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Archive for março \30\-03:00 2012

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     Os leitores brasileiros já conheciam a obra de Robert Louis Stevenson pelo menos desde os anos ´30, quando traduções incompletas e adaptações livres de “A ilha do tesouro” andaram rolando por aqui. O mesmo aconteceu em seguida com  “The strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde”, rebatizado entre nós de “O médico e o monstro” – ambos responsáveis pela etiqueta apressada e simplificadora de que Stevenson era apenas um autor de histórias de aventuras marinhas e de contos de pavor e mistério. O genuíno texto de Stevenson, a quem Henry James considerava um dos maiores estilistas da língua inglesa, só começou a ser divulgado a partir de 1933, quando Monteiro Lobato, à testa da Companhia Editora Nacional, encomendou ao seu parceiro Godofredo Rangel a tradução de “The Suicide Club” (“O  Clube dos Suicidas”) e a Agripino Grieco o “Kidnapped”, que ganhou entre nós o título de “O Raptado”.
A visão destorcida do significado das obras de Stevenson persistiu não obstante a publicação integral e esporádica de algumas de suas obras mais importantes, fossem de ficção ou de ensaística, mas eis que agora nos chega uma edição criteriosa e seletiva de seus contos e novelas com este “O Clube do Suicídio”, da CosacNaify, organizada e apresentada por Davi Arrigucci Jr., em elogiável tradução (traduzir Stevenson não é tarefa para amadores) de Andréa Rocha. O lançamento vem enriquecido com dois ensaios definitivos sobre o autor, o clássico de Henry James, e a famosa aula ministrada na Universidade de Cornell pelo venerando Vladimir Nabokov, nos anos ´40.

A seleção começa com os três contos sequenciais de “O Clube do Suicídio”: A história do rapaz das tortas de creme, A história do médico e do baú de Saratoga, e A aventura da carruagem de aluguel, em que os personagens do príncipe Florival e do coronel Geraldine, e de seu arquiinimigo T. Godall,  passam de uma para outra, numa série denominada “New Arabian Nights” (em que Stevenson adota a técnica do suspense seguido de continuação, inspirada na cadeia de “As mil e uma noites”). Em cada um desses contos, a extrema virtuosidade estilística do autor nos vai cada vez mais preparando para um clímax que não se verifica, invertendo o procedimento das narrativas do gênero, de modo que a expectativa do que vai acontecer se torna mais importante do que o acontecimento em si, e o expediente de fazer com que esses personagens figurem em várias histórias  sequenciais transforma a série de contos num verdadeiro romance de fôlego mais amplo.

A “O clube do suicídio” seguem-se as novelas “O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde” e “Markheim”, e mais os contos “O demônio da garrafa”, “O ladrão de cadáveres” e “O vestíbulo”. Embora nenhuma dessas peças literárias seja rigorosamente inédita em português, a nova apresentação fornece ao leitor a oportunidade de compará-las no conjunto, apreciar as várias  sutilezas estilísticas do autor e sua incrível espontaneidade dialogal – formando um painel do que melhor e mais expressivamente pessoal foi produzido por Stevenson.

