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Archive for the ‘Memórias’ Category

Ney, filho do S’ Ormindo
——PRESENTE 

Ney, goleiro e dono da bola
——PRESENTE 

Ney, amigo do Tututa e rival do Don Del Oro
——PRESENTE 

Ney, aluno de Dona Nenzinha
——PRESENTE 

Ney Julião, nascido em julho de 1932
——PRESENTE 

Ney, apelidado de Góis por ter bochechas iguais ao do Gal. Góis Monteiro
——PRESENTE 

Ney, benfeitor da Biblioteca de Ervália

——PRESENTE 

Ney, marido da Conceiça e pai da Claudinha e Marco Antônio

——PRESENTE 

Ney, torcedor doente e sócio-diretor do Fluminense

——PRESENTE 

Ney, professor emérito do Pedro II

——PRESENTE 

Ney, idolatrado por seus alunos e colegas professores
——PRESENTE 

NEY, a alegria dos amigos com seus causos do Herval
——PRESENTE 

NEY, dos mil e um atributos entre os quais o de meu irmão querido: 

É com a maior angústia que constato a sua ausência há cinco anos 

E vibro de alegria ao lembrar que está presente em tudo e todos nós. 

Não se morre, ausenta-se inexplicavelmente por uns tempos. 

Leia mais sobre o Professor Ney, aqui: 

Homenagem póstuma

Mais uma saudade

Parabéns silenciosos

Football

Éramos quatro

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madeleine

 Durante anos o Lucas Carton figurou no Guide Michel como um dos restaurantes mais estrelados de Paris. Reputado pelos gastrônomos como “a melhor carne de toda a culinária francesa”, era quase impossível conseguir-se ali uma reserva se não com meses de antecedência. Situado na Place de la Madeleine 9, bem defronte ao esplendoroso frontal dessa igreja que mais parece um templo grego ou um tribunal de justiça, o restaurante possui à entrada um pequeno pátio para estacionamento privativo de seus clientes, o que, considerando o local, é um verdadeiro privilégio para estes e um motivo de orgulho para o restaurante.

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Foi em princípios de 1982. Numa de nossas idas a Paris, resolvemos arriscar a sorte e chegar de improviso ao famoso Lucas Carton sem reservar. Talvez porque fosse ainda cedo, não tive dificuldade em entrar no estacionamento privativo, e saí do carro para falar diretamente com o maître. O garçon, que me atendeu logo à entrada, foi taxativo: Domage, Monsieur, nous sommes complet! E como eu argumentasse que o salão à minha frente estava completamente vazio, ele, condoendo-se de minha ignorância, informou que ainda era cedo para a chegada dos clientes, mas que todas as mesas estavam reservadas. Além do mais, ali só serviam uma refeição por noite; logo, pas de chance, adeus, não havia a menor possibilidade. Enquanto parlamentávamos, o maître se aproximou para saber de que se tratava. Expliquei que éramos de fora, que eu conhecia alguns restaurantes conceituados de Paris, mas que não queria regressar a casa sem ter pelo menos tentado jantar no famoso Lucas Carton. Não haveria uma possibilidade, nem que fosse numa mesa à parte, até mesmo fora do salão principal?! O maître gostou da minha insistência. Eu falava sem parar no nome do restaurante, indicava minha esposa que ficara lá em frente esperando no carro… Ele entrou de novo no salão enquanto aguardávamos à porta. “Esperem uma meia hora”, disse ao voltar. “Um de nossos clientes habituais, M. Dali, que costuma jantar bem cedo, está quase terminando. Vou lhes fazer a exceção de um segundo serviço”. Voltei para o carro com um sorriso aberto e disse à minha esposa que a parada estava ganha.

Algum tempo depois, vi passar em direção à entrada do restaurante, vindo de marcha a ré, um grande carro preto que estacionou em frente ao nosso. Logo saiu do volante um senhor que abriu a traseira do carro, onde havia uma espécie de cadeira especial. Momentos depois, amparado pelo maître e pelo garçom já nosso conhecido, vimos sair do restaurante um velho pálido, visivelmente enfermo, já que não conseguia andar por si mesmo. Ao chegar junto ao furgão, o trio deu uma meia-volta, ficando de frente para nós. Foi quando percebemos nitidamente que o enfermo era o famoso e genial Salvador Dalí, com seus bigodes retorcidos, mas sem aquela expressão agressiva que se vê nas fotografias. Com cuidado ou carinho, puseram-no sentado na cadeira especial  e começaram a fechar bem devagar a porta.  Atrás, vinha uma figura feminina, espevitada e bem-falante, caminhando normalmente, na qual reconhecemos  a igualmente famosa Gala, sua mulher e inspiradora. Ela despediu-se agradecida do maître, contornou o veículo e foi sentar-se ao lado do chofer, que deu partida ao carro.

