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Archive for março \27\-03:00 2014

UM CONTO DE RAY BRADBURY TRADUZIDO POR IVO BARROSO

senhor 002
AA Señora Navárrez passou a noite inteira chora­migando e seus lamentos repercutiam pela casa toda, como uma lâmpada acesa em cada quarto, de modo que ninguém pôde dormir. A noite inteira, a morder o travesseiro branco, retorcendo as magras mãos e lamentando-se: — «Ai! mi pobre Juan! Ai! mi pobre Juan!» Os moradores dos cômodos vizinhos, ali pelas três da madrugada, já perdendo as esperanças de que ela viesse um dia a calar a borroscada boca de batom, e sentindo o corpo áspero e aquecido, resolve­ram levantar-se, mudar a roupa e pegar uma condu­ção para a cidade, onde se meteram num cinema de sessões ininterruptas. Lá dentro, Roy Rogers perse­guia bandidos através de viciadas nuvens de fumaça e trocava palavras um pouco mais alto que o ressonar da negra noite da plateia.

Nas primeiras horas da manhã, a Señora Navár­rez ainda gemia e soluçava.                                                                                                                        Durante o dia, a coisa melhorou um pouco. O coro maciço da gritaria dos meninos soava desta vez como a graça redentora de uma quase harmonia por todos os quartos da habitação comum. Ouvia-se ainda o trovejante chacoalhar das máquinas de lavar roupa, e mulheres vestidas de chenile procuravam os lugares mais secos da área comum, inundada e úmida, para continuar sua veloz tagarelice mexicana. Mas agora, de novo, mais alto que o estridente vozerio, do que as máquinas e os meninos, podia ouvir-se a Señora Na­vârrez a berrar como um rádio ligado: « Mi Juan! Ai! mi pobre Juan!»

Já de tarde, os homens chegavam com o suor do trabalho a escorrer das axilas. Refestelados nas mor­nas banheiras de todos os quartos da habitação, onde o jantar ia ser preparado, todos eles maldiziam a infe­liz mulher e tapavam os ouvidos para abafar os seus lamentos.
— Mas ela ainda não parou! — diziam eles, da­nados da vida. Um foi bater à porta da Señora Na­várrez:  — Cala a boca, mulher! — Mas isso só serviu para fazê-la chorar ainda mais alto: «Ai! Ai! Ai! Juan! Juan!»

–Hoje vamos jantar fora — disseram os maridos às esposas. Por toda a casa, os utensílios de cozinha voltavam às prateleiras e as portas se fechavam à me­dida que os homens desciam as escadas conduzindo pelo braço pálido as esposas perfumadas.

O Señor Villanazul, quando voltou a abrir a velha  e descascada porta de seu quarto, à meia-noite, cerrou os olhos castanhos e parou na entrada por um momento, vacilante. Tina, a mulher, esperou a seu lado, junto com os três garotos e as duas meninas, a me­norzinha vinha carregada ao colo.

— Oh! meu Deus! — murmurou o Señor Villanazul. — Meu Jesus Cristo, desce dessa cruz e faz essa mulher calar a boca!

Entraram no sombrio apartamento e olharam acma da lampadazinha bruxuleante que alumiava um singelo crucifixo. O Señor Villanazul abanou filosofi­camente a cabeça:

— Qual! Ele continua lá na cruz!

Deitados, revolviam-se na cama como churrascos no espeto, a noite de verão a untá-los com o molho de seu próprio suor. A casa inteira flamejava com o choro que vinha lá de cima.

— Isto aqui está muito abafado! — O Señor Villa­nazuI desceu rapidamente pelas escadas da habitação, levando a esposa para a varanda da rua, sem se preo­cupar com as crianças, detentoras dessa miraculosa capacidade de dormir sob as mais desfavoráveis condi­ções.

A varanda estava tomada por figuras opacas, uma dezena de homens silentes, sentados, cigarros lu­zindo e fumegando entre os dedos morenos, mulheres envoltas em xales de chenile aproveitando o que ainda restava da viração noturna. Moviam-se como imagens de sonho, como roupas fantasmagóricas dependuradas em varais inflexíveis. Tinham os olhos inchados e a língua espessa.

— Vamos lá no quarto estrangular essa mulher? — sugeriu um dos homens.

