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Archive for julho \25\-03:00 2011

De uns tempos para cá, entrou para o vocabulário elegante a palavra sabático. Decerto por influência do inglês, via universidades. Mas parece que pegou mesmo, e até artistas da televisão andam tirando suas férias sabáticas, entre uma novela e outra. Pois vamos a elas…

A Gaveta está completando hoje um ano. Foram 143 posts, inicialmente diários, depois bissemanais e finalmente na base do “querendo-deus”, ou “ao calhas”, como se diz sutilmente em Portugal. Vamos fechar agora a gaveta por uns tempos, mas sem trancá-la de todo pois os consulentes erráticos podem à vontade remexer em seu conteúdo de postagens antigas.  Não haverá matérias novas, por enquanto. Aliás, os textos da gaveta quase nunca eram novos; em geral reedições de artigos e resenhas já publicados em jornal, remanejo de antigas anotações, breves impressões de leitura — uma forma de preservar papeis que serão fatalmente atirados ao lixo por alguém (não por mim, que os  guardo avidamente, como fazia minha avó, para quem tudo poderia ser  necessário algum dia). Essas postagens me davam algum prazer, principalmente o de imaginar que estava salvando alguma coisa para mim, ainda que sem valor para os demais. Alguns amigos deixaram comentários, o que me deu a sensação de não ter falando de todo para o vento. Dei um pouco de alegria a alguns e não tive nenhuma tristeza entranhada  que umas boas  férias não pudessem delir.

Na Casa Velha de Ervália, onde minha avó viveu, havia uma mesa enorme na sala de jantar, um antigo relógio na parede e, ao fundo, o filtro FIEL — imponente pedestal com uma grande pedra porosa pela qual passava a água, recolhida embaixo num pote alto com torneirinha; ao lado dele, um copo de prata para servir a todas as pessoas da roça que, depois da missa de domingo, vinham tomar água em casa de Dona Maria Pimentel.  A mesa tinha uma gaveta imensa com dois puxadores pendentes  e, lá dentro, retratos antigos, contas diversas, papeis avulsos e tudo o que minha avó insistia em guardar. Aquelas fotos antigas e desbotadas, sim, dariam assunto. O relógio deu: fiz vários sonetos sobre ele; o filtro também (e até me lembro de uns versos: No silêncio da sala, gota a gota/ transborda o filtro. A intermitente nota/ fura-me o cérebro, o pingar me vidra,/ me ataca os nervos a estranha clepsidra…) É verdade, as gavetas poderiam dar assunto, principalmente essa da casa de minha Avó. Mas já não escreverei sobre a casa, que foi demolida, nem sobre as gavetas  que desapareceram. Talvez fale (fiquei devendo) sobre o meu primeiro livro impresso, em que a relembro, o “catecismo” que dediquei  à  minha Avó. Será um bom pretexto para (se eu) voltar.

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Wallace Fowlie, professor emérito de literatura francesa da Duke University (Carolina do Norte, EUA), passou a vida ministrando cursos sobre Proust, Rimbaud, Mallarmé, Gide, Claudel e Dante, mas sua maior atenção e estudos fo­ram dedicados ao “insigne pas­sante” de Charleville, de quem acabou tradutor da obra com­pleta. Não foi o primeiro em in­glês, nem sequer o melhor: Oliver Bernard, Paul Schmidt, Louise Varèse, Bertrand Mathieu e Wyatt Mason também por ela se aventuraram, mas só Norman Cameron e Enid Rho­des Peschel conseguiram dar, por fim, ao leitor norte-ameri­cano, respectivamente, uma equivalência poética e una interpretação textual condignas da obra rimbaldiana.

Fowlie, contudo, foi quem le­vou mais longe o culto à obra e à vida do poeta, pois além de traduzi-lo, passou, depois de aposentado, a dar conferências nas universidades e colégios do país, divulgando a obra traduzi­da. Pode despertar admiração ou curiosidade o interesse que os jovens estudantes america­nos demonstravam à época por essas conferências sobre um es­critor francês que lhes era (e ainda é) desconhecido; mas a verdade é que Fowlie tinha um “gancho” explícito e infalível: em 1968 recebera o bilhete em que um cantor sem nome (para ele) lhe agradecia “por ter feito a tradução de Rimbaud, pois, não lendo bem o francês, só as­sim pôde apreciar devidamente o poeta”. Esse cantor era o já fa­moso roqueiro Jim Morrison que, em breve, passaria a ser visto, por suas atitudes performáticas, como guru xamanístico, fauno psicodélico e rebelde com (ou sem) causa, consagran­do-se ídolo da geração beat. Fowlie, dando-se conta, em seguida, do passaporte para a juventude e a popularidade que tinha em mãos, passou a anunciar suas conferências como sendo um paralelo entre os “dois poe­tas malditos”, com o que, se por um lado conseguia seu obje­tivo de divulgar a obra de Rimbaud, por outro procedia politi­camente correto agradando ao público jovem, por equiparar o roqueiro americano ao maior poeta francês da modernidade. As conferências – uma delas in­titulada Traduzindo Rimbaud para um Cantor de Rock fize­ram sucesso, pois Fowlie conseguia transmitir algum Rimbaud em troca de muitos esclareci­mentos sobre “a obra” de Morrison, num perfeito entrosamento com a audiência, que via ne­le um “um erudito avançado”.

O livro “Rimbaud e Jim Morrison” (Elzevir, 2005) é uma síntese de tais conferências, apresentadas com levíssimas modificações em dezenas de campi universi­tários. Louve-se desde já o em­penho com que o velho mestre se dedicou ao estudo do “cantor desconhecido”, guardando de cor os locais e datas das per­formances, títulos das músicas, gravadoras, etc., etc., valendo-­se para tanto das biografias de John Densmore, de Jerry Hopkins/Daniel Sugerman e de Ja­mes Riordan/ Jerry Prochnick. Compreende três partes, as duas últimas dedicadas respecti­vamente a Rimbaud e a Jim Morrison, e a primeira ao “feliz descobridor da dupla”, o pró­prio professor Wallace Fowlie. Nesta. com uma profusão de de­talhes que faz pressupor revela­ções inéditas sobre os persona­gens principais (o que aliás não acontece), Fowlie conta como traduziu a obra de Rimbaud, es­clarecendo com Louise Varèse (esposa do compositor Edgar Varèse) dúvidas mútuas e co­mo foi “despachado” por Etiemble, que ìhe disse: “Estou relendo Rimbaud e cheguei à conclusão de que não entendo sequer uma frase escrita por ele.” Conta também como pre­parava as conferências, exami­nando de antemão a tribuna, o microfone, a colocação da assis­tência, etc. e registra a hora em que chega com precisão de se­gundos e até quantos copos de água bebeu durante a palestra.

A análise que faz da vida e da obra de Rimbaud é um tanto “digest”, e a interpretação de algumas “plates” das Ilumina­ções possivelmente discutível diante da montanhosa exegese que hoje circunda cada frase e até cada palavra do poeta. Mas para o leitor iniciante e desejo­so de conhecer os motivos que fazem de Rimbaud o quebra-di­ques da poesia moderna, o li­vro é mais que útil porquanto escrito por alguém que convi­veu com essa obra e admirou-a durante toda a vida e procura aqui incentivar sua Ieitura.

