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Archive for the ‘Artigo’ Category

Meu caro amigo José Carlos Teixeira reclama com frequência que não tenho escrito nada na Gaveta. É verdade: um desânimo cruel, uma inapetência, a própria dificuldade em escrever com a mão meio torta, tudo e mais a pandemia tem me impedido de compartilhar meus textos com os leitores como fazia antes. E teve a gentileza – para me avivar a memória ou despertar-me o ânimo — de me enviar uma coleção de traduções que andei fazendo no passado a seu pedido. Era quase um desafio. Ele me mandava um texto em língua estrangeira e eu corria para lhe devolver o que seria a sua tradução. Quase sempre apressada e mambembe, mas às vezes acertava e me dava não só a satisfação de atender o amigo. mas também a sensação de que a máquina cerebral ainda estava em forma. Neste momento de escassez intelectual só me resta compartilhá-las com meus leitores, com aqueles que queiram matar as saudades de meus escritos.

Gabriela Mistral
El niño solo
A Sara Hübner

Como escuchase un llanto, me paré en el repecho
y me acerqué a la puerta del rancho del camino.
Un niño de ojos dulces me miró desde el lecho
¡y una ternura inmensa me embriagó como un vino!

La madre se tardó, curvada en el barbecho;
el niño, al despertar, buscó el pezón de rosa
y rompió en llanto… Yo lo estreché contra el pecho,
y una canción de cuna me subió, temblorosa.

Por la ventana abierta la luna nos miraba.
El niño ya dormía, y la canción bañaba,
como otro resplandor, mi pecho enriquecido.

Y cuando la mujer, trémula, abrió la puerta,
me vería en el rostro tanta ventura cierta
¡que me dejó el infante en los brazos dormido!


O BEBÊ SÓ
Gabriela Mistral
Trad. de Ivo Baroso

Como escutasse um choro, detive-me a despeito
E me acerquei da porta do rancho do caminho.
Um bebé de olhos doces olhou-me de seu leito
E uma ternura imensa me embriagou como um vinho!

Tardara a mãe, curvada a trabalhar no eito;
a criança ao despertar, buscou-lhe o seio rosa
e se pôs a chorar… Tomei-a junto ao peito,
e a canção de ninar me ocorreu, temerosa.

Pela janela aberta a lua nos olhava.
A criança já dormia, e a cantiga banhava,
como outro resplendor, meu peito enriquecido.

Quando chega a mulher e abre a porta, insegura,
viu decerto em meu rosto luzir tanta ventura
que deixou a criança em meus braços dormindo!


Adieu Haiti
Compositor(es): Raphael Feat. Toots
Trad. de Ivo Barroso

Je marche dans les rues
Caminho pelas ruas
Le Bon Dieu dans ma poche
Com o bom Deus no bolso
Je marche dans la grande ville
Caminho pela cidade
Et je n’ai plus froid
E não tenho mais frio
La terre est mon amie
A terra é minha amiga
Et souvent je dors dessus
E durmo muitas vezes sobre ela
Et je m’ennuie de mon pays
E me aborreço com meu país
Qui était si petit
Por ser tão pequeno

Adieu mon petit pays
Adeus, meu pequeno país
Adieu ma famille
Adeus minha família
Adieu mon île ô Haïti, adieu ma petite terre
Adeus minha ilha ó Haiti, adeus minha terrinha

I remember my country
Lembro de meu país
Down Memory Lane
Pelas veredas da memória
The wind is my best friend
O vento é o meu melhor amigo
It always blows for me
Sempre sopra a meu favor
Neons in the distance
Letreiros à distância
Dear as daylight
Caros como a luz do dia
Sometimes I think that I’m not of this world
Às vezes penso que não sou deste mundo
I remember this song

Lembro esta canção
O farewell my country
De adeus ao meu país
My caribean island in the sun
Minha ilha caribenha ao sol
O farewell Haïti
Ó adeus Haiti
The sun I just can´t see
O sol que eu não consigo ver

Adieu mon petit pays
Adieu ma famille
Adieu mon île ô Haïti, adieu ma petite terre (repete o de cima)

Je me souviens des rues
Lembro-me das ruas
Et des nuits de Port-au-Prince
E das noites de Port-au-Prince
Et je suis toujours un étranger
E continuo sendo um estrangeiro
A la gare internationale
No saguão internacional
Le vent nous emportait
O vento nos levava
Aussi loin qu’il pouvait
Ao mais longe que podia
Cet air je le connais
Esse ar eu o conheço (etc. como acima)
I say farewell my country
Digo adeus ao meu país
My carribean island in the sun
O farewell Haïti

http://vagalume.uol.com.br/raphael/adieu-haiti.html



LIBRE TE QUIERO
Poema de Agustín García Calvo
Música e Interpretação de Amancio Prada
Trad. Ivo Barroso

“Libre te quiero”, Agustín García Calvo

Libre te quiero

Libre te quiero,
como arroyo que brinca
de peña en peña.
Pero no mía.

Grande te quiero,
como monte preñado
de primavera.
Pero no mía.

Buena te quiero,
como pan que no sabe
su masa buena.
Pero no mía.

Alta te quiero,
como chopo que en el cielo
se despereza.
Pero no mía.

Blanca te quiero,
como flor de azahares
sobre la tierra.
Pero no mía.

Pero no mía

ni de Dios ni de nadie
ni tuya siquiera.

http://ramondeaguilar.blogia.com/2013/032801-libre-te-quiero-agust-n-garc-a-calvo-.php


Quero-te livre
Trad. de Ivo Barroso

Quero-te livre
Como o regato que brinca
De fraga em fraga
Porém não minha.

Quero-te grande
Qual monte impregnado
De primavera.
Porém não minha

Quero-te boa
Como o pão sem o gosto
De sua boa massa.
Porém não minha.

Quero-te alta
Como o álamo que vai no céu
Se espreguiçando.
Porém não minha.

Quero-te branca
Como a flor da laranjeira
Sobre a terra
Porém não minha.

Sim, nem minha

Nem de Deus, de ninguém mais
Nem de ti mesma.


¡HABLA, QUE LO QUIERE EL NIÑO!
Miguel de Unamuno

¡Habla, que lo quiere el niño!
¡Ya está hablando!

El Hijo del Hombre, el Verbo
encarnado
se hizo Dios en una cuna
con el canto
de la niñez campesina,
canto alado.

¡Habla, que lo quiere el niño!
¡Hable tu papel, mi pájaro!

Háblale al niño que sabe
voz del alto,
La voz que se hace silencio
sobre el fango…
Háblale al niño que vive
en su pecho a Dios criando…

Tú eres la paloma mística,
tú el Santo
Espíritu que hizo el hombre
con sus manos…

Habla a los niños, que el reino
tan soñado
de los cielos es del niño
soberano,
del niño, rey de los sueños,
¡corazón de lo creado!

¡Habla, que lo quiere el niño!
¡Ya está hablando!

http://www.poemaspoetas.com/miguel-de-unamuno/habla-que-lo-quiere-el-nino


FALA, ASSIM QUER O MENINO
Miguel Unamuno
Trad. de Ivo Barroso

Fala, assim quer o menino!
Já está falando!

O Filho do Homem, o Verbo
encarnado
tornou-se Deus num bercinho
com o canto
da meninez campesina,
canto alado.

Fala, assim quer o menino!
Fala o teu papel, ó pássaro!

