma tradução sua em todo o volume ?

IB – Bem, ao rever os textos transformei em versos metrificados e rimados todas as citações de outros autores que haviam sido reproduzidas em prosa pelos tradutores e fiz o mesmo com o famoso soneto “libertino” de Théophile de Viau [vide abaixo] que serve de epígrafe a Meu Coração a Nu.

JA – E em relação a Flores do Mal, como foi sua escolha ?

IB – Desde cedo aprendi a amar as belas versões que Guilherme de Almeida publicou sob o título de As Flores das Flores do Mal. Mas ele só traduziu os poemas com que mais se identificava, que infelizmente são poucos. Há também algumas boas transposições de Dante Milano. Mas a tradução de Ivan Junqueira, além de ser completa, o que garante uma unidade estilística do conjunto, é sem dúvida a melhor que temos em português, graças à sua concepção da arte de traduzir versos.

JA – Melhor mesmo que a do Guilherme ?

IB – Pelo menos diferente. Ivan deixa passar mais da forma baudelairiana pois está concentrado em efetivamente traduzi-la, ao passo que Guilherme, mais pessoal, faz um poema próprio, maravilhoso, recriando Baudelaire.

O SONETO DE THÉOPHILE DE VIAU (mencionado na entrevista)

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Je songeais que Phillis des enfers revenue ,

Belle comme elle était à la clarté du jour,

Voulait que son fantôme encore fit de l´amour

Et comme Ilion j´embrassasse une nue.

Son ombre dans mon lit se glissa toute nue

Et me dit: “Cher Damon, me voici de retour,

Je n´ai fait qu´embellir en ce triste séjour

Où depuis ton depart le sort m´a retenue.

Je viens pour rebaiser le plus beau des amants,

Je viens pour remourir dans tes embrassements”.

Alors, quand cet idole eut abusé ma flamme,

Elle me dit: “Adieu! Je m´en vais chez les morts.

Comme tu te vantais d´avoir foutu mon corps,

Tu te pourras vanter d´avoir foutu mon âme”.

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Eu sonhei que Philis do inferno retornava,

Tão bela quanto foi à clara luz do dia;

Que eu lhe fizesse amor seu fantasma queria,

Sentindo como Ixion, que uma nuvem abraçava.

Toda nua em meu leito a sombra se espojava;

“Caro Dâmon, estou de volta” – me dizia;

“Vê como embelezei na triste moradia

Onde, depois que foste, a Sorte me trancava.

Quero outra vez beijar meu amante perfeito;

E de novo morrer no espasmo de teu leito!”

E então, tendo esgotado o meu ardor, em calma,

Me disse: “Volto à Morte. Adeus! Tens-te exibido

Por haveres, em vida o meu corpo fodido:

Ora podes dizer que fodeste a minha alma.”


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