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Archive for junho \16\-03:00 2021

Além do já consagrado MILTON REZENDE, com vários livros de versos publicados, alguns dos quais resenhamos aqui na GAVETA, surge-nos agora, para nossa grata surpresa, o nome de CRISTIANO DURÃES EVANGELISTA, igualmente nascido na promissora terra de ERVÁLIA-MG, nosso berço natal. CRISTIANO é um verdadeiro fenômeno literário: mal saiu de Ervália (fez um ou dois cursos em Viçosa-MG), nunca veio ao Rio e ainda não viu o mar. Apesar disso e de sua pouca idade (creio que tem uns vinte e pouco anos — ainda não cheguei a verificar), ele domina a arte do verso e se mostrou um crítico literário de alta envergadura pelo conhecimento das técnicas, dos alcances e dos extremos da arte de criar. Dele os nossos leitores já conhecem ou podem apreciar aqui agora o excelente (e para mim surpreendente) ensaio que fez sobre o meu poema PAPEL & CHÃO, um momento literário que sem falsa modéstia encerra alguns ápices da técnica do verso e dos arroubos da imaginação. Suspeitei que ele também, além de arguto crítico, escrevesse versos e acertei na suspeita. Cristiano mandou-me a amostra de sua criação literária autônoma, que me apresso em compartilhar com os leitores da GAVETA.  Vejam só!


P   O   E   U   T   I   C   A

Cristiano Durães

Paz Decidida

Sento-me e encontro na dureza dos meus ossos o desejo de amolecer-me. Respiro consciente e procuro dar-me às coisas, deixar o vento falar e ouvi-lo entre os motores e a fala engrenada do homem. Em mim ainda assopra algum rastro de serenidade. É preciso encontrá-lo, deixar as palavras dizerem-se sem vergonha e sem pressa. É preciso diminuir o fluxo indomável da minha vontade de mim mesmo. 

Escrevo saboreando o gosto amargo das folhas revoltadas das árvores sem nome, flores ou frutos. Estão rígidas e firmes em ser o que são, essencialmente. Eu ainda não sei ao certo o que deu voo a esses pensamentos, o que me fartou de sensações meteóricas, eclodindo em baques graves de reflexões vazias… Mas, não posso… agora não posso deixar o estrondo me fazer tremer. Agora o vento me disse outros capítulos da mesma história. Então, por agora passarei do ponto. Vou deixar-me andar, ouvir também o que o mundo tem a dizer. 

Descobri que há motivos para fingir uma nova esperança. Nisso, seria nítida a moleza do corpo e da alma. Contemplar-se é só manter-se basicamente agradável, e tudo isso pode se parecer com liberdade. Existem desafios. Prisões me petrificam. Sonhos mal sonhados, amores não amados, poemas não escritos, livros não publicados, iniciativas não acabadas, , tempos verbais confusos e parágrafos inúteis.

 Mas deixa lá. Eu sou essas árvores de quintal abandonado. O tempo faz a poda dos galhos podres. Se dissolverão em matéria base para outro galho que emergirá no chão e brotará no mundo. As folhas olharão altas e então toda a inércia finalmente se tornará descanso.

                  Juiz de Fora, 09 de agosto de 2018


V     o     z    e    s

Deixei morrer em mim
 aquela ânsia por um grito,
 afogado no atrito e na paz
dos mortos e feridos,
dos doentes e famintos,
dos nossos dias estáticos.

Tenho sido por inteiro
 um pedaço do quis ser 
e tenho deixado os adiamentos 
adiantarem o meu dia a dia 
em dias escuros, noites fugidias.

Pago em dia o meu medo do que faço.
 Mesmo assim estou prostrado à lama,
 e escorrego na aspereza do cansaço
 e na inércia sem descanso.

Deixei viver ainda 
as palavras mal ditas, 
os malditos ditames da poesia
 e tenho estado entregue ao nocaute 
como quem reconhece no desmaio
 a última oportunidade de um sono tranquilo.

Ainda assim,
 o encontro com o espelho, 
o farejar dos meus olhos que se entreolham; 
as olheiras mudas, 
a boca funda, 
enfim, tudo; 
É miudeza me fazendo crer 
na razão envolvendo meu rosto.

E a contemplação dessa forma de eu, 
dessa profusão de termos idos e vindos, 
é como o resultado que tenho de mim 
para contrapor o que estou 
do que finalmente sou.

Ervália, 12.03.2019


II

O que não finda é agora.
 Agora é tudo aquilo que não se recorta, 
é toda tradição cravada e esquecida
que finge não ser. 

Todo conceito vivo é insuficiente. 
Vive cheio de sentidos demais
 e o homem precisa de tempo 
pra alimentar sentimentos sem fome. 