Fala ao menino que sabe
voz do alto
A voz que se faz silêncio
sobre o lodo…
Fala ao menino que vive
criando Deus em seu peito…

És aquela pomba mística,
tu o Santo
Espírito que fez o homem
com as próprias mãos…

Dize aos meninos que o reino
tão sonhado
dos céus é o deste menino
soberano,
do menino rei dos sonhos,
coração da criatura!

Fala, assim quer o menino!
Já está falando!

http://www.los-poetas.com/k/unam1.htm


Denso, denso
de Miguel de Unamuno

Mira, amigo: cuando libres
al mundo tu pensamiento,
cuida que sea, ante todo,
denso, denso.

Y cuando sueltes la espita
que cierra tu sentimiento,
que en tus cantos éste mane
denso, denso.

Y el vaso en que vino escancies
de tu sentir los anhelos,
de tu pensar los cuidados,
denso, denso.

Mira que es largo el camino
y corto, muy corto, el tiempo:
parar en cada posada
no podemos.

Dinos en pocas palabras,
y sin dejar el sendero,
lo más que decir se pueda,
denso, denso.

Con hebra recia de ritmo,
hebrosos queden tus versos,
sin grasa, con carne prieta,
densos, densos.

http://www.poemaspoetas.com/miguel-de-unamuno/denso-denso


DENSO, DENSO
Miguel de Unamuno
Trad. de Ivo Barroso

Mira, amigo, cuando libres
Atenção, amigo, ao soltares
al mundo tu pensamiento,
teu pensamento para o mundo,
cuida que sea ante todo
trate que seja antes de tudo
               denso, denso.
Denso, denso

Y cuando sueltes la espita
E quando abrires o depósito
que cierra tu sentimiento
que encerra teu sentimento
que en tus cantos éste mane
que ele em teus cantos permaneça
               denso, denso.
Denso, denso

Y el vaso en que nos escancies
Seja o copo em que nos sirvas
de tu sentir los anhelos,
De teu sentir os anelos
de tu pensar los cuidados,
De teu pensar os cuidados
               denso, denso.
Denso, denso.

Mira que es largo el camino
Vê que comprido é o caminho
y corto, muy corto, el tiempo;
E curto, bem curto, o tempo.
parar en cada posada
Parar em cada pousada
               no podemos.
Já não podemos

Dinos en pocas palabras,
Diz-nos em poucas palabras
y sin dejar el sendero,
E sem deixar o sendeiro
lo más que decir se pueda,
O que mais dizer-nos possa
denso, denso.
Denso, denso.

Con la hebra recia del ritmo
Com o fio régio do ritmo
 hebrosos queden tus versos,
Fibrosos sejam teus versos
 sin grasa, con carne prieta,
Sem untos, com carne preta.
              densos, densos.
Densos, densos.


O LOBO DA ESTEPE
Hermann Hesse

Ich Steppenwolf trabe und trabe,
Die Welt liegt voll Schnee,
Vom Birkenbaum flügelt der Rabe,
Aber nirgends ein Hase, nirgends ein Reh!
In die Rehe bin ich so verliebt,
Wenn ich doch eins fände!
Ich nähm’s in die Zähne, in die Hände,
Das ist das Schönste, was es gibt.
Ich wäre der Holden so von Herzen gut,
Fräße mich tief in ihre zärtlichen Keulen,
Tränke mich voll an ihrem hellroten Blut,
Um nachher die ganze Nacht einsam zu heulen.
Sogar mit einem Hasen wär ich zufrieden,
Süß schmeckt sein warmes Fleisch in der Nacht –
Ist denn alles und alles von mir geschieden,
Was das Leben ein wenig heiterer macht?
An meinem Schwanz ist das Haar schon grau,
Auch kann ich gar nimmer deutlich sehen,
Schon vor Jahren starb meine geliebte Frau.
Und nun trab ich und träume von Rehen,
Trabe und träume von Hasen,
Höre den Wind in der Winternacht blasen,
Tränke mit Schnee meine brennende Kehle,
Trage dem Teufel zu meine arme Seele.

http://www.tokado.at/index.html?http://www.tokado.at/hesse_steppenwolf.htm
http://www.tokado.at/index.html?http://www.tokado.at/hesse_steppenwolf.htm


O LOBO DA ESTEPE
Hermann Hesse
Trad. de Ivo Barroso

Eu, o Lobo da Estepe, vago errante
Pelo mundo de neve recoberto;
Um corvo sai de uma árvore, adejante,
Mas não há lebre ou corça aqui por perto!
Ansiando eu vivo de encontrar a corça,
Ah! se pudesse achar alguma um dia!
Tê-la entre os dentes, agarrá-la à força,
Nada mais belo para mim seria.
Havia de tratá-la tão cordial,
De cravar-lhe nas ancas o meu dente,
Beber-lhe o sangue todo, até o final
E uivar na noite solitariamente.
Até mesmo uma lebre hoje me basta!
À noite a carne tenra é preferida.
Porque sempre de mim logo se afasta
Tudo o que torna alegre a nossa vida?
Já meus pelos da cauda estão grisalhos
Nem posso ver mais nítida uma cousa;
Há muito que morreu a minha esposa
E vago e vejo corças nos atalhos,
E sonho e sinto lebres; a ânsia é tanta
Que ouvindo o vento uivar na noite incalma,
Com neve aplaco o fogo da garganta
E entrego ao diabo a minha pobre alma.


¡OH CRISTO!
Amado Nervo

Ya no hay un dolor humano que no sea
mi dolor;
ya ningunos ojos lloran, ya ningún
alma se angustia sin que yo me
angustie y llore;
ya mi corazón es lámpara fiel de
todas las vigilias,
¡oh Cristo!
En vano busco en los hondos
escondrijos de mi ser
para encontrar algún odio: nadie
puede herirme ya sino de piedad y
amor. Todos son yo, yo soy todos,
¡oh Cristo!

¡Qué importan males o bienes! Para mí
todos son bienes.

El rosal no tiene espinas: para mí sólo
da rosas.
¿Rosas de pasión? -¡Qué importa! Rosas
de celeste esencia, purpúreas como
sangre que vertiste por nosotros,
¡oh Cristo!


OH! CRISTO!
Trad. de Ivo Barroso

Já não existe dor humana que não seja
a minha dor;
Já não choram nenhuns olhos, já nenhuma
Alma se angustia sem que eu me angustie
e também chore
Meu coração já é uma lâmpada fiel de
todas as vigílias
Oh! Cristo!
Busco em vão os mais fundos
esconderijos do meu ser
à procura de algum ódio; ninguém
pode ferir-me senão por piedade ou
por amor. Todos são eu e eu sou todos
Oh! Cristo!

Que importam os males ou os bens! Para mim
Tudo são bens

Para mim a roseira não tem espinhos,
apenas rosas
Rosas. Rosas de paixão? Que importa! Rosas
de celestial essência, purpúreas como
o sangue que verteste por nós todos
Oh! Cristo!


TU
Amado Nervo

Señor, Señor, Tú antes, Tú después, Tú en la inmensa
hondura del vacío y en la hondura interior.
Tú en la aurora que canta y en la noche que piensa;
Tú en la flor de los cardos y en los cardos sin flor.

Tú en el cénit a un tiempo y en el nadir;
Tú en todas las transfiguraciones y en todo el padecer;
Tú en la capilla fúnebre, Tú en la noche de bodas;
¡Tú en el beso primero, Tú en el beso postrero!

