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Archive for fevereiro \25\-03:00 2011


Em 1937, três anos após a publicação de Festas galantes, de Verlaine [vide post de 23.08.2010], Onestaldo de Pennafort recebeu do então ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, grande incentivador das artes, a incumbência de traduzir a peça Romeu e Julieta, de William Shakespeare, para o fim especial de sua montagem na temporada oficial de teatro daquele ano. Foi a oportunidade de Onestaldo demonstrar sua qualidade de tradutor: trabalhando em outra língua produziu o mesmo feito que havia antes conseguido com o poeta francês. O Romeu e Julieta de Onestaldo é igualmente um clássico da literatura brasileira, que superou as traduções anteriores e jamais foi superado por aquelas que, vindas depois, tentaram, em vão, atingir os patamares de excelência em que ele o colocou. Quem se der ao trabalho, ou antes, ao prazer de cotejar a tradução de Onestaldo com o original shakespeariano verá com que souplesse, com que propriedade, com que afinação, o nosso poeta soube reproduzir as sutilezas e nuances do bardo inglês. Romeu e Julieta, obra da juventude de Shakespeare, cronologicamente sua primeira tragédia, é uma exuberância de amor juvenil, de impulso adolescente, de paixão arrebatadora, entremeadas às vezes por um linguajar cru e popularesco, ora faceto ora grosseiro, como se fossem modulações a que se entregasse o poeta para melhor provar sua capacidade de atuar em várias claves e registros diferentes. Tais modulações exigem do tradutor um antenamento perfeito, uma captação de sintonias finas, para que possa reproduzir em sua língua esses efeitos sem lhes alterar o colorido e a ressonância. O grande escritor italiano Italo Calvino, na série de conferências que fez na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, reunidas em livro sob o título Seis propostas para o próximo milênio, toma A Leveza como a primeira das  qualidades de um escritor e, para isto, lança mão precisamente de uma fala shakespeariana contida no Romeu e Julieta. Logo no início da peça, na cena IV do primeiro ato, Mercúcio, amigo de Romeu, falando a propósito dos sonhos em que este último vive imerso, invoca a figura da rainha Mab (uma fada do folclore celta) e descreve-a, de maneira brincalhona, mas ao mesmo tempo sutilissima, em versos que chegam, pela sua leveza, a ter a transparência das teias. A tradução desse texto é de grande dificuldade pela sutileza das imagens e a riqueza vocabular. Onestaldo traduziu-o assim:

Pelo que vejo, foste visitado

pela rainha Mab. Ela é a parteira

entre as fadas. E é tão pequenininha

como a ágata do anel que os conselheiros

usam no indicador. Puxada por parelhas

de minúsculos átomos passeia

por cima do nariz dos dorminhocos.

Feitos de pernas longas de tarântulas

são os raios das rodas de seu carro;

de asas de gafanhotos, a coberta;

as rédeas são da teia de uma aranha;

de úmidos raios de luar, o arreio;

de osso de grilo, o cabo do chicote

e o rebenque de um fio de cabelo.

 

O seu cocheiro, de libré cinzenta,

é um mosquitozinho duas vezes

menor do que o bichinho redondinho

tirado com uma agulha do dedinho

das criadas preguiçosas; a carruagem

é uma metade de avelã vazia

e toda trabalhada, obra de entalhe

devida ao mestre-entalhador esquilo,

ou talvez seja mesmo do caruncho,

velho segeiro imemorial das fadas.

Nessa equipagem é que ela galopa

todas as noites através do cérebro

dos amantes, que então sonham com o amor.

Recentemente apareceu uma tradução de Romeu e Julieta, devida a pessoa versada em assuntos shakespearianos, que inclusive declarou a uma revista que achava a tradução de Onestaldo “açucarada”. Ora, comparando-se a tradução deste com a da pessoa citada, poderíamos dizer que só pode achar “açucarada” a de Onestaldo quem fez do texto uma tradução pedregosa e apoética. Tornando-se dispensável fazer-se um cotejo completo de ambas, ou mesmo apenas da fala de Mercúcio antes citada, seja-nos suficiente dizer que os maravilhosos versos de Onestaldo

Feitos de pernas longas de tarântulas

são os raios das rodas de seu carro

onde as belas aliterações em “r” (raios das rodas do carro) dão, por si sós, o andamento levíssimo dessa carruagem feita de uma casca de noz, foram vertidos pela nova tradutora como

As varas são perninhas de uma aranha,

asas de gafanhoto sua coberta

em que tudo é prosa de qualidade inferior, a distâncias quilométricas da sublime beleza existente em Shakespeare e alcançada na poesia de Onestaldo.

***

O êxito nunca ofuscado da tradução de Romeu e Julieta por Onestaldo de Pennafort encontrou seu eco em 1955 quando ele traduziu especialmente para a Companhia Teatral Tônia-Celi-Autran a tragédia Otelo, também de Shakespeare. Ênio Silveira, que a editou em livro em 1940, assim se refere ao evento: “Foi numa admirável montagem, custosa, sem nenhum auxílio ou bafejo oficial, em bases e condições estritamente comerciais, com um escolhido elenco, a cuja gente figuravam dois astros que dispensam qualquer adjetivação — que a aludida Companhia encenou a tragédia nesta versão no Teatro Dulcina, desta cidade, de 6 de março a 24 de julho de 1956 (e depois em São Paulo e outras cidades do centro e do sul do país) em duzentos e tantos espetáculos — número que à época se disse jamais ter sido logrado por encenações de Shakespeare, numa só temporada, em qualquer parte do mundo, a não ser em palcos de língua inglesa. Por outro lado, a freqüência rigorosamente registrada, de 63 mil e tantos espectadores, resultou num êxito de bilheteria sem precedentes em representações do gênero”. Sem precedentes foi igualmente a cobertura jornalística dispensada à peça, seja nas referências a seu diretor, a seus intérpretes e a seu tradutor. Onestaldo conheceu seu momento de glória vendo seu nome citado centenas e centenas de vezes nos jornais e revistas de todo o país. O espetáculo, belíssimo, com Tônia Carrero no esplendor apicial de sua beleza foi fotografada com cabelos loiros e longos resvalando do leito em que a trágica máscara negra de Paulo Autran se lhe aproxima para dar-lhe a morte naquele último beijo, gesto acentuado pelas palavras magistrais recriadas por Onestaldo:

Dei-te um beijo ao matar-te e ora desejo

ao me matar, morrer dando-te um beijo.

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(ELIZABETH BARRETT BROWNING, LOUISE LABÉ E GASPARA STAMPA)

Nos “Cadernos de Malte Laurids Brigge”, Rainer Maria Rilke demonstra seu fascínio pelas mulhe­res que se exauriram de amor e “cujos queixumes chegaram até nós”. Uma delas, Gaspara Stam­pa, volta a ser mencionada na “Primeira Elegia de Duíno”, onde o poeta pergunta: “Não é tempo daqueles que amam libertarem-se do objeto amado, e superá-lo?” (Ist es nicht Zeit, dass wir lie­bend/uns vom Geliebten befrein und es bebend bestehn). Esse fer­vor pela paixão de mulheres de­sesperadas levou Rilke a traduzir a obra de pelo menos duas delas: as cartas de amor da portuguesa Sóror Mariana Alcoforado e os apaixonados sonetos da lionesa Louise Labé. No caso de Labé, es­sa paixão poética foi mais fundo: em vez de simplesmente traduzir, ele como que incorporou o sofri­mento da poetisa e o transubs­tanciou em sonetos rilkeanos, nos quais seu estilo elegíaco-me­tafísico se sobrepõe ao simples desespero do amor feminino não correspondido. Não sem razão, Rilke, antecedendo-se à escola camp­ista, chama ao seu trabalho não Übersetzungen (tradução), mas Übertragungen (mais ou menos “transcriação”, para ficarmos no jargão da escola).

