Os leitores brasileiros já conheciam a obra de Robert Louis Stevenson pelo menos desde os anos ´30, quando traduções incompletas e adaptações livres de “A ilha do tesouro” andaram rolando por aqui. O mesmo aconteceu em seguida com “The strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde”, rebatizado entre nós de “O médico e o monstro” – ambos responsáveis pela etiqueta apressada e simplificadora de que Stevenson era apenas um autor de histórias de aventuras marinhas e de contos de pavor e mistério. O genuíno texto de Stevenson, a quem Henry James considerava um dos maiores estilistas da língua inglesa, só começou a ser divulgado a partir de 1933, quando Monteiro Lobato, à testa da Companhia Editora Nacional, encomendou ao seu parceiro Godofredo Rangel a tradução de “The Suicide Club” (“O Clube dos Suicidas”) e a Agripino Grieco o “Kidnapped”, que ganhou entre nós o título de “O Raptado”.
A visão destorcida do significado das obras de Stevenson persistiu não obstante a publicação integral e esporádica de algumas de suas obras mais importantes, fossem de ficção ou de ensaística, mas eis que agora nos chega uma edição criteriosa e seletiva de seus contos e novelas com este “O Clube do Suicídio”, da CosacNaify, organizada e apresentada por Davi Arrigucci Jr., em elogiável tradução (traduzir Stevenson não é tarefa para amadores) de Andréa Rocha. O lançamento vem enriquecido com dois ensaios definitivos sobre o autor, o clássico de Henry James, e a famosa aula ministrada na Universidade de Cornell pelo venerando Vladimir Nabokov, nos anos ´40.
A seleção começa com os três contos sequenciais de “O Clube do Suicídio”: A história do rapaz das tortas de creme, A história do médico e do baú de Saratoga, e A aventura da carruagem de aluguel, em que os personagens do príncipe Florival e do coronel Geraldine, e de seu arquiinimigo T. Godall, passam de uma para outra, numa série denominada “New Arabian Nights” (em que Stevenson adota a técnica do suspense seguido de continuação, inspirada na cadeia de “As mil e uma noites”). Em cada um desses contos, a extrema virtuosidade estilística do autor nos vai cada vez mais preparando para um clímax que não se verifica, invertendo o procedimento das narrativas do gênero, de modo que a expectativa do que vai acontecer se torna mais importante do que o acontecimento em si, e o expediente de fazer com que esses personagens figurem em várias histórias sequenciais transforma a série de contos num verdadeiro romance de fôlego mais amplo.
A “O clube do suicídio” seguem-se as novelas “O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde” e “Markheim”, e mais os contos “O demônio da garrafa”, “O ladrão de cadáveres” e “O vestíbulo”. Embora nenhuma dessas peças literárias seja rigorosamente inédita em português, a nova apresentação fornece ao leitor a oportunidade de compará-las no conjunto, apreciar as várias sutilezas estilísticas do autor e sua incrível espontaneidade dialogal – formando um painel do que melhor e mais expressivamente pessoal foi produzido por Stevenson.