Tú en los ojos azules y en los ojos oscuros;
Tú en la frivolidad quinceañera y también
en las grandes ternezas de los años maduros;
Tú en la más negra sima, Tú en el más alto edén.

Si la ciencia engreida no te ve, yo te veo;
si sus labios te niegan, yo te proclamaré.
Por cada hombre que duda, mi alma grita: “Yo creo”
¡y con cada fe muerta, se agiganta mi fe!

http://www.motivaciones.org/MOTIV004/ctosetuamadonervo.htm
http://m.espanol.christianpost.com/news/amado-nervo-quiza-el-mejor-poeta-latinoamericano-10272/

TU
Amado Nervo

Trad. de Ivo Barroso

Senhor, Senhor, Tu antes, Tu depois, Tu na imensa
Fundura do vazio e na fundura interior;
Tu na aurora que canta e na noite que pensa, 
Tu nas flores dos cardos e nos cardos sem flor.

Tu no zênite a um tempo e no nadir; Tu em todas
As transfigurações, na dor e no desejo; 
Tu na capela fúnebre e na noite de bodas;
Tu no beijo primeiro e Tu no último beijo.

Tu nos olhos azuis e nas pupilas escuras;
Tu na frivolidade juvenil e também    
Nas ternuras sublimes das idades maduras; 
Tu no mais negro abismo e no mais alto além.

Se a ciência não Te vê, o meu olhar te fita;
Se seus lábios te negam, meu lábio Te decanta.  
Ante a dúvida mais a minha alma acredita 
E com cada fé morta, minha fé se agiganta!

http://www.electricscotland.com/burns/hearth.html


Música Andalusí “La fuente del amor secreto”

Cese en su aflicción y se regocije
aquel que conozca las penas de mi corazón,
pues mi sufrimiento ha llegado a su fin.

Ya no hay sitio en mi corazón para la tristeza:
He alcanzado la Unión que era mi objetivo.

Alabo al Señor del Cielo, me prosterno hacia la qibla
y digo: ¡Hoy he sido aceptado!

Estaba sepultado en el sueño de la distracción,
pero he aquí que he despertado a la Alegría.
¿Quién temerá las palabras del envidioso o del espía?


(Sidi Qaddur l-‘Alami)
“La fuente del amor secreto”

Cese en su aflicción y se regocije
Cesse sua aflição e que se alegre
aquel que conozca las penas de mi corazón,
quem conhece as penas de meu coração
pues mi sufrimiento ha llegado a su fin.
Pois meu pensamento chegou agora ao fim.
Ya no hay sitio en mi corazón para la tristeza:
Já não há lugar em meu coração para a tristeza
alcanzado la Unión que era mi objetivo.
Tendo alcaçado a União que era o meu objetivo
Alabo al Señor del Cielo, me prosterno hacia la qibla
y digo: ¡Hoy he sido aceptado!
Lovo o Senhor dos Céus e me ajoelho diante da qibla (*)
E digo: Hojee u fui aceito!
Estava sepultado no sonho e na distração
Mas eis que agora me desperto para a Alegria.
Quem há de temer as palavras do invejoso ou do espia?
Estaba sepultado en el sueño de la distracción,
pero he aquí que he despertado a la Alegría.
¿Quién temerá las palabras del envidioso o del espía

(*) (ponto que marca a distancia em que alguém está em relação à Kaaba) 
(Sidi Qaddur l-‘Alami)


O poema é um trecho (estrofe 5) do longo poema “As Viúvas dos mortos e as viúvas do vivos (Pra Havana)”. Aí vai: 

5

Este vaise i aquel vaise
E todos, todos se van,
Galicia, sin homes quedas
Que te poidan traballar.
Tés, en cambio, orfos e orfas
E campos de soledad,
E nais que non teñen fillos
E fillos que non tén pais.
E tés corazóns que sufren
Longas ausencias mortás,
Viudas de vivos e mortos
Que ninguén consolará.

Este se vai e aquele se vai,
E todos, todos se vão,
Galiza, sem homens ficas
Que te possam trabalhar.
Tens, em compensação, órfãos e órfãs
E campos de solidão,
E mães que não têm filhos
E filhos que não têm pais.
E tens corações que sofrem
Longas ausências mortais,
Viúvas de vivos e mortos
Que ninguém consolará. 

(tradução literal de Andityas Soares de Moura em Rosalía de Castro – A rosa dos claustros – edição bilíngüe da Crisálida – BH – www.crisalida.com.br)

Ivo Barroso


Nana Mouskouri – Le temps qui’l nous reste

Le  Temps qu’il  nous reste
O tempo que nos resta
Composição: Dalmazio Masini; Nicola di Bari e Piero Pintucci.

Quelle importance le temps qu’il nous reste
Como é importante o tempo que nos resta
Nous aurons la chance de vieillir ensemble
Teremos a c hance de envelhecer juntos
Au fond de tes yeux vivra ma tendresse
No fundo de teus olhos viverá minha ternura
Au fond de mon cœur vivra ta jeunesse
No fundo de meu coração viverá tua juventude

Comme une prière du temps de l’enfance
Como uma prece dos tempos de infância
Ces mots sur tes lèvres me donnent confiance
Estas palavras em teus lábios me dão confiança
Je nous imagine ta main dans la mienne
Imagino nós dois, tua mão na minha
Nos moindres sourires voudront dire je t’aime
Nossos menores sorrisos significarão que te amo

Mais l’un de nous s’en ira le premier
M as um de nós há de ir-se primeiro
Il fermera ses yeux à jamais
Fechando os olhos para sempre
Dans un tout dernier sourire
Num derradeiro sorriso

Et l’autre en perdant la moitié de sa vie
E o outro, perdendo metade de sua vida,
Restera chaque jour dans la nuit
Ficará cada dia na noite
Son cœur bien sûr battra mais pour qui mais pourquoi
Seu coração certamente baterá, mas para quem, mas para quê ?

Ton pas résonne la porte s’entrouvre
Teu passo ressoa na porta entreaberta
Mon cœur bat plus vite et je te retrouve
Meu coração bate mais rápido e te reencontro
Quand nos mains se tiennent j’oublie tout le reste
Quando estamos de mãos dadas me esqueço de tudo mais
J’ai l’impression même que le temps s’arrête
Tenho mesmo a impressão de que o tempo parou

Mais l’un de nous s’en ira le premier
Mas um de nós há de ir-se primeiro
Il fermera ses yeux à jamais
Fechando os olhos para sempre
Dans un tout dernier sourire
Num derradeiro sorriso

Un jour l’un de nous sera trop fatigué
Um dia um de nós estará cansado demais
S’en ira presque heureux le premier
E será o primeiro a ir-se quase feliz
Et l’autre s’en tarder viendra le retrouver
E o outro sem tardar virá reencontrá-lo
Je nous imagine ta main dans la mienne
Imagino nós dois, tua mão na minha
Nos moindres sourires voudront dire je t’aime
Nossos menores sorrisos significarão que te amo


SYLVIA PLATH
Um poema de SYLVIA PLATH
traduzido por I. Barroso

I Am Vertical

But I would rather be horizontal.
I am not a tree with my root in the soil
Sucking up minerals and motherly love
So that each March I may gleam into leaf,
Nor am I the beauty of a garden bed
Attracting my share of Ahs and spectacularly painted,
Unknowing I must soon unpetal.
Compared with me, a tree is immortal
And a flower-head not tall, but more startling,
And I want the one’s longevity and the other’s daring.