Essas divagações vêm a propó­sito do belo livro que a Companhia das Letras publicou em 1999 com o título “Três mulheres apaixonadas”, no qual 20 sonetos de Gaspa­ra Stampa, 14 dos 24 sonetos de Louise Labé e também 14 de Elizabethh Barrett Browning são apresentados ao leitor em traduções de grande e fluente beleza assinadas por Sérgio Duarte.

Traduzir Stampa, Labé e Elizabeth não é passeio para iniciantes: requer poetas em tempo integral. Daí recorrermos à editora para conhecer a “ficha técnica” de Sérgio Duarte, já que – imperdoavelmente – nenhum dado sobre ele consta da apresentação do livro, embora seja mais ou menos pacífico que o tradutor de poesia responde no mínimo pela co-autoria da obra. Sérgio Duarte, ao que consta, é diplomata e já traduziu  traduziu alguns livros em prosa para a mesma editora. Mas esse nome campainhava algo na me­mória e nos lembramos da exce­lente tradução que fez do longo poema de Nabokov, parte inte­grante do romance “Fogo pálido” (Guanabara, 1985), traduzido por Jório Dauster, outro grande tra­dutor-diplomata da estirpe de Fe­lipe Fortuna, Geraldo Holanda Ca­valcanti, Geraldo Silos e Mendes Cadaxa, seguidores da trilha inau­gurada por Antônio Houaiss.

Gaspara Stampa (15241554) escreveu cerca de 200 sonetos, a maioria dos quais dedicados ao conde Collaltino di Collalto, que não correspondia ao seu amor nem estava à altura de seu talento, ven­do alguns historiadores nesse últi­mo motivo a razão do primeiro. Tentando superar o desprezo do amado, alimentou outra paixão, ao que parece também não correspon­dida, por Bartolomeo Zen, a. quem dedicou 14 sonetos. A partir dos 30 anos, passou a cultivar uma poesia filosófica e religiosa. Dela quase na­da conhecemos traduzido, a não ser o famoso soneto em que des­creve Collaltino (“Se quereis conhe­cer o meu senhor,/ Suponde alguém de vago e doce aspecto,/ Jovem na idade e velho no intelecto,/ A ima­gem do triunfo e do valor”).

Já Louise Labé (1526-1566) teve mais sorte na vida real e em português. Casada com um comer­ciante de cordas de Lyon, era mulher de grande beleza e espírito, rodeada de admiradores que lhe frequentavam o salão. Um de seus sonetos, o de número XVIII, chega a ser licencioso, pelo me­nos para a época. Sua obra foi in­teiramente traduzida pelo também diplomata Felipe Fortuna (Si­ciliano,1995) que, além dos 24 so­netos, também verteu as três ele­gias e o “Debate da loucura e do amor”, em prosa, considerado por muitos sua obra-prima. Além disso, For­tuna manteve-se fiel à métrica do original, usando o decassílabo sá­fico, ou seja, com acentuação nas 4as., 8as. e 10as. sílabas.

O mais sério confronto que Sérgio Duarte necessariamente sofre com estas traduções é sem dúvida o fato de que  Manuel Bandeira, um dos maiores tradutores de poesia do país, já tinha desde muito iconizado em língua portuguesa quatro dos mais famosos sonetos de Elizabeth Barrett Browning (1806-1861). Dotada de requintada sensibilidade, Elizabeth viveu muitos anos reclusa como inválida, tiranizada por um pai despótico e incestuoso. Conheceu, por corresondência, o poeta Robert Browning, e, apaixonados, conseguiram fugir para Florença, onde viveram felizes até o dia de sua morte nos braços do marido. Ao traduzi-la, Bandeira optou pela “recomposição” rilkeana ou, ainda, pela pa­ráfrase, como já fizera com o cé­lebre soneto de Ronsard, de mo­do que é um tanto difícil de se acompa­nhar os passos do original na tradução. Está fora de dúvida que são dos mais belos sonetos de nossa língua, mas são inegavel­mente sonetos de Manuel Bandei­ra com temas de Elizabeth Bar­rett Browning.

Sérgio Duarte não se furtou ao confronto e nos apresenta, entre outros sonetos, suas versões da­queles quatro, nos quais utiliza uma ou outra solução incontor­nável, acrisolada por Bandeira (“Amo-te quanto em largo, alto e profundo”[XLIII]; “Ama-me pelo amor do amor somente” [XIV]). Cumpre aqui lembrar as palavras do minucioso crítico francês Etiemble a propósito de tradu­ções de Rimbaud: “Seria tolice admitir que, sempre que um tra­dutor judicioso conseguir tradu­zir bem uma passagem, seus su­cessores, para não serem acusa­dos de plagiários, estariam condenados a traduzir mal a passa­gem em questão”.

Elizabeth chamou a seu livro “Sonnets from the Portuguese”, simulando com isso tratar-se de uma tradução e evitando assumir sentimentos arrebatados passí­veis de causar reações adversas no julgamento puritano de sua época, 0 que lhe permitiu ainda fugir ao esquema tradicional do soneto inglês (três quadras e um dístico), trocando-o pelo modelo petrarqueano em voga na litera­tura portuguesa de sua admira­ção. Além disso, o uso frequente de violentos enjambements e as paradas súbitas seguidas de fra­ses quase telegráficas inovavam a literatura inglesa vitoriana, dan­do aos sonetos uma leveza que encanta os leitores e desespera os tradutores. Sérgio Duarte este­ve sempre atento a essas peculia­ridades de estilo e pôde reprodu­zir bom número delas. Não lhe te­rá passado despercebido que os sonetos V e VI são do tipo chama­do “gêmeos”, ou seja, a palavra fi­nal do antecedente constitui a ini­cial do subsequente (no caso “Go./ Go from me”). Mas é claro que não se pode salvar tudo: tra­duzir é um ato sempre insatisfa­tório, como ele próprio admite na apresentação do livro.

Resulta daí que o livro é uma co­letânea de belos e harmoniosos so­netos, expressos em versos de leitura sempre agradável, principal­mente por serem sensíveis e bem feitos, diversos da maioria das com­posições “poéticas” que ora vice­jam em nosso mercado editorial. Feita com amor, sem a psicótica en­carnação de Rilke, sem pretender as culminâncias criativas de Bandeira, a tradução de Sérgio Duarte procu­ra acompanhar o original em seus torneios de estilo e recursos poéti­cos sempre com elegância, demons­trando seu domínio da arte de ver­sejar. Transmite-nos as angustiosas desventuras de Gaspara Stampa, os desafios ousados de Louise Labé e os férvidos arrebatamentos de Eli­zabeth Barrett Browing em registros correspondentes, sem querer se so­brepor a eles nem lhes emprestar seu próprio estilo. Que mais se po­de querer de uma obra em versos traduzida?

(Fonte: Três mulheres extenuadas de tanto amar – O Globo 13.03.1999)

***

UM SONETO DE GASPARA STAMPA (traduzido por Ivo Barroso)

SONETTO D´AMORE

Chi vuol conoscer, donne, il mio signore,

Miri un signor di vago e dolce aspetto,

Giovane d’anni e vecchio d’intelletto,

Imagin della gloria e del valore.

Di pelo biodo, e di vivo colore,

Di persona alta e spazioso petto,

E finalmente in ogni opra perfetto,

Fuor ch ‘un poco (oimè lassa!) empio in amore.

E chi vuol poi conoscer me, rimiri

Una donna in effetti ed in sembiante

Imagin de la morte e de’ martìri,

Un albergo di fé salda e costante,

Una, che, perché pianga, arda e sospiri,

Non fa pietoso il suo crudel amante.

