
O ROMANCE DE MILTON
Meu conterrâneo de Ervália-MG, Milton Rezende, já produziu cerca de dez livros de poesia, dois ou três de ensaios e pesquisas, enfrentou a morte que o ameaçava com cirurgias malogradas e dela ressurgiu já pronto para enfrentar novos desafios, como este de escrever um romance. E não um romance comum, desses que contam uma história do começo ao fim, com personagens e diálogos definidos. Milton escolheu a mais sofisticada forma de narrativa que é o romance minimalista. Que vem a ser isto? Em miúdos, um texto em que nada acontece no sentido habitual de descrever um fato existente ou imaginado, leitura em que não se fica sabendo com clareza onde está o narrador nem o que está ocorrendo em seu redor, ou o que ocorrera antes ou poderá vir a ocorrer depois. Sabe-se, vagamente, que o autor da narrativa é um escritor que se considera fracassado, às voltas com um livro que não chega a terminar nem muito menos imprimir; que vive na dependência de um telefonema que não consegue dar nem receber e por isso se embebeda de inúmeras doses de cachaça que toma prosaicamente em xícaras de café. Mas aí é que está a grandeza do texto: esse solilóquio de um homem em busca de amor, a perseguir duas ou três (nomes de) mulheres, que não são descritas nem se sabe bem que papel representam na vida do narrador: esposa? ex-esposa? namorada? idealização? meros fantasmas?
É preciso ser um exímio prosador, ter-se um extenso domínio da língua para manter o leitor preso a esse desdobrar de um acontecimento que não acontece, ouvindo o monólogo de alguém que parece fora da realidade e cuja existência se resume num permanente estado de espírito de espera de não se sabe o quê. O leitor fica na expectativa permanente de que de súbito o telefone toque, que o poeta atenda, que identifique a interlocutora, que se saiba o que ela representa (ou representou) na vida do autor – enfim, aquele happy end que se espera dos livros, das novelas televisivas e mesmo da vida real. Mas Milton segura o pião na unha: nada de aberturas, de intimidades; tome divagação, tédio, indecisão, voltas e mais voltas sobre si mesmo.
O leitor chegado à literatura vai pensar logo em Camus ou num outro mestre da narrativa desintegrada; mas posso dizer que Milton foi além disso: conseguiu escrever todo um romance, numa excelente linguagem, sem recorrer aos acidentes e incidentes peculiares das narrativas. A “história” está toda, inteira, na elaboração da frase, no anti-fato, na negação do acontecimento. Um caminhar permanente no fim da navalha. Você não pode deixar de ler esse livro. É claro, acompanhado de inúmeras xícaras de… café!
Ivo Barroso

LITERATURA
BREVIÁRIO DE AFETOS
Conhecido como poeta e crítico literário, Ivo Barroso é essencialmente tradutor. Sua tradução da Poesia completa e da Prosa poética de Rimbaud está, sem favor algum, entre as realizações mais perfeitas de um autor francês para o português, e contam com a vantagem – que para outros seria descrédito – de figurarem numa edição bilíngue, extremamente vantajosa para o leitor comum. Não há dúvida que esse trabalho de tradutor teve diversos desdobramentos, a tal ponto que seu nome, além dos prêmios recebidos, é geralmente apreciado pelos teóricos da tradução, como Paulo Rónai. Aqui, porém, cuidaremos de outra faceta de Ivo Barroso. Breviário de afetos (São Paulo: SESI-SP editora 2107) compreende crônicas, entrevistas e postagens escritas com simplicidade e que, em alguns casos, surpreendem pelas “revelações” que contêm. O livro fala dos conhecimentos do autor, sobretudo os escritores brasileiros mais ilustres ou destacados, como Alceu Amoroso Lima, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Ferreira Gullar, etc., mas também do tradutor francês Didier Lamaison (que publicou, em dois volumes, traduções de poemas de Drummond) e se refere a outros tradutores, como o alemão Curt Meyer-Clason, e os brasileiros, Onestaldo de Pennafort e Milton Amado, que traduziu “ O corvo” de Edgar Poe.
Todos os textos de Ivo Barroso são redigidos sem a preocupação de exibir conhecimentos, o que aumenta o interesse que despertam. Seja nas recordações sobre escritores já falecidos, como Antônio Houaiss, Otto Maria Charpeaux, João Cabral de Melo Neto, (uma entrevista), Paulo Rónai, Melo Nóbrega, Antônio Carlos Villaça, Mário Faustino, Anísio Teixeira, seja quando aborda amigos e parentes fora da literatura, Ivo Barroso alcança um nível de empatia extraordinário, quase como se o leitor estivesse sentindo, ou até “vendo” a figura retratada. Em todos os tipos desenhados e/ou revividos, distinguem-se o perfil de Edgard de Vasconcellos Barros, incentivador do adolescente Ivo e o de seu tio Pedro, outro que também incentivava o jovem Ivo. E, acima de tudo, o belo texto sobre a namorada – e depois esposa – Sílvia, verdadeiro exemplo de prosa poética, no qual comemora o fato de já estarem casados há 60 anos! Ademais, convém igualmente referir os textos sobre Karlos Rischbieter, cuja devoção ao poeta Rilke o levou a traduzi-lo. A propósito, notem-se reproduções de textos seus ou alheios, sejam traduções de poesia, seja o prefácio redigido para um livro de Gullar. De todo modo, um volume de leitura imprescindível.