Tonight, in the infinitesimal light of the stars,
The trees and the flowers have been strewing their cool odors.
I walk among them, but none of them are noticing.
Sometimes I think that when I am sleeping
I must most perfectly resemble them–
Thoughts gone dim.
It is more natural to me, lying down.
Then the sky and I are in open conversation,
And I shall be useful when I lie down finally:
Then the trees may touch me for once, and the flowers have time for me.

EU SOU VERTICAL

Gostaria de ser horizontal.
Não sou árvore com raízes no solo
Sugando os minerais e o amor da natureza
Para em cada maio reluzir-me em folhas.
Nem sou como os encantos de um canteiro
Atraindo um quinhão de Ahs! com minhas flores
Sem saber que em breve estarei despetalada.
Comparada comigo, a árvore é imortal
E o canteiro não me sendo mais alto, é mais surpreendente,
E quisera desta a longevidade e daquele a insolência.

Hoje, diante da luz infinitesimal das estrelas,
As árvores e flores destilam seus frescos odores
E caminho entre elas, sem me notarem.
Às vezes penso que, quando estou dormindo,
É quando de fato mais me pareço com elas.
Os pensamentos se esvoaçam.
Para mim é mais natural estar deitada
Quando o céu e eu entramos em conversa franca
E me sentirei útil quando estiver estendida para sempre:
Então as árvores poderão tocar-me, e as flores terão seu tempo para mim. 


The Eagle soars in the summit of Heaven
T. S. Eliot

The Eagle soars in the summit of Heaven.
The Hunter with his dogs pursues his circuit.
O perpetual revolution of configured stars,
O perpetual recurrence of determined seasons,
O world of spring and autumn, birth and dying!
The endless cycle of idea and action,
Endless invention, endless experiment,
Brings knowledge of motion, but not of stillness;
Knowledge of speech, but not of silence;
Knowledge of words, but not of the Word.
All our knowledge brings us nearer to our ignorance,
All our ignorance brings us nearer to death,
But nearness to death no nearer to God.
Where is the Life we have lost in living?
Where is the wisdom we have lost in knowledge?
Where is the knowledge we have lost in information?
The cycles of Heaven in twenty centuries
Bring us farther from God and nearer to the Dust.

A ÁGUIA SE ERGUE NOS CONFINS DO CÉU
Tradução de Ivo Barroso

A Águia se ergue nos confins do Céu.
O Caçador com seus cães persegue-lhe o circuito.
Ó perpétua revolução de estrelas configuradas,
Ó perpétua recorrência de determinadas estações.
Ó mundo de outono e primavera, nascimento e morte!
O ciclo interminável da ideia e da ação,
Invenção perene, perpétua experiência,
Traz a noção do movimento, mas não a do repouso;
A ciência da fala, mas não a do silêncio;
A ciência das palavras, e a ignorância da Palavra.
Todo o nosso saber nos aproxima de nossa ignorância,
Toda a nossa ignorância nos acerca da morte,
Mais próximos da morte, e não mais perto de Deus.
Onde a Vida que perdemos no viver?
Onde a sabedoria que perdemos no saber?
Onde o saber que perdemos na informação?
Os ciclos do Céu em vinte séculos
Nos afastam de Deus e nos acerca do Pó.

https://gavetadoivo.wordpress.com/T. S. Eliot


El mundo que yo no viva
Agustín García Calvo


El mundo que yo no viva
lo pensé como cosa extraña,
como arca de maravilla.
Ay de mi vida

Allí ¿sonará la lluvia
junto al fuego las noches frías?
¿Tendrá Agosto en el río barcas?
Y tú ¿la gentil sonrisa?

¿Brillará en el papel que siembro
la negra flor de la tinta?
Ay de mi vida

¿Será posible que vengan
los amigos y que “Era” digan
“un hombre, y te quiso mucho”
y “Mucho” llorando digas?

Es el mundo que no conozco,
Atlántida sumergida.
Ay de mi vida.

Allí las palmeras echan
esmeraldas. Allí las crías
del delfín esmeraldas pacen.
Allí no hay noche ni día:
cuando ordeñan a los rebaños,
de púrpura el mar se agría,
Ay de mi vida.

Más limpio que agua de oro
es el mundo que yo no viva:
no hay naves de arar espumas
ni arado para las viñas;
el gran árbol le da su fruto
al que el nombre del fruto diga.
Ay de mi vida.

Ese mundo no es el mío:
es el tuyo: el que en tus pupilas
hundido está desde siempre
y no lo alcanza mi vista.
A ese mundo quisiera entrar,
antes que suene la hora
– ay – de mi vida.
http://antologiapoeticamultimedia.blogspot.com.br/2007/02/el-mundo-que-yo-no-viva.html

                    

El mundo que yo no viva
Agustín García Calvo
Trad.de Ivo Barroso

O mundo em que não vivo
O pensei como coisa estranha
Como arca de maravilha.
Ai, de minha vida

Ali soará a chuva
Junto ao fogo nas noites frias?
Terá agosto barcas no rio?
E tu o gentil sorriso?

Brilhará no papel que semeei
A negra flor da tinta?
Ai, de minha vida

Será possível que venham
Os amigos e que “Era” digam
“um homem, e te quis muito”
E chorando “MUITO” digas?

É o mundo que não conheço,
Atlântida submergida.
Ai, de minha vida.
É ele teu: ele que em tuas pupilas
Submergido está desde sempre

Ali as palmeiras tornam-se
Esmeraldas. Ali as crias
Do delfim pascem.
Ali não há noite nem dia:

Quando ordenham os rebanhos,
De púrpura o mar se exasperava
Ai, de minha vida.

Mais limpo que água de ouro
É o mundo que eu não vivo:
Não há navios para arar espumas
A grande árvore lhe dá seu fruto
Ao que o nome do fruto diga.
Ai, de minha vida.

Esse mundo não é meu
É ele teu: ele que em tuas pupilas
Submergido está desde sempre
E não o alcança minha vista.
Nesse mundo quisera entrar,
Antes que soe a hora
― Ai ― de minha vida.

JUNTO AL MAR
José Hierro


Si muero, que me pongan desnudo,
desnudo junto al mar.
Serán las aguas grises mi escudo
y no habrá que luchar.

Si muero que me dejen a solas.
El mar es mi jardín.
No puede, quien amaba las olas,
desear otro fin.

Oiré la melodía del viento,
la misteriosa voz.
Será por fin vencido el momento
que siega como hoz.

Que siega pesadumbres. Y cuando
la noche empiece a arder,
Soñando, sollozando, cantando,
yo volveré a nacer.

JUNTO AL MAR
José Hierro
Trad. De Ivo Barroso

Se eu morrer ponha-me desnudo,
Completamente nu diante do mar
As águas tristes serão meu escudo
E não terei que lutar.

Se eu morrer, deixei-me a sós
O mar é meu jardim.
Quem ama as ondas não pode
desejar outro fim.

Que ceifa pesadelos. E quando
A noite começar a arder,
Sonhando, soluçando, cantando
Voltarei a nascer.


LO FATAL
Jose Luis Hidalgo

He nacido entre muertos y mi vida
es tan sólo el recuerdo de sus almas
que, lentas van soñando entre mi sangre
y sobre el mundo ciego la levantan.

Quedó lejos la tierra, mis raíces
no saben del frescor que en ella canta.
De invisibles cenizas es mi cuerpo.
Los muertos de la tierra me separan.

