Tempo
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Tempo

Já lhes confessei aqui, em 02/09/2010, a minha precária intimidade com a música popular brasileira quando comentei sobre a composição “Lagrimas que rolam pela face”, de Pixinguinha e Cândido das Neves, cantada por Orlando Silva. Salientei que, embora fosse mais chegado à música clássica (ópera), notei na interpretação daquele cantor popular uma sonoridade que me comoveu. A mesma comoção me vem agora ao ouvir o Caetano Veloso cantando, de sua autoria, o “Tempo, tempo, tempo”, com tal originalidade que me levou aos arroubos sentidos diante das grandes interpretações líricas. Caetano conseguiu, a cada vez que pronunciava a palavra tempo, uma dimensão espacial que me fazia lembrar alguns momentos cruciais das árias operísticas.
Com isto, dei-me conta de que o tema “tempo” sempre foi muito caro à minha composição poética, tratado em vários poemas quase sempre referentes à sua passagem ou à tentativa de apreendê-lo no mostrador dos relógios. Já falei em ampulheta, em relógio de sol, em várias sensações despertadas pela inexorável velocidade da vida ou sobre o decréscimo dela na proximidade da morte. Eis alguns dos exemplos:
A FUGA DAS HORAS
Meu pobre coração está triste e sozinho
Como um relógio na penumbra de uma sala.
Não se lamenta – e sofre. O tic-tac fala
Da indecisão no meio de um caminho…
Mas vai batendo tic e vai batendo tac,
Numa cadência igual e com igual destaque,
Que o Tempo vai perdendo o seu mortal sentido!…
Se fosse uma saudade, um amor esquecido,
Diria que — ao invés dessa tampa que o envidra —
Que lhe assentava mais se fosse uma clepsydra
Para ir chorando, gota a gota, essa lembrança;
E quando se esvaísse a última das gotas,
Deixasse o Tempo sem marca e as horas ignotas
Fugirem, como foge a última esperança…
Se fosse uma saudade!… Uma recordação,
Dessas que existem sempre em nosso coração
(Como uma carta antiga em fundo de gaveta),
Talvez quisesse que ele fosse uma ampulheta
Para, de grão em grão, marcar essa ansiedade
De quem espera e diz: “Em vão eu esperei-a!”
Pois, filho do silêncio imenso, o grão de areia
Que veio do deserto exprime o que é saudade.
Se fosse uma saudade!… Ou mesmo uma incerteza
Que traz nossa alma da esperança presa!…
Se fosse uma saudade este meu mal-estar,
Meu coração seria um quadrante solar
Que a amplidão desses céus dia e noite vislumbra,
Pois que seria bem o símbolo do incerto,
De quem sabe estar longe a que quisera perto
E espera num sem-fim de sol e de penumbra…
Mas, não! Não é saudade o que sinto, nem que de
Triste há no tic-tac de um relógio de parede.
É o “spleen”, que me torna alheio e triste;
“Spleen” de ter buscado o que não mais existe…
De ter matado cedo a inocência, demais…
De querer seguir sem saber para onde…
De sempre resolver pelas questões fatais…
De revelar aquilo que se esconde
No íntimo do ser… E esta vontade
De ser mais real que a própria realidade…
Ainda esgotara a borra dos séculos; ainda
Gostaria de andar pelos recantos virgens
E de esperar a que não vem…
Mas, já se finda
O ardor, e o tédio principia…
Ah! as vertigens
De Absoluto e de Eterno, aos poucos deliquescem…
E as Horas, sem parar, a longa teia tecem
— Ardil que freia o movimento, rede
Que tolhe o sonho e que não posso mais quebrá-la…
E sou o tic-tac de um relógio de parede,
Triste e sozinho na penumbra de uma sala…
(1947)
A MORTE DAS HORAS
Quando passar o Tempo que me resta
No relógio-das-horas-do-Destino,
Meu pobre coração, qual velho sino
Que à tarde azul melancolia empresta,
Há de cantar, num dobre vespertino,
Toda a tristeza que não manifesta!
… Ah! um sol de outono a minha vida cresta!…
Adeus, último raio purpurino!…
Sofro a angústia das horas mortas… Peno-a
No caminhar das horas para a hora
Final… E o coração, cansado músculo,
Se alvoroçando na esperança ingênua
De ressurgir inda uma vez na aurora,
Sabendo que é seu último crepúsculo!…
(1947)
A DANÇA DAS HORAS
Fugìt irreparabile tempus
VIRGÍLIO, Geórgicas
Dançando as horas se vão
Pelos caminhos do Tempo
Numa leveza de pluma…
Quem vedes na marcação
Do compasso e contratempo ?
– Uma.
Dançando se vão as horas
Sob os véus de fina gaze
Dançarinas seminuas…
Quem dança, das mais sonoras,
Esta belíssima frase?
– Duas.
Rapidamente bailando,
Cada qual mais erradia,
Desfila por sua vez.
E aquela, aos poucos finando
Nos horizontes do dia?
– Três.
Vão dançando a tarantela…
– Mas, daúltima, o perfil
Me parece horrível e atro.
Ah! não falemos daquela;
Esta aqui é mais gentil.
– Quatro.
Sabeis acaso do nome
Da de vestido de faile
Que lhe queda como um brinco?
Que pena! Logo se some …
A mais ligeira do baile!
– Cinco.
E aquela, de azul vestida,
Tão triste no seu bailar,
Seu nome acaso sabeis?
Parece o adeus da partida
Para nunca mais voltar…
– Seis.
E esta, bailando qual fronde
Ao vento que vem do mar
Em que a lua se reflete?
Trajada como o “gran” monde”;
Esbelta no seu bailar?!
– Sete.
Vós me enganais no bailar:
Sei que passais sem demora
(Quisera ser tão afoito
Que vos pudesse parar).
Mas, e esta que dança agora?
– Oito.
Sob os vestidos de gazes
Trazeis convosco a ruína;
Vosso olhar não me comove,
Falazes horas, falazes…
Mas, e aquela bailarina?
– Nove.
Dançou o rápido “allegro”;
Nem sequer o rosto olhou-me
Eeu mal notei os seus pés.
E esta, vestida de negro,
Sabeis acaso o seu nome?
– Dez.
Agora passam mais lentas:
Vede aquela que aí vem
Dando passadas de bronze
Pelas horas sonolentas…
Que nome será que tem?
– Onze.
Aquela outra que se arrasta
Custando tanto a passar,
Que eternamente repouse
Já de tão velha e tão gasta.
Como se deve chamar?
– Doze.
Fechando o ciclo fugace
A de perfil atro vem
E nos leva em seu transporte.
Pois dessa, de horrenda face,
Dizei-me o nome, se tem?!
– MORTE.
Havia também um soneto de que eu gostava muito, mas cujo original não consegui, até agora, encontrar. Começava assim:
Antigamente este relógio ardia
No fogo juvenil das alvoradas:
Avançava correndo pelo dia
No galope das horas desvairadas
…
E ao chegar exultante ao meio-dia,
Desfazia nas doze badaladas
Toda a glória ardente que existia
Na exaltação das vidas rebeladas
…
Mas hoje envelhecido…
…
E ao chegar à meia-noite, mais parece
Cruzar os dedos trêmulos em prece
– essas lanças viris de outras idades –
E soluça embargado na velhice
Um som que lembra o estertor da morte.
[…] O TEMPO […]