SONETO DE AMOR

Se quereis conhecer o meu senhor,

Suponde alguém de vago e doce aspecto,

Jovem na idade e velho no intelecto,

A imagem do triunfo e do valor;

Claro o cabelo e a tez de viva cor,

De boa altura e de garboso peito,

Em tudo quanto faz um ser perfeito,

Só que um pouco (ai de mim!) cruel no amor.

E se quiserdes conhecer meu porte,

Vede alguém que nos gestos e semblante

É a imagem dos martírios e da morte;

Fortaleza da fé, pura e constante,

Alguém que embora sofra, arda e suporte,

Não faz piedoso ao seu cruel amante.

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Em 1957, quando uma buliçosa agitação se apoderava de nossos meios literários (principalmente nos redutos poéticos), Mário Faustino, o crítico de maior lucidez e influência entre os jovens escritores de então, publicou, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, um longo ensaio sobre Stéphane Mallarmé, que permanece até hoje o texto, ao mesmo tempo mais “seletivo” e mais abrangente, que se escreveu entre nós sobre o grande simbolista francês do século XIX. Mallarmé – dizia Faustino a certa altura – “é uma torre absoluta e solitária, um animal sagrado e estéril, sem descendência mas indispensável” — fórmula admiravelmente sintética para dizer que a personalidade poética de Mallarmé era irreproduzível, que havia criado um estilo que cabia exclusivamente a si próprio e cujas imitações seriam portanto inúteis e/ou despropositadas. Um leitor, amigo das conclusões apressadas, poderia assumir que Mallarmé é uma pedra (ou antes um monumento) incontornável no meio do caminho da literatura.

Descrito por um de seus contemporâneos (Catulle Mendès) como criatura frágil, enfermiça, de expressão ao mesmo tempo severa e dolorosa, escondido atrás de volumosos bigodes, esse modesto e eruditíssimo professor de inglês, que viveu boa parte de seu tempo na província, conseguiu cativar a amizade e a admiração dos escritores mais representativos de seu tempo, encantados com sua conversação transcendente e suas concepções peculiares, em especial a respeito de poesia. Vivendo em plena difusão do ensino secundário, quando o conhecimento das artes começava a permear as classes não intelectualizadas, Mallarmé professava que a poesia era um ato de sacrifício, de entrega absoluta em busca do inexprimível e que a função do poeta era integrar-se no Nada. Tal arte seria, pois, destinada aos membros eleitos da “tribo”, não podendo ser compreendida pela mediocridade dominante. Daí seu objetivo de criar uma linguagem poética, em que as palavras comuns fossem substituídas por vocábulos eruditos, a construção da frase obedecesse a reminiscências latinas e o sentido do verso se revestisse de dificuldades, empecilhos ou “máscaras” que o tornassem impenetrável à primeira leitura.

No entanto, diversamente da maioria dos poetas de hoje, dos quais não se consegue guardar um verso que seja, Mallarmé foi criador de alguns dos mais emblemáticos momentos da literatura francesa (“La chair est triste, hélas!, et j´ai lu tous les livres”, “Aboli bibelot d´inanité sonore”, “Solitude, récif, étoile”, “Je suis hanté. L´azur! l´Azur! l´Azur! l´Azur!”, “Le vierge, le vivace et le bel aujourd´hui”, “Tel qu´en Lui-même enfin l´éternité le change”, “Donner un sens plus pur aux mots de la tribu”, “Ces nymphes, je les veux perpetuer”, “Un coup de dés jamais n´abolira le hazard”, etc.), tornando-se um recordista do fragmentário, da pedra-de-toque, da gema preciosa, do ônix, do ptyx. Todos lhe reconheceram o valor e a alta aspiração poética, a começar por Verlaine, quem primeiro divulgou seus trabalhos no opúsculo Les Poètes maudits (1884), ao lado de Rimbaud e Tristan Corbière. Mas nenhum outro poeta, francês ou não, conseguiu emulá-lo: seu único discípulo confesso, Paul Valéry, nunca chegou a ser mais que faiscador da pureza verbal preconizada pelo mestre.

O conjunto da obra nada volumosa de Stéphane Mallarmé permaneceu um reduto fechado, propiciando as mais abstrusas interpretações, como se, para lê-lo, fosse necessário desbravar hieróglifos poéticos ou manuscritos cabalísticos. Das inumeráveis tentativas de “decodificação” desses versos resultava não raro a conclusão de que o “sentido” de um poema estava muito aquém do arsenal estilístico utilizado para ocultá-lo. A mania de “interpretar” essa carpintaria poética em busca de um “significado”, mediante a análise rigorosa de cada uma de suas palavras, a fim de chegar ao ur-vocábulo que o vate poderia ter em mente, fez imprimir vastidões de páginas não só na França e países culturalmente subsidiários, mas, em certa época, igualmente na América. Os professores universitários Wallace Fowlie e Graham Robb, especialistas em literatura francesa do Simbolismo, escreveram tratados em que procuraram unlock (revelar, decriptar) cada um dos poemas de Mallarmé. O leitor masoquista se rejubilará com as artimanhas e prestidigitações que ambos empregam à procura dos significados de “ptyx”, “Paphos”, etc. O curioso é que ambos concluem que o pretenso “sentido” de cada poema permanece muito aquém de sua forma poética, donde ser desnecessário compreender o que “se quis dizer”, sendo preferível desfrutar simplesmente “aquilo  que foi dito”.

Sem chegar a constituir um “culto” entre nós, Mallarmé vem sendo no entanto traduzido desde o Simbolismo (Alphonsus de Guimaraens, Batista Cepelos), passando, entre outros, por Luís Martins, Dante Milano e José Lino Grünewald. A meio caminho, Guilherme de Almeida deixou duas exemplares traduções de “Aparição” e “Brisa Marinha”. Mas foi em 1975 que Mallarmé adquiriu definitiva cidadania poética entre nós com o lançamento do livro homônimo em que nos são apresentados 24 poemas (depois ampliados para 36), insuperavelmente traduzidos por Augusto de Campos, e mais uma tradução tríplice (de Décio Pignatari) do L´Après Midi d´un Faune, finalizando com O Lance de Dados na versão de Haroldo. O livro traz um estudo introdutório e notas esclarecedoras que mapeiam definitivamente a importância literária de Mallarmé.

Embora não sejam frequentes em português estudos sobre a poesia de Mallarmé (Otto Maria Carpeaux escreveu em 1942 um definitivo ensaio sobre a “Situação de Mallarmé”, por ocasião do centenário de nascimento do poeta), vez por outra surgem entre nós referências laudatórias meramente circunstanciais. Mas, recentemente, dois tributos literários, à maneira de “Le tombeau de…”, estão se impondo à leitura pela seriedade e competência de seus autores: “Os Anos de Exílio do Jovem Mallarmé”, do prof. Joaquim Brasil Fontes, e “Brinde Fúnebre e outros poemas”, do poeta e tradutor Júlio Castañon Guimarães. O primeiro nos apresenta muito mais do que uma “visita guiada”, o mergulho na angustiosa preparação do poeta para o grande livro do Nada, através da análise da correspondência com seus íntimos nos anos em que vegetou como professor de inglês na no interior da França. Há incursões reiteradas pelo terreno das interpretações, com base em estudos consagrados, mas principalmente valendo-se da espontaneidade ou do oportunismo dessas cartas de/para os amigos do poeta. O trabalho revela um verdadeiro culto da poesia mallarmeana e quase insiste na necessidade do conhecimento de todos esses detalhes de bastidores para a sua melhor apreciação. Seus comentários são amparados em frequentes citações de versos, que aparecem traduzidos em “prosa poética”. Para inteira satisfação do leitor, há um adendo com 13 poemas traduzidos (entre os quais, Les Fleurs e La chevelure vol d´une flamme à l´extrême, não antes compendiados). O conhecimento do autor não se limita ao “anedotário”, aliás volumoso, do poeta; a análise se estende a aspectos de sua sensibilidade ímpar, suas angústias íntimas, seus amores e mesmo às suas atividades esportivas. Trabalho de especialista (da “tribo”), é leitura imprescindível principalmente para os que se iniciam no rito mallarmaico.