Por ser a menos conhecida – em sua forma original – vamos nos deter na apreciação do icástico Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Em sua aula de literatura inglesa na Faculdade de Cornell, Vladimir Nabokov inicia sua preleção pedindo aos alunos que “apaguem, desaprendam, joguem no lixo” qualquer noção que se possa ter de que este Jekyll & Hyde “seja uma espécie de história ou filme de mistério ou de detetive” – embora não deixe de ser, de forma alguma, um arquétipo do gênero, hoje massificado em padrões de nenhuma expectativa ou mestria estilística. Essa falsa noção adveio principalmente das grandiosas adaptações cinematográficas do conto, feitas, em 1931, por Rouben Mamoulian, com Fredric March (Oscar de melhor ator), e dez anos depois, por Victor Fleming, com Spencer Tracy, no principal papel. Tais versões transformaram a análise do conflito de dupla personalidade e da antítese bem-mal  — que são o cerne da narrativa de Stevenson — numa história linear que, do original, guarda apenas a transformação de Jekyll em Hyde pela ingestão de uma droga experimental, imaginada pelo médico, passível de separar as partes antagônicas da alma humana. As simplificações e acréscimos cinematográficos advieram de não ter sido o texto original de Stevenson (1886) a fonte para a transposição, e sim a dramatização do romance feita em 1897 por Luella Forepaugh e George Fish, que introduziram na trama novos personagens como a noiva de Jekyll (Beatrix)  e o pai desta, sir Charles Emery, e os apresenta como pessoas religiosas,  frequentadoras da igreja, além de ter inventado uma amante para Hyde, a bela e masoquista Ivy Peterson, que aparece com este nome em ambas versões.  Ora, como argutamente observa Nabokov, não há no texto de Stevenson nenhuma referência a qualquer tipo de relacionamento amoroso tanto da parte do médico quanto de Mr. Hyde . E, com ironia, o crítico Stephen Gwynn acrescenta que todos os personagens da história de Stevenson são monógamos, inclusive o mordomo Poole, que tem uma atuação nada insignificante na trama. Daí a insinuação de que os “prazeres” de Jekyll/Hyde, que o autor deixa sem descrição, possam ter ainda outra índole, não se tratando apenas de agressões e homicídios, mas de práticas sexuais condenadas como crime na então sociedade vitoriana. Ou, nas palavras de Nabokov: “Hyde é caracterizado como ‘protegido e benfeitor’ de Jekyll, mas causa espécie a implicação de outro epíteto a ele aplicado, o de ‘favorito’ do doutor, o que soa quase como ‘amante’”. Ou seja: alegoricamente, Jekyll não se “transforma” em Hyde, mas na verdade  é “possuído” por ele. Tudo não passa de uma hipótese; é bem possível que o componente mórbido dos prazeres de Hyde seja apenas o sadismo.

Neste e em outros contos — como em “Markheim”, em que trata do surgimento do “sósia” ou da concomitância da dupla personalidade – a mestria estilística de Stevenson transparece nesses subtons, nesses descaminhos em que a narrativa não é feita por um autor onividente, mas urdida com fragmentos de observadores subsidiários à cena. Aqui a ação ambiental é toda desenvolvida por seus amigos, Utterson, Lanyon e Enfield, e só se completa com a carta-confissão de Jekyll, comunicando haver cometido suicídio para se libertar de Hyde. E Stevenson termina com a grande pitada de sal ático: Jekyll descobre que a poção transformadora só fazia efeito porque a substância nela utilizada era “impura”, e, como as novas remessas  já vinham refinadas, só lhe resta uma pequena dose da antiga, que vai utilizar para incorporar Hyde e destruí-lo com o suicídio.

Stevenson exime-se de descrever a fisionomia de Hyde, informando apenas que ela é “odiosa”, mas deixa claro que o rosto de Jekyll se modifica ao ingerir a droga. Parece estranho que algo semelhante lhe tenha ocorrido em seus últimos momentos de vida. Nascido em Edimburgo, na Escócia, em 1850, Stevenson sofria de tuberculose desde pequeno e se deslocava com frequência em busca de melhores climas para a sua enfermidade. Fez uma longa viagem pela Europa continental, esteve internado num sanatório em Davos, na Suíça, casou-se em São Francisco, em 1880, com uma norte-americana, e, em 1889, depois de aventurar-se pelos arquipélagos do sul do Pacífico, estabeleceu-se definitivamente em Apia, ao norte de Upolu, a segunda maior das ilhas Samoa. Ali, no  dia 3 de setembro de 1894. ao tomar um gole de Borgonha,  seu vinho preferido, sentiu que seu rosto se transformava e gritou para a mulher: “Que coisa estranha está me acontecendo? Sinto que meu rosto está mudando” – e caiu morto no chão, fulminado por um derrame cerebral.