Viçosa, 04.05.2019


III

A voz é a vontade de existir
que quando incapaz transforma o nada
e ecoa a presença de uma ausência.
Se me foge às mãos
tudo que os olhos fotografam,
conjuro desejos em nuances de concretude.
Juro a tactilidade do sopro vivo
e rompo-me no silêncio de poemas
muitas vezes malditos.

A voz não está na boca
e divide o vazio com o papel
ciente de que o eco retoma
outros sentidos reverberados
que o papel julgou contrariar.

 Viçosa, 03.07.2019


IV

O artista simbólico,
o corpo também.
A obra agora é nossa
e a realidade tem estado
sempre em nossas mãos.
Tuas mãos e as minhas
são nossas, e o que é nosso
se desenvolve exterior
ao que por essência é
o teu e o meu.

Diluído o gênero,
tudo agora se desmascara.
O aspecto figurativo
some no espaço
e transfaz-se em viver
sem interrupção;
em constante ruptura. 

Viçosa, 13.07.2019


V

Cá estou,
fazendo literatura nua
numa aula de literatura,
como se os nomes dos poetas
em suas veleidades estético-sentimentais
fossem dar infinitude às minhas bobagens.

Existe entre as coisas um certo ponto
não mensurável, que não se constata,
mas que as fazem poesia:
Cabral cata feijão em delongas poéticas
e mastiga as pedras como se gostasse.
Milton revira a terra da sepultura
e garimpa da existência suas mais incertas exatidões.

 Eu demoro na vida,
adio os poemas
e durmo com fome.

Eu sigo velho sem idade,
preso nos arrolhos de mim.
Estou sentado,
esquecido do tempo
e daquela caneta que ficou em casa.
Um poema perdido talvez fosse a obra perfeita…
A companheira de classe detém a única cópia.

Um dia, quando em mim toda vida resolver-se morte,
talvez entre as páginas ignoradas,
esquecidas no caderno ou na janela do chat,
 na linha do tempo do Facebook;
a obra prima única e inédita
esteja a se desentranhar do útero.
Cultivando os primeiros olhares
para ser palavra de fundo pra outro poeta escrever,
durante a aula,
o quanto nada lhe cabe
enquanto não cabe em nada.

Viçosa, 13.07.2019


Nau & Nós 

Desliguei o computador.

Adiadas, as ideias ficaram

Escanteadas para o amanhã.

Teria meu encontro com a dor? Lamberia seus pés?

Sorveria seus abismos?

Talvez não. As manhãs tem chegado
Em todos os dias que anoitecem.
Iluminados?
Estamos demais.
Por tanta luz não somos aptos a ler nossas sombras.

Eu e eu.

Relação pintada em poemas

Pretos e brancos, barcos

Que não estão à deriva,

Seguem incógnitos cursos.

Não vemos a nos guiar o céu:

Antes papel e fleuma

Nos levarão a tal distância,

Tal destino a comer léguas no mar.

Por muito tempo…

Já faz mais de ano que buscamos

E nada distinguimos nas distâncias,

perdemos os ventos que nos levariam.

Sabíamos do risco, era a rota natural:

Espatifar na pedra os desejos

Essencialmente náufragos.

Foi então que a chuva chegou.
Chamava nossos nomes
Zunia no zinco das coberturas
Cobria o azul do céu com cinza
Zombava das nossas cores
Com raios repentes
Restritos a olhos atentos.
Estávamos todos a guardar varais
Quando trovejaram sobre nós
Ventos de aventuras literárias.
Prevíamos perigos;
E ainda assim, era o medo
Que rangia nossos cascos
Estufava e apagava nossas velas.
Antes, daqui, nossos olhos viam.
Abraçavam pastos e nelores,
Motos, bicicletas e pedestres.
Berravam a vida, usavam todas as tintas
E pintavam o dia visto da janela.

Agora, pouco depois daquele prédio,
O véu ziguezagueante das águas
Espanta os transeuntes de chinelo,
Encapa de couro os motoboys
E fecha os vidros dos carros.

Agora, cada gota de novembro

É um espelho, uma oportunidade

De contemplar da janela não bois

Não prédios, não vidas,

Mas nós: centelhas livres

Encarceradas na janela,

A olhar pra dentro de casa.

Encontramos a sujeira dos cantos
E ignoramos, a chuva pede paz.
Detectamos na falta de energia
Provocada pela energia dos raios
Objetos inúteis que reinventaremos:
Os violões e flautas esquecidos
Terão física racional e humanidade.

Quando caiu a noite

Caiu em nós o mesmo caos

Da chuva que ainda caía.

Já são poucos os prédios daqui

e eles mesmos já não subiam.