— Não, isso não fica bem — disse uma das mu­lheres. — O melhor é irmos lá em cima e atirá-la pela janela.

Todos riram fatigadamente.

O Señor Villanazul encarava os demais com olhos piscantes e sonolentos. A esposa movia-se preguiçosa­mente a seu lado.

— Até parece que o Juan foi o único homem do mundo a se alistar no Exército — disse um, meio irri­tado. — Essa Dueña Navárrez, Deus me livre! Cho­rando como se o marido estivesse em combate, ele que vai descascar batata o tempo todo, o homem mais se­guro de toda a infantaria!

— Precisamos fazer alguma coisa. — Foi a voz o Señor Villanazul. Ele próprio espantou-se com a firme asperidade de sua voz. Todos olharam em sua direção. — Não podemos aguentar outra noite como essa — continuou ele, decidido.

— Quanto mais esmurramos a porta, mais alto ela grita — esclareceu o Señor Gómez.

— O padre veio aqui de tarde — disse a Señora Gutiérrez.  — Mandamos chamá-lo porque já estávamos desesperadas. Mas a Señora Navárrez não o deixou entrar por mais que ele procurasse acalmá-la. Depois veio o Delegado Gilvie, deu os maiores berros, mas ela não ligou a mínima importância.

–O negócio é tentarmos outro meio – considerou o Señor Villanazul. — Alguém precisa ser… digamos. afável com ela.

— Mas… de que jeito? — perguntou o Señor Gómez.

– Ah! se pelo menos, – ficou sonhando o Señor Villanazul – se pelo menos um de nós fosse solteiro!…

A frase caiu como uma pedra dentro dágua. Ele deixou que os respingos se levantassem no ar e que os círculos fossem crescendo lentamente.

Houve um suspiro geral.

Foi como o soprar de uma aragem de verão. Os homens se endireitaram um pouco; as mulheres se puseram mais animadas.

— Mas – replicou o Señor Gómez, esmorecendo – o caso é que todos nós somos casados. Não há ninguém solteiro por aqui.

— É mesmo — reconheceram todos, e se reacomodaram no leito quente e seco da noite, a fumar, silenciosamente.

— Neste caso, — retornou o Señor Villanazul, erguendo os ombros, comprimindo os lábios – neste caso tem que ser um de nós!

De novo soprou o vento da noite, fazendo aquela gente estremecer de pasmo.

— Estamos numa situação que requer desprendimento – declarou o Señor Villanazul. – Um de nós tem que fazer a coisa. É fazer ou penar outra noite neste inferno!

Os homens começaram a afastar-se da varanda, esquivos,temerosos.

— Você não toparia o negócio? — perguntou, insinuantemente, um deles.

Señor Vilanazul empertigou-se de repente. O cigarro quase lhe ia tombando dos dedos.

— Espera aí, eu… — objetou ele.

— Você, sim! Topa ou não topa?

O homem agitou as mãos, exaltado:

— Mas eu tenho mulher e cinco filhos, o menorzinho ainda de colo!

— É o jeito! Já que nenhum de nós é solteiro, e a ideia foi sua, você precisa ter coragem de pôr em prática as suas convicções, argumentaram todos.

O Señor Villanazul mostrava-se muito assustado, pensativo, silencioso. Ao volvê-los em direção da esposa, seus olhos tinham lampejos de susto.

Ela fitava distante e extenuada o ar da noite, procurando vê-lo.

– Ai meu Deus! como eu estou cansada! – lamentou-se.

— Tina! – admirou-se ele.

— Acho que vou morrer se não dormir esta noite – disse ela.

— Mas, Tina!… insistiu ainda.

— É, vou morrer, haverá muitas flores e um belo enterro, se eu não conseguir dormir um pouco – murmurou ela.

— Sua mulher está morrendo – ajudaram todos.

O Señor Villanazul hesitou  ainda um breve instante. Tomou as lânguidas e suadas mãos da esposa e tocou-lhe com os lábios a face esbraseada.

E em silêncio afastou-se da varanda.

Os que aí ficaram podiam ouvir seus passos subindo as escadas mal iluminadas, subindo e subindo, agora já na altura do terceiro andar, onde a Señora Navárrez gemia e choramingava. Os homens esperavam silenciosos na varanda. Alguns acendiam trêmulos fósforos que adejavam em direção dos cigarros. Quando falavam eram como sussurros do vento, as mulheres rondando em torno da Señora Villanazul, que se apoiara no corrimão da varanda, as pálpebras arenosas de sono.