(Publicado em Prosa & Verso de O Globo em 01.10.2011 com o título O melhor de um mestre)

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     Jean-Auguste Dominique Ingres (1780-1867), ou simplesmente Ingres (diz-se “engre”), discípulo de David, foi um dos maiores pintores franceses do séc. XIX; deixou telas até hoje muito admiradas como o retrato de Napoleão entronizado e a Odalisca, de exuberante nudez, que estão expostas no Louvre. Mas, não satisfeito com seus dotes de artista plástico, tinha a mania de dizer que se realizava mais no violino, instrumento que aliás tocava com grande habilidade. Daí ter-se cunhado em francês a expressão “violon d´Ingres” (o violino de Ingres) para designar não somente a pessoa  versada em duas atividades, mas de preferência alguém que não tem consciência de seu verdadeiro valor. Essa expressão poderia ser adequadamente aplicada a Herman Melville (1810-1891), que depois de escrever a hoje considerada “grande epopéia da literatura  norte-americana”, Moby Dick, abandonou a prosa para se dedicar durante longos anos à composição de poemas, entre os quais  um de 16 mil versos, Clarel, inspirado em suas antigas viagens à Terra Santa. E esse seu “violon” continua até hoje intocável até mesmo por seus analistas mais minuciosos, embora sempre apareça um Robert Penn Warren capaz de tentar sua improvável reabilitação. 

     É verdade que essa mudança de instrumento de expressão se deveu ao declínio da popularidade de Melville, adquirida inicialmente com seus relatos de aventuras marítimas (Typee, que foi best seller, e Omoo), mas que veio a se empanar depois que ele enveredou pelas narrativas de cunho mais introspectivo (Mardi, Pierre e Confidence-man), as quais culminariam no complexo aventureiro-filosófico de Moby Dick. Sua estrela havia descido a tal perigeu que Melville, quase inteiramente esquecido, veio a falecer em 1891 sem recuperar sua notoriedade e nem imaginar o ápice literário em que esta obra o colocaria a partir de seu “revival” em princípios do século XX.

     Se Moby Dick sempre nos serve de prevenção contra as tentativas poéticas desafinadas de Clarel, por outro lado sua grandiosidade veio de certa forma ofuscar outro importante aspecto literário da obra de Melville: seus contos e novelas. Os leitores mais adictos já conheciam, em português, “O Homem do Para-raios”, “O Terraço” e “A História de Town Ho”, mas com esta edição da Arte & Letra, de Curitiba, “O Violinista e outras histórias”, cinco narrativas breves, além daquelas, chegam agora ao mercado, numa excelente tradução de Lúcia Helena de Seixas Brito, para bem atestar a qualidade inigualável da prosa melvilliana. 

     Nestes contos de impressionante sabor moderno, o leitor reconhece o estilo ora pomposo, ora irônico e satírico, recheado de citações mitológicas e bíblicas, com que Melville arquitetou a saga de sua baleia. Mas não faltam aqui os innuendos psicológicos e comportamentais que levaram autores como Alvin Sandberg a ver, em “O Paraíso dos Solteiros” e “O Inferno das donzelas”, indícios de “um estudo da impotência, o retrato de um homem que se refugia numa infância machista para evitar o confronto com a maturidade sexual”. 