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De fato era mesmo Elena Ivanovna Diakonova, nascida russa em 1894, e mais conhecida pelo apelido de Gala. Musa de poetas, mulher fatal que inspirou várias paixões, a começar com Paul Éluard (1895-1952), o grande poeta surrealista francês, que conheceu em 1912 em Clavadel, na Suíça, num sanatório para tratamento de tuberculose. Ambos tinham 17 anos e se apaixonaram, vindo a casar-se mais tarde, em Paris, em 1917, e tiveram uma filha, Cécile, que ela ignorou e maltratou, revelando a megera que se escondia atrás da musa inspiradora. Em Clavadel, naquele mesmo ano de 1912, Gala conheceu também o poeta alemão (depois naturalizado francês) Max Ernst (1891-1976), ligado ao surrealismo, com quem teve igualmente um caso, e com quem conviveu mais tarde (1924-1927) em Paris, juntamente com Éluard, em regime de casal-a-três. Posteriormente, Éluard, cujo nome era Eugène Emile Paul Grindel, de origem judaica, passou a chamar-se Paul Éluard, “pour motifs três litteraires” (conforme informou em carta a Manuel Bandeira), embora haja razão para se pensar em outra espécie de motivo. Por falar em Bandeira, o nosso Manuel também estava nessa de Clavadel na mesma época e certamente se viu atraído pelos encantos da jovem Elena. Há uma fotografia em que os três aparecem sentados na soleira do hotel, Bandeira se inclinando em direção a Gala, com um ar de quem está lhe fazendo um galanteio (*). Em 1928, numa viagem à Espanha, Gala e Éluard conhecem o emergente pintor surrealista Salvador Dalí, dez anos mais novo do que ela. Gala e Dalí passam a viver juntos em 1929 e se casam no civil em 1934. A cerimônia religiosa só foi possível em 1958, por Gala ser então divorciada. Éluard viria a se tornar um dos poetas mais amados da França, quando seu poema Liberté J´écris ton nom –, composto em 1942, foi espalhado em milhares de cópias jogadas de avião sobre o povo francês que resistia à invasão nazista.

Quem diria, a Gala, mulher fatal, inspiradora de artistas, que caminhava então sobranceira atrás do que parecia o cortejo fúnebre de um decrépito Dalí, quem diria que ela, com todo o seu ar de pitonisa, iria morrer pouco depois, exatamente a 10 de março daquele mesmo ano. O moribundo Dalí sobreviveu, embora enfermo, só vindo a falecer sete anos mais tarde, a 23 de janeiro e 1989.

***

Ah, quanto ao jantar, sentamo-nos à mesa em que esteve o casal, pedimos o recomendado boeuf à bourguignone, digno das estrelas que o consagraram, mas foi impossível manter um ar de vitória diante da lembrança do pintor.

(*) Não conseguimos reproduzir, por estar muito apagada, essa foto de Bandeira, Gala e Eluard, mas os interessados poderão encontrá-la na p. 55 da edição Manuel Bandeira – Poesia Completa e Prosa – em um volume, edição da Biblioteca Luso-Brasileira – Cia. José Aguilar Editora – 1974. A foto não consta da nova edição da Editora Nova Aguilar, de 2009. Inb.

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GR

Creio que foi aí por 1948. Enquanto aguardava minha carteira de reservista, que me permitiria procurar o meu primeiro emprego, eu costumava, toda manhã, passar um tempo na Biblioteca Nacional, no Centro, onde lia de graça os livros que não podia comprar. Vinha do Andaraí, de bonde, e descia no Largo da Carioca, no então chamado Tabuleiro da Baiana, ponto final da linha, bem em frente à maior livraria do Rio na época, a Freitas Bastos, em cujas vitrines eu “namorava” os grandes lançamentos literários de então. Era uma passagem quase obrigatória e, de tanto perambular entre os balcões de livros, acabei conhecendo um funcionário de nome Edgar Rezende, com quem trocava opiniões sobre os autores da moda. Edgar havia publicado em 1945 uma antologia poética, “Os mais belos sonetos brasileiros (florilégio)”, de que eu adquirira um exemplar a preço de retalho, ocasião em que trocamos algumas palavras que me permitiram uma aproximação  posterior.