Apenas postes de LED novíssimos,

os velhos piscas dos natais

rasgam a lógica da cegueira

da chuva muita que descia.

Perderemos estradas, pontes,

cavalos e plantações despreparadas.

Em alguns bares,

bêbados bicarão mais uma pinga do alambique,

Cientes que a chuva

é sempre bom pretexto

Para uma estrada mal gerida

E o gesto a denunciar o gosto,

A gastura do beber a pinga.

Mais uma…

Digestos estamos enfim

Presos em nossos temporais diversos

e nossos dejetos foram levados

pelo desejo sem viés do velho Turvão.

Já fazemos muito caso da luz que faltou

Que o violão não consegue iluminar,

Visto que a mão cega, trasteja os acordes,

Acode o olho a tatear
O mundo e seus trejeitos não palpáveis.
Mas quando o mais ridículo dos gestos
Ganha atos e ares de vergonha

O zunir das chuvas no zinco

Se esvai.

Ficam os olhos

Bobos de fato.

Rimos sem saber

Se a sombra do vazio em breu

Não era melhor que o farol dos nossos tetos

a revelar os nossos textos.

E mesmo que a chuva volte a zunir
Somos agora uma tripulação em choque.
Nossas velas estão frouxas de vendaval
Cessaremos os rumos, clamando
Às nuvens censuradas
Que galguem seus caminhos.

Ficaram os trastes da chuva

Empoçados no asfalto.

Neblina igual à do dia

em que visitamos o cemitério,

compramos pão na padaria

e partimos para o luto no lar.

Já estamos cansados demais

para voltarmos à janela.

Ficaremos aqui.

Dormiremos.

Estaremos enfim,

Nós,

Eu e eu,

Atados,

Esquecidos

Se caía, se corria…

Esquecidos da direção.

Ervália 24.01.2020

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MAIS UM ANO

Querido irmão, a proximidade da data crucial de sua morte moveu-me a mão, há muito endurecida, para escrever estas linhas. Que não sei se dirigidas a você ou se falam diretamente a mim, incentivando-me a escrever de novo, a forçar os dedos enrijecidos a encontrarem as teclas fugitivas do computador.

Seis anos… em plena pandemia, sem um abraço, sem a presença de um riso. Sobreviver num limbo como se também já tivéssemos morrido. E sem você.

Desculpa, irmão, esta choradeira inútil, infantil, do Bibi que acompanhava o Julião nas suas peraltices… Somos salvos apenas pela lembrança, já é alguma coisa. Onde estiveres pede por nós!

Beijos do mano, Ivo.

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Sabem os meus leitores que estou com grande dificuldade de datilografar e, por isso, há muito não escrevo nem posto nada aqui. Mas hoje recebi um belo ensaio sobre a minha poesia, produzido supreendentemente por um jovem conterrâneo meu (de Ervália), que me deixou em tal estado de euforia, que pensei logo em voltar à Gaveta, em escrever alguma coisa. Acabei, pela já dita dificuldade de datilografar (erro tudo, tento corrigir, acabo desistindo) por transcrever aqui o belo artigo desse jovem (incrível tal conhecimento crítico em tão pouca idade) CRISTIANO EVANGELISTA DURÃES, sobre quem espero dar aos leitores informações assim que as tiver. Leiam e vejam o quanto ele soube penetrar no labirinto daquele poema que me saiu num instante de profunda angústia. Abraços por ora, vou tentar escrever mais.  


Caro Ivo, 

Mando notícias do Rio Turvão. Está envolto em pedras ali jogadas para conter as enchentes. Não há mais meninos a nadar em sua lama, mas quase todos os dias alguém joga uma pedra, ou um graveto, uma sacola de lixo em nossa baba diluída para ver como se comporta o Turvão com o choque. O rio sentiu o sabor dos tratores que o alargaram e ele já começa a assumir a forma de uma vala de concreto, sem as curvas nos bambuzais e a erosão natural de suas margens, como um rastro na terra feito por um pedaço de pau. Ainda assim, entre tantos dejetos, há de sempre encontrar algum poema a deitar seus sonhos sobre o rio que carrega nossas essências intestinais, sociais, sistêmicas, e por fim, sentimentais, diluídas que estão ali as nossas lágrimas.

Entrei em contato com o Milton Rezende, que me mandou seu email há algum tempo atrás. Acredito até que ele chegou a comentar com você a meu respeito, que eu entraria em contato. Acabei demorando, por insegurança talvez. Muitas e muitas vezes escrevi e excluí o texto que hoje te envio, receoso pelo tom audacioso e sem rédeas que emprestei às palavras. De lá para cá tentei escrever uma análise à altura do seu Papel & Chão, presente no livro “Nau dos Náufragos”. 

