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A CONQUISTA DOS CÉUS PELA PASTORA DE NUVENS

Cecília Meireles publicou O Aeronauta em 1952 como uma espécie de adendo aos Doze Noturnos da Holanda. Numa carta datada de 21 de fevereiro daquele ano, endereçada a seu amigo o poeta Abgar Renault, ela anuncia o livro: “os poemas da Holanda vão ser editados logo após o carnaval, junto com uma outra coisa [grifo nosso] inspirada pela viagem aérea; vocês verão como perdi aquele famoso medo”. Por quê motivo a autora teria juntado num único volume esses dois livros de poemas aparentemente tão diversos em seu significado e em sua feitura? E como definir essa “outra coisa” que a própria Cecília hesita em chamar de poema? De nossa parte, acreditamos que O Aeronauta seja bem mais que um simples complemento poético dos Noturnos. Seria mesmo o seu antípoda, a outra face, exprimindo uma nova dimensão espacial da autora, egressa de um outro mundo, vivendo em novo estado de espírito. Daí julgarmos que os editores atuais tenham agido com propriedade ao optar por fazer dele um livro autônomo, um volume à parte, cuja edição lhe permite existir por si mesmo sem estar vinculado, geminado, jungido a outra importante obra da Autora. Isso porque O Aeronauta revela uma conquista ao mesmo tempo pessoal e poética da autora, no sentido de atingir uma poesia ainda mais sutil, mais etérea do que a encontrada em seus livros anteriores, como em especial Viagem, cuja intenção temática é semelhante à deste. A oposição que existe entre os Doze Noturnos da Holanda está ainda no tom dos poemas, pois se Cecília confessa que os primeiros foram escritos à noite (daí o título escolhido), embora reflitam a luminosidade da paisagem holandesa que ela então descortinava, já os poemas de O Aeronauta procuram captar uma fosforescência espacial, entre nuvens e abismos, como se escritos em pleno voo, durante uma de suas inúmeras viagens de avião.

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Era notório o medo que Cecília tinha às viagens aéreas. Suas primeiras deslocações foram marítimas, mas para vencer as grandes distâncias e as configurações geográficas de seus itinerários pela América Latina, Europa (principalmente os Açores) e a viagem à Índia teria necessariamente de utilizar o transporte de avião. “Por muito tempo o mar foi o meu verdadeiro país”, diz ela numa entrevista concedida a Domingos Carvalho da Silva. Mas, por necessidade e por espírito de aventura, ela toma o gosto pelas viagens aéreas e perde o medo de avião. Vai além: nelas encontra uma nova identidade até então desconhecida. “Com certa saudade vejo-me obrigada a confessar que nos ares me vi como em país ainda mais íntimo”. Se nos Doze Noturnos da Holanda ela se sente “dentro de gravuras”, presa à paisagem que a circunda, experimentando uma simbiose da vivência ambiental com sua elaboração poética interior, em O Aeronauta ela vivencia um novo país, totalmente desligado da realidade, um mundo surrealista, em que sua poesia reflete um estado de alma estratificado, de visitante estrangeiro que vem de regiões remotas e implausíveis.

Ao comparamos os versos dos Noturnos com os de O Aeronauta, vemos uma oposição até na forma em que foram lavrados. No primeiro, embora haja versos curtos e metrificados (como o belo hendecassílabo de abertura), Cecília dá preferência ao tipo “versículo bíblico”, ou seja, ao verso longo, de grande fôlego, alheio à métrica e à rima, guardando apenas seu ritmo pessoal, aquela “vaga música” que iria caracterizar seus poemas não rimados. Mas em O Aeronauta, escrito ao que tudo indica ao mesmo tempo em que ela compunha os Noturnos, temos onze poemas de forma quase fixa, ou seja, compostos de quatro estrofes de sete e quatro sílabas terminadas por uma coda de três ou quatro versos (com exceção dos poemas “Dois”, “Três” e “Cinco”, sem coda), estrofes essas em geral de cinco ou seis versos, exceto nos dois últimos poemas em que se alongam em sete e oito, e no poema “Dez”, que apresenta uma coda em duas quadras. Essa volta às formas fixas (versos curtos, isométricos) tem grande significação aqui, principalmente se a considerarmos concomitante ou subsequente à experiência transbordante do verso livre usado nos Noturnos. É que a temática de O Aeronauta exige – ousamos dizer – uma unidade, um uniforme, um traje especial que caracterize essa viagem de volta de dentro de si mesma depois de experimentar uma nova dimensão existencial. Cecília domou seu medo e, mais que isso, transformou-o em fruição, em experiência, em mergulho e emersão, fazendo tudo isto espelhar num verso cada vez mais trabalhado, mais técnico, mais submisso à sua capacidade de exprimir condições especiais de existência.

Podemos dizer que O Aeronauta é a apresentação de um novo ser poético que teve seu embrião em Viagem, de 1939. Pois ali havia um percurso metafórico, subjetivo, um passeio por sentimentos e ansiedades, uma investigação interior à procura do conhecimento total de si mesmo:

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Já em O Aeronauta, o ser não se importa com o tratamento que lhe deem; extravasa de sua condição humana e sua busca fica “livre de imagens” e de si mesmo:

Agora podeis tratar-me
como quiserdes:
não sou feliz nem sou triste,
humilde nem orgulhoso,
– não sou terrestre.

Por ter conseguido então permanecer (ainda que precariamente) no espaço, desligado da terra, esse Aeronauta como que se desfaz do próprio corpo e atinge a condição etérea de espírito:

Agora sei que este corpo,
insuficiente, em que assiste
remota fala,
mui docemente se perde
nos ares, como o segredo
que a vida exala.
E seu destino é ir mais longe,
tão longe, enfim, como a exata
alma […]

Essa sublimação do corpo, sua transmutação em estado anímico, se reflete na poesia de Cecília, que atinge aqui momentos de absoluta cristalinidade, de autêntica “poesia pura”, ainda que, ao fim, venha sentar-se à nossa mesa, “pesada e presa,/ por limite e densidade”.

O leitor versado em arte poética certamente admirará a consumada técnica de Cecília no manejo das rimas toantes, na perícia com que corta (divide) o verso que ameaçava alongar-se, sem com isso perder a harmonia e o equilíbrio da frase ainda que subjetiva ou hermética.

O leitor alheio a essas preocupações formais, porém, será envolvido pela melodia quase diáfana que emana de cada verso e que contrapõe à sua leveza uma densidade de significados que irão facilmente impressionar sua sensibilidade.

Ivo Barroso

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