Por ser a menos conhecida – em sua forma original – vamos nos deter na apreciação do icástico Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Em sua aula de literatura inglesa na Faculdade de Cornell, Vladimir Nabokov inicia sua preleção pedindo aos alunos que “apaguem, desaprendam, joguem no lixo” qualquer noção que se possa ter de que este Jekyll & Hyde “seja uma espécie de história ou filme de mistério ou de detetive” – embora não deixe de ser, de forma alguma, um arquétipo do gênero, hoje massificado em padrões de nenhuma expectativa ou mestria estilística. Essa falsa noção adveio principalmente das grandiosas adaptações cinematográficas do conto, feitas, em 1931, por Rouben Mamoulian, com Fredric March (Oscar de melhor ator), e dez anos depois, por Victor Fleming, com Spencer Tracy, no principal papel. Tais versões transformaram a análise do conflito de dupla personalidade e da antítese bem-mal — que são o cerne da narrativa de Stevenson — numa história linear que, do original, guarda apenas a transformação de Jekyll em Hyde pela ingestão de uma droga experimental, imaginada pelo médico, passível de separar as partes antagônicas da alma humana. As simplificações e acréscimos cinematográficos advieram de não ter sido o texto original de Stevenson (1886) a fonte para a transposição, e sim a dramatização do romance feita em 1897 por Luella Forepaugh e George Fish, que introduziram na trama novos personagens como a noiva de Jekyll (Beatrix) e o pai desta, sir Charles Emery, e os apresenta como pessoas religiosas, frequentadoras da igreja, além de ter inventado uma amante para Hyde, a bela e masoquista Ivy Peterson, que aparece com este nome em ambas versões. Ora, como argutamente observa Nabokov, não há no texto de Stevenson nenhuma referência a qualquer tipo de relacionamento amoroso tanto da parte do médico quanto de Mr. Hyde . E, com ironia, o crítico Stephen Gwynn acrescenta que todos os personagens da história de Stevenson são monógamos, inclusive o mordomo Poole, que tem uma atuação nada insignificante na trama. Daí a insinuação de que os “prazeres” de Jekyll/Hyde, que o autor deixa sem descrição, possam ter ainda outra índole, não se tratando apenas de agressões e homicídios, mas de práticas sexuais condenadas como crime na então sociedade vitoriana. Ou, nas palavras de Nabokov: “Hyde é caracterizado como ‘protegido e benfeitor’ de Jekyll, mas causa espécie a implicação de outro epíteto a ele aplicado, o de ‘favorito’ do doutor, o que soa quase como ‘amante’”. Ou seja: alegoricamente, Jekyll não se “transforma” em Hyde, mas na verdade é “possuído” por ele. Tudo não passa de uma hipótese; é bem possível que o componente mórbido dos prazeres de Hyde seja apenas o sadismo.
Neste e em outros contos — como em “Markheim”, em que trata do surgimento do “sósia” ou da concomitância da dupla personalidade – a mestria estilística de Stevenson transparece nesses subtons, nesses descaminhos em que a narrativa não é feita por um autor onividente, mas urdida com fragmentos de observadores subsidiários à cena. Aqui a ação ambiental é toda desenvolvida por seus amigos, Utterson, Lanyon e Enfield, e só se completa com a carta-confissão de Jekyll, comunicando haver cometido suicídio para se libertar de Hyde. E Stevenson termina com a grande pitada de sal ático: Jekyll descobre que a poção transformadora só fazia efeito porque a substância nela utilizada era “impura”, e, como as novas remessas já vinham refinadas, só lhe resta uma pequena dose da antiga, que vai utilizar para incorporar Hyde e destruí-lo com o suicídio.
Stevenson exime-se de descrever a fisionomia de Hyde, informando apenas que ela é “odiosa”, mas deixa claro que o rosto de Jekyll se modifica ao ingerir a droga. Parece estranho que algo semelhante lhe tenha ocorrido em seus últimos momentos de vida. Nascido em Edimburgo, na Escócia, em 1850, Stevenson sofria de tuberculose desde pequeno e se deslocava com frequência em busca de melhores climas para a sua enfermidade. Fez uma longa viagem pela Europa continental, esteve internado num sanatório em Davos, na Suíça, casou-se em São Francisco, em 1880, com uma norte-americana, e, em 1889, depois de aventurar-se pelos arquipélagos do sul do Pacífico, estabeleceu-se definitivamente em Apia, ao norte de Upolu, a segunda maior das ilhas Samoa. Ali, no dia 3 de setembro de 1894. ao tomar um gole de Borgonha, seu vinho preferido, sentiu que seu rosto se transformava e gritou para a mulher: “Que coisa estranha está me acontecendo? Sinto que meu rosto está mudando” – e caiu morto no chão, fulminado por um derrame cerebral.
(Publicado em Prosa & Verso de O Globo em 01.10.2011 com o título O melhor de um mestre)