     Outros críticos classificam ainda o comportamento de Melville de autoritário e misógino. No delicioso conto “Eu e minha chaminé”, por exemplo, Melville aproveita a literatura para um acerto de contas com a esposa a propósito de implicâncias dela (ou dele?) em relação a assuntos domésticos. Tendo-se casado com Elizabeth Shaw em 1847, citadina de forte personalidade e de feições altivas, que lhe deu quatro filhos, Melville teve na esposa a contrapartida utilitária de sua vida meio sem rumo. Elizabeth aguentou passar 13 anos numa propriedade rural de Arrowhead, onde Melville tocava o “violon” de fazendeiro, além de cuidar igualmente de sua produção literária. Louvada por sua fidelidade às maluquices do marido, resistiu  aos apelos de seus familiares para se separar dele quando o acusaram de insanidade mental. Desligado de assuntos econômicos, coube sempre a Elizabeth administrar as finanças do casal e dos filhos O conto sugere tratamentos modernos da narrativa, restringindo o desenvolvimento da ação à simples possibilidade de se demolir uma imensa chaminé de lareira. Melville dispõe aqui de todo o seu talento para as descrições minuciosas, embora vez por outra lhe escapem as famosas citações, como no caso de chamar a lareira de Holofernes, numa alusão ao episódio bíblico de Judite. Muitos desses símiles (e são muitos), do tipo Lord Verulan, Blucher chegando ao campo de Waterloo, corno de Jericó, etc.,   podem ser facilmente decodificáveis pelo leitor letrado, mas há alguns que só recorrendo ao livro de Robert L. Gale, Herman Melville Encyclopedia, na edição da Greenwood Publishing Group, de 1995.

     O primeiro conto do livro, “O violinista”, começa com estas palavras que parecem autobiográficas: “Então, meu poema é maldito e a fama imortal não é para mim!” e mostra um personagem fascinado por um desconhecido no qual percebe a marca do gênio. Talvez evoque o seu encontro com Natanhiel Hawthorne, que Melville conheceu em Arrowhead, e a quem dedicou Moby Dick.  Em “O Homem dos Para-Raios” entramos seguramente no clima Edgar Allan Poe com um visitante misterioso numa noite de tempestade, que como o Corvo se obstina em não sair do lugar em que se encontra. Contudo, se Melville tem aqui a oportunidade de criticar as crendices de seu tempo relativas a raios e trovões, o final se banaliza com a expulsão do intruso que lhe quer vender um simples bastão de para-raios. “A Varanda” também trafega por um clima entre fantástico e onírico, uma travessia de mata em direção ao topo da montanha misteriosa, mas termina num diálogo irreal com uma jovem irreal, fruto talvez das fantasias eróticas do autor. O grande desempenho está seguramente em “A Torre do Sino”, com seu personagem cabalístico Bannadonna, onde Melville consegue manipular a atenção do leitor até o fim sem revelar o segredo do arquiteto, numa espécie de antecipação do célebre “A mão do macaco”, de W. W. Jacob, de 1902.

     Traduzir Melville não é tarefa rotineira: requer tarimba para se conseguir adjetivos, verbos, fraseologia à altura de suas intrincâncias estilísticas. Se a tradução de Lúcia Helena de Seixas Brito é de uma adequação quase perfeita, não se compreende o motivo de não se terem feito as conversões de medidas, ficando o leitor comum sem saber a equivalência daqueles pés e polegadas e milhas que estão lá.    

(Publicado em Prosa & Verso, de O Globo, em 23.04.2011)

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CURT MEYER-CLASON (1910-2012)

 

Faleceu no dia 13 de janeiro deste ano, aos 101 anos de idade, o escritor e tradutor alemão Curt Meyer-Clason, em Munique, na Alemanha, onde residia. Foi o responsável, pela divulgação em língua alemã, de importantes obras literárias brasileiras, entre as quais a de João Guimarães Rosa, com quem manteve relevante correspondência, na qual são discutidos pontos nevrálgicos da tradução do texto (Rosa conhecia bem o alemão). Essas cartas foram recolhidas no livro “João Guimarães Rosa – Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason,“ editado pela Nova Fronteira em 2003, verdadeiro prato para os estudiosos da língua..

Inicialmente dedicado ao comércio, estabeleceu-se no Brasil e na Argentina como prospector independente, mas com a eclosão da II guerra teve suas atividades sob suspeita do regime Vargas que o considerou um espião, encarcerando-o por 5 anos na ilha Grande, onde também esteve preso Graciliano Ramos, autor de “Memórias do Cárcere”, em que relata essa experiência. Na espantosa entrevista que concedeu em 2001 à profª Ligia Chiappini, da Universidade Livre de Berlin, e que pode ser lida na Internet, no site www.ich.pucminas.br/cespuc/Revistas_Scripta/Scripta10/Conteudo/N10_Parte02_art01.pdf, Clason afirma que a reclusão na ilha serviu para transformar o homem materialista que era num amante das letras, permitindo-lhe inclusive um convívio íntimo com o idioma do Brasil. Uma lista das inúmeras traduções feitas por ele pode ser igualmente encontrada na internet (pt.wikipedia.org/wiki/Curt_Meyer-Clason – 69k ).