 Já não há em mim palavra para tentar decifrar esse teu poema. Nesse movimento de escreve – apaga, tenho por certo que não consigo firmar pés em barro algum. Então, de antemão, peço perdão pela longa exposição hermética nas análises. Ainda tenho muito caminho a trilhar nas boas e belas letras. Li-te como poeta que sou, como amante das palavras. Escrevo-te com a audácia de crer em mim. Ao encontrar ali os trejeitos do nosso rio, da nossa gente, não pude deixar de deitar e rolar nessa lama, engrossada pelas nossas lágrimas, nós.

Estive nos últimos meses buscando um texto que pudesse esgotar o teu Papel & Chão, obra prima que exerce sobre mim a força de um coice em um menino. Estive agarrado ao seu livro, o Nau dos Náufragos, dia após dia no último ano. Lia à janela os versos do Papel & Chão, e quando pude contei aos poucos amigos interessados em literatura sobre o poema, sobre a delicada tarefa de esconder tantos estremeções, tantas dúvidas, tanto sujeito nesses [l]rios em que estamos. O plural é ajustado: é o velho Turvão a matéria prima da imagem pintada nesse poema, mas são múltiplos os “cursos d’água” que o texto evoca. A memória, a saudade, o diálogo, a experimentação e a musicalidade; sentimento e reflexão como objetos palpáveis a clarear as curvas que guiam as águas do teu rio na busca pelo mar, a tentar esconder nas palavras o culpa, descabida antes mesmo do poema.

Embalei-me a princípio com as palavras esparsas a preencher com vazio a folha. Como as eufônicas entradas dos Nocturnes de Chopin a dar seus primeiros estalos em nosso coração, as palavras de Papel & Chão chegavam lentamente, tocando-me o rosto. A mancha gráfica me parece dar tom, compasso e tempo para a sonata forma, com todo o rigor que lhe é próprio, motivo pelo chamaremos as partes do texto de “Movimentos”. Se posso descrever o ato, eu já não lia as palavras. Antes, uma voz que não a minha falava sobre os Turvões que se arrastam em mim.  Então, à medida que a leitura fluía as palavras aconteciam em mim, de tal maneira que nunca pude me debruçar sobre uma análise fria e acadêmica desses versos, ausente do sentir e do viver esse poema, essa cidade, esse Turvão e essa mesma matéria-prima dos versos teus. 

Seria ao mesmo tempo cômodo e trabalhoso limitar os olhos à caça dos labores estéticos traçados em Papel & Chão, caro Ivo. Cômodo pela infinidade de exemplos de aliterações, assonâncias, rimas, neologismos e inversões que os manuais literários e estilísticos nos induzem a perceber, e que compõem o arsenal estético do seu longo poema. Trabalhoso pela imensa complexidade que é definir precisamente as teias que ligam esses elementos entre si, encontrar as funçõesque esses artifícios cumprem na plástica do texto. Seria fácil reduzi-los ao estatuto de prova cabal do pensamento esteta que jorrou do seu “parto”. Mas, não. Não é o que buscamos.

Devo ressaltar a laboriosa tarefa que cumpre o Papel & Chão, a de homenagear o centenário do bardo ancestral e sua grandeza. Eu, ainda aquém da leitura do Babel e Sião, presumi encontrar uma daquelas homenagens de ouro, coroas de flores douradas e palavras de sublimação. Ao ler, me deparei com um Camões desnudo, despido de toda a goma flavescente que o envolve. Vestia suas roupas pretas de gola engraçada; eu podia ver o Camões na Gruta de Macau, tal qual Metrass nos faz ver, a meio rosto, feições sisudas e o olhar de quem desconcerta o mundo. Sim, estava vestido. Deixaste desnudo o grande Camões sem lhe tirar as roupas. Babel e Sião não foi refeito ou vertido a outro tempo. Papel & Chão ousa; revisita o desconcerto do mundo, ainda que dessa vez o mundo desconstruído, desconcertado, não aparente ser esse em que pisamos, este mundo de rios e terras e céus, mas aquele mundo que involuntariamente se constrói dentro de nós, com moinhos e anfiteatros a reger-nos mão e pensamento.

Camões na gruta de Macau, Francisco Augusto Metrass, 1853, óleo sobre tela

A perspectiva trazida nos versos decanta a saudade que sentia do Herval em seus tempos de barquinhos de papel a navegar meios-fios. Vejo no Turvão a estampa de um Rio Ivo em sua nascente e em seu desaguar barroso, turvo, íntimo, permeado pelos medos e pela injusta comparação entre o antes ausente e o agora nausente. A sensação de viver o vazio do arder de Babel não é como algo que dói assim tão solitariamente: a dor leva consigo o vazio da resignação. E tal nulidade, no conforto de “Sião” torna-se mais que um incômodo, uma vontade “de devolver vulcão o que tens dentro”. 