A dois quarteirões dali estava a Biblioteca Nacional, meu templo, onde passava praticamente toda a manhã empenhado nas leituras mais variadas. Já empolgadíssimo com o estudo de línguas, descobri uma edição de luxo das obras completas de André Gide, feita na Suíça, em encadernações artísticas, com belas ilustrações e papel de gramatura expressiva. Devo ter lido praticamente todo o Gide naqueles dez ou doze volumes de capa dura, e, tendo-me finalmente decidido sobre o que achava o suprassumo do autor, comecei a copiar num caderninho (que tenho até hoje), o “Le Retour de l’ enfant prodigue”, com a secreta aspiração de traduzi-lo. um dia.

Numa dessas idas à Biblioteca, e ao passar como de hábito pela livraria Freitas Bastos, fui encontrar o Edgar Rezende um tanto atarantado, circulando meio perdido entre os balcões do fundo. Quando me viu, aproximou-se de mim e, apontando lá na frente, um senhor que parecia compulsar alguns livros expostos, me perguntou: “Sabe quem é?”, insistindo com um olhar significativo. Antes que eu esboçasse a menor suposição, foi logo dizendo: “o Rosa, ele mesmo, o Guimarães Rosa!” Olhei na direção apontada e fiquei paralisado.  Só o nome dele já era para mim uma espécie de palavra mágica, de abracadabra, de abre-te sésamo para o mundo encantado da literatura. Meu ídolo, meu deus, minha entidade inatingível! Imagina agora a possibilidade de vê-lo, de estar fisicamente na sua presença?! Rosa tinha estreado em 1946 com “Sagarana”, que eu havia comprado e lido a grande custo (monetário e intelectual) e desde então seu nome passara para mim a figurar num mundo à parte, tornando-se uma dessas figuras de culto postas além e acima do comum dos mortais.  Fiz tudo para não acreditar no que ouvira, pois a timidez que me avassalava naquela época não me permitiria sequer ficar na presença do “mago”, quanto mais em tentar pronunciar-lhe o nome.  Mas o Edgar insistia: “Você, que gosta tanto dele, que acha “Sagarana” o maior dos livros, por que não aproveita para pedir-lhe autógrafo”? Tremi, quis escapar, fingir que não ouvira. Mas o Edgar não queria que eu perdesse a chance: “Vai lá, fala com ele, leva o livro, pede um autógrafo. Vai ser difícil encontrar uma oportunidade melhor. Ele está sempre rodeado de muita gente”. Algo insistia comigo para que eu quebrasse a timidez. Estava quase disposto a ir, quando a realidade me chamou de volta. “Mas, Edgar, como vou pedir autógrafo sem ter o livro aqui comigo”? Ele não se deixou esmorecer. ‘‘Toma outro aqui, eu te empresto, depois você me devolve o seu”. Era bom demais, irrecusável. Tomei o livro e mais um hausto de coragem e me dispus a caminhar em direção ao ídolo.

No momento em que me aproximava, devo dizer um tanto lentamente demais, uma senhora entrou na livraria e logo reconheceu o autor, avançando espevitada para ele. Aliás, reconhecer Rosa, o famoso Guimarães Rosa, era a coisa mais fácil nesse então: ele usava gravata borboleta, o que o distinguia não só da plebe ignara quanto de qualquer outro de seus pares literários. Parei de súbito, a poucos metros dos dois, livro na mão, ouvido alerta para saber o que diziam. Não vou tentar reproduzir aqui a conversa, pois não me lembraria das palavras exatas, mas procuro, ao menos, estabelecer o tom:

Senhora espevitada: “Ah, como vai a Sussuquinha? Soube que a pobrezinha andou dodói”.

Autor consagrado: “A mais não poder! Tive que levar a coitadinha ao vetê”.

Ali fiquei por um instante ouvindo, meio incrédulo, o longo e penoso diálogo, quando percebi, meio encabulado, que a conversa transcorria em torno de uma cachorrinha de propriedade do escritor, ao que me pareceu, bastante conhecida de todos os seus leitores, com a minha desonrosa exceção.

Não tenho animais de estimação, mas acho perfeitamente cabível que alguém sinta por eles um grande apego e os trate com carinho. Sim, certo, que alguém o tenha, que qualquer outra pessoa o faça, mas, pelo amor de Deus, todo mundo menos o meu ídolo, o escritor acima de qualquer suspeita, que só devia dialogar com os deuses…

Mais duas ou três frases e já o livro me pesava na mão, paralisava a indecisa caminhada, insistia solene na desistência. Dei meia volta, meio trôpego em direção ao Edgar e lhe devolvi o livro para sempre virgem.

“Desculpe, mas não tive coragem”!

 Edgar sempre atribuiu o fracasso da entrevista à minha timidez e creio que jamais suspeitou da influência decisiva da Sussuquinha.