O grande problema do livro é o possível equívoco que o subtítulo “os poetas rebeldes” pode ocasionar. Jimi Morrison é poeta? E aqui entra em cena a ferrada discussão se letra de música (lyrics) é poesia. Morrison, à semelhança de Rimbaud, em dado momento de sua vida quis mudá-la, depois de ter seguido a fórmula do poeta com “o desregramento de todos os sentidos”, frase aliás que tem sido mal inter­pretada, pois na verdade o que Rimbaud parece querer dizer com isso tem mais a ver com a hipersensibilidade do que com o mero deboche. O popstar, desgastado com o processo que sofreu por ofensa ao pudor público, muda-se para Paris onde pretende dedicar-se à poesia e ao cinema. Mas a morte, em circunstâncias bas­tante controversas, o leva precocemente, como fez com Rimbaud – embora lhe dando a glória póstuma de jazer no Père Lachaise.

A obra “literária” de Jim Morrison está hoje contida em dois volumes bilíngues, edita­dos na França: Lords and New Creatures (Seigneurs et Nou­velles Créatures) e Une Prière Américaine et Autres Ecrits.

Nela não há a esperada influência de Rimbaud, a não ser em duas ou três frases muito diluí­das; predomina o “verso her­mético” e a “referência pes­soal gratuita” (private notes), conhecidos inibidores da ver­dadeira expressão poética. No conjunto, o escritor não chega a ser urna promessa, proceden­do acertadamente seus admira­dores americanos em conside­rá-lo apenas o grande perfor­mer e compositor vocalista do The Doors. Mas Fowlie capri­cha na análise de suas letras e se esforça para valorizar suas “realizações poéticas’.­

Louve-se neste livro de divul­gação sua inquestionável boa qualidade e a fluente tradução de Alexandre Feitosa Rosas, que um ou outro cochilo da re­visão não chega a arrepiar.

(Fonte: Cultura – O Estado de S. Paulo – 23.01.2005 – Na onda de dois poetas malditos)

                              RIMBAUD NO PEN CLUB

                        (mesa-redonda – outubro 2004)

Quis o Pen Club do Brasil – na pessoa de seu Presidente Geraldo Holanda Cavalcanti e de sua Vice-Presidente Bella Jozef – que o sesquicentenário de nascimento de um dos mais importantes poetas franceses – Arthur Rimbaud – não passasse inteiramente esquecido do público brasileiro e resolveu promover este encontro com três tradutores do poeta – Xavier Placer, Ledo Ivo e Ivo Barroso – que aqui viriam falar de sua experiência com essa monumental obra poética e, na medida do possível,  manter com o público presente uma conversa informal sobre a vida e a obra de Rimbaud.  Xavier Placer, [que infelizmente não pôde, à última hora, comparecer por motivos de saúde] foi quem primeiro deu forma de livro no Brasil à obra de Rimbaud com Uma Estação no Inferno, de 1952, nos Cadernos de Cultura do MEC editados por Simeão Leal; o grande poeta e acadêmico Ledo Ivo, foi o primeiro a traduzir entre nós As Iluminações em 1957, juntamente com a Saison a que deu o excelente título de Uma Temporada no Inferno; e este que vos fala, que espera concluir brevemente a tradução do terceiro volume da obra  de Rimbaud,  de que a Topbooks relança nesta ocasião a terceira edição da Poesia Completa.

Em 1994, para homenagear o centésimo quadragésimo aniversário de nascimento de Rimbaud, o Centro Cultural Banco do Brasil organizou toda uma Semana Rimbaud (que na verdade se estendeu de 22 de novembro a 10 de dezembro), durante a qual foram realizadas palestras, exposições, mostras fotográficas que reproduziam fotos e manuscritos, exibição de filme, declamação de poemas e lançamento de livro. Agora, em 2004, por ocasião do sesquicentenário de Rimbaud, acreditávamos que manifestações culturais semelhantes pudessem ser ainda mais expressivas, programadas pelos centros de divulgação, com apoio de outras entidades nacionais e estrangeiras, à semelhança do que está ocorrendo na França, na Itália e no Japão, para citar apenas esses três países. Contudo, em decorrência de problemas da programação desses órgãos (que é feita com uma antecedência às vezes de até um ano), não foi possível a inclusão em 2004 de nenhum evento ligado ao sesquicentenário de Rimbaud, e a data passaria esquecida do público brasileiro não fosse a inserção, em alguns jornais e revistas, de pequenas notas ou artigos referentes ao poeta. A revista Continente, de Recife, a que mais extensamente tratou do assunto,  estampou em sua capa o retrato do poeta  e publicou matéria bastante variada, inclusive um roteiro de Charleville e uma longa carta em que Rimbaud descreve sua travessia dos Alpes, a pé; o suplemento Mais!, da Folha de São Paulo, também publicou uma carta, uma das últimas, em que o poeta informa à família sua hospitalização em Marselha às vésperas de ter a perna direita amputada; o suplemento Magazine, do jornal O Tempo, de Belo Horizonte, também deu capa à matéria tratada sob a forma de entrevista. Afora isto, o silêncio em torno do sesquicentenário de Rimbaud — tão celebrado com alarde nos países cultos – foi aqui total e unânime. Nenhuma entidade cultural, brasileira ou estrangeira, promoveu qualquer evento em comemoração à data, e é com grande satisfação que vemos o Pen Club assumir a incumbência de romper este pesado e inexplicável silêncio .  Se quiséssemos tirar conclusões apressadas, poderíamos imaginar que a importância de Rimbaud decaiu muito nestes dez anos. Mas a verdade é que ele é cada vez mais estudado e lido no mundo culto e nesse interregno surgiram pelo menos duas novas e importantes biografias: a de Graham Robb, em 2000,  e a de Jean-Jacques Lefrère, considerada agora a mais completa, em 2001. Inúmeros artigos e livros foram publicados no período e, agora em 2004, além de duas novas edições das obras, saíram dois novos estudos sobre Isabelle e Vitalie, respectivamente a irmã dedicada e a mãe autoritária do poeta. A Sorbonne organizou um amplo debate sobre Rimbaud que reuniu os nomes mais expressivos da poesia francesa. O que Etiemble, já lá se vão muitos anos, designou de “O Mito de Rimbaud”, quando em 1968, catalogava cerca de 15.000 obras (livros, artigos, comentários) sobre o poeta e sua obra, já deve ter pelo menos triplicado neste período. E a influência de Rimbaud, que era palpável de Proust a Borges, passando por Serge Gainsbourg e Cartier-Bresson, continua a inspirar e contaminar a obra dos poetas novos em todo o mundo. A Itália tem três edições diferentes da obra completa. O Japão, outras tantas. No Brasil suas traduções estavam desde muito esgotadas, mas a presença de Rimbaud se manifesta em cada novo livro de poesia, aqui e algures, pois ele criou uma linguagem nova que se identifica como sendo o idioma da poesia moderna.

Os participantes desta mesa falarão sobre sua experiência em traduzir a obra de Rimbaud e responderão a eventuais perguntas da audiência. É a nossa modesta contribuição ao sesquicentenário do Poeta. Modesta, mas ainda mais significativa por ter sido a única.