A inversão dos valores entre Babel e Sião (cidades da representação bíblica do bem e do mal, do divino e do profano e tantas outras contraposições) ativa outros sentidos à distância que o assolava. Não estavas como o povo de David a chorar as lembranças de Sião por entre os rios da Babilônia. Conquistara a terra prometida, o desejo de deitar e rolar nas terras de cultura, comer o pão e beber o vinho da pulsante intelectualidade do continente europeu. Ainda assim, como um laço invisível que o ligasse não ao Rio Turvão ou ao barro natal, mas ao menino e o embornal, algo clamava a vivência de sonhos e vontades que tinhas na poesia que manava em Babel e que de ti fora arrancada na conquista de Sião. O exílio em que padecia não era sobre os verdes campos do Herval, o rio a lamber os barrotes nos quintais, as ruas de pedra fincada e a gente de fala turva feita o rio, sentada na praça. O exílio cutucava por dentro, sem falar de serras, montanhas ou terras de cultura. A distância entre o que buscavas e o que já tinhas estava a esfacelar a sensação exata do que eras ou não eras. Poeta que és, sabias que não haveria de ter qualquer artifício maior e melhor do que um bom poema para medir essências. Nele sabemos que mudamos e que o mundo já aspira outros sonhos e vontades, ou que a inércia já nos corrompeu e que a estética de nossa ética já se desgastou e por isso já não fazemos mais questão de estarmos certos. Deixamo-nos apenas seguir.   

Eu, particularmente, nunca vi o mar. Pouco saí de Ervália e de Minas Gerais. Apenas na literatura pude experimentar o mundo em amplitudes. Mas ainda me arrisco a depor aqui palavras a respeito do exílio, imagem tão amplamente navegada nos mares e desertos desde o princípio dos tempos. Talvez por isso ela esteja a nos dar tantos estremeções estéticos, movendo-nos como pedaços de terra; ilhas que andam pelo mundo a carregar seus ossos e carnes sem poder esquecer do barro em que foram moldadas. E muitas vezes, nessa angústia de não poderem se comunicar com os mesmos olhos e corações quando andam nas ruas, os dotados desse gênio intruso das letras nos deram noções de dores e sabores tantos, tão diversos, tão escavados em si que já não podia ser apenas a distância entre uma perna e outra o motivo. Muitos textos de exílio são sítios arqueológicos de sociedades das quais já não queremos saber, ou nunca quisemos. Papel & Chão o é. Muitos exílios são as pompas e outras loas daquela palavra viajante que adotamos, tão famosa para os ditos amantes do nosso luso idioma: a SaudadePapel & Chão o é. Muitos exílios são como aquelas canções em língua estranha das quais não sabemos a letra, mas sentimos erroneamente seus caminhos. Os acometidos por esse exílio escutam as advertências do mar, mas ignoram-na. Normalmente escutam tanto a si, que quando falam não conseguem se esconder nas bússolas e astrolábios: suas direções estão todas voltadas para si. Isso, contrariado o Papel & Chão é. Nesse ar contrariado é que o poema analisa a textura exata do ser e do estar nas terras de cultura, feito um imperador que se arruina pelo vazio da conquista de um deserto. 

Pude notar as vozes, os ecos que pelas tuas vozes repetiam em outros tempos. Além do Camões e do Salmo Bíblico reescrito em Babel e Sião, podemos encontrar outros diálogos, poemas que paralelos ao teu falaram do Rio Turvão, dos cursos intrincados da poesia e da literatura, ou até de grandezas e pequenezas e tantas outras discussões que o Papel & Chão pode desencadear. Cito a exemplo disso os versos de Paulo Toledo, intitulados “Meu Rio Turvão”, em que a saudosa invocação do Turvão contrasta em profundidade e temática do mesmo Turvão que corre no Papel & Chão. Nos versos de Toledo chega-se a comparar o pequeno ribeirão ervalense com o Jordão, dando ao velho Turvão ares de coisa sagrada. A tendência “bairrista” desses versos configura-se não da simples exaltação das possíveis belezas do rio e sua importância, mas também de um sentimento de “amar apesar de”. Os versos circulam elementos que demonstram a fragilidade, a pequenez do Rio Turvão, que é grande em termos de significado e potencial imaginativo pessoal.