— Ele agora — informou sussurrante um dos homens — está chegando ao alto das escadas.

Todos se imobilizaram.

— Agora – segredava o homem numa voz es­tranha- – o Señor Villanazul vai bater à porta. Pronto! Está batendo.

Todos escutavam, a respiração em suspenso. Lá no alto, ouvia-se o som delicado de alguém batendo à porta.

— Agora, a Señora Navárrez, percebendo a intrusão, desata novamente a chorar mais forte!

Do alto da casa veio um grito de choro.

— Agora — continuou o homem, acocorado. imaginando, a mão a adejar delicadamente no ar da noite — ele está pedindo para entrar, suavemente, maneirosamente, junto à porta trancada.

Os que estavam na varanda ergueram os olhos numa tentativa desesperada  de enxergar, através de três lanços de madeira e de cal, o que se passava lá no alto, cheios de ânsia.

O grito foi desvanecendo aos poucos.

— Agora, ele deve estar conversando-a com carinho, sussurrando, prometendo — murmurava o homem, quase num gemido.

O gemido foi se transformando num soluço, e o soluço num leve fungar, e finalmente em respiração opressa, em coração pulsando forte na expectativa.

Após dois minutos de tensão, suor, espera, a gente que estava na varanda ouviu o ranger longínquo de uma porta que se abria, para, um instante depois  fechar-se com um suspiro.

A casa ficou imersa no silencio.

O silêncio habitava cada quarto como uma lâmpada apagada. O silêncio transbordava como um vi­nho refrescante pelo túnel dos corredores. O silêncio entrava através dos postigos abertos como um sopro de brisa úmida que viesse do sótão. Todos estavam demoradamente aspirando o seu frescor.

— Ah- – suspiravam.

Os homens atiravam fora os cigarros e se encaminhavam sem ruídos para os quartos em calma. As mulheres seguiam-nos. Moviam-se em aprazíveis corredores  de quietude. A varanda esvaziou, de súbito.

A Señora Villanazul, num estupor de sono, meteu a chave na porta.

— Vamos dar um banquete a seu marido – uma voz sussurrou-lhe.

— Vou acender uma vela por intenção dele — disse outra.

As portas todas se fecharam.

Na cama fresca, a Señora Villanazul repousa. Que homem inteligente, vai sonhando ela. Por essas e por outras é que eu amo o meu marido.

E o silêncio era assim como uma fria mão a conduzi-la para o sono.

(Publicado na revista Senhor, nr. 1, de março de 1959. Ilustração de Jaguar)

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A CONQUISTA DOS CÉUS PELA PASTORA DE NUVENS

Cecília Meireles publicou O Aeronauta em 1952 como uma espécie de adendo aos Doze Noturnos da Holanda. Numa carta datada de 21 de fevereiro daquele ano, endereçada a seu amigo o poeta Abgar Renault, ela anuncia o livro: “os poemas da Holanda vão ser editados logo após o carnaval, junto com uma outra coisa [grifo nosso] inspirada pela viagem aérea; vocês verão como perdi aquele famoso medo”. Por quê motivo a autora teria juntado num único volume esses dois livros de poemas aparentemente tão diversos em seu significado e em sua feitura? E como definir essa “outra coisa” que a própria Cecília hesita em chamar de poema? De nossa parte, acreditamos que O Aeronauta seja bem mais que um simples complemento poético dos Noturnos. Seria mesmo o seu antípoda, a outra face, exprimindo uma nova dimensão espacial da autora, egressa de um outro mundo, vivendo em novo estado de espírito. Daí julgarmos que os editores atuais tenham agido com propriedade ao optar por fazer dele um livro autônomo, um volume à parte, cuja edição lhe permite existir por si mesmo sem estar vinculado, geminado, jungido a outra importante obra da Autora. Isso porque O Aeronauta revela uma conquista ao mesmo tempo pessoal e poética da autora, no sentido de atingir uma poesia ainda mais sutil, mais etérea do que a encontrada em seus livros anteriores, como em especial Viagem, cuja intenção temática é semelhante à deste. A oposição que existe entre os Doze Noturnos da Holanda está ainda no tom dos poemas, pois se Cecília confessa que os primeiros foram escritos à noite (daí o título escolhido), embora reflitam a luminosidade da paisagem holandesa que ela então descortinava, já os poemas de O Aeronauta procuram captar uma fosforescência espacial, entre nuvens e abismos, como se escritos em pleno voo, durante uma de suas inúmeras viagens de avião.