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Rainer Maria Rilke (1875-1926) costumava passar suas férias de verão na pequena cidade de Worpswede, na baixa Saxônia, um reduto de poetas e artistas plásticos. Sua amiga a pintora Paula Modersohn-Becker tinha ali uma escola de arte e entre suas alunas prediletas estava Clara Westhoff (1878-1954), de quem pintou um retrato, hoje famoso. Apesar de ter um caso com Paula, Rilke, que adorava a companhia de mulheres, logo após ter rompido com sua amante “tradicional”, Lou Andréas-Salomé, passou a cortejar Clara, com quem se casou, grávida, em 1901. A filha Ruth nasceu sete meses depois, quando o casal já estava praticamente separado. Rilke não fora feito para a vida do lar, dos compromissos, da paternidade. No ano seguinte, ambos se dirigem a Paris, onde Clara vai se aperfeiçoar nos estúdios de Auguste Rodin, o maior escultor francês da época, e de quem Rilke deseja se aproximar, pois está escrevendo um ensaio a seu respeito, o qual será publicado em 1903 em Berlim. Essa aproximação entre escultor e poeta vai ensejar a contratação de Rilke como secretário particular de Rodin, encarregado inicialmente de sua correspondência estrangeira. Sabe-se, por uma carta muito posterior de Rilke, que ele recebia duzentos francos mensais pela tarefa e que, além das duas horas de trabalho inicialmente combinadas, ele dedicava praticamente todo o seu tempo ao estudo da personalidade do Mestre, considerado por ele a figura modelar do Grande Criador. Foi uma das épocas mais produtivas do poeta, que modificou totalmente o sentido de sua poesia, dedicando-se ao “ofício de ver”, de transformar o que via em experiências concretas. Esse período é admiravelmente relatado no livro “Os cadernos de Malte Laurids-Brigge”, seu alter-ego, em que registra suas observações visuais no Jardin des Plantes de Paris.  Rilke sente-se feliz com a intimidade artística que Rodin lhe propicia, bem assim com a possibilidade de viver no ateliê do Mestre e desfrutar de uma existência sem muitas preocupações materiais.

Mas um incidente banal vem acabar com essa felicidade. De um momento para outro, sem aviso prévio, sem uma única palavra, sem possibilidades de defesa, Rodin põe Rilke literalmente na rua, impedindo sua entrada no ateliê e se recusando a vê-lo ou deixar-se entrevistar por ele. Sabe-se, vagamente, que o desentendimento teria sido provocado por uma carta que Rilke teria aberto e respondido diretamente sem a aprovação de Rodin. Ou que Rilke estaria se valendo das amizades importantes dele para se autopromover.

Tudo o que restou a Rilke foi escrever a Rodin a carta (cuja tradução apresentamos a seguir) em que expõe suas razões e demonstra o quanto a atitude brusca do escultor feriu a sensibilidade do poeta e servidor. Esse episódio, no entanto, não fez com que arrefecesse sua admiração e dedicação pelo artista: em futuras publicações e conferências, Rilke continuaria enaltecendo o gênio e a criatividade de Rodin.  Mas naquele momento só lhe restou regressar à pobreza de onde viera, até que outro mecenas viesse a reconhecer o seu destino de altíssimo poeta e lhe propiciasse a oportunidade de isolar-se, recluso em Duíno, para escrever suas elegias imortais.

A CARTA DE RILKE

Paris, 12 de maio de 1906

Meu Mestre,

Não quero iniciar a vida imprevista a que o senhor me condenou sem antes haver deposto em suas mãos uma breve exposição dos fatos segundo meu entendimento mais sincero.

A carta do Sr. Thyssen era endereçada a mim, na qualidade de seu secretário; dessa forma, eu não a escamoteei de maneira alguma ao lhe falar naquela mesma tarde, bem como na manhã seguinte, quando lhe propus enviarmos ao Sr. Thyssen a resposta já preparada alguns dias antes, à qual acrescentaríamos um post –scriptum a propósito da carta em alemão. Se nesse caso cometi um erro, foi o de julgá-la pouco importante, fundamentada numa falsa suposição e redundando em nada. O senhor foi de outra opinião, embora eu permaneça convencido de que meu ponto de vista era escusável em relação a uma carta que fora feita apenas para se aproveitar  pouco delicadamente de uma confusão e de sua suposta ausência.

A carta do Sr. Rothenstein era a resposta de uma carta puramente pessoal que eu lhe havia endereçado; era (devo lembrá-lo) na qualidade de seu amigo que o senhor me havia apresentado ao Sr. Rothenstein, e não via nada de inconveniente em aceitar a pequena relação pessoal que se estabelecia entre seu amigo e eu por meio de nossas conversas, ainda mais que amigos bem mais caros nos eram comuns. Mas o senhor não quis mais se lembrar que foi na condição de amigo que me convidou para vir para a sua casa e a função para a qual me contratou semanas depois não era a princípio senão um meio de proporcionar a um amigo pobre um tempo calmo e favorável ao seu trabalho. Foi assim que o senhor formulou sua proposta, na manhã em que passeávamos pelo jardim deliberando sobre essa possibilidade que me deixava extremamente feliz.

“O senhor me ajudará um pouco; isto não lhe tomará muito tempo. Duas horas apenas pela manhã”, foram as suas palavras.

Ora, não hesitei em lhe dar, em vez de duas horas, quase todo o meu tempo e todas as minhas forças (que infelizmente não são muitas) durante sete meses. Meus trabalhos ficaram para trás desde muito; no entanto eu me sentia feliz em o poder servir, em poder diminuir um pouco as preocupações que atormentavam os seus preciosos esforços.

O senhor próprio me havia aberto sua intimidade, na qual entrei timidamente na medida em me permitia, sem fazer outro uso dessa inesquecível preferência senão para me reconfortar no fundo de meu coração e para poder, legítima e indispensavelmente, cumprir com minhas obrigações para com o senhor e na sua presença. Se eu acalentava o sentimento de querer penetrar as suas intenções para poder um dia ajudá-lo verdadeiramente, conhecendo antecipadamente suas decisões, esse sentimento não precisa ser censurado; era natural que brotasse naquele que desejava ardentemente aliviar o seu trabalho e cumprir plenamente com o serviço que o senhor lhe havia confiado.

No entanto, tenho todas as aparências contra mim no momento em que lhe apraz transformar meus esforços sinceros numa base de desconfiança suspeitosa.

E eis-me posto na rua como um criado ladrão, de súbito, dessa habitação em que, outrora, a sua amizade me havia ternamente instalado. Já não era mais o secretário a quem o senhor havia concedido um domicílio familiar…

Fiquei profundamente ofendido.

Mas eu o compreendo. Compreendo que a sábia organização de sua vida deve alijar imediatamente o que lhe pareça nocivo para manter intactas as suas funções: como o olho rejeita o objeto que lhe incomoda a vista.

Compreendo bem isto, e, lembra-se?, o quanto o compreendi com frequência em nossas contemplações felizes? Estou convicto de que nenhum homem da minha idade (nem na França, nem algures) seja como eu (por seu temperamento e trabalho) mais bem dotado para compreendê-lo, compreender a sua vida grandiosa e admirá-la conscenciosamente.

(Minha mulher, um pouco mais distante e de maneira diversa, nutre pelo senhor um sentimento semelhante. Lamento que não tenha pensado nela ao me despedir, sem uma só palavra, pois ela (que tanto necessita de sua assistência) não o ofendeu de forma alguma; por que haveria ela de partilhar esta espécie de desgraça que recaiu sobre mim?)

Eis que o senhor, grande Mestre, tornou-se invisível para mim, como se  elevado aos céus que lhe são particulares.

Já não o verei – mas como para os apóstolos que ficaram tristes e sós, a vida começa para mim, a vida que celebrará seu alto exemplo e que encontrará no senhor seu próprio consolo, seu direito e sua força.

Ambos concordamos em que na vida existe uma justiça imanente, que se  realiza de maneira lenta mas correta. Nessa justiça é que deponho toda a minha esperança; ela corrigirá um dia o erro que o senhor quis impor àquele que já não tem meios nem direito de lhe expor seu coração.

Rilke.