Sua água tão verde 

Vagarosamente vai 

Sem barranco 

Sem peixe 

Vai sempre turvar

 Qual turvos caminhos 

A cidade sempre a lavar 

Descendo sempre calado 

Contigo a sujeira vai 

Em ti Turvão ninguém morre 

Também nunca morreu 

Tu vens de cima da “Matinha”

 O berço de onde nasceu 

E, passas por toda Ervália 

Em forma de um ribeirão 

Dobra sereno as esquinas 

Como quem nada quer 

Chega calado no “Casca” 

Molha-se da cabeça aos pés 

Sem barranco

 Sem barco 

Sem barro 

Sem nada

 Penso até ser o “Jordão”

 Mas tenho o brio de dizer bem alto 

Que és tu!

 Meu pequeno-grande

E simplório Turvão 

PAULO TOLEDO (Meu Rio Turvão)

Paralelamente, vejamos:

Embora a aproximação entre os dois na descrição e na atribuição de valores significativos ao velho Turvão “apesar de”, um paralelo (ou um pequeno contraste temático) deve ser pontuado. A tua saudade não é “bairrista”, pelo simples fato de o Rio Turvão ser uma espécie de falso tema central, embora condutor das águas barrentas nas quais o poema se desenvolve. O Rio fala de saudades, da culpa do exílio, fala de viver poeticamente tal culpa, entender a voluntariedade desse desassossego. É a metáfora viva para aquilo que corre dentro do teu lirismo, em termos de reminiscência, representação de sentimentos, anseios, questionamentos. Daí a sagacidade dos dizeres de Eduardo Portella sobre o “exilado forçado”, ao afirmar que “a culpa se dissolve na eficácia da autocrítica”.

Esses versos do Mestre Caeiro, assim vistos em tom de literatura comparada, é um ponto de encontro para a leitura do Papel & Chão. Ao dizer pequenices do rio de sua aldeia contrapostas às grandezas do Tejo e ainda assim afirmar que o Tejo não é mais belo que o rio que corre por sua aldeia, por não ser o rio que corre em sua aldeia, o eu lírico nos mostra, com a singeleza da repetição dos termos, da contrastante descrição de grandezas e pequenices, a potência que carrega a memória e a identidade, que ultrapassa com simplicidade as distâncias e grandezas. É o amor não circunstancial, ou aquele em que as circunstâncias estão ligadas a valores outros, que não as grandezas nem a imponência. Por que cantamos e amamos essa pequena porção de água barrenta a correr atrás dos nossos quintais? Porque corre por trás de nossos quintais e carrega nossos olhos todos os dias quando passamos pela ponte da prefeitura. Cantamos e amamos o Turvão porque ele, como nós, estamos fincados aqui nesse pequeno chão das Gerais, ainda que não mais pisemos nessa terra vermelha. 

Afirmo: a simples ativação de imagens, culturas, palavras, estéticas,não representa por si só os múltiplos faróis acesos em sua obra. Para tal efeito, em algum sentido de dar totalidade à leitura, podemos dizer que o conceito mais próximo aqui  é a memória. Aspecto basilar da nossa literatura mineira, ela atua nos versos com tons de figuras desbotadas, infância envolta numa lubrina que o tempo presente insiste em manter. Um poema jamais reviverá um momento. A história é incapaz de reproduzir a memória viva, como nos diz Pierre Nora. Mais do que um problema para os historiadores, a poesia e suas quintessências também sofrem com a incapacidade de materializar sentimentos reais, apesar do discurso da ficcionalidade e da subjetividade do suposto eu-lírico. As memórias do Papel & Chão representam não somente uma saudade: é uma gênese para o Ivo que escrevia naquele instante. O menino e o peixe são, respectivamente, poeta e poesia buscando seu bojo, algo de concreto que tenha dado aos rumos do distante Ivo não somente um “porque” para ser quem é, mas também um “como”.

 Se há algo que deve ser dito é que uma leitura de sua obra não deve buscar somente um diálogo a ser feito ou a projeção de sentimentos catafóricos a serem diluídos: Drummond disse que a poesia aconteceria em você, quando assim fosse necessário ou possível. E, com o risco de dizê-lo, para mim Papel & Chão é a realização máxima da poesia de Ivo Barroso, a medula do fazer literário, do seu jeito de ler e escrever a si. Um labor cedido ao emaranhado de sensações e sentimentos do visível e palpável ato à “pedante” e complexa reflexão do que é a vida, o erotismo da poesia, o delírio concretista nas curvas do poema-rio e na esfera fonética das palavras, a neologização, a preocupada e constante busca por uma definição precisa do que é fazer e viver a literatura. Tudo isso aí está, e escorre em outros poemas originais e traduções às quais emprestas o gênio de tuas mãos.