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Era notório o medo que Cecília tinha às viagens aéreas. Suas primeiras deslocações foram marítimas, mas para vencer as grandes distâncias e as configurações geográficas de seus itinerários pela América Latina, Europa (principalmente os Açores) e a viagem à Índia teria necessariamente de utilizar o transporte de avião. “Por muito tempo o mar foi o meu verdadeiro país”, diz ela numa entrevista concedida a Domingos Carvalho da Silva. Mas, por necessidade e por espírito de aventura, ela toma o gosto pelas viagens aéreas e perde o medo de avião. Vai além: nelas encontra uma nova identidade até então desconhecida. “Com certa saudade vejo-me obrigada a confessar que nos ares me vi como em país ainda mais íntimo”. Se nos Doze Noturnos da Holanda ela se sente “dentro de gravuras”, presa à paisagem que a circunda, experimentando uma simbiose da vivência ambiental com sua elaboração poética interior, em O Aeronauta ela vivencia um novo país, totalmente desligado da realidade, um mundo surrealista, em que sua poesia reflete um estado de alma estratificado, de visitante estrangeiro que vem de regiões remotas e implausíveis.

Ao comparamos os versos dos Noturnos com os de O Aeronauta, vemos uma oposição até na forma em que foram lavrados. No primeiro, embora haja versos curtos e metrificados (como o belo hendecassílabo de abertura), Cecília dá preferência ao tipo “versículo bíblico”, ou seja, ao verso longo, de grande fôlego, alheio à métrica e à rima, guardando apenas seu ritmo pessoal, aquela “vaga música” que iria caracterizar seus poemas não rimados. Mas em O Aeronauta, escrito ao que tudo indica ao mesmo tempo em que ela compunha os Noturnos, temos onze poemas de forma quase fixa, ou seja, compostos de quatro estrofes de sete e quatro sílabas terminadas por uma coda de três ou quatro versos (com exceção dos poemas “Dois”, “Três” e “Cinco”, sem coda), estrofes essas em geral de cinco ou seis versos, exceto nos dois últimos poemas em que se alongam em sete e oito, e no poema “Dez”, que apresenta uma coda em duas quadras. Essa volta às formas fixas (versos curtos, isométricos) tem grande significação aqui, principalmente se a considerarmos concomitante ou subsequente à experiência transbordante do verso livre usado nos Noturnos. É que a temática de O Aeronauta exige – ousamos dizer – uma unidade, um uniforme, um traje especial que caracterize essa viagem de volta de dentro de si mesma depois de experimentar uma nova dimensão existencial. Cecília domou seu medo e, mais que isso, transformou-o em fruição, em experiência, em mergulho e emersão, fazendo tudo isto espelhar num verso cada vez mais trabalhado, mais técnico, mais submisso à sua capacidade de exprimir condições especiais de existência.

Podemos dizer que O Aeronauta é a apresentação de um novo ser poético que teve seu embrião em Viagem, de 1939. Pois ali havia um percurso metafórico, subjetivo, um passeio por sentimentos e ansiedades, uma investigação interior à procura do conhecimento total de si mesmo:

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Já em O Aeronauta, o ser não se importa com o tratamento que lhe deem; extravasa de sua condição humana e sua busca fica “livre de imagens” e de si mesmo:

Agora podeis tratar-me
como quiserdes:
não sou feliz nem sou triste,
humilde nem orgulhoso,
– não sou terrestre.

Por ter conseguido então permanecer (ainda que precariamente) no espaço, desligado da terra, esse Aeronauta como que se desfaz do próprio corpo e atinge a condição etérea de espírito:

Agora sei que este corpo,
insuficiente, em que assiste
remota fala,
mui docemente se perde
nos ares, como o segredo
que a vida exala.
E seu destino é ir mais longe,
tão longe, enfim, como a exata
alma […]

Essa sublimação do corpo, sua transmutação em estado anímico, se reflete na poesia de Cecília, que atinge aqui momentos de absoluta cristalinidade, de autêntica “poesia pura”, ainda que, ao fim, venha sentar-se à nossa mesa, “pesada e presa,/ por limite e densidade”.