“Brinde Fúnebre e outros poemas”, de Júlio Castañon Guimarães, é uma seleta de sete poemas em novas traduções, algumas das quais não anteriormente antologiadas (SoupirHommage à Puvis de Chavannes e Épouser la notion). O autor, conhecido por sua competência intelectual, complementa suas traduções poéticas com uma série de Anotações em que afirma não ser seu intuito “decifrar” os poemas e sim apresentar “apenas elementos informativos mínimos” que lhe permitam justificar as escolhas  vocabulares ou de sentido que determinaram sua tradução. Seu Virgílio, (sua, no caso), foi Émilie Noulet, uma das maiores exegetas francesas da obra de Mallarmé. Mas Castañon a confronta com outras fontes e, em determinado momento, chega mesmo a contestar certas hipóteses de H. G. Cohn. Tendo sido sua a primeira tradução brasileira de “Prose”, o singular (até no título) poema de Mallarmé, considerado seu momento culminante na busca do hermetismo, Castañon não hesita em confrontá-la com duas outras, posteriores, analisando as opções de cada uma. No final desse texto desnorteante aparecem dois personagens, Anastásio e Pulquéria, para os quais o tradutor encontrou as designações precisas ao relacioná-los com duas entidades bizantinas. O livro é uma espécie de visita à oficina do ourives, em que o tradutor põe à mostra o seu instrumental de trabalho. Lição para os tradutores conscientes.

Com os já citados e mais esses dois importantes trabalhos, parece que a obra de Mallarmé pode dispensar novas traduções em português, mesmo porque, segundo Alain-Fournier, “Mallarmé é intraduzível até em francês”.

(Fonte: Cultura – O Estado de São Paulo – 20.01.2008 – Mallarmé, a eternidade em si mesmo)


GUILHERME/MALLARMÉ

Guilherme de Almeida, entrou para a Academia Brasileira de Letras em 1930 e elegeu-se Príncipe dos Poetas Brasileiros em 1958, mas, apesar disso (ou além disso) foi poeta estimadíssimo em seu tempo e um dos nossos grandes tradutores de poesia até hoje.  De repertório eclético, traduziu desde as frivolidades amorosas de Paul Géraldy (Toi et moi = Eu e você), passando pelas contrafações helênicas de Pierre Louÿs (As canções de Bilitis) até poetas de maior extensão lírica tais como Baudelaire e Mallarmé. Por seu livro Poetas de França — publicado em 1936 e com uma 2ª edição belíssima da Companhia Editora Nacional em 1944 – [vale a pena garimpar nos sebos! e, a propósito, por quê a Casa Guilherme de Almeida não providencia esta oportuna reedição?] — desfilam desde bardos do séc. XV com François Villon até um semi-desconhecido poeta-cientista Luc Durtain, que visitou o Brasil nos anos ´30 e escreveu um poema laudatório sobre a cidade de São Paulo. Mas entre um extremo e outro, temos alguns achados preciosos: Baudelaire, Mallarmé, Verlaine — este último comparecendo com dez poemas, entre os quais La lune blanche (O luar grisalho), em que Guilherme utiliza, com perícia e requinte, a rima quebrada:

O luar grisalho                                   La lune blanche

Brilha no bosque;                              Luit dans les bois;

De cada galho                                   De chaque branche

Parte uma voz que                           Part une voix

Roça a ramada…                               Sous la ramée…

Ó bem amada.                                  O bien-aimée…

Mas onde podemos realmente avaliar  seus dotes de tradutor é nos vinte e um poemas que recolheu sob o título de Flores das ‘Flores do mal’ de Baudelaire, que mereceram o elogio de Manuel Bandeira, o mestre dos mestres do gênero. Embora alguns críticos censurem nessas transposições o vezo romântico do poeta paulista e apontem certas mudanças de tom decorrentes de uma inadequada escolha de termos que não se ajustam à linguagem baudelairiana – as “flores” de Guilherme são das mais legíveis traduções de Baudelaire, consagradas  pelos leitores brasileiros. De Mallarmé, constam do livro dois poemas, Brisa Marinha e Aparição, com que, ao transcrevê-los aqui, desejo brindar-lhes a título de ilustração deste artigo:

BRISA MARINHA

A carne é triste, e eu li todos os livros, todos.

Fugir! Eu sei que há pássaros já doudos

Por se ver entre os céus e a espuma do alto-mar!

Nada, nem os jardins refletidos no olhar,

Retêm o meu olhar que já no mar se aninha,

Nem, ó noite, a luz da lâmpada sozinha

Sobre o papel vazio, intangível de brilho,

E nem a mulher moça amamentando o filho.

Hei de partir! Vapor de mastros oscilantes

Ergue a âncora para regiões extravagantes!

Um Tédio desolado, entre anseios intensos,

Ainda acredita no supremo adeus dos lenços!

E esses mastros, talvez, cheios de maus presságios,

São dos que um vento faz vergar sobre os naufrágios

Sem ilhas férteis e sem mastros de veleiros…

Mas, ó minha alma, ouve a canção dos marinheiros!

APARIÇÃO

A lua estava triste. Arcanjos sonhadores

Em pranto, o arco nas mãos, no sossego das flores

Aéreas, vinham tirar de evanescentes violas

Alvos ais resvalando entre o azul das corolas.

— Era o dia feliz de teu primeiro beijo.

Para me torturar, meu sonho, meu desejo

Embriagavam-se bem do perfume de queixa

Que mesmo sem remorso e sem motivo deixa,

No coração que o colhe, a colheita de um sonho.

Eu ia à toa, o olhar no chão velho e tristonho,

Quando trazendo nos cabelos um sol lindo,

Na alameda e na tarde apareceste rindo.

E eu julguei ver, com seu chapéu de luz, a fada

Que nos meus sonhos bons de criança mimada

Sempre deixou nevar dentre as mãos mal fechadas

Punhados celestiais de estrelas perfumadas.


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I – A PROFUNDIDADE DO SIMPLES EM NATALIA GINZBURG

Quem nunca ouviu falar de Natalia Ginzburg pode pensar, pelo arrevesado do nome, que se trata de alguma escritora de best-sellers convencionais. Mas por trás dele está uma das maiores representantes do neo-realismo italiano de pós-guerra, e sua literatura, que floresceu na companhia de Elio Vittorini, Cesare Pavese e Italo Calvino — cujo quartel-general literário era a revista “Solaria” e o bastião ideológico a editora Einaudi — reflete a busca e o encontro de um estilo despojado, à maneira dos novelistas de língua inglesa que eles próprios traduziam e introduziam nos círculos literários italianos. Mas falar em despojamento estilístico para caracterizar a arte literária de Natalia Ginzburg é muito pouco. Livros como este Foi Assim são verdadeiras aulas do bem escrever que seriam recomendáveis a muitos dos nossos autores de sucesso que ainda confundem simplicidade com vulgaridade.

