
MEUS EVENTUAIS LEITORES certamente estariam esperando alguma novidade nesta volta das “férias”; algo assim como a caça ao Pokémon, mas vão acabar se deparando aqui – pasmem! – com uma pesquisa literária arqueológica, equivalente a uma visita extemporânea ao Bedengó. [ Há de ser mesmo possível que nunca tenham ouvido falar nesse tal de Bedengó. Esclareço: trata-se do meteorito brasileiro encontrado em 1784 nas margens do riacho Bedengó, em pleno sertão baiano, pelo menino Bernardino da Mota Monteiro. A retirada do pedregulho (que pesa 5.360 quilos) de seu sítio original e seu translado para o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, onde se encontra hoje, é uma história que vale a pena ser conhecida tendo em vista seus lances aventureiros. Não vou contá-la aqui, pois temos velharias demais pela frente, mas aconselho os leitores a pesquisá-la no Google, pois é muito interessante].
Mas voltemos à volta. Encontrei ao acaso na estante um pálido exemplar de “A Ceia dos Cardeais” (48ª edição, 239 a 242 milhares, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1962), velharia digna de museu, merecidamente esquecida pelos leitores atuais. Trata-se da peça teatral em versos, em apenas um ato, escrita para três atores e encenada em Portugal em 1902, cuja cena se passa em Roma, durante o pontificado de Bento XIV (séc. XVIII): numa sala de jantar do Vaticano, três cardeais (um português, um espanhol e um francês) conversam enquanto ceiam, as falas se transformando em longos monólogos, interrompidos aqui e ali por alguma frase de apoio ou de louvor. O autor da peça era o então famosíssimo poligrafo português Júlio Dantas (1876-1962), que além de poeta, escritor, crítico literário e médico de renome circulava também como diplomata, tendo sido inclusive embaixador no Brasil em 1949. A fama de Dantas era tal que uma palavra sua consagrava definitivamente um autor, como foi aliás o caso do nosso Menotti del Picchia, cujo poema “Juca Mulato”, uma vez prefaciado por Dantas, tornou-se de imediato uma inquestionável obra-prima da poesia brasileira. (O tempo altera em muito nossa visão das coisas, mas confesso que, em jovem, sempre achei o livro admirável, e sabia de cor muitos de seus belos poemas). Como sempre acontece, a auréola do sucesso de Dantas desencadeou contra ele uma onda de protestos vinda dos intelectuais da revista Orfeu (Pessoa & Cia.), culminando no chamado “Manifesto Anti-Dantas”, assinado pelo poeta José de Almada Negreiros. A reação deveu-se ao sucesso de uma peça teatral de Dantas, “Sóror Maria Alcoforado”, que havia estreado com enorme sucesso em 1915. O manifesto acusava Dantas de representante-mor da mediocridade portuguesa, um balão vazio para quem tudo eram aplausos e favores, enquanto os “verdadeiros intelectuais” da revista Orfeu, símbolo do que havia de mais avançado no país, sofriam as maiores dificuldades para publicar seus escritos e defender suas ideias.

Mas deixemos a tertúlia de lado e vamos ao jantar dos cardeais. Depois de algumas frases sobre suas respectivas funções (em belos versos alexandrinos), talvez alvorotados pelo vinho do Reno e o xerez servidos com o faisão, os três resolvem se entregar a confidências sobre o momento sentimental de suas vidas. O primeiro a falar é Rufo (o cardeal espanhol), meio quixotesco e loquaz, que conta as aventuras do tempo em que era espadachim galante:
Nem pode calcular sequer, Vossa Eminência,
Como o meu buço loiro irradiava insolência!
Não matei em duelo o Sol, pelas alturas,
Só para não deixar Salamanca às escuras!
Apaixonando-se por uma artista ambulante, ouve um grupo de rapazes dizer que pretendem raptá-la após o espetáculo. Rufo toma as dores da atriz e duela contra trinta ou quarenta estudantes, enquanto a cômica escapa em sua “cadeirinha”.
Não. Nunca mais a vi.
Foi por isso que a amei – porque não a possuí.
O cardeal francês, de Montmorency, atalha dizendo que, em seu caso, teria seguido a cadeirinha e
E ao atingi-la, então, curvaria o joelho,
Tiraria o chapéu em grande estilo velho,
E prostrando-me junto à portinha doirada,
De corpo ajoelhado e de alma ajoelhada,
Diria. num olhar cheio de sonhos loucos:
“Senhora, perdoai bater-me…com tão poucos!”