O leitor versado em arte poética certamente admirará a consumada técnica de Cecília no manejo das rimas toantes, na perícia com que corta (divide) o verso que ameaçava alongar-se, sem com isso perder a harmonia e o equilíbrio da frase ainda que subjetiva ou hermética.

O leitor alheio a essas preocupações formais, porém, será envolvido pela melodia quase diáfana que emana de cada verso e que contrapõe à sua leveza uma densidade de significados que irão facilmente impressionar sua sensibilidade.

Ivo Barroso

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OS POETAS ESQUECIDOS

Nos meus tempos de estudante eram comuns os chamados “cadernos de versos” em que transcrevíamos aqueles sonetos que considerávamos “de primeira linha”. Lá estavam, seguramente, o Alceu Wamosy, com o seu “Ó tu que vens de longe, ó tu que vens cansada”; o Aníbal Teófilo, autor de um único soneto, “A Cegonha”, que terminava em “Ver a dúvida humana debruçada/ Sobre a angústia infinita de si mesma!”; o indefectível Júlio Salusse com os seus cisnes, “A vida manso lago azul algumas/ vezes, algumas vezes mar fremente”; sem faltar o Padre Antônio Tomaz, filosofando : “Quando partimos no vigor dos anos/ Da vida pela estrada florescente” e o sempre declamado Nilo Bruzzi a lamentar “Pobre de quem, como eu, vê que, infeliz,/ Teve todas aquelas que o quiseram,/ Mas nunca teve aquela que ele quis!…” Eram os nossos poetas exemplares, só mais tarde desbancados pelo Guilherme de Almeida e o Menotti Del Picchia, e finalmente enterrados quando Manoel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade se impuseram. Quem hoje, com menos de 50 anos, ainda se lembra daquele (imortal?) “Nascemos um para o outro, dessa argila/ de que são feitas as criaturas raras?” Ah, fugit irreparabile tempus!

E OS POETAS ESQUISITOS

E havia também poetas com nomes extravagantes, como Judas Isgorogota, Sosígenes Costa, Euríclides Formiga, Cleômenes Campos, Junquilho Lourival, Emiliano Perneta, Otoniel Beleza, Pethion de Villar, Petrarca Maranhão, Pretextato da Silveira, Segundo Wanderley… Se Judas Isgorogota e Pethion de Villar eram evidentes pseudônimos, respectivamente de Agnelo Rodrigues de Melo, alagoano, e de Egas Muniz Barreto de Aragão, baiano, todos os outros – pasmem! — são nomes verdadeiros, Aliás, o Egas Moniz nem precisava daquele Pethion de Villar, pois seu próprio nome já soa como pseudônimo. Todos esses estranhos/esquecidos compuseram sonetos considerados “de primeira linha” em seu tempo e figuram em várias antologias e florilégios até hoje. Quanto aos temas, eram em geral versos de amor, de conquista ou de saudade, vez por outra apelando para uma filosofia ingênua. Mas há o caso daquele Segundo Wanderley (1860-1909), poeta abolicionista norte-rio-grandense, que escreveu um incrível soneto intitulado “Amor de Filha”, dedicado a Pedro Avelino (?), personagem que deu nome a uma cidade do Rio Grande do Norte, mas sobre o qual ainda não consegui nenhum dado. Com sorte, voltarei ao assunto.

 

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granada s..

Na mão fechada

o homem segura

uma granada.

 

Dura presença

tensão amarga

que não o larga.

 

Ah se pudesse

deixar cair

esse projétil,

 

abrir os dedos

e decidido

no chão deixá-la

 

ou esquecê-la

(há quem esqueça

a própria face)

 

ou acordado:

seria um sonho

essa granada?

 

acostumar-se

com seu defeito

e (luva) usá-la

 

ou vantajoso

utilizar-se

de seu relógio;

 

no punho do ódio

hirto — escondê-la.

 

 

Mas ele sabe

que não o pode,

que um dia explode

 

na mão fechada,

sem estilhaços

rompendo os dedos

 

quebrando o braço,

mas lentamente

como as raízes

 

que se alimentam

de sua força,

desse impossível

 

que é soltá-la,

desse consolo

que é esquecê-la

 

e dessa angústia

que é transportá-la.

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