Quisiera ser yo mismo, luz distinta
brillando cada día con el alba,
estrella de la noche, siempre joven,
que fulge de sí misma solitaria

Pero ya no estoy solo, mi se vivo
lleva siempre los muertos en su entraña.
Moriré como todos y mi vida
será oscura memoria en otras almas.

http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/antologia-poetica–28/html/00d6843e-82b2-11df-acc7-002185ce6064_2.html

O FATAL
Jose Luis Hidalgo
Tradução de Ivo Barroso

Nasci entre mortos, minha vida
não passa da lembranças dessas almas
que, lentas, vão sonhando no meu sangue
e que a levantam sobre o mundo cego.

Longe ficou a terra e as raízes
não sabem do frescor que nela canta.
De cinzas invisíveis é meu corpo.
Os mortos separam-me da terra.

Quisera ser eu mesmo, luz distinta
brilhando cada dia na alvorada,
uma estrela da noite, sempre jovem,
que brilha solitária de si mesma.

Mas já não estou só, o meu ser vivo
sempre leva seus mortos nas entranhas.
Morrerei como todos, minha vida
será a obscura memória de outras almas.


Cristo en la cruz
Jorge Luis Borges

Cristo en la cruz. Los pies tocan la tierra.
Los tres maderos son de igual altura.
Cristo no está en el medio. Es el tercero.
La negra barba pende sobre el pecho.
El rostro no es el rostro de las láminas.
Es áspero y judío. No lo veo
y seguiré buscándolo hasta el día
último de mis pasos por la tierra.
El hombre quebrantado sufre y calla.
La corona de espinas lo lastima.
No lo alcanza la befa de la plebe
que ha visto su agonía tantas veces.
La suya o la de otro. Da lo mismo.
Cristo en la cruz. Desordenadamente
piensa en el reino que tal vez lo espera,
piensa en una mujer que no fue suya.
No le está dado ver la teología,
la indescifrable Trinidad, los gnósticos,
las catedrales, la navaja de Occam,
la púrpura, la mitra, la liturgia,
la conversión de Guthrum por la espada,
la inquisición, la sangre de los mártires,
las atroces Cruzadas, Juana de Arco,
el Vaticano que bendice ejércitos.
Sabe que no es un dios y que es un hombre
que muere con el día. No le importa.
Le importa el duro hierro con los clavos.
No es un romano. No es un griego. Gime.
Nos ha dejado espléndidas metáforas
y una doctrina del perdón que puede
anular el pasado. (Esa sentencia
la escribió un irlandés en una cárcel.)
El alma busca el fin, apresurada.
Ha oscurecido un poco. Ya se ha muerto.
Anda una mosca por la carne quieta.
¿De qué puede servirme que aquel hombre
haya sufrido, si yo sufro ahora?

Disponível em<http://www.lainsignia.org/2005/marzo/cul_054.htm >Acesso em: 15.02.2015

CRISTO NA CRUZ
Um poema de JORGE LUIS BORGES,
Traduzido por Ivo Barroso

Cristo na cruz. Os pés tocam a terra.
Os três madeiros são de igual altura.
Cristo não é o do meio. É o terceiro.
A negra barba pende sobre o peito.
O rosto não é este das gravuras.
É áspero e judeu. Mas não o vejo
E vou buscá-lo sempre até o dia
De meu último passo sobre a terra.
O homem alquebrado sofre e cala.
A coroa de espinhos o castiga.
A chacota da plebe não o alcança
Já tantas vezes viu sua agonia.
A sua ou a desse outro. Dá no mesmo.
Cristo na cruz. Desordenadamente
Pensa no reino que talvez o espera,
Pensa numa mulher que não foi sua.
Não lhe foi dado ver a teologia,
A Trindade indecifrável, os gnósticos,
As catedrais, a navalha de Occam,
Nem a púrpura, a mitra, a liturgia,
A conversão de Guthum pela espada,
A Inquisição, o sangue de seus mártires,
As atrozes Cruzadas, Joana d´Arc,
O Vaticano que bendiz exércitos.
Sabe que não é deus e que é um homem.
Ele morre com o dia. Não lhe importa.
Importa o duro ferro desses cravos.
Não é romano. Não é grego. Geme.
A nós deixou esplêndidas metáforas
E uma doutrina de perdão que pode
Anular o passado. (Esta sentença
Escreveu-a um irlandês no cárcere.)
Sua alma busca o fim, impaciente.
Escureceu um pouco. Já está morto.
Anda uma mosca pela carne quieta.
De que vale saber que tenha esse homem
Por mim sofrido, se eu sofro agora?

Disponível em: < https://gavetadoivo.wordpress.com/2014/06/18/cristo-na-cruz/>
Acesso em: 15.02.2015


Prayer To Go To Paradise With the Asses
by: Francis Jammes (1868-1938)
translated by Jethro Bithell

O GOD, when You send for me, let it be
Upon some festal day of dusty roads.
I wish, as I did ever here-below
By any road that pleases me, to go
To Paradise, where stars shine all day long.
Taking my stick out on the great highway,
To my dear friends the asses I shall say:
I am Francis Jammes going to Paradise,
For there is no hell where the Lord God dwells.
Come with me, my sweet friends of azure skies,
You poor, dear beasts who whisk off with your ears
Mosquitoes, peevish blows, and buzzing bees …

Let me appear before You with these beasts,
Whom I so love because they bow their head
Sweetly, and halting join their little feet
So gently that it makes you pity them.
Let me come followed by their million ears,
by those that carried paniers on their flanks,
And those that dragged the cars of acrobats,
Those that had battered cans upon their backs,
She-asses limping, full as leather-bottles,
And those too that they breech because of blue
And oozing wounds round which the stubborn flies
Gather in swarms. God, let me come to You
With all these asses into Paradise.
Let angels lead us where your rivers soothe
Their tufted banks, and cherries tremble, smooth
As is the laughing flesh of tender maids.
And let me, where Your perfect peace pervades,
Be like Your asses, bending down above
The heavenly waters through eternity,
To mirror their sweet, humble poverty
In the clear waters of eternal love.

https://goo.gl/FUF4sx

FRANCIS JAMMES

Prece para ir ao paraíso com os burros
Quando eu tiver que ir ao vosso encontro, ó Deus,
Fazei que seja um dia em que a campanha em festa
Esteja empoeirada, pois quero, como fiz aqui embaixo,
Escolher um caminho para ir, como quiser ao Paraíso,
Em que as estrelas brilharão de dia.
Tomarei meu cajado e pela estrada imensa
Irei, dizendo aos asnos, meus amigos:
Eu sou Francis Jammes e estou indo ao Paraíso,
Pois não há inferno no reino do Bom Deus.
Eu lhes direi:
“Vinde, doces amigos do azul dos céus,
Pobres animais queridos que, num movimento brusco das orelhas,
Afastam as moscas importunas, os toques e as abelhas…”  
E que em meio aos animais, a vós eu apareça,
Pois que os amo tanto por baixarem a cabeça
lentamente e pararem à espera das crias pequenas
De um modo tão doce que até nos dá pena.
Irei seguido de seus milhões de orelhas,
E daqueles que trazem no dorso as corbelhas,
Dos que puxam os carros de acrobatas
ou as carroças de ferro-velho e latas,
daqueles que carregam grandes bujões de aço,
jumentas prenhas como odres, .trocando o passo
por causa dos panos enrolados nas canelas
para impedir as moscas insistentes sobre elas.
Meu Deus, fazei com que junto a esses asnos eu vos surja
 E na santa paz os anjos nos conduzam
Aos regatos floridos onde as cerejas chovem
Lisas como a carne sorridente das jovens.
E fazei com que, neste repouso das almas, nestas  
Vossas águas divinas eu me veja igual às bestas
Que contemplarão sua humildade e benigna pobreza
Na limpidez do amor eterno.