Os dois passam a disputar sobre a excelência do amor considerado entre a ação imediata e o longo processo verbal da conquista, quando de repente reparam o ar pensativo de Gonzaga, o cardeal português, e lhe perguntam:
Em que pensa, Cardeal?
E Gonzaga:
Em como é diferente o amor em Portugal!
Nem a frase sutil, nem o duelo sangrento…
É o amor coração, é o amor sentimento.
E conta que, em seus dias de rapazito, amou uma priminha com quem pretendia casar-se:
Era feia, talvez, mas Deus achou-a linda…
E, numa noite, a minha alma, a minha luz morreu!
Deus, se ma quis tirar, por que foi que ma deu?
………………………………………………………………………….
Afinal,
Foi esse anjo, ao morrer, que me fez cardeal.
E os dois concluem em uníssono:
Foi ele, de nós três, o único que amou.
(CAI O PANO, LENTAMENTE)
Piegas, simplório, sentimentalóide, não? dirá o leitor de hoje, a quem estou revelando essas arqueologias literárias. Mas o público da época não só consagrou a peça editada mas igualmente sua representação, traduzida e encenada em toda a Europa e no Brasil. Recordo-me de ter assistido aqui a uma performance, lá pelos anos ’50, com Procópio Ferreira, Paulo Gracindo e Sérgio Cardoso nos papéis, sucesso de imediato levado à televisão.
Mas há quem se divertiu ainda mais com ela. Manuel Bastos Tigre (1882-1957) era uma espécie de êmulo de Júlio Dantas no Brasil: jornalista, poeta, compositor, teatrólogo, publicitário, humorista, além de engenheiro e bibliotecário, assinava suas críticas mordazes com o pseudônimo de D. Xiquote, com o qual escreveu uma paródia da peça, em versos, denominando-a muito brasileiramente de “A Ceia dos Coronéis”. [As paródias são feitas em geral “em cima” de obra literária, conhecida, e imitando, com intenção burlesca ou satírica, a estrutura e o estilo do original]. Bastos Tigre põe em cena três coronéis, ou seja, no linguajar da época (anos ’20), três grandes chefes políticos de currais eleitorais (Rio, São Paulo e Nordeste). Esses figurões autoritários costumavam ter “casas montadas” (amantes) no Rio de Janeiro, que era então o centro do poder executivo. Conhecidos pela fartura com que tratavam seus eleitores, deram azo à expressão “bancar o coronel”, que servia para designar o figurão escandalosamente explorado pelos seus apaniguados (principalmente as amantes), sem com isso reclamar. Os “coronéis” de Bastos Tigre chamam-se Gonzaga, Rufino e Moreira, e foram interpretados na prèmiere de 1925 pelos atores Átila de Morais, Jaime Costa e Procópio Ferreira. Os três estão encarando, à moda da casa, um suculento leitão regado a pinga, falam sobre política, mas acabam sucumbindo às confidências sentimentais. Moreira conta seus amores com uma falsa francesa que dele exige cascatas de champanhe e caviar, sem nada dar em troca. Rufino refuta que, com ele, a coisa seria diferente e conta a sua história que acaba sendo igualmente uma exploração da pretendida “vítima”. Eis que notam a perplexidade de Gonzaga e lhe perguntam em que está pensando. E ele
Em como é diferente o amor em Cascadura!
Nem gigolô de luxo e nem briga, ou distúrbios…
Ai, como sabe amar a gente dos subúrbios!
Gonzaga, ao contar sua história, revela ter conhecido um casal e, cobiçando apossar-se da mulher, arranja para o marido dela um emprego… na Bahia. Monta-lhe uma casa no subúrbio, mas de repente o chalé fica atulhado com a parentela da moça, culminando com o retorno do marido, que “não se dera bem com o clima da Bahia”. Perguntado em como terminou a história, Gonzaga confessa que até hoje aquela gente toda vive à sua custa. No que os amigos concordam:
De certo! O “coronel” completo e comm’ il faut,
Ele foi, de nós três, o que melhor bancou!
(PANO)
Aí está, leitor, a velharia que lhe quis trazer, um meteorito literário duramente arrastado para estas páginas. Você sabe agora de que se trata. Fica dispensado da leitura, mas garanto-lhe que nada perderá se a fizer: os versos de Dantas são bonitos, os de Bastos Tigre, engraçados. Será como uma visita ao museu da Quinta para ver o Bedengó.
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