Tive a sorte de me corresponder com ele, que se interessou pelo meu livro “A Caça Virtual e outros poemas” e me mandou várias traduções magníficas que fez dos meus poemas (vide algumas neste blog pondo o nome dele em PESQUISAR). Chegou mesmo a traduzir e a publicar numa revista alemã meu conto “Roteiro Turístico” a que deu o título de Reiseführer. Foi uma honra ser traduzido por ele e guardo com devoção suas cartas amistosas.

PAULO RÓNAI (1907-1992)

Conheci o Prof. Rónai nos anos ´60 na Editora Delta, então na travessa do Ouvidor, 66; eu já trabalhava lá, fazendo parte da editoria de uma enciclopédia infanto-juvenial (Nosso Mundo Maravilhoso), sem qualquer vínculo empregatício com a empresa (como era a maioria dos casos, suponho que até mesmo o dele), quando um dos donos da firma (Pedro Lorch) com quem eu trabalhava diretamente, disse-me que havia indicado meu nome ao Rónai para traduzir um dos livros da Coleção Nobel, que o professor estava preparando para a Delta. Eu sabia que Rónai convocara os maiores medalhões literários da época para essas traduções (como por ex. Carlos Drummond de Andrade) e grandes tradutores de nome (como por ex. Jamil Almansur Haddad) e foi com grande desconfiança que fui até seu gabinete, em outro andar. Rónai certamente não tinha ficado satisfeito com a indicação feita por um dos chefões, o que lhe poderia ter parecido uma espécie de imposição. Nossa conversa foi curta: falou-me que o Pedro Lorch lhe tinha pedido que me desse um dos livros da Coleção para traduzir, mas que no momento ele já havia escolhido praticamente todos os tradutores das cerca de 40 obras; contudo, restava na prateleira um livro que já fora recusado por alguns por se tratar de um romance semibiográfico, escrito em prosa meio rimada num francês do século XIX: o Colas Breugnon, de Romain Rolland. Pediu-me que, à guisa de avaliação, eu traduzisse o capítulo VIII, A morte da velha. Isto foi no princípio de uma semana e me deu todo um mês de prazo para o teste. Fiquei abismado quando, em casa, li o texto: havia trocadilhos, refrões, xingamentos, tudo em prosa rítmica e quase sempre rimada; além de tudo, como se tratava de um carpinteiro, o vocabulário concreto (substantivos) estava eivado de termos que não tinham correspondentes diretos no Brasil ou que eram totalmente desconhecidos para mim: vale dizer, requeriam horas de pesquisa, numa época em que não havia o computador. Suei e sofri em cima do capítulo a semana inteira e levei-o datilografado ao Rónai na sexta. Ele estava subindo para seu sítio “Pois é” em Friburgo e ia levar minha tradução para ler com calma. Senti-me desde o momento reprovado; achei mesmo que ele tinha escolhido o livro de propósito para se livrar de mim. Seria fácil, diante do meu fracasso tradutório, dizer ao patrão que eu, ainda muito jovem, não estava à altura dos demais tradutores. Mas Rónai foi muito legal comigo; na segunda mandou chamar-me e me cumprimentou pela tradução, entregando-me a incumbência de fazer o livro inteiro. Fiquei eufórico pois iria receber pelo trabalho uma quantia régia para a época em termos de pagamento de tradução literária. Quando entreguei o trabalho completo, algum tempo depois, ele me perguntou como eu havia resolvido a problema dos termos específicos de carpintaria e eu lhe revelei que me socorrera de velhos dicionários bilíngues portugueses e de um profissional do ramo, ligado à família. Satisfeito com meu empenho, Rónai logo me deu um segundo livro da Coleção para traduzir: a poesia de Erik-Axel Karfeldt, poeta nacional sueco, e me entregou os originais. Disse-lhe que eu não sabia uma palavra de sueco, mas ele argumentou que o livro serviria para eu me familiarizar com a estrutura dos poemas, e podia me valer de uma tradução francesa (que me deu) para estabelecer o texto. Também este consegui fazer a contento do Mestre. (A ironia é que, anos depois, fui morar na Suécia, onde fiquei 5 anos, e então pude cotejar minha tradução com o original.) Como trabalhávamos em andares diferentes e também em horários diversos, quase nunca o encontrava, mas sempre que nos víamos no elevador ou nas escadas, ele me cumprimentava com a educada cordialidade que sempre o caracterizou, mas com evidente simpatia. Poucos anos depois, fui para a Europa e passei ausente do Brasil cerca de 25 anos. Nunca mais o vi. Mas não posso me esquecer de sua fisionomia, que, sempre contida, soube demonstrar um sinal de alegria, quando me disse que minha tradução estava muito boa e que eu fora aprovado para colaborar na Coleção Nobel. Daí meu eterno reconhecimento.