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UM ANO DE SAUDADES

 Faz hoje um ano que a Léa nos deixou. Léa, a irmã querida, a mais velha, esteio da família. Léa, a Leoa, que soube suportar o golpe da perda de um filho em circunstâncias trágicas. Léa que conseguia organizar a família com firmeza e doçura ao mesmo tempo. Léa, enfim, aquela para a qual os adjetivos são débeis e inexpressivos. 

Não estou certo, pois então nem se falava nisto, mas acho que ela foi vítima do coronavírus, pois teve em casa uma falta de ar que a levou ao Hospital São Lucas (vizinho de sua casa em Copacabana), o mesmo onde morreu, também tragicamente, o nosso amado irmão Ney. No hospital, vi Léa ser entubada mais de uma vez, todos querendo que ela voltasse para casa. O destino obrigou-nos a levar a Grande Irmã ao Cemitério do Caju, onde hoje repousa junto da nossa mãe, Cedinha, e dele, o nosso sempre querido irmão, Ney. 

Lembro-me dela a cada instante em que entro aqui no escritório e vejo aquela pilha de palavras cruzadas (em italiano), que deixei sem solução. Que ficaram e ficarão intactas. Léa era a rainha das enigmáticas, e conversávamos sobre os enigmas que ela “matava”, literalmente todos, até os mais intrincados, ao passo que eu ficava apenas nas “diretas”. Nunca mais tive ânimo, ou força, e muito menos prazer em compulsar as revistinhas e passo correndo pelas “cruzadas” nas páginas de jornal… 

Um ano! Incrível, pois vejo-a atuante, em casa, ao telefone, vindo almoçar comigo vez por outra, trazendo a Lia. Ou quando íamos ao “Don Camillo” para alguma comemoração de aniversário. 

Saudades, Léa, querida irmã que lá se foi em seu último voo. 

Leia mais sobre Léa: 

Éramos quatro – aqui 

As vaquinhas de Uberaba – aqui 

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Foi o meu grande amigo José Carlos Teixeira quem veio sacudir-me

do marasmo em que estava me afundando. Mandou-me este

barco salva-vidas, a minha tradução do Bateau Ivre, do Rimbaud,

que fiz, há tempos, entre lágrimas e risos de alegria. Para cada

verso que encontrava a rima adequada, o ritmo certo, as palavras

precisas, eu me rejubilava; e agora, aqui no meu marasmo, no meu

desânimo, na minha entrega, na minha submissão ao coronavirus,

como que desperto de uma síncope, as mãos enrijecidas adquirem

um certo movimento, o dedo indicador me obedece com mais frequência,

consigo dactilografar sem querer rasgar tudo a cada instante.

E obrigado a você, leitor, que também não me abandonou, que continua

consultando as postagens antigas, obrigado; creio que em breve voltarei

a escrever. Mando-lhe o poema, a tradução. Essa obra-prima,

um dos dez maiores poemas que já se escreveram, feito por aquele

menino zureta de Charleville.

O BARCO ÉBRIO

ARTHUR RIMBAUD

Tradução de Ivo Barroso

Como descesse ao léu nos Rios impassíveis,
Não me sentia mais atado aos sirgadores;
Tomaram-nos por alvo os Índios irascíveis,
Depois de atá-los nus em postes multicores.

Estava indiferente às minhas equipagens,
Fossem trigo flamengo ou algodão inglês
Quando morreu com a gente a grita dos selvagens,
Pelos Rios segui, liberto desta vez.

No iroso marulhar dessa maré revolta,
Eu, que mais lerdo fui que o cérebro de infantes,
Corria agora! e nem Penínsulas à solta
Sofreram convulsões que fossem mais triunfantes.

A borrasca abençoou minhas manhãs marítimas.
Como uma rolha andei das vagas nos lençóis
Que dizem transportar eternamente as vítimas,
Dez noites sem lembrar o olho mau dos faróis!

Mais doce que ao menino os frutos não maduros,
A água verde entranhou-se em meu madeiro, e então
De azuis manchas de vinho e vômitos escuros
Lavou-me, dispersando a fateixa e o timão.

Eis que a partir daí eu me banhei no Poema
Do Mar que, latescente e infuso de astros, traga
O verde-azul, por onde, aparição extrema
E lívida, um cadáver pensativo vaga;

Onde, tingindo em cheio a colcha azulecida,
Sob as rutilações do dia em estertor,
Maior que a inspiração, mais forte que a bebida,
Fermenta esse amargoso enrubescer do amor.

Sei de céus a estourar de relâmpagos, trombas,
Ressacas e marés; eu sei do entardecer,
Da Aurora a crepitar como um bando de pombas,
E vi alguma vez o que o homem pensou ver!

Eu vi o sol baixar, sujo de horrores místicos,
Para se iluminar de coagulações cianas,
E como um velho ator de dramas inartísticos
As ondas a rolar quais trêmulas persianas!

Sonhei com a noite verde em neves infinitas,
Beijo a subir do mar aos olhos com langores,
Toda a circulação das seivas inauditas
E a explosão auriazul dos fósforos cantores!

Segui, meses a fio, iguais a vacarias
Histéricas, a vaga a avançar nos rochedos,
Sem cogitar que os pés piedosos das Marias
Pudessem forcejar a fauce aos Mares tredos!

Bati, ficai sabendo, em Flóridas perdidas
Ante os olhos em flor de feras disfarçadas
De homens! Eu vi abrir-se o arco-íris como bridas
Refreando, no horizonte, às gláucicas manadas!

E vi o fermentar de enormes charcos, ansas
Onde apodrece, nos juncais, um Leviatã!
E catadupas dágua em meio das bonanças;
Longes cataratando em golfos de titãs!

Geleiras, sóis de prata, os bráseos céus! Abrolhos
Onde encalhes fatais fervilham de esqueletos;
Serpentes colossais devoradas de piolhos
A tombar dos cipós com seus perfumes pretos!

Bem quisera mostrar às crianças as douradas
Da onda azul, peixes de ouro, esses peixes cantantes.
– A espuma em flor berçou-me à saída de enseadas
E inefável o vento alçou-me por instantes.

Mártir que se cansou das zonas perigosas,
Aos soluços do mar em balouços parelhos,
Vi-o erguer para mim negra flor de ventosas
E ali fiquei qual fosse uma mulher de joelhos…

Quase ilha, a sacudir das bordas as arruaças
E o excremento a tombar dos pássaros burlões,
Vogava a ver passar, entre as cordagens lassas,
Afogados dormindo a descer aos recuões!…

Ora eu, barco perdido entre as comas das ansas,
Jogado por tufões no éter de aves ausente,
Sem ter um Monitor ou veleiro das Hansas
Que pescasse a carcaça, ébria de água, à corrente;

Livre, a fumar, surgindo entre as brumas violetas,
Eu que rasguei os rúbeos céus qual muro hostil
Que ostentasse, iguaria invulgar aos bons poetas,
Os líquenes do sol e as excreções do anil;

Que ia, de lúnulas elétricas manchado,
Prancha doida, a arrastar hipocampos servis,
Quando o verão baixava a golpes de cajado
O céu ultramarino em árdegos funis.