FERNANDO PY (Tribuna de Petrópolis, 19.01.2018)
***
ANTOLOGIA POÉTICA DA GAVETA
Quando eu era jovem (isto é coisa dos anos ’50), tínhamos a mania das coleções: grandes álbuns com marcas de cigarro, artistas de cinema, selos estrangeiros, etc. Os mais sensíveis, no entanto, costumavam carregar também um “Caderno de Poesias”, onde colecionavam os versos (românticos!) que mais apreciavam. Lembro-me que na folha de rosto do nosso havia a frase: Só poemas de primeira linha”. Lá estavam, seguramente, o Alceu Wamosy, com o seu “Ó tu que vens de longe, ó tu que vens cansada”; o Aníbal Teófilo, autor de um único soneto, “A Cegonha”, que terminava em “Ver a dúvida humana debruçada/ Sobre a angústia infinita de si mesma!”; o indefectível Júlio Salusse com os seus cisnes, “A vida manso lago azul algumas/ vezes, algumas vezes mar fremente”; sem faltar o Padre Antônio Tomaz, filosofando : “Quando partimos no vigor dos anos/ Da vida pela estrada florescente” e o sempre declamado Nilo Bruzzi a lamentar “Pobre de quem, como eu, vê que, infeliz,/ Teve todas aquelas que o quiseram,/ Mas nunca teve aquela que ele quis!…” Eram os nossos poetas exemplares, só mais tarde desbancados pelo Guilherme de Almeida e o Menotti Del Picchia, e finalmente esquecidos quando Manoel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade se impuseram. Quem hoje, com menos de 50 anos, ainda se lembra daquele (imortal?) “Nascemos um para o outro, dessa argila/ de que são feitas as criaturas raras?” Ah, fugit irreparabile tempus!
De primeira linha… Que vinha a ser isto? O senso estético já nos permitia, à época, afirmar que Menotti del Picchia era melhor que J. G. de Araújo Jorge e que Raul de Leoni e Olavo Bilac eram os grandes nomes da poesia sentimental. Mas, o que será, para a gente de hoje, um poeta de primeira linha? Com o advento da Internet bagunçou-se o conceito de poesia e qualquer semianalfabeto enche hoje as redes sociais com seus versos de pé quebrado ou mesmo versos sem pé nem cabeça alguns. Com isso os mais jovens vão perdendo a noção clássica do belo e do estético, ignorando os grandes poetas brasileiros do passado, mesmo os de um passado recente representado pelas correntes modernistas.
Nosso intuito aqui é o de trazer aos leitores da Gaveta aqueles versos que no passado nos encantaram e considerávamos “de primeira linha”. Serão apenas amostras, sem grandes comentários, meras transcrições dos poemas em si. No máximo acrescentaremos, após o nome do poeta, as suas datas extremas, nascimento e morte, para que o leitor tenha uma noção de época. Sem biografia ou crítica literária, o poema valerá por si só e o gosto do leitor será o juízo final.
RAUL DE LEONI (1895-1926)

EUGENIA
Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras;
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu trago a alma dos faunos na pupila…
Às belezas antigas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila.
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranquila…
É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço ao longe o oráculo de Elêusis).
Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo,
E de teu ventre nasceriam deuses…
Nota: O título do poema é paroxítono (nía) e diz respeito à ciência que trata das condições mais propícias à reprodução e melhoramento genético da espécie humana. (Aurélio). Se você já conhecia o poema, ótimo; se não, sai correndo e vá comprar a obra completa de Leoni (um único volume denominado “Luz Mediterrânea”). Não é possível falar de poesia brasileira sem conhecer essa obra, inteira. Há duas edições confiáveis: a 4ª. edição da Livraria Martins Editora (1946), belíssima em papel encorpado, azul, raridade bibliográfica, e a edição da Topbook, de 2000, criteriosamente organizada por Pedro Lyra).
Devo dizer que a influência de Raul de Leoni, sobre mim, era tamanha que lhe imitava, além do vocabulário e ambientação (Grécia, Roma), até mesmo o vezo de deixar a sexta sílaba sem icto, como se fosse um verso de pé quebrado. Eis um dos meus sonetos da época:
EGRESSO
Venho de longe… Sou daqueles dias
Em que se ergueu a Acrópole de Atenas.
Fui discípulo amado nas serenas
Peripateses das Academias.
Com Epicuro provei das alegrias
E do prazer das bacanais helenas
E Platão me ensinou, nas horas plenas,
A mais sublime das filosofias.
Formei entre os estetas das ideias,
Talhei com Fídias as panatenéias,
Fui sacerdote oracular de Elêusis…
Mas, seguindo da Sorte os maus caprichos,
Hoje vivo entre uns homens que são bichos,
Eu, que nasci no tempo em que eram deuses!
(Por favor, desculpem)
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