Avessa à descrição, Natalia joga com o valor representativo dos objetos comuns, concedendo-lhes papéis de importância no relato. E, mais que tudo, consegue ser profunda, mergulhar abissalmente na alma de seus personagens, e transmitir ao leitor a densidade dos sentimentos de solidão, de incomunicabilidade, de desamor, sem para isso lançar mão de falsos estudos  psicológicos, conseguindo-o com frases simples, do dia-a-dia, porém dotadas de um “peso” e, especialmente, de um “tom” que lhes denunciam as intenções mais entranhadas e sutis. Seus personagens, além de parecerem retratos de pessoas conhecidas, são tão humanos que se torna difícil admiti-los apenas como criações literárias. Embora se saiba que a autora fugia à utilização de eventos biográficos na construção de seus livros ficcionais, é inegável que neles instilou uma angústia e um vazio que certamente algum dia sentiu.

A simplicidade da trama nem de longe pressupõe a realização irretocável que dela pôde extrair o talento da escritora: Uma jovem professora, feia, tímida, solteirona, morando numa pensão, trata com distância um homem já maduro, supostamente apaixonado por ela, que lhe demonstra interesse e cortesia, mas nunca se declara. É ela própria que o faz, admitindo por fim também estar apaixonada, mas o homem lhe diz que ama outra mulher, casada, que o maltrata, mas de quem não consegue viver afastado. Por força da solidão desesperada de ambos, a jovem solitária e o homem taciturno acabam se casando, embora ele continue fiel à amada impossível, com a qual ainda se encontra ocasionalmente. A esposa sabe, chega a admitir a situação ambígua, mas quando o marido decide separar-se para acabar com aquela vida equívoca, ela o mata com um tiro entre os olhos.

Banal, dirão, mas vejam o tratamento. O livro começa pelo fim, ou seja, o minuto after do tiro, e a partir daí há dois tempos que se intercalam, o presente real em que a personagem cogita entregar-se à polícia, e o presente contínuo, que se desenrola como se fosse já a confissão dos motivos do crime. Natalia faz nesse princípio uma verdadeira gozação à técnica do romance americano, com abuso do “ele disse, ela disse”, que só pela insistência é que denuncia ao leitor o intuito gozativo. (“Disse-lhe: — Diga-me a verdade — e ele disse: — Que verdade?”[…] “Quem era aquele velho? — Que velho? — digo. Diz: — Aquele velho no teatro”). Além de Alberto, o marido, intervêm na história o amigo deste, Augusto, a prima da esposa, Francesca, e episodicamente a amante, Giovanna, todos delineados com precisão e consistência psicológica, preenchendo seus espaços e revelando-se por inteiro na espantosa economia de traços e de falas de que a autora se utiliza para caracterizá-los. No fim, uma estranha sensação invade o leitor, indeciso entre o ato da protagonista, que não consegue suportar a idéia de não ser amada, e o do marido por não querer insistir na falsidade.

Livro densamente  complexo em sua aparente fragilidade narrativa, Foi Assim nos lembra a precisão solar de um Graciliano Ramos nos melhores momentos de seu Angústia. Só que a narrativa aqui adquire uma celeridade inexistente naquele, onde a tônica está precisamente na mesmidão temporal. Mas ambos são mestres em permitir ao leitor uma visão do que está remoendo o interior do personagem com auxílio de pequenos detalhes que vão tornando cada vez mais nítido o foco de observação. O leitor que a não conhece se surpreenderá com Natalia Ginzburg e certamente quererá saber mais sobre essa autora que parece mostrar em seus escritos os estigmas da amargura e da solidão.

A tradução de Edson Roberto Bogas Garcia, que também assina a apresentação em que analisa com proficiência as qualidades da autora e dela traça um escorço biográfico, é quase sempre muito boa e consegue transmitir ao leitor brasileiro a aparente casualidade estilística de Natalia Ginzburg, com suas repetições e seu estudado descuramento formal. Pena que, talvez tentando um aggiornamento desnecessário e incompatível com a cronologia lingüística da narrativa, lance mão às vezes de termos como paquerava, bituca, corneia, pegando no pé, um cara, dei no pé, encher o saco, não esquenta, estar gamada, briga de foice — que pela sua gritante impropriedade numa narrativa dos anos ’40, surgem como borrões na cristalina superfície das frases, depuradas no original de qualquer artificialismo, porém nunca indulgentes com a vulgaridade. Esse vezo de “agilizar” a frase mediante a transferência das falas e situações para o tempo presente do tradutor, de colocá-la sempre ao alcance de um leitor hipotético e medíocre, só pode ser influência do malfadado make it new.

**

 

 

II – A SAGA FAMILIAR DE NATALIA GINZBURG

Eis um livro que todos nós, autores e leitores, gostaríamos de escrever um dia: a história de nossa família, com  suas peculiaridades, seus casos, seus personagens esdrúxulos, seu fraseado peculiar – enfim, a saga  das reminiscências de um tempo não de todo perdido, pois preservado em parte na lembrança. Claro que a história de qualquer família daria um romance, desde que seu autor tivesse as qualidades literárias imprescindíveis para a transposição da memória para o papel. Porém, quando quem o faz é uma escritora da qualidade meridional de uma Natalia Ginzburg, tais evocações transcendem logo as fronteiras de um caso pessoal para exprimir todo um universo em sintonia com o do leitor, que se reconhecerá em seus fragmentos ou minúcias. Nas mãos dessa estilista do cotidiano, meros enfoques factuais se transformam em revérberos de sintonias que fazem o leitor sentir-se participante colateral da narrativa.

Natalia Ginzburg não é desconhecida do público brasileiro: Léxico familiar já teve uma edição anterior, da Paz e Terra (tr. Homero Freitas de Andrade) em 1988; alguns outros livros seus também já foram traduzidos em português; mas deve-se principalmente ao romance Foi assim (Berlendis & Vertecchia, tr. Édson Roberto Bogas Garcia), publicado aqui em 2001, o ter-lhe assegurado definitivamente a atenção de um círculo de leitores sensíveis ao seu estilo despojado, bem diverso do jargão de alguns escritores nossos que ainda teimam em confundir simplicidade com palavreado grosseiro. Considerada a mais legítima representante feminina do neorrealismo italiano de pós-guerra, Natalia Ginzburg utiliza uma linguagem direta, em que predominam os diálogos expressos em frases naturais, despidas de quaisquer artificialismos literários, mas que vão se aprofundando e ganhando substância à medida que delineiam seus personagens. Tal despojamento, no entanto, é apenas um dos aspectos de seu estilo personalíssimo, em que, sob a aparente narrativa de fatos corriqueiros, se introduz a obstinada defesa de seus valores pessoais e sociais, “sua integridade, sua paixão pela verdade e sua dedicação ao conceito de família”. Natália formou, com Elio Vittorini, Cesare Pavesi e Ítalo Calvino, o naipe dos principais ideólogos e executantes do movimento neorrealista italiano, inspirado nos escritores de línguas inglesa e francesa, que eles próprios traduziam e introduziam nos círculos literários que orbitavam em torno da revista “Solaria” e da editora Einaudi, onde ocupou durante anos as funções de leitora e orientadora editorial.

Este Léxico familiar conta em parte a sua história: nascida numa família judia – o pai, Giuseppe Levi, famoso biólogo e histiologista; a mãe, Lídia Tanzi, não-judia, de formação socialista – Natália casou-se com o editor e ativista político Leon Ginzburg, judeu russo nascido em Odessa, líder de um movimento clandestino anti-fascista (Giustizia e Libertà), do qual participaram todos os membros da família Levi-Tanzi-Ginzburg. Com o advento dos fascistas ao poder, Leon, Natália e os filhos foram confinados numa cidadezinha dos Abruzos. Após três anos de confinamento, Leon regressou a Turim e Roma, onde continuou a participar do movimento de resistência. Preso em 1943. foi transferido para uma prisão alemã, onde morreu sob torturas em fevereiro de 1944. “Numa linguagem discreta, simples e sem sobressaltos (…) a prisão e morte de Leon são contadas [no livro], sem ênfase: ‘Foi detido vinte dias depois de nossa chegada e não tornei a vê-lo nunca mais’ (posfácio de Ettore Finazzi-Agrò, p. 225).