Que tremia, de ouvir, a dstâncias incríveis,
O cio dos Behemots e os Maelstroms suspeitos,
Eterno tecelão de azuis inamovíveis,
Da Europa eu desejava os velhos parapeitos!

Vislumbrei siderais arquipélagos! ilhas
De delirantes céus se abrindo ao vogador:
– Nessas noites sem fundo é que dormes e brilhas,
Ó Milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor? –

Certo, chorei demais! As albas são cruciantes.
Amargo é todo sol e atroz é todo luar!
Agre amor embebeu-me em torpores ebriantes:
Que minha quilha estale! e que eu jaza no mar!

Se há na Europa uma água a que eu aspire, é a mansa,
Fria e escura poça, ao crepúsculo em desmaio,
A que um menino chega e tristemente lança
Um barco frágil como a borboleta em maio.

Não posso mais, banhado em teu langor, ó vagas,
A esteira perseguir dos barcos de algodões,
Nem fender a altivez das flâmulas pressagas,
Nem vogar sob a vista horrível dos pontões.

(Le Bateau Ivre; in: Poesia Completa. Tradução, prefácio e notas de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. p.203-209)

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ARILDO, O MOSQUETEIRO

Há mais de 60 anos, no dia 24 de julho de 1955, o JORNAL DO POVO, de Ponte Nova-MG anunciava com destaque o aparecimento de uma nova seção intitulada “Os 3 Mosqueteiros”, “a cargo de quatro jovens esperanças do jornalismo mineiro” [sic]: Ivo Barroso (D’Artagnan), Albertus Marques (Athos), Arildo Salles Dória (Porthos) e Geraldo Marques (Aramis). Éramos todos amigos e funcionários do Banco do Brasil, dando o máximo de nossas energias e ânsia literária para o abrilhantamento do jornal interiorano que nos abrira suas portas. Conheci o Albertus (Athos) logo que cheguei ao Rio, em 1945, quando partilhamos a mesma carteira dupla do Colégio Vera Cruz, na rua São Francisco Xavier. O Arildo (Porthos) foi um pouco depois, quando nos mudamos para o Andaraí, já nos anos ’50. Ele morava numa casa de frente para a rua Maxwel, esquina da Pontes Correa, que era a minha rua. Sempre que passava por ali, o janelão aberto da casa da Dona Cora, deixava ver lá dentro uma rapaziada alegre, sempre cantando e dançando. Eram sobrinhos e sobrinhas da família capixaba que vinham conhecer o Rio. Arildo era o filho mais novo, tinha quatro outros irmãos, todos militares ou cursando o Colégio Militar. Ele, no entanto, era chegado às letras e logo nos demos bem, e um dia, ao passar pela rua, vi lá dentro, a Silvia, irmã da vizinha de Dona Cora, em cuja casa estava hospedada. Foi Arildo que nos apresentou e nos serviu de cupido, até o dia em que me casei com ela em 1956.

Durante quase dez anos escrevemos a página quádrupla Os Três Mosqueteiros, onde Arildo se destacava pelos seus artigos de ardoroso fundo político. Essa tendência foi se tornando militância com a adesão de Arildo ao Partido Comunista. Com o advento da Ditadura Militar, ele passou a ser constantemente procurado para investigações e depoimentos, e sempre se safava do pior (prisão e torturas) graças à interferência dos irmãos militares. O máximo que os censores conseguiram foi ameaçar sua carreira bancária, forçando o Banco a transferi-lo para o Piauí, como uma espécie de degredo onde passou três anos. De volta, foi transferido para Brasília, onde chegou a ser preso em 1972, quando já membro militante do PC, tentava reorganizar o partido. Definindo-se como um “apátrida” e um “torto” na vida, Arildo começou a trabalhar na Câmara dos Deputados em 1987, no gabinete do então deputado pelo PCB e ex- companheiro do Sindicato dos Bancários Augusto Carvalho, incumbido entre outras tarefas a de escrever praticamente todos os discursos dos deputados vermelhos e líderes sindicais. Fundou o movimento sindical Cidadania de que foi o presidente executivo. Suas preferências políticas nunca interferiram em nossa amizade: continuávamos a considerá-lo nosso “padrinho de casamento” e “amigo secular”. Era o primeiro a me telefonar no dia de meu aniversário e eu procurava fazer o mesmo a cada 2 de Janeiro, que era o seu. Pois o intrépido mosqueteiro Porthos, para o nosso pesar, o de seus amigos, familiares e sindicalistas baixou a espada no domingo passado, dia 23,vítima de complicações pulmonares com que vinha se debatendo (sic) havia algum tempo. Missão mais do que cumprida! Amigo até o fim!

Obituário: Albertus da Costa Marques, o Athos, faleceu em 2010, vítima de insuficiência renal (fazia diálise 3 vezes por semana) e o frágil Geraldo Marques, o Geraldinho. desapareceu total e definitivamente durante a Ditadura, perseguido por suas ideais esquerdistas (?) . Apagado dos anais do Banco do Brasil, todos os esforços para saber de seu destino foram inúteis, mesmo com auxílio do Comité da Verdade. Agora os três me deixaram aqui esgrimindo sozinho no ar da saudade e da lembrança.

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Ei-lo, o Corvo em sua 4ª. edição aumentada e totalmente repaginada.

Trazendo mais duas versões, em cordel, de Isa Mara e José Lira.
Mesmo que você tenha alguma das 3 edições anteriores (a última foi da
Editora Leya), vale a pena adquirir esta, que está belíssima.

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ÚLTIMA CRÔNICA

Maria das Pedras Pimentel

Quando hoje me sentei para escrever esta última crônica, veio-me ao pensamento a lembrança do dia em que me pus a escrever a primeira. E, nos caminhos sempre abertos da memória, desfilaram as várias sensações que me afagavam a cada novo artigo que escrevia, desde a vaidade pueril dos primeiros tempos até o sentido de frustração que vinha acompanhando os últimos: o orgulho do nome impresso com destaque… o anseio de dizer alguma coisa nova… o entusiasmo de que, ás vezes, me tomava ao defender um ideal político … depois o desencanto de não poder imprimir a cada um o que considerava o melhor de mim mesmo, e o tempo, cada vez mais escasso, me levando a produzir sem grande amor, como quem cumpre mera obrigação… Entretanto, não é por fastio que me sento para escrever este último artigo, nem seria a premência de tempo, o fechar do círculo das atividades imediatas, que me levaria a encerrar aqui as minhas atividades jornalísticas. O motivo é outro, e nem lhes quisera dizer por que desejara antes transformar estas últimas linhas numa simples nota, num comunicado lacônico que se presta, ás vezes sem precisão, aos nossos “caros leitores”….

Mas, entre os “caros leitores” há uma a quem não poderia dispensar estas palavras mais sentidas, ou uma certa explicação. Imaginem, amigos, uma velhinha, já bem idosa, de mais de 80 anos, que espera religiosamente este jornal cada semana, para lê-lo e relê-lo várias vezes à cata do artigo do neto, o qual irá saborear o tempo todo até que um outro venha substituir a emoção que aquele lhe causa! Imaginem a vovózínha, depois disso, pedindo ainda a vocês que o leiam outra vez em voz alta, bebendo cada uma das palavras que. ao findarem, serão acompanhadas de exclamações de alegria, de uma devoção que só as vovózinhas idosas ainda são capazes de guardar! Por isso, não poderia deixar essa minha querida leitora sem uma palavra de explicação final.