OUTONAL – BELO E SABOROSO

Karlos Rischbieter, o tradutor de Rilke (comentado em nosso post de 19.04.2011), editou em 1993, pela Posigraf, de Curitiba, uma seleção de poemas extraídos dos vários livros do Poeta, a que deu o título “Senhor, é tempo”. Em 2002, já pela Editora Record-Rio, saíram suas traduções de “Os Sonetos a Orfeu / Elegias de Duíno”, em edição bilíngue, amplamente distribuída por todo o país. Agora, depois de provar sua capacidade de tradutor de poesia, o autor vem demonstrar sua versatilidade nos domínios da prosa e nos presenteia com este “Outonal – Um amor de viagem pela Europa”, um livro que além de belo é literalmente delicioso. Enriquecido com inúmeras e delicadas aquarelas feitas at sight pelo próprio narrador, o texto todo exala ainda um perfume recorrente de magníficas refeições feitas ao longo do percurso. O leitor se transforma imediatamente num turista-voyeur que acompanha os viajantes pela Córsega, a Toscana, a Suíça, o sul da França e dezenas de pitorescas e minúsculas localidades, desfrutando ora do conforto ora do aconchego de seus hotéis, albergues e pousadas, apreciando a exuberância da paisagem, visitando seus sítios históricos e artísticos e sorvendo a delícia de seus vinhos juntamente com a variedade de suas iguarias. Não há outro qualificativo: um livro belo e realmente delicioso. O texto, numa linguagem informativa e pitoresca, mas nada semelhante a dos guias tradicionais, coloca o leitor diretamente em cena, dando-lhe uma carona nos vários meios de transporte utilizados pelo casal viajante. Só falta lhe emprestar o pijama e a escova de dentes. Recebi um exemplar autografado, mas o leitor que desejar entrar como entrei nesta aventura, poderá escrever à editora Kafka – Rua Francisco Alves Guimarães, 175 – 80050 210 – Curitiba-PR, que, com sorte, talvez consiga adquirir um exemplar.

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EU CANTO O CORPO ELÉTRICO – WALT WHITMAN

1

Eu canto o corpo elétrico.

As legiões daqueles a quem amo me envolvem e são por mim envolvidas,

Pois não me largarão enquanto eu não for com eles e atendê-los,

E purificá-los e vigorizá-los inteiramente com o vigor da alma.

Há quem duvide de que todo aquele que perverte o corpo

esconde a si mesmo?

E de que todo aquele que profana os vivos seja tão perverso quanto quem profana os mortos?

E se o corpo não valer tanto quanto a alma?

E se o corpo não for a alma, o que será a alma?

2

O amor ao corpo do homem ou da mulher rejeita explicação, o simples corpo rejeita explicação,

O do homem é perfeito e perfeito é o corpo da mulher

A expressão da face rejeita explicação,

Mas a expressão de um homem bem feito aparece não apenas em seu rosto,

Está em seus membros e articulações, está curiosamente nas articulações de seus pulsos e quadris,

Em seu andar, na postura do pescoço, no fletir da cintura e dos joelhos, que as vestes não escondem,

A forte e suave qualidade que ele tem transluz através do algodão e da flanela;

Vê-lo passar comunica tanto quanto o melhor poema, talvez mais,

E te demoras a contemplar seu dorso, a parte posterior de seu pescoço e as laterais dos ombros.

O espernear e a exuberância dos bebés, os seios e as cabeças das mulheres, as dobras de suas vestes, sua elegância quando passamos pela rua, o contorno de suas formas descendentes,

O nadador desnudo na piscina, visto como se nadando através do

brilho transparente e verde, ou volta a face para cima ou gira

suavemente para cima e para baixo no deslocar da água,

A flexão para frente e para trás dos remadores em seus barcos a remo — o cavaleiro em sua sela,

Moças, mães, governantas, em todas as suas atividades,

O grupo de trabalhadores sentado ao meio-dia com suas marmitas abertas, e as esposas esperando,

A mulher acalentando a criança — a filha do fazendeiro no jardim ou no curral das vacas,

O moço que capina o milharal —  o condutor de trenó conduzindo seis cavalos através da multidão,

A luta dos lutadores, dois jovens aprendizes, já robustos, saudáveis, de boa índole, ali do lugar, lá fora no terreno baldio, ao entardecer, já depois do trabalho,

Os paletós e os bonés atirados ao chão, o enlace de afeto e resistência,

A pega por cima e a pega por baixo, os cabelos amarfanhados a lhes tapar os olhos;

A marcha dos bombeiros em seus uniformes, o movimento dos músculos masculinos através das calças bem talhadas e dos cinturões,

A lenta volta do incêndio, a pausa quando a sineta volta a soar de novo, os ouvidos em alerta,

As atitudes naturais, perfeitas, variadas — a cabeça inclinada, o pescoço curvado, a contagem,

A esses assim eu amo — deixo-me levar, corro livremente, estou no seio da mãe com a a criancinha,

Nado com os nadadores, luto como os pugilistas, marcho em forma com os bombeiros, e paro, presto atenção e conto.

3

Conheço um homem, um fazendeiro comum — pai de cinco filhos;

E neles estavam os pais de filhos — e neles estavam os pais de outros filhos.

Era um homem de extraordinário vigor, calmo, uma pessoa bela,

A forma de sua cabeça, o amarelo pálido e branco de sua barba e dos cabelos, e a expressão imensurável de seus olhos negros — a plenitude e extensão de suas maneiras,

Gente assim é que eu gostava de visitar — era também uma pessoa sensata,

Um metro e oitenta de altura, mais de oitenta anos de idade — os filhos eram robustos, sadios, barbudos, queimados de sol e vistosos,

Eles e as irmãs o amavam — todos os que o viam o amavam;

Não o amavam por tolerância — amavam-no com um sentimento pessoal;

Ele só bebia água — seu sangue escarlate se mostrava através da pele amorenada de sua face;

Caçava e pescava com frequência — ele mesmo velejava seu barco – tinha um muito bom, que lhe fora presenteado por um carpinteiro-naval — possuía caçadeiras que lhe foram dadas por pessoas que o amavam;

Quando ele vinha caçar e pescar com seus cinco filhos e muitos netos, era fácil considerá-lo o mais belo e vigoroso do grupo.

Qualquer um gostaria de ficar muito tempo em sua companhia — sentar-se a seu lado no barco, com seus corpos se tocando.

4

Percebo que  estar com aqueles de quem gosto é o bastante,

Ficar em companhia deles pelo resto da noite é o bastante

Ser rodeado pela carne bela, curiosa, palpitante, sorridente é o bastante,

Passar entre eles, ou tocar todos eles, ou  descansar meu braço mesmo bem de leve em torno ao ombro dele ou dela por um momento — o que significa isto, então?

Não exijo nenhum deleite maior que este — nado nele, como num mar.

Há algo em se permanecer junto a homens e mulheres, a olhar para eles, sentir-lhes o contato e o odor, que agrada tanto a alma,

Tudo agrada a alma — mas isso lhe agrada bem.

5

Eis a forma da mulher;

Uma divina auréola se desprende dela da cabeça aos pés,

Atrai com furiosa e incontestável força!

Sou arrastado por seu hálito como se não passasse de um simples

vapor —  tudo se desfaz em torno menos eu e ela,

Livros, arte, religião, tempo, a terra visível e sólida, a atmosfera e as nuvens, e tudo o que esperamos do céu ou tememos do inferno, agora se desvanece;

Filamentos insanos, rebentos desgovernados dela emanam — a reação igualmente ingovernável.