O que há de descoberta ou constatação nessa busca é a naturalidade da poesia. Nada mais simples que isso e por isso nada tão potente: escrevemos o que sentimos? E se sentimos, quando escrevemos, era o que sentíamos? Sentimos o que escrevemos, ainda que tenhamos escrito aquelas sensações jamais sentidas antes da escrita? A obrigação, a intensa epifania de escrever mais e diariamente, a suposta obrigatoriedade do poeta em publicar livros coloca a poesia em correntes?  Essas são perguntas que o poema não responde. Não responde por estar experimentando na sua caça lexical um meio termo entre o Apolo das correntes e o Dionísio das correntezas. Não responde por saber que, da visita mental e inspirada ao velho patrimônio no dia de finados não escorre poética se não há os grilhões da técnica, que por sua vez nunca será capaz de descrever sozinha em que estradas andam os nossos delíricos lírios, a que tantas andavam o nosso pensamento preso em liberdade.

Todas essas reflexões me tomam de assalto no último verso do Movimento I. Ele antecede tematicamente toda a discussão do Movimento II do poema, que carrega explicitamente a reflexão quanto à experiência de escrita que surgia naquele momento. Suas nuances, suas dúvidas, os pensamentos de um poema que gestou por anos e anos até o seu parto (aparentemente doloroso, é claro) em atos, palavras e estéticas de 10 anos espremidas em um poema, devolvidas em um estouro, um grito vulcânico. Não nos esqueçamos, aliás, que os vulcões permanecem eras na violência das erupções sem jorrar uma gota do que há dentro. A “constância dos astros” que a gestação do poema me ensina a ler é o entendimento da literatura como expressão máxima, embora lenta e incompleta, do que somos, da potência das infinitas leituras que terão os que lêem aquilo que escrevemos, os laboriosos critérios com os quais a[na]lisamos e lambemos nossa cria. O resultado, não uma pepita ciscada no teclado a palpitar uma pequena problemática, mas sim a compreensão da língua morta ou fictícia que chamamos poesia.

Caio, por fim, na enorme pedância que julgava ser capaz de evitar: a estética, o labor dos teus joguetes lexicais, morfológicos; a tua fome em buscar amplitudes para as palavras através de seus sistemas fônicos, as irrupções do estilo. Mas, aproveitando do espaço não acadêmico que ocupo neste texto, tomo a liberdade e audácia de tentar imaginar suas mãos a teclar furiosas, correspondendo à fúria que roía de dentro. O movimento III desta sonata se alinha ao que ocorre no meio das composições de Maurice Ravel, especialmente em Gaspard de la Nuit,  em que os movimentos do piano dançam em sentidos estranhos ao andamento mais constante da música, mas que compõem os mais ímpios traços das mãos e olhos de Ravel em suas construções. A insistência estética nas aliterações e assonâncias correspondem ao campo harmônico do seu poema. Em idas e vindas, todo o poema se estrutura não em decassílabos ou sextetos, não esquemas rítmicos marcados pela rima no final do verso, mas na constância do diálogo entre fonemas e ideias que permeiam todo o texto.

A primeira e falsa impressão que nos toma, no movimento III, é de que perdeste o fio da meada, que ficaram as iluminações Rimbaudnianas acesas a todo o tempo no poema, de tal modo que não podemos enxergar os contornos da ideia que tecias. Mas a atenção nos carrega para outros lados: a tua poesia é simbólica. Todas são, claro está. Mas a tua túrgica tara nas relações inter lexicais carrega quadros em que as sensações pintam versos que nunca desligam entre si, mesmo que à primeira vista algumas relações não pareçam possíveis. Além da profusão dos sons, é importante atentar-se à economia dos teus versos, às vezes com palavras esparsas, mas dotadas de sentidos tantos que todo um poema não seria capaz de delinear.

Como não ver ou ouvir nos “b’s” e “l’s” e “p’s” desses versos o movimento do rio a correr em suas curvas? Indo além, como não escutar o burburinho manso a dizer bobagens, besteiras, brancas e birutas projeções, pitorescas patifarias, latifundiárias solidões alastradas? E a hermética dessa análise é ajustada: o sujeito que escuta os ribombos da água e suas aliterações não é apenas o poeta que lembra, mas a figura do menino que já não está em seu tempo de meninice: é antes um adulto no lugar das infâncias, ponderando novos sentidos ao que antes via e ouvia nas margens do Turvão. É um Turvão impuro, denso e turvo, acometido pelo tempo e pelo delírio do crescimento dos homens. Os sons que dançam na cabeça do adulto frente ao rio da infância é o barulho da memória, em seu conceito mais ímpio e livre de academicismos. 