Natália, a primeira tradutora da obra de Proust em italiano, editora poderosa, não abandonou suas convicções políticas: ligando-se ao Partido comunista italiano, foi eleita deputada em 1963 e 1987, quando abraçou várias causas humanitárias (defesa das crianças palestinas, assistência legal para as vítimas de estupro, reforma das leis de adoção, etc.). Mais tarde, desencantada com a política, resignou como membro do Partido. Louve-se a excelente edição da Cosac & Naify, a correção e fluência da tradução de Homero Freitas de Andrade, e suas notas de apoio com fotos da autora e sugestões de leitura.

 

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Foi o editor José Mário Pereira quem promoveu meu encontro com João Antônio. Eu tinha grande admiração por ele e sabia que ambos achávamos genial o livro “Desabrigo” (1942), de Antônio Fraga, a obra-prima que havia instaurado uma linguagem nova em nossa literatura. Também admirava muitíssimo o livro de estreia de João Antônio, “Malagueta, Perus e Bacanaço” (1963) e sabia das circunstâncias de sua publicação (a casa dele pegou fogo e destruiu o manuscrito original, que foi refeito inteira e imediatamente de memória). José Antônio nesta altura já morava sozinho, sem a família, aqui no Rio, levando uma vida dentro de padrões semelhantes aos de seus personagens, indivíduos pobres, do submundo, “órfãos do olhar humano e da fortuna”. Vivia de seus direitos de autor e de colaborações para os jornais. Estávamos em 1995, eu acabava de lançar pela Nova Aguilar a “Poesia e Prosa de Charles Baudelaire”, e João Antônio, que trabalhava na Tribuna da Imprensa, quis fazer comigo uma entrevista, que respondi por escrito. Não mais nos encontramos. Ele veio a falecer no ano seguinte, em seu apartamento de Copacabana, absolutamente só, e o corpo só foi encontrado  15 dias depois.

***

JA – Qual a importância, hoje, para o leitor brasileiro, da poesia e da prosa de Charles Baudelaire?  Você não acha que, com a trepidação da vida moderna, toda aquela história de satanismo, de dandismo, de spleen já perdeu sua razão de ser?

IB – Baudelaire é o mais importante poeta internacional da França, sua influência se exerceu sobre a poesia de quase todos os países. O conhecimento de sua poética (e bem assim de sua estética) é e será imprescindível para toda pessoa, de qualquer quadrante e de qualquer época, que pretenda um mínimo de conhecimento no terreno da poesia e da estética modernas. Sem falar na pura exaltação lírica que o desfrute de sua poesia proporciona no leitor. Achar que suas concepções estéticas ou sensoriais perdaram a razão de ser seria o mesmo que condenar a leitura de Homero porque o homem de hoje não acredita mais em mitos.

JA – Mesmo em tradução ?

IB – Mesmo em tradução. Até as traduções menos fiéis e menos “baudelairianas” de certos poemas de As Flores do Mal carreiam para os leitores — seja pelo tratamento do tema, seja pelo inusitado das imagens, seja pelas palavras empregadas –- uma sensação de estranha beleza e excepcional sensibilidade.

JA – Barroso, depois de sua divulgação da obra poética de Rimbaud, por quê Baudelaire ? Por quê ?

IB – Bem, na verdade Baudelaire é o grande precursor de Rimbaud, a quem ele chamou de “un vrai dieu”. Meu interesse pelo autor de As Flores do Mal antecede a devoção à obra do poeta de Charleville. A primeira tradução que fiz de um poema francês foi precisamentea de L’Homme et la Mer, há exatamente meio século. Era natural que eu quisesse ver sua obra reunida num volume e surgiu-me a oportunidade de fazê-lo.

JA – Quer dizer que você não entra aí como tradutor…

IB – Não, o escopo foi mais abrangente. Meu trabalho foi o de organizador da edição, aquela função para a qual os italianos têm a bela expressão a cura di. Li tudo o que havia em português de e sobre Baudelaire, selecionei o que me pareceu melhor, mandei traduzir o que faltava para um conjunto de cerca de 80% de sua obra completa, procedi a uma harmonização estilística do conjunto, fiz a nota introdutória em que são expostos os critérios adotados e redigi um bom número de notas que aparecem no final do volume.

JA – Logo, nenhuma tradução sua em todo o volume ?

IB – Bem, ao rever os textos transformei em versos metrificados e rimados todas as citações de outros autores que haviam sido reproduzidas em prosa pelos tradutores e fiz o mesmo com o famoso soneto “libertino” de Théophile de Viau [vide abaixo] que serve de epígrafe a Meu Coração a Nu.

JA – E em relação a Flores do Mal, como foi sua escolha ?

IB – Desde cedo aprendi a amar as belas versões que Guilherme de Almeida publicou sob o título de As Flores das Flores do Mal. Mas ele só traduziu os poemas com que mais se identificava, que infelizmente são poucos. Há também algumas boas transposições de Dante Milano. Mas a tradução de Ivan Junqueira, além de ser completa, o que garante uma unidade estilística do conjunto, é sem dúvida a melhor que temos em português, graças à sua concepção da arte de traduzir versos.

JA – Melhor mesmo que a do Guilherme ?

IB – Pelo menos diferente. Ivan deixa passar mais da forma baudelairiana pois está concentrado em efetivamente traduzi-la, ao passo que Guilherme, mais pessoal, faz um poema próprio, maravilhoso, recriando Baudelaire.

O SONETO DE THÉOPHILE DE VIAU (mencionado na entrevista)

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Je songeais que Phillis des enfers revenue ,

Belle comme elle était à la clarté du jour,

Voulait que son fantôme encore fit de l´amour

Et comme Ilion j´embrassasse une nue.

Son ombre dans mon lit se glissa toute nue

Et me dit: “Cher Damon, me voici de retour,

Je n´ai fait qu´embellir en ce triste séjour

Où depuis ton depart le sort m´a retenue.

Je viens pour rebaiser le plus beau des amants,

Je viens pour remourir dans tes embrassements”.

Alors, quand cet idole eut abusé ma flamme,

Elle me dit: “Adieu! Je m´en vais chez les morts.

Comme tu te vantais d´avoir foutu mon corps,

Tu te pourras vanter d´avoir foutu mon âme”.

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Eu sonhei que Philis do inferno retornava,

Tão bela quanto foi à clara luz do dia;

Que eu lhe fizesse amor seu fantasma queria,

Sentindo como Ixion, que uma nuvem abraçava.

Toda nua em meu leito a sombra se espojava;

“Caro Dâmon, estou de volta” – me dizia;

“Vê como embelezei na triste moradia

Onde, depois que foste, a Sorte me trancava.

Quero outra vez beijar meu amante perfeito;

E de novo morrer no espasmo de teu leito!”

E então, tendo esgotado o meu ardor, em calma,

Me disse: “Volto à Morte. Adeus! Tens-te exibido

Por haveres, em vida o meu corpo fodido:

Ora podes dizer que fodeste a minha alma.”