Cabelos, seios, quadris, curva das pernas, mãos que tombam negligentes, tudo difuso – eu também difuso;

Fluxo ferido pelo refluxo da maré e refluxo ferido pelo fluxo — carne amorosa que se dilata e dói deliciosamente;

Ilimitados e límpidos jatos de amor, quentes e enormes, trêmula geléia de amor, branca ejeção e delirante suco;

Noite nupcial do noivo adentrando seguro e suave pela prostrada aurora;

Ondulando no complacente e desejoso dia,

Perdido na fenda apertada da carne tenra do dia.

Eis o núcleo — assim como a criança nasce da mulher, o homem nasce da mulher;

Eis o banho do nascer — o surto do pequeno e do grande, e novamente a saída.

Não se envergonhem, mulheres – seu privilégio engloba o resto, e é a saída para o resto;

Vocês são as portas do corpo, e são também as portas da alma.

A mulher contém todas as qualidades e sabe condicioná-las — está em seu lugar e movimenta-se em perfeito equilíbrio;

É tudo quanto está devidamente velado, tanto o passivo quanto o ativo;

Feita para conceber tanto filhas quanto filhos, e tanto filhos quanto filhas.

Quando vejo minha alma refletida na natureza,

Quando vejo através da neblina o Ser de inexprimível integridade e beleza,

Vejo a cabeça inclinada e os braços cruzados sobre o peito – estou vendo a Mulher.

6

O homem não é menos alma, nem é mais — também ele está em seu lugar;

Também possui todas as qualidades — é ação e poder;

Nele está o ímpeto do universo conhecido;

O desdém lhe assenta bem, o apetite e o desafio também lhe assentam bem;

As paixões mais amplas e selvagens, deleites que são extremos, dores que são extremas,lhe assentam bem – o orgulho foi feito para ele,

O orgulho explosivo do homem é acalmador e excelente para a alma;

O conhecimento lhe convém — ele sempre o aprecia — toma todas as coisas como um teste de si mesmo;

Seja qual for a busca, seja qual for o mar e a vela, é afinal aqui apenas que ele atira as sondas;

(Onde podia atirá-la senão aqui ?)

O corpo do homem é sagrado, e sagrado é o corpo da mulher;

Não importa quem seja, é sagrado;

É um escravo? É um desses imigrantes de face sombria que acabam de chegar ao cais?

Cada um deles pertence a este ou a outro lugar, tanto quanto os ricos — tanto quanto tu;

Cada homem ou mulher tem seu lugar no desfile.

(Tudo é desfile;

O universo é um desfile, com seu movimento perfeito e ritmado.)

Conheces tanto a ti mesmo para chamares de ignorante ao mais humilde deles ?

Achas que tens direito a um bom lugar, e que ele ou ela não tenha esse direito ?

Achas que a matéria se condensou de seu estado fluido — que o solo esteja na superfície, e as águas corram e a vegetação germine,

Apenas para ti, e não para ele ou para ela ?

7

O corpo de um homem em leilão,

(Pois antes da guerra constumava ir ao mercado de escravos para assistir aos leilões,)

Ajudo o leiloeiro, o desleixado mal conhece o seu ofício.

Cavalheiros, vejam esta maravilha!

Sejam quais forem os lances dos licitantes, jamais serão suficientemente altos para ele;

Para recebê-lo o globo se preparou durante quintilhões de anos, sem um animal ou planta;

Para ele os ciclos recorrentes rolaram unívocos e perfeitos.

Nesta cabeça o instigante cérebro,

Nele e abaixo dele a saga dos heróis.

Examinem estes membros, vermelhos, negros ou brancos — são tão destros em tendões e nervos,

Vamos descobri-los para que os possam ver.

Sentidos aguçados, olhos vivazes, garra, determinação,

Camadas de músculos peitorais, pescoço e espinha flexíveis, carne rija, braços e pernas bem proporcionados,

E outras maravilhas internas.

Dentro corre o sangue,

O mesmo sangue de sempre!

O mesmo sangue rubro corre!

Aqui um coração dilata-se e bombeia, aqui todas as paixões, desejos, alcances, aspirações,

Acham que eles não as têm porque deles não se fala nas salas de visita e nos salões de conferências?

Este não é apenas um homem — este é o pai daqueles que por sua vez serão pais,

Nele está o começo de países populosos e prósperas repúblicas,

Dele surgirão vidas imortais sem conta e incontáveis encarnações e júbilos.

Como sabem quem virá das descendências de sua descendência através dos séculos ?

De quem acham que saíram, se pudessem retroceder através dos séculos?

8

Um Corpo de mulher em hasta pública!

Ela tampouco é apenas ela, mas a fértil mãe de mães;

A portadora daqueles que crescerão para se tornarem os companheiros dessas mães.

Já apreciaram alguma vez o Corpo da mulher ?

Já apreciaram alguma vez o Corpo do homem ?

Não vêem que são exatamente os mesmos, em todas as nações e tempos, em qualquer parte da terra ?

Se algo é sagrado, o corpo humano é sagrado,

E a glória e a doçura do homem o emblema da humanidade imaculada ,

E no homem ou na mulher um corpo são, forte, musculoso, é mais belo do que a mais bela das faces.

Já viram o insensato que perverteu o próprio corpo? ou a insensata que perverteu o próprio corpo dela?

Pois eles não se escondem, não podem esconder-se a si mesmos.

 9

Ó meu corpo! Não ouso fugir ao que preferes em outros homens e mulheres, nem as preferências de algumas de tuas partes,

Creio que tuas preferências se erguerão ou cairão com as preferências da alma, (e que elas são a alma,)

Creio que as tuas preferências se erguerão ou cairão com meus poemas — e que elas são poemas,

Poemas do homem, da mulher, da criança, do jovem, da esposa, do marido, da mãe, do pai, do rapaz, da moça,

Cabeça, pescoço, cabelo, ouvidos, lóbulos e tímpanos,

Olhos, órbitas, íris, sobrancelhas, e o acordar e adormecer das pálpebras,

Boca, língua, lábios, dentes, céu da boca, maxilares, e as articulações,

Nariz, narinas, e o septo nasal,

Faces, têmporas, testa, queixo, garganta, nuca, fossa jugular,

Ombros fortes, barba viril, omoplatas, espáduas, e a ampla arcada do peito,

Bíceps, axilas, o pilão do cotovelo, ante-braço, tendões, os ossos do braço,

Pulso e as articulações do pulso, a mão, a palma, os nós dos dedos, polegar, indicador, as articulações, as unhas,

O amplo arcabouço do peito, os cabelos ondulados do peito, os ossos do peito, as laterais do peito,

Costelas, ventre, espinha dorsal, as junções da espinha,

Quadris, cavidades do fêmur, a força dos quadris, as chãs internas e externas, os testículos, a raiz do homem,

Forte conjunto de coxas, belos suportes do tronco acima,

Filamentos da perna, joelho, rótula, alto da coxa, barriga da perna,

Tornozelos, a curva do pé, o peito do pé, os artelhos, as articulações, o tornozelo;

Todas as atitudes, todas as simetrias, todas as propriedades do meu ou do teu corpo, de qualquer um, homem ou mulher,

As esponjas pulmonares, a bolsa estomacal, os intestinos limpos e saudáveis,

O cérebro com suas circunvoluções na caixa craniana,

O nervo simpático, as válvulas cardíacas, as válvulas palatais, a sexualidade, a maternidade,

A feminilidade e tudo o que é da mulher — e o homem que provém da mulher,

O ventre, os seios, os mamilos, o leite materno, as lágrimas, os sorrisos, o pranto, olhares amorosos, perturbações do amor e excitações,

A voz, a dicção, a linguagem, o murmúrio, os gritos altos,

Comida, bebida, pulso, digestão, suor, sono, passeios, natação,

O equilíbrio dos quadris, os saltos, as flexões, os braços que se curvam para abraçar as pernas,

As modificações contínuas dos movimentos da boca e em torno dos olhos,

A pele, o bronzeado que o sol lhe causa, as sardas, o cabelo,

A curiosa sensação que se tem quando se apalpa a carne desnuda de um corpo,

Os círculos recorrentes da respiração, aspirando e expirando,

A beleza da cintura, e logo dos quadris, e ainda para baixo em direção aos joelhos,

Os pequenos glóbulos vermelhos dentro de ti ou de mim — os ossos e a medula dentro deles,

A fantástica conscientização da saúde;

Ó eu digo que estas não são apenas partes e poemas do Corpo, mas também da Alma,

Digo mesmo que elas são a própria Alma!