A memória ainda se configura além das imagens e vozes da repetição fônica: a mancha gráfica do poema desenha a imagem lembrada do rio, corroendo as montanhas entre as quais corre. As curvas, que também cumprem função fônica ao aproximar sons à nossa vista, delineiam o poema tornando uma imagem do Turvão necessária para dar vazão aos sentimentos. E esse, ao meu ver, é outro trunfo da escrita de Papel & Chão: a mancha gráfica perde seu sentido único de diagramação estética, ela constrói pontes para que nossos olhos pronunciem os rimbombos e burburinhos do rio em alto e bom tom, variando a velocidade e a intensidade, igual aos rios correndo entre remansos e corredeiras. 

Enchente no Rio Turvão – Foto de João Antonino da Costa “Mudinho”

Eis que as delícias da experimentação são tomadas num sobressalto pelo retorno à discussão primeira. A mancha gráfica do poema, tal como o conteúdo, reconfiguram a retomada ao tema central da Sonata. A ruptura, responsável pela progressão, pelo acionamento de imagens e sentidos tantos para os sentimentos descritos é submetida à retomada, à continuidade da ideia primeira. Eis o maior ato de musicalidade, de assídua adaptação da sonata forma; Eis o movimento IV, estranho caminho para o desaguar do poema. Com precisão e agudeza, traz aglutinados em versos curtos a visão do velho Turvão e seus taboais, a lira enfim deposta sobre as erupções que aturdem o poeta, a precisão dos termos, os tiros certeiros e as irrupções estéticas.

Subvertidas pela intensidade das reflexões ao longo do poema, as mesmas imagens carregam sentidos outros e trazem tons de conclusão. Já não estão desbotados os quadros nos quais encontramos os rios (Turvão e Ivo), uma vez que falam daquele agora em que a poesia se consumia, enquanto a própria reflexão sobre si calçava sua última pedra para os caminhos que tomaria dali em diante. É aquele instante em que o poeta é tomado pelo parto, e já amamenta o poema com olhar de coisa feita, vida gerada. 

Por isso: 

Aqui poderíamos cometer o erro de enxergar nos versos apenas a crítica ao tratamento para com o rio, hoje reduzido aos fundos dos quintais, entre pneus e outros dejetos. Seria, nessa leitura rasa, uma míope visão saudosa, em que negamos toda e qualquer mudança daquilo que nos formou como pessoas; os primeiros professores de fugas. Mas não, já não é o menino, nem o velho Herval que se debruça sobre o rio. É o próprio Papel & Chão que está em cheque, e junto dele o poeta. Ao lançar olhares para dentro buscando na memória os rios da infância, só encontra o salitre da mudança, a constatação de que já não estamos indiferentes à sujeira que carregamos. Embora os elfos, falenas, alfenins e ninféias da lembrança do rio-mar ervoso rasgando arrozais e infâncias, hoje a lembrança é a aceitação do que o sujeito lírico é, atravessada pela impossibilidade de reviver as memórias que ainda persistiram.

al distância, tal desassossego com a ausência injustificável do poeta frente às coisas que canta carrega por fim a autocrítica ao exílio voluntário. A ausência não é do barro natal metido na memória, nem do homem que deita e rola nos pães e vinhos das terras de cultura. É o silêncio poético, a lira que canta coisas tão sem curso, tão foscas e inanimadas, que já renegas o canto, já preferes no vazio das memórias depor a cediça lira. É o exílio sem distâncias, em que o objeto da saudade divide espaço com a realidade que o aflige, coisas de dentro do homem. 

“Penduramos as nossas harpas (…) pois (ou por que) os que nos levaram cativos nos pediam canções.” 

Judeus no Cativeiro Babilônico (Salmo 137) – Johann Heinrich Ferdinand Olivier, óleo sobre tela

Enfim, num último ato de desacato à reflexão (o poeta tem sempre de desacatar a lógica que ele mesmo encontra) o sujeito retoma sua lira, deposta sobre todas as loas que compõem a memória da infância e a pressentida sensação do agora: a distância, o pertencimento, a autocrítica literária, a gestação dos versos, o parto doído e a consciência da dor e sua face que facilmente se confunde às de todos os homens. Pois bem, deposto todo jato de lava a corroer a lógica dos atos poéticos de Papel & Chão, resta o apelo. Que o feto ali nascido cresça, progrida em sua função. Que fira! Que a poesia siga a encontrar percalços. Que a memória se desbote e que os rios estejam entregues às privadas e latrinas do povo, desde que cumpra seu papel, desde que fira, desde que toque, desde que faça sangrar nos olhos algum sentido inteiramente novo para a visão de um simples rio. O importante, no entanto, é que a força dos poemas escondidos nos livros seja capaz de romper com seus próprios cursos pré-definidos como fazem os rios, ferir normalidades, arrancar dos olhos gritos e vozes que a boca calou. 

Que fira!

Cristiano Durães Evangelista

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