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Nos anos 1959/60, Reynaldo Jardim era o redator-chefe (hoje diríamos editor) do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, ali surgido com a revolução gráfica encabeçada por ele, quando a Condessa Pereira Carneiro (dona da folha) resolveu finalmente permitir a modernização do órgão. O JB era tempos antes um jornal exclusivamente de anúncios (imóveis, carros, empregos, funerais, etc) que enchiam da primeira à última página, em caracteres compactos e impessoais. Reynaldo reformulou o jornal de cabo a rabo: acabou com os anúncios de primeira página, transferiu-os para um caderno à parte, criou os editoriais, as reportagens, a cobertura de eventos, o noticiário enfim, à semelhança dos grandes periódicos estrangeiros. Mas a grande revolução se deu mesmo no suplemento literário, antes dele um morno coquetel de assuntos domésticos, trabalhos manuais, receitas de bolo e fotografias de equívocos alfenins em sapatilhas de balé. Reynaldo, tendo ao lado o artista gráfico, Amílcar de Castro, criou uma paginação em que predominavam os espaços em branco, a ousadia dos corpos tipográficos, sem falar na excelência e modernidade dos temas literários (poemas, traduções, ensaios, contos, entrevistas) que se destacavam na estruturação das matérias.

Entre os colaboradores fixos estava o Ferreira Gullar, que escrevia sobre complexos problemas de artes plásticas e vez por outra comparecia com um poema seu. Em 1959, o suplemento dominical (que saía chaplinianamente aos sábados) lançou a página Poesia Experiência, assinada pelo jovem poeta-crítico Mário Faustino, que foi outra revolução dentro da revolução. Era uma página vibrante, que publicava, comentava, discutia, ensinava poesia aos jovens iniciantes do ofício. Entre suas seções havia o Poeta Novo e a Poesia Traduzida. A primeira aceitava (selecionava) colaborações dos leitores; a segunda ilustrava os grandes poemas universais traduzidos em nossa língua. Um dia, vencendo uma histórica timidez, mandei para o suplemento um poema que havia traduzido (“Ein Gott vermags”, de Rilke), na esperança de vê-lo aparecer na seção correspondente. Para minha surpresa, ele saiu na seção o Poeta Novo, com uma nota em que Faustino dizia considerar a tradução de poemas uma verdadeira recriação. Inflado de coragem, resolvi ir à Avenida Rio Branco, 118 agradecer pessoalmente pela publicação. E fiquei conhecendo Reynaldo Jardim. Foi o Assis Brasil, então de bigodinho, um dos poucos  funcionários efetivos do jornal e secretário do suplemento, quem me apresentou àquele senhor corado, cabelos cor de palha, já com uma entrada de calvície, de sotaque nitidamente paulista e poucos anos mais velho do que eu. Reynaldo tinha à mão uma régua e paginava o próximo seguinte número do suplemento. Perguntou-me se eu tinha outros poemas e traduções (que eu por cautela havia levado comigo) e naquele mesmo dia me convidou a colaborar permanentemente com o jornal. Embora recebendo por colaboração publicada, passei a frequentar o suplemento, onde havia um grupo de poetas jovens que circulavam em torno de Faustino, ansiosos por se verem publicados. Havia na publicação um endeusamento permanente de Ezra Pound, e Reynaldo achou que devia apresentar a outra face do argumento: foi assim que traduzi As máscaras de Pound, um ensaio de R. P. Blackmur, cuja publicação se estendeu por umas três semanas e me isolou definitivamente do grupo de satélites. Reynaldo comentou comigo que a Condessa vinha recebendo um crescente número de reclamações relativas à modernização do jornal e da rádio. (Ele dera também novo perfil às transmissões radiofônicas do JB, criando um noticiário que entrava no ar de hora em hora com um prefixo definido e tinha uma característica desenvolvida por ele: o locutor Mauritônio Meira lia o texto da notícia de um só fôlego, como uma metralhadora de palavras. Era uma sensação, com Reynaldo cada dia alongando mais as frases para ver até que ponto ele conseguiria aguentar.) A maior pressão contra as reformas vinha das amigas da Condessa e de seus antigos ex-colaboradores, que não se conformavam com as “modernidades” e o sucesso que o suplemento estava obtendo, já considerado o maior veículo de informação cultural do país. Mas a Condessa era uma pessoa arguta e sabia que o jornal, modernizado, estava vendendo bem e era um êxito. E, que tendo aberto suas páginas ao movimento concretista, que nascia em São Paulo, o suplemento se tornara o mais atuante órgão de vanguarda da imprensa da época. Um dia, no entanto, Reynaldo me confidenciou que seus dias estavam contados na redação, pois agora havia pressão política para que ele saísse. Antes que isto ocorresse, Reynaldo pediu demissão e foi dirigir a revista Senhor, recém criada pela Editora Delta. Convidou-me e fui com ele. Mas sua permanência ali foi breve. Perseguido pela Revolução, atuou discretamente em vários órgãos da imprensa no eixo Rio-São Paulo, andou pelo Norte-Nordeste e modernizou jornais também em Curitiba. Órgãos da imprensa necessitando de uma oxigenação recorriam à sua UTI de eficácia editorial. Autor de muitos livros, publicou na época do suplemento, o primeiro (e talvez único) romance concreto de que se tem registro, em que contava uma viagem à Lua. Como estive fora do país por muito tempo,  pensei que nossos contatos se haviam perdido, até que recebi, em 1972, vinda de Manaus, uma plaquete intitulada Paixão segundo Barrabás, de sua autoria. Foi um deslumbramento: Reynaldo voltava à poesia de sempre, à poesia eterna, à poesia víscera e emoção. Anos mais tarde, já de volta ao Brasil, em 2005, estive pessoalmente com ele por ocasião do lançamento de um novo Caderno B do Jornal do Brasil em que ele escreveria um poema por semana e eu uma crônica. Ele estava morando em Brasília e, nessa ocasião, me disse que vinha reunindo seus escritos num livrão que iria chamar-se Sangradas Escrituras. Isto mesmo, san-gra-das, pois eram escritos que lhe haviam custado suor e lágrimas. E perguntou se podia transcrever como prefácio a resenha que eu fizera sobre A paixão segundo Barrabás, em 1972.

O livro saiu em dezembro de 2009, fora do comércio, com cerca de 1200 páginas em papel cuchê, uma capa belíssima, bolação dele e de Eduardo Bonfim, reunindo toda a sua obra poética, os milhares de poemas soltos de seu fabulário e de suas descrições de gravuras, suas próprias incursões pelas artes gráficas, etc. etc. etc – enfim um livro para ninguém botar defeito e candidato seguro a um grande prêmio. O prêmio de fato veio: Reynaldo foi um dos três finalistas do Jabuty de poesia de 2010. Mas, para a decepção de todos seus amigos amantes da verdadeira poesia, acabou em segundo lugar e, ao concorrer em seguida ao melhor livro do ano, foi desbancado pela popularidade de Chico Buarque de Holanda. Reynaldo não disse, mas certamente deve ter-se abatido com a injustiça literária. Irônico, numa entrevista, afirmou: “O Jabuty é irrelevante. Quero mesmo é ganhar o Nobel”.

Reynaldo Jardim faleceu na madrugada do dia 1º de fevereiro, em consequência de um aneurisma na artéria aorta, aos 84 anos de idade.

O PREFÁCIO PEDIDO

Em 1972, tendo recebido de Reynaldo Jardim uma plaquete de 40 páginas com o poema  Paixão Segundo Barrabás, escrevi para o Suplemento Literário do Jornal do Brasil a seguinte resenha:

Este pequeno livro, editado em Manaus por Umberto Calderaro, contendo apenas três poemas, pode vir a indicar entretanto um momento aguardado da literatura nacional: a volta à poesia. Seu autor, Reynaldo Jardim, que sempre se encontrou ligado aos movimentos de vanguarda – quando não colocado diretamente à frente deles, como no caso do Concretismo (do Rio) nos últimos anos da década de 50 – seria provavelmente o último poeta a recorrer a formas tradicionais (não-concretas) do verso, se não estivesse convencido do esgotamento, impasse, incriatividade ou incomunicabilidade dos processos gráfico-espaciais, processuais-praxísticos – ou que melhores e mais novos nomes tenham todas essas tentativas (ensebatórias ou crucialmente sérias) a que os poetas novos brasileiros se entregaram em sua maioria, após acreditar ingenuamente que Drummond e Cabral já eram.