1855/1881.

(Tradução de Ivo Barroso encomendada pela diretora teatral Christiane Jatahy para servir de texto em prova de leitura para os alunos de seu curso de artes cênicas e ser publicado nos Cadernos de Espetáculos 2, de setembro de 1996 – Revista do Teatro Carlos Gomes da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro – Vide post de 07.09.2010) 

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A poesia de Whitman teve seu momentum ao ser contraposta ao elegismo espiritual de Rilke, já que formalmente se exprimia pelo mesmo tipo de derramamento versicular-litúrgico, só que exaltava não as qualidades excelsas, angelicais do homem, mas ao contrário sua importância biológica, corpórea, o ser enquanto carne e sangue, movendo-se num meio social. Suas Leaves of Grass, publicadas inicialmente em 1855, só por volta de 1920 começaram a ser criticamente apreciadas em seu país, pois durante as três décadas precedentes o livro foi visto sob as mais severas reservas e objurgações, principalmente pela ousadia de introduzir na linguagem poética referências sexuais até então consideradas tabus.

Críticos-jornalistas (hoje desconhecidos) como Griswold e Higginson chamaram depreciativamente a obra de Whitman de Carniça, e um certo Calvin Beach chegou a sugerir que o título apropriado da obra devia ser O lixo da sarjeta ou Os guinchos do chiqueiro.  O anti-puritanismo de Whitman, amplificado por essas aleivosias, tornou sua obra o alvo de perseguições policiais e chegou a acarretar-lhe a demissão do modesto cargo público que ocupava. A única voz de responsabilidade literária que se ergueu a seu favor na época foi a de Ralph Waldo Emerson, que saudou o livro como “a mais extraordinária peça de inteligência e sabedoria que a América já produziu”, embora ele próprio viesse, em 1860, na terceira reedição ampliada da obra, aconselhar o corte de alguns poemas da nova série pois, segundo ele, o público “não estava preparado para um poeta que celebrava as prostitutas e a masturbação”.

A linguagem absolutamente original de Whitman, que misturava ao vocabulário tradicional canônico da língua inglesa as mais corriqueiras e “a-poéticas” expressões, sua grandiloquência oratória desabrida, a temática polifônica, a franqueza em falar sem embuços sobre os relacionamentos humanos – fizeram de As Folhas de Relva um dos livros mais originais e poderosos da literatura mundial. Hoje o valor dessa obra é chancelado pela soi-disant autoridade máxima da crítica de língua inglesa, Harold Bloom, que não hesita em ver Whitman como centro do cânone literário norte-americano.

Desde muito se esperava a edição completa dos poemas de Whitman em português, e agora [2005], no 150º aniversário da publicação de As Folhas de Relva, a Editora Iluminuras nos oferece os doze poemas iniciais (que compunham a primeira edição), traduzidos por Rodrigo Garcia Lopes, trabalho que embora ainda não ponha o leitor brasileiro diante da obra poética conjunta do bardo americano, pelo menos contribui com uma significativa amostragem dela, acrescida de longo estudo crítico sobre sua importância literária e a vida do autor, que dispensa navegações pela Internet.

O interesse pela obra de Whitman entre nós pode ser assinalado desde 1945, quando Luís da Câmara Cascudo publicou n´A República, de Natal, três artigos que incluíam as traduções dos poemas I hear America singing, The base of all Metaphysics e  For you, o Democracy. Já nessa época, o nosso grande foclorista reconhecia em Whitman “um dos mais difíceis originais para tradução. Um Whitman traduzido é uma diminuição infalível. O grande, imenso poeta, só o será em inglês, na plenitude de sua originalidade poderosa, manejando os recursos do seu gênio, acumulador de nuvens e espalhador de ritmos maravilhosos.”

Seguindo-lhe os passos, Gilberto Freyre, em uma conferência na Sociedade dos Amigos da América, em maio de 1947, referia-se à originalidade e ao pioneirismo daquele “anglo-americano que primeiro exaltou em poema a figura de uma negra” e, analisando a atuação poético-política do vate, dizia que, “não obstante sua confiança no homem comum, Whitman enxergou sempre a necessidade, nos postos de comando – de puro comando, nunca de domínio – do homem incomum.” Toda a digressão de Freyre é focada na conceituação de Democracia e nas interpretações  políticas de Whitman, para quem o “barco democrático não devia ser feito só para os ventos bons”, mas para enfrentar igualmente as tempestades (Ship of the hope of the world – Ship of Promise / Welcome the storm – welcome the trial).  Mas Gilberto Freyre não se inibe contudo  de abordar a questão-chave do homossexualismo de Whitman, como neste trecho: “O que teve parece que foi principalmente a coragem de grandes amizades com outros homens (algumas – admita-se – de remoto ou imediato fundo homossexual) ao lado de entusiasmos por ‘mulheres perfeitas’. O que põe em destaque seu bi-sexualismo de atitude; e o ‘narcisismo’ de exaltar a beleza do corpo humano – a do homem tanto quanto a da mulher – e não apenas a graça e o encanto do corpo da mulher visto com olhos de homem. Um homossexual inveterado dificilmente teria escrito poema tão compreensivo do sexo oposto e, ao mesmo tempo, tão masculino em sua atitude como A woman waits for me. Apenas, a mulher por ele idealizada não era a lânguida, a frágil, a excessivamente delicada das civilizações caracterizadas por um tal domínio econômico do Homem sobre a Mulher em que esta é antes um sub-sexo do que o sexo oposto”.

Ainda no campo das apreciações críticas, o nosso sempre citado Otto Maria Carpeaux, em sua História da Literatura Ocidental, de 1959, estabelece: “Julgava-se ‘Poeta do Povo’, mas nunca foi lido nem querido pelo povo, que não gosta do verso livre e da ‘melodia permanente’. Seja porque o povo teima em adorar a métrica tradicional, seja por qualquer outro motivo que a sociologia da história literária terá que esclarecer, o ‘poeta da democracia’ ficou um ‘poet´s poet´, assim como Verhaeren, Claudel, Romains e todos os inúmeros whitmanianos hispano-americanos”.

Propriamente quanto à tradução dos poemas, as contribuições mais próximas vieram de Oswaldino Marques com seus livros Cantos de Walt Whitman e Videntes e Sonâmbulos (agora reeditado com o título O Livro de Ouro da Poesia dos Estados Unidos, no qual figuram 6 poemas de Whitman traduzidos por Manuel Ferreira Santos, por Cascudo — o já citado O Fundamento de toda Metafísica —, por Emílio Carrera Guerra, por Pompeu de Souza e o próprio Oswaldino). Geir Campos, que já nos dera em 1953 amostras de Rilke, reaparece em 1964 com Folhas de Relva (da Civilização), que na reedição pela Brasiliense traz o título de Folhas das Folhas de Relva (23 poemas) e um prefácio acoplado de Paulo Leminski, alheio à tradução de Geir. Consigne-se ainda o Song of myself / Canção de mim mesmo, em tradução de André Cardoso para a coleção Biblioteca Alumni, da Imago, que, destinada a uso escolar, mantém embora uma linguagem muito próxima do original.