MOREIRA CAMPOS (1914-1994)

Em 1957 fui a Fortaleza assistir ao casamento de meu tio Pedro Pimentel com uma jovem de lá. Amante das letras, autor de excelentes sonetos e autodidata de redação escorreita, ele era inspetor do Lloyd Brasileiro e tinha ido à capital cearense fazer um relatório sobre as atividades portuárias da região, o que lhe consumiu vários meses de trabalho e lhe permitiu fazer algumas amizades entre os intelectuais da terra, além naturalmente de vir a conhecer a Stella com quem se casou..

Quando cheguei a Fortaleza, tio Pedro fez questão de me apresentar a um escritor de quem ficara amigo e com quem se comprazia em palestras literárias. Foi assim que cheguei à casa de Moreira Campos, num domingo, onde o encontrei em pleno lazer, depois do almoço. Moreira estava comodamente vestido como competia ao lugar e à ocasião, de roupa clara e sandálias de couro, e me convidou a ficar à vontade, a tirar o paletó e aproveitar a deliciosa brisa marinha que começava a soprar com educada suavidade. Bebemos uma água de coco e começamos a falar de livros. Moreira tinha acabado de editar um livro de contos, Portas fechadas, e logo me deu um exemplar autografado. Eu estava em dia com o que se publicava no Rio e São Paulo e lhe falei de livros com títulos semelhantes, algo mais antigos, de 1944, o Fronteira Agreste, de Ivan Pedro Martins, e o Porteira fechada, de Ciro Martins. Moreira adiantou-me que seu livro era urbano e procurava fugir ao regionalismo então na moda, embora abdicasse igualmente das experimentações léxicas, que lhe pareciam um tanto artificiais.

Trouxe o livro comigo e comecei a lê-lo já na viagem de volta e quando cheguei ao Rio estava convicto de que havia conhecido um grande e autêntico escritor e que seu livro merecia divulgação aqui no Sul do país. Nessa época eu havia escrito uma resenha de crítica literária para o jornal comunista O Semanário sobre a poesia de Afonso Félix de Souza, que me valeu o convite para escrever outras. A seguinte (e creio, também última) foi sobre Portas Fechadas, de Moreira Campos, que eu saudava como um grande escritor nordestino cuja escrita precisava romper as fronteiras nordestinas e chegar aos leitores do eixo Rio-São Paulo. Agora procurei nos meus caóticos guardados mas não encontrei o recorte. Estou certo de que foi a primeira vez que o nome de Moreira Campos, que logo iria se tornar o grande Moreira Campos, apareceu na imprensa sulista. Como enviei a ele um exemplar do jornal, é possível que ainda reste essa inexpressiva lembrança em meio ao seu espólio que muito se enriqueceu com suas obras posteriores.

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