Não que Reynaldo tenha voltado ao sone­to parnasiano ou a essas trêfegas can­ções-de-enganar-mulher, à maneira Viní­cius de Morais. Seu retorno é antes uma retomada de caminho, interrompido pela vereda ( necessariamente digna de explo­rar-se) do Concretismo; só que Reynaldo soube ir até o fim da picada – e voltar, de modo que tal volta, em vez de retroces­so, para mim significa uma experiência nova, e mais rica, pois traz consigo todo o ferramental utilizado no desbravamen­to das trilhas concretistas. O poema – que o livro todo é, a rigor, um só poema – pela sua “linguagem farta, exuberante, numerosa, úmida e quente” (no dizer do próprio autor) é, na aparên­cia, um borbotão incontido, um estrondo de águas amazônicas, a voz do homem nas­cendo das potencialidades telúricas. Mas, na verdade, foi escrito entre os búfalos do tráfego carioca, no entrechoque das ondas de apatia e de neurose da cidade grande, à sombra das esgalhadas antenas de televisão. Sua figura central é Barra­bás, o que foi poupado em lugar do Cris­to, eterno portanto igual a Cristo, domi­nado pela angústia de não ser o Cristo (que melhor imagem para personificar a condição do poeta!). Em sua eternidade, Barrabás é o homem de hoje, universal nos acentos eliotianos alcançados pelo verso de Reynaldo.

“a Terra ao perder de seu eixo o fulcro antigo, ao ganhar

em seu eixo o novo impulso (…) o parto matinal

banhado na seiva grossa de carbono e enxofre”

mas vivendo seu instante de brasilidade – esse Barrábas-Macunaíma – metido na floresta como um búfalo, com seu ver­bo verde e vigoroso, acentos de uma poe­sia já não pau-brasil nem ufanista nem falsamente papagaia, mas cheirando a seiva e de vigor inventivo, voltando-se e envolvendo-se como um ventre de jibóia, cheia de ritmos crus à Vila-Lobos, pletóricos, clamorosos, genuínos – sons de poesia grande, rude, quase anti­cultural.

“Para assistir a faca retalhando as carnes dessas frutas fartas e maduras… Vede que o faz brilhar mesmo se o escuro bate

em seu osso de aço, em seu aço de carne, sem perder o seu brilho de manhã e de tarde…

já a margem do lago, já o rumor do lago,

já essa lagosta, ostra, caranguejo, beija…”

Poesia cujo roteiro é Aquarius, carregan­do a bagagem indispensável, esvaziada de qualquer inú­til artifício, com a mente cheia da cons­ciência do estar aqui, dando adeus “às Ofélias hippies, aos demônios esporádi­cos, às virgens passageiras” — Reynaldo es­tá nessa viagem do sangue para as suas origens, fazendo o caminho de volta para a água-­mãe. E saúda o amanhã, “as flautas das manhãs”, quase geórgico, meio-virgilia­no – enfim, eterno – no seu passo/com­passo de Barrabás-beat, livre para a ex­periência, para o grito, para a poesia.

Daí minha exaltação radiosa ao ver agora, do alto da montanha, num alcance panorâmico, não só o Barrabás da minha admiração inicial, agora completo e retumbante, mas uma colheita dourada dos melhores poemas de Reynaldo: os seus meninos, os seus animais, os seus quadros, os seus axiomas, e mais alguns desenhos e experimentos dignos de preservação. Reynaldo é o homo faber tão realizado que seus chamados versos de circunstância nunca são versos circunstanciais, mas a melhor poesia detonada pela observação momentânea de um fenômeno qualquer. Seu “bestiário” (se assim podemos chamar suas amorosas “fotos” de animais vivos ou sonhados), representa o que há de melhor nas criações da zoologia fantástica. E suas descrições de gravuras são as artes plásticas transcritas e restauradas na linguagem poética. Em boa hora, pois, Reynaldo Jardim achou de reunir em livro os inestimáveis tesouros que guardava no baú ou que eram conhecidos apenas de uns happy few. Agora toda essa pletora passa a ser um legado ao leitor. Valeu a volta à poesia.

 

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É curioso notar que em toda a obra ficcional de Ítalo Calvino, e mesmo em seus ensaios, não haja qualquer referência  aos sentimentos amorosos: seus personagens, seus enredos, suas análises e especulações literárias parecem todas voltadas para o ato de escrever e a função (ou missão) do escritor, que se nos apresenta como destituído dos arroubos vulgares dos demais seres humanos. No entanto, o próprio Calvino passou por uma fase de exaltação amorosa pela belíssima atriz de teatro e cinema, Elsa de´ Giorgi, para quem escreveu mais de 300 cartas de violento amor, hoje entregues à guarda do Fondo Manoscritti de Pavia. Elsa atuou em filmes de Visconti e Pasolini, e era casada com o conde Sandro Contini Bonacossi, dito Sandrino, herdeiro de uma das mais importantes coleções particulares de arte florentina. Seu caso amoroso com Calvino transcorreu no período 1955-1958, e começou com sua tentativa de lançar um livro pela editora Einaudi, da qual Calvino era leitor. O relacionamento formal (tratavam-se a princípio por Lei, equivalente a “o senhor”, “a senhora”), foi logo substituído, com os sucessivos encontros amorosos, por um fogoso “tu”, como nesta carta: “Quero escrever sobre o nosso amor, quero amar-te escrevendo, possuir-te escrevendo, nada menos. Meu amor, nunca pensei que minha paixão por ti penetrasse tão profundamente em mim, a ponto de provocar, de abrir uma crise até na instrumentação mais técnica de meu trabalho, ou seja no meu estilo”.  Calvino teve que convencer Elio Vitorini (seu chefe na Einaudi) a publicar o livro de Elsa, e finalmente quando este saiu, eis que o conde-marido desaparece sem explicações. Meses depois regressa, alegando que se refugiara nos Estados Unidos para fugir a credores e marchants que o perseguiam, mas há indícios de que um dos motivos tenha sido o conhecimento da traição da esposa. Não se sabe exatamente como e por que o caso amoroso terminou. Em 1975, o conde apareceu morto, enforcado por um fio de náilon, num apart-hotel de Washington. Calvino faleceu em 1985 de um ataque cardíaco. Elsa morreu em 1997, não antes de vender ao Fondo  Manoscritti de Pavia as mais de 300 cartas que Calvino lhe escrevera. Ali consignadas com a cláusula de que só deveriam ser conhecidas do público 25 anos mais tarde, algumas delas apareceram no Corriere della Sera em agosto de 2004, motivando uma ação de embargo por parte de viúva de Calvino, Esther Judith Singer (“Conchita”), herdeira dos direitos autorais do marido, por considerar uma quebra desses direitos e  um crime de violação da privacidade. “Quando penso o quanto Calvino era reservado e modesto”, disse ela, “fico só na esperança de que não haja jornais lá no outro mundo”

 

 

 

UM POEMA (DE AMOR) de Ivo Barroso

amor que

late no

peito/pátio

de quem

ama

amor que brama

 

amor que

ladra à

aorta/porta

de quem teme

amor que geme

 

 

amor que

cava a

cava/cave

de quem

cala

amor que rala

 

amor que

rói a

croça/fossa

de quem

fana

amor que dana

 

amor que late e ladra

e cava escava

que rói corrói

e corre

à cata

amor que morre e mata

 

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