A contribuição mais significativa até agora, em quantidade e qualidade dos poemas traduzidos, se deve à edição da Zahar (1988) de Walt Whitman – a formação do poeta, de Paul Zweig, uma biografia definitiva, em tradução de Ângela Melim, com os poemas citados vertidos por Eduardo Francisco Alves. Grande parte (e sem dúvida a mais significativa) da poesia de Whitman está aí em toda a sua ressonância.

A nova tradução de uma obra poética é sempre louvável pois dela se espera um avanço em relação àquelas que a antecederam, seja no sentido de sua completude ou de uma abordagem diversa ou mais acurada em função do aparato crítico interpretativo superveniente. No caso da tradução de Rodrigo Garcia Lopes, se não podemos falar em completude como esperávamos, já que se restringe aos 12 poemas da edição de 1855,  no que respeita à abordagem muita coisa há que se dizer. O tradutor optou programaticamente por “modernizar” a linguagem do poeta, emprestando-lhe termos coloquiais e mesmo jargões que parecem  destinados a orientar a leitura para um público teen-ager sem grandes compromissos vernaculares. Assim, por exemplo, “few embraces” é traduzido por “alguns amassos”, “the rush of the streets” por “o agito das ruas”, “lack of money” por “falta de grana” e “watching and wondering” pelo um tanto suspeito “sacando e viajando”. É possível que esse tipo de interferência ou re-escrita atualizada do tradutor possa concorrer para uma melhor aceitação da obra por aquele público-alvo, mas se acatarmos a lição de Carpeaux de que Whitman é um “poeta para poetas”, essa opção de linguagem certamente causará estranheza quando cotejada com as frases coloquiais mas sempre no âmbito do idioma-padrão utilizadas por Whitman. A introdução desse tipo de apelo popular não raro se choca com a grandiloquência e pirotecnia vocabular que se vê no original. Salvo esse tipo de discordância, Rodrigo Garcia Lopes soube mostrar na quase totalidade dos versos sua tarimba de tradutor profissional, saindo-se em muitos casos brilhantemente das armadilhas e tonalidades que Câmara Cascudo dizia intraduzíveis. Sirva a edição comemorativa como incentivo aos nossos editores e tradutores para nos trazerem finalmente um Walt Whitman complete and unabridged.

Fomos informados de que a editora Hedra, de S.Paulo, lançará em agosto uma edição completa das Folhas de Relva (edição do Leito de Morte [Deathbed Edition 1892], em tradução de Bruno Gambarotto, a única versão autorizada pelo autor em testamento (e a mais completa).

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A volta de Monte Cristo

A transição do Tesouro da Juventude para O Conde de Monte-Cristo é uma espécie de sacre du printemps, um rito de passagem da leitura como mero supletivo escolar para a sua revelação total como passe de mágica. É a sensação de que finalmente, e de fato, o leitor participa de um experimento alquímico que transforma as letras de um livro numa vivência interior capaz de transportá-lo a uma nova dimensão sensorial.

(O Conde de Monte-Cristo?… sim, aqueles volumões encebados na mais alta prateleira da biblioteca pública, cujo segundo tomo estava sempre emprestado, o que nos obrigava a ler e reler a desgraça de Dantès e a protelar vezes sem conta a justa e sonhada vingança… As obras famosas de autores consagrados, a depuração do gosto literário, o conhecimento da avaliação crítica certamente iriam arrefecer o entusiasmo juvenil da primeira leitura, mas nunca apagariam da lembrança aqueles momentos de transfiguração em que nos incorporávamos no conde vingador que, sob disfarces e artimanhas, faria [na linguagem da época] os algozes que o traíram e vilipendiaram provar do mesmo fel que ele provou).

Qual será a fórmula mágica que permite a um escritor criar um livro capaz de agradar a um vastíssimo leque de leitores e atravessar o espaço de várias gerações?    O principal ingrediente de O Conde de Monte Cristo é sem dúvida a vingança, um dos sentimentos primitivos do homem, presente em quase toda a literatura pré e pós-romântica. Mas a trama joga com uma infinidade de outros lugares-comuns das novelas e folhetins: a paixão, o ciúme, o ódio, a inocência, a traição, a desgraça, etc. que seriam meros ingredientes de um bolo literário não fosse o requinte e também a mestria na dosagem com que Dumas os transforma em guloseimas.

Nascido Alexandre Davy de La Pailleterie (1802-1870), Alexandre Dumas já era famoso como teatrólogo quando escreveu O Conde, publicado inicialmente em folhetins no Journal des Débats, entre 28.09.1844 e 15.01.1846. Verdadeiros chamarizes dos jornais da época, abusavam da técnica de prender os leitores com os mesmos recursos usados ainda hoje pelas novelas da televisão: o gancho, o suspense da ação, a expectativa do que vai ou poderá acontecer. Tal era a importância deles, que a Redação prevenia os leitores, na primeira página, quando algum percalço obstava a publicação, sem deixar de prometer a imediata retomada da história. O sucesso desses folhetins fez com que O Conde logo chegasse ao Brasil, nove meses (15.06.1845) depois de sua publicação original na França. Os jornais vinham de navio e eram logo traduzidos, mas certa vez, quando houve atraso na chegada do vapor, também o Jornal do Commercio (13.08.1845) se desculpou com seus leitores, explicando detalhadamente o motivo da inesperada paralisação.

Objeto de estudos sérios, como os de Umberto Eco e Antonio Gramsci, a fabulação de Dumas transcende os meros limites do folhetinesco e alcança o status de romance. Longe de se tratar de um caso isolado, o sucesso de O Conde foi seguido de outras obras igualmente populares como Os Três Mosqueteiros, Os Irmãos Corsos, O Colar da Rainha, etc. que fizeram de Dumas um homem rico e gastador. Amigo de príncipes e reis, frequentando a aristocracia européia, Dumas carregava, no entanto, o estigma da cor, sendo discriminando como mulato. Seu avô, o marquês Antoine-Alexandre Davy de La Pailleterie morava no Haiti com uma escrava negra, Marie Césette Dumas, e o pai do escritor, que chegou a general dos exércitos napoleônicos, teve de recorrer ao nome materno para alistar-se, atendendo a pedido do marquês, zeloso de não deslustrar sua nobiliarquia. Alexandre, por sua vez, andou gerando filhos espúrios, entre os quais, um júnior que se tornaria o escritor Alexandre Dumas filho, autor do também famoso romance A Dama das Camélias. Numa curta novela intitulada Georges, Alexandre pai chamava atenção para alguns aspectos raciais da sociedade francesa, bem como para os efeitos maléficos do colonialismo. Essa discriminação, apesar de seu sucesso literário e social, de suas amizades coroadas, persistiu até mesmo depois de sua morte em 1870. Só em 2002, por iniciativa do presidente Jacques Chirac, seu féretro foi transportado em procissão solene para o Panthéon, onde jaz ao lado de Victor Hugo e de Voltaire.