Eu escrevia, Vovó, não sei se por vocação, amor, vaidade ou satisfação pessoal; mas, em parte, escrevia pelo contentamento de vê-la contente, pelo tão pouco que me custava fazê-la tão feliz. E, ainda que não escrevesse especialmente PARA a senhora, escrevia bem POR sua causa. Pela palavra de carinho que iria ouvir ao fim da página; pelo gesto afetuoso. da mão enquanto ouvia essa leitura; pelo riso amável de quem julga o neto a pessoa mais inteligente deste mundo; para os seus 87 janeiros de amor; para aquela sua vocação para a bondade, para a sua ternura; para os seus olhos de um brilho já distante e angelical, para a doçura de sua presença tão leve; pela amável existência de santa que levava ao pé da gente; pela confiança inexcedível que a senhora depositava em cada um de nós… E a senhora, agora lá no céu, já não precisa mais de ler os meus artigos…

Publicado no Jornal do Povo de Ponte Nova-MG, em 23 de setembro de 1956, e transcrito em “O Poeta, o Tradutor e o Crítico”, organizado por Luciano Sheikk, em 2018, pg. 205.

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CONTO

 CEIA DE NATAL 

Madalena, saibam, era um pato. Trouxera-o algum cliente do Velho, talvez em paga de visitas profissionais ou em reconhecimento de alguma cura mais difícil. Dessa forma soem agradecer, no interior, aos médicos e farmacêuticos, e o presente, uma vez irrecusável pela sua estimativa e singeleza, foi solto no exíguo quintal, com seu destino traçado. O Natal se aproximava e de galináceo a palmípede ia pouca diferença… 

Frequentávamos raramente o quintal. Os brinquedos comprados e não sugeridos pelo nosso espírito de improvisação, já por si, pelo intrincado de suas molas e rodinhas, prendiam-nos mais à casa, às superfícies lisas, ao asseio dos quartos encerados. Mas, vez por outra, a escada do sobrado para o quintal nos era franqueada e, sob uma touceira reduzida, furávamos no barranco os caminhos sinuosos dos nossos “caminhãozinhos” de brinquedo. 

A surpresa de encontrar, assim tão próximo, tão nosso, tão livre de proibições, àquele bicho grasnante, prolongou-se num delicioso encanto através das minhas horas de brinquedo. Era uma coisa viva, independente ao locomover-se, rebelde aos meus propósitos, não condicionado aos caminhos que lhe impunha o meu desejo. Espreitava-o mover-se cauteloso e indeciso à beira da cerca; e eu, detrás dela, para melhor surpreendê-lo em sua vida íntima, deixava-me ficar por longos momentos, quase sem fôlego, evitando o menor ruído que denunciasse ao pato a minha presença inoportuna. Soldadinhos de chumbo, livros de histórias, folguedos e travessuras, tudo fora esquecido pela embevecida contemplação do animal que chegara. Curioso de seu bico oblongo, de seus pés membranosos, dos coleios gentis do pescoço esquisito, era raro o momento em que eu não estava, disfarçado, à socapa, de olhos postos no branco Madalena. 

Não sei que estranha associação de ideias em que entram a indumentária de moças em procissão e fragmentos de lembranças onomásticas, levaram-me a batizar assim o manso palmípede. Sei só que lhe assentei Madalena e Madalena ficou por causa de sua alvura inigualável. Nunca me passara pelos olhos nada tão branco, nada que ferisse tão profundamente a minha noção infantil de pureza. 

O bichinho aos poucos humanizava-se. Já não fugia mais á minha aproximação sorrateira, esvaindo o desencanto que me causara quando, a princípio, se afastava precipite de mim. A bem dizer, agora quase comia à ponta de meus dedos, e sua plumagem, estonteantemente branca, ficava a pouco de minhas mãos guardadas de carinhos. Acostumando-se a comer o que lhe dava, Madalena ingeria os “menus” mais estapafúrdios: pedaços de bola de borracha molhados no mel, castanhas, confeitos, migalhas e azeitonas. Certo, recusava alguns, mas isso servia apenas para que eu fosse buscar outra absurda guloseima, receoso de que ao patinho não lhe apetecessem aquelas. 

Supunha Madalena imperecível em razão de tamanha beleza. Já era como um pequeno ser humano a quem falava e a cujos grasnos desconexos atribuía, na minha doce hermenêutica, os mais reverentes sentidos. Creio, pela sua inquietação, que se ressentia um pouco da aridez de nosso quintal. Olhava atencioso para a torneira da pia escorrendo, e eu lhe adivinhei a nostalgia pelos banhos demorados, pelas águas dos ribeirões a que se acostumara em sua vida primitiva na roça. Quis, por isso, leva-lo comigo a passear, com a intenção flagrante de lhe permitir um banho, talvez no próprio tanque do jardim. No que fui impedido terminantemente por minha mãe, que além do mais argumentava a assustadora frequência com que eu emporcalhava as roupas, metido que estava sempre no quintal, como a pajear a ave. Confusamente ainda percebi, em frases veladas, que tudo aquilo acabaria em breve, que no Natal… 

No Natal, eu fazia seis anos e tinha em casa convidados. Pelas circunstâncias do dia e da hora, voltara momentaneamente aos brinquedos caseiros, à alegria dos novos presentes, dos amigos deslumbrados pela balbúrdia dos tambores e a precisão metralhante das espingardinhas de rolha. 

Súbito, chamaram-nos à ceia e os brinquedos foram também, por instantes, relegados. Mas quando entramos a comer de quanto havia em frutas e salgados do Natal, uma voz, mencionando a carne, fez parar-me quase gelado. 

– É de porco, Maria? 

– Não, mamãe; de pato. 

De pato! E eu, que comia daquilo, num relâmpago, estonteado, compreendi tudo. Lacrimejaram-me os olhos enquanto cuspia no pratinho os restos intragáveis do sacrilégio. Houve transtornos; alguém exprobrou a falta de ética, que não me deviam ter revelado; mas tudo inútil: os soluços já me irrompiam fortes e saí da mesa para me atirar a uma cama qualquer, convulsivo, lutando ainda internamente contra a repugnante ideia, a cada frase de consolo com que pretendiam empanar a realidade. 

Por fim, alguém me disse palavras que me pareceram sinceras: convidava-me a ir até  em baixo no quintal para verificar que lá estava, vivinho, o Madalena. E eu fui, junto desse alguém que levava à mão uma vela, apesar da noite e do medo que o escuro me infundia. Pela escada abaixo, os olhos ainda cheios de lágrimas ainda acreditavam ver o pato em cada desvão que a vela, bruxuleante, alumiava. 

– Está lá no canto da cerca, está vendo? 

Eu forçava os olhos, o coração ansioso por acreditar, a boca num quase a me sorrir. 

– Mas, onde?… Me leva até lá. 

A pessoa titubeou, querendo vencer-me pelo medo. 

– Está escuro agora. Amanhã você vê. 

Deixei levar-me, conformado, esquecendo quase o amargor das dúvidas, na esperança da verificação futura. Mas, ao subirmos as escadas, de volta, junto à porta da cozinha, no caixote de lixo repleto, bem por cima, brancas, desoladoramente brancas, estavam as penas do meu pato, como um clarão no escuro do quintal. 

Publicado no Jornal do Povo, de Ponte Nova-MG, em dezembro de 1953, e transcrito no livro “O Poeta, o Tradutor e o Crítico”, editado por Luciano Sheikk em 2018, às ps.47-48. 

 

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