As aventuras criadas por Dumas tinham todos os ingredientes para se tornarem filmes. Contam-se mais de 200 versões cinematográficas de suas obras. A Société des Amis d´Alexandre Dumas  arrola 30 delas somente para O Conde. A mais antiga é a versão americana, de 1908, com Hobard Bosworth no Dantès, refeita em 1912. Também nesse mesmo ano surge a de Zukor, com James O´Neil no protagonista.  A primeira francesa é de 1917 e, em 1922, Hollywood comparece com atores famosos, como é o caso de John Gilbert, seguida, em 1934 pela atuação de Robert Donat e Elisa Landi, na dupla amorosa. O México entra em cena em 1941 com Arturo de Córdoba, e os americanos contra-atacam em 1946 com duas versões distintas. Uma co-produção franco-italiana de 1953/54 lança Jean Marais e, em 1961, Claude Autant-Lara nos apresenta Louis Jourdan vivendo o marinheiro. Há uma versão koreana de 1967 e uma australiana de 1993 em desenho animado. Já em nossos tempos (1974), um elenco de peso (Richard Chamberlain, Tony Curtis, Trevor Howard e Louis Jourdan) nos dá a primeira versão moderna que seria a definitiva por muitos anos, tendo os franceses tentado suplantá-la em 1998, empregando a família Depardieu (três deles estão no elenco), com o reforço italiano de Ornella Muti no papel de Mercedes. A última que nos chegou foi a americana de 2002 com James Clavizel no Dantès e um Richard Harris simplesmente ridículo no Abade Farias. A versão de Autant-Lara é considerada pelos cinéfilos como a mais próxima do texto original, mas o certo é que, diversamente do que acontece com frequência, o cinema só conseguiu dar do romance uma exterioridade paisagística e um desfile de personagens sem maior conteúdo. Só o livro nos remete ao desespero de Dantès ao ser trancafiado no Castelo de If, nos permite arquitetar com ele, na solidão do cárcere, aquela vingança de que seríamos todos coniventes.

São inúmeras as edições e traduções do romance em mais de 100 línguas, sem falar nas adaptações, reduções, falsificações, paródias, etc. O Conde permanece até hoje um dos livros mais vendidos em todo o mundo, e a boa notícia é que dois editores “dumasníacos”, que se criaram à sombra de seus heróis e espadachins, André Telles e Rodrigo Lacerda, resolveram trazê-lo de volta aos leitores de hoje [2008] numa tradução em que cada frase, cada palavra foi transcrita com a mesma devoção da primeira leitura. A edição de luxo tem 170 gravuras e é enriquecida por mais de 500 notas explicativas.

(Fonte: Prosa & Verso – O Globo – 20.12.2008 – A volta de Monte Cristo)

O Retorno de Dumas

A história da descoberta de O Cavaleiro de Sainte-Hermine, o último romance de Alexadre Dumas, que permaneceu inédito até 2005, é tão empolgante quanto as aventuras impetuosas relatadas no livro. Um relance da sorte revelou ao pesquisador Claude Schopp a existência do texto e sua dedicação a Dumas exigiu-lhe bem uns 15 anos para organizar o material a fim de publicá-lo. Schopp, biógrafo e estudioso do profuso romancista, já sabia tudo a respeito de Dumas e de sua obra: organizara cerca de dez mil fichas sobre as atividades literárias (e não só) de seu ídolo, que cobriam, dia por dia,  praticamente toda a vida do romancista, e já havia levantado os nomes, datas e dados de pelo menos 40 das amantes desse D. Juan mestiço. Quando pesquisava documentos nos Arquivos do Sena, a fim de estabelecer o nome correto de um dos filhos ilegítimos de Dumas, acabou encontrando uma carta em que o romancista rebatia as acusações de um senhor Henry d´Escamps, estampadas no jornal Le Pays, que o incriminavam de ter adulterado as dívidas da imperatriz Josefina, mulher de Napoleão. Schopp se mostrou surpreso com o teor da carta, pois desconhecia (logo ele) o texto em que essas dívidas eram mencionadas. No curso de pesquisas a bem dizer detetivescas, concluiu que Dumas o teria escrito em seus anos finais (1869-1870) e que o veículo da publicação só poderia ser o Moniteur Universal, que então deixara de ser o jornal oficial do Segundo Império, tornando-se passível por isso de acolher o escrito que maculava a reputação de Josefina. Chegando a essa conclusão, Schopp só teve que ir à sala dos periódicos da Bibliotèque Nationale e preencher uma ficha solicitando os microfilmes do jornal referentes ao primeiro trimestre de 1869. E aí se deu a revelação que foi para Schopp (nas palavras dele) “como a descoberta do Eldorado”. Não se tratava de um artigo político sobre as despesas da Imperatriz napoleônica, mas sim de um folhetim de cento e dezoito capítulos, infelizmente inacabado, publicados de 1º de janeiro a 30 de outubro de 1869 naquele jornal!  Schopp, no entanto, não saiu gritando para todo mundo a sua descoberta. Era preciso levantar cuidadosamente o texto, corrigi-lo, concatená-lo para uma futura publicação em livro. E essa se impunha, pois se tratava do último romance escrito por Dumas, equivalente, portanto, ao seu “testamento literário”. Além disso, o folhetim estava incompleto; o romancista não havia escrito (ou ditado) os últimos capítulos e Schopp achou necessário oferecer ao leitor a possibilidade de uma conclusão à la Dumas.  Publicado finalmente em 2005, na França e nos Estados Unidos, quinze anos após sua descoberta, o folhetim chega-nos agora [2009] em livro editado pela Martins Fontes em tradução elogiável de Dorothée de Bruchard.

E o que é O Cavaleiro de Sainte-Hermine com suas 976 páginas? Hector de Sainte-Hilaire é o último varão de uma família aristocrática de Bensançon, cujo pai, ao ser guilhotinado, pede aos filhos que jurem fidelidade à causa monarquista.  Os dois mais velhos, Léon, fuzilado, e Charles, guilhotinado, morrem defendendo a volta dos Bourbon. Resta Hector que, para manter o juramento, filia-se aos Companheiros de Jeú, grupo contrário a Napoleão. Mas ao longo de suas aventuras, em que encontra o corso usurpador em vários campos de batalha, Hector vive uma dualidade de ódio e admiração pelo grande general, a ponto de salvar-lhe a vida. A técnica narrativa de Dumas, de recriar a História, apresenta-se aqui em toda a sua plenitude: o imprevisto, o gancho, o desdobramento de histórias dentro da história, a vivacidade das descrições de paisagens e batalhas, etc. tudo isto faz deste livro o coroamento da obra volumosa e sempre apaixonante de Alexandre Dumas. Contudo, parece haver uma intenção oculta em sua elaboração: não será o livro um ajuste de contas, in articulo mortis, entre Dumas e Napoleão, a quem vira pela primeira vez aos 13 anos em sua cidade natal de Villiers-Cotterêts?   Seu pai, o general Dumas, chamado pela Convenção em 1797 para conter os contra-revolucionários, acaba perdendo o posto para o jovem Napoleão, a quem passa a servir. Destinado a grandes postos com a ascensão de seu comandante, acaba na miséria ao romper com Napoleão, a quem acusa de auto-endeusamento. Alexandre Dumas que cresceu sob os auspícios dos Bourbons, faz de Napoleão o personagem de vários de seus livros, mas apesar de ter sido este o causador dos infortúnios de seu pai, não consegue a “vingança literária” que se esperava. Pode-se dizer então que este é o romance da vingança frustrada, assim como O Conde de Monte Cristo o foi da vingança arrependida.

(Fonte:  Prosa & Verso – O Globo – 07.03.2009 – O retorno de Dumas)

Adendo: a boa notícia para os aficionados de Dumas é que a Zahar vai continuar lançando seus outros livros: no fim do ano passado saiu a edição definitiva de Os Três Mosqueteiros, em tradução da mesma dupla de O Conde de Monte Cristo, o que já é em si uma garantia de qualidade.  Sei que o famoso José Bálsamo está em preparo…

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