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MAIS UMA SAUDADE

Ney BarrosoMeu querido irmão, o Prof. Ney Julião Barroso, completaria hoje 84 anos de existência. Aquele menino arteiro lá do Herval, que me seguiu em mil e uma travessuras (a travessia do rio Turvão em cima de uma escada que nos serviu de ponte, o tiro com a garruchinha de chumbo que resultou num castigo de horas ajoelhados em caroços de milho na porta da farmácia, a fuga do cão Montenegro que levamos para um passeio na capoeira do Brazinho e que de repente sumiu, etc), aquele mesmo, pois ele se tornou uma figura respeitável no meio docente da então Capital do país, onde chegou a Diretor-Geral do campus Tijuca II, do Colégio Pedro II, no período 1992/2000. Amado por seus alunos, a eles ministrava lições de geografia viva, levando-os a conhecer in loco formações rochosas, grutas, terrenos alagadiços, plantações de cana e café, etc por este Brasil afora. Suas excursões em ônibus pelo interior do país, principalmente por Minas Gerais e, em especial, pelas terras vermelhas de Ervália (nossa terra), tornaram-no um inovador em matéria de ensino factual e exemplificativo. Mesmo depois de aposentado mantinha estreito contato com seus colegas do Pedro II e assessorava, por prazer e vocação, os antigos colegas que vieram a distinguir-se na administração daquele educandário. Inconformado com os rumos que a nossa política e a nossa economia estavam tomando, tornou-se assíduo colaborador da seção de Cartas do Leitor, d’ O Globo, que sempre publicava suas opiniões com grande destaque editorial. Além disso, defendia seus pontos de vista, sempre voltados para o bem público e a dignidade administrativa, em seu blog denominado “falandogrossodoherval”, no qual ainda hoje o leitor poderá encontrar matérias e temas de permanente atualidade.

Ao evocar hoje, no que seria o seu aniversário, não posso deixar de prestar meu preito ao grande educador, embora veja também, ao longe, a figura sorridente daquele zureta (frase de nossa avó) que percorreu comigo os imprevistos caminhos da infância.

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Em 1973, o ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda, cassado em 1968 pela ditadura militar, foi a Recife inaugurar uma filial da Novo Rio, empresa imobiliária e financeira a que se dedicara após ver cassados os seus direitos políticos. Nessa ocasião, o escritor e grande vulto nacional, Gilberto Freyre, especialmente convidado para o evento, não compareceu, fazendo-se representar por seu filho. Não se soube, na época, a razão que levara o grande Mestre de Apipucos a negar a um antigo correligionário o apoio de sua presença num evento social. Muitos anos depois, Lacerda já falecido (maio de 1977), encontrou-se em sua correspondência a carta que segue abaixo, capaz de explicar a ausência de Freyre em razão de sua extrema vaidade ferida.

 

Rio de Janeiro, 28 de junho de 1973.

Ilmo. Sr.

Dr. Gilberto Freyre

Apipucos

50.000 – Rcife, PE.

Gilberto,

Recebi, de volta de viagem, a sua carta. Parece que você tomou a peito a queixa que fiz pela sua ausência na recepção de Novo Rio em Recife. É claro, e ficou dito, que seu filho o representou como ninguém poderia mais. Mas, fique também claro que não tive mágoa pela ausência, senão por não ter, com ela, oportunidade de vê-los, a você e a Madalena. No mais, no bad feelings, pois acho que você tem mais do que fazer do que ir a cocktails formais; eu por mim não vou a nenhum, salvo por obrigação.

Mas, a propósito, você estranha que uma enciclopédia dirigida por mim e editada pelo José Olympio dedique menos linhas ao autor de “Casa Grande & Senzala” do que a outros, como Jorge Amado,  por exemplo. Devo-lhe, pois, uma explicação. Não adianta dizer que a importância dada a um autor, numa enciclopédia, não se mede somente pelo número de linhas. Mas, se medisse, você veria que as 24 linhas que lhe são dedicadas são excedidas em 8 linhas pelo verbete Jorge Amado porque: (1) a lista de obras de Jorge é mais numerosa — refiro-me à lista e não à importância — é mais numerosa do que a sua. Uma linha é dedicada a dizer que ele é primo de Gilberto Amado. Em nenhuma linha está dito que ele escreveu obra fundamental da literatura brasileira. No verbete Gilberto Freyre está dito esta elementar verdade: “renovador das bases do estudo da formação da sociedade no Brasil com Casa Grande & Senzala, obra fundamental da moderna sociologia brasileira”, etc.      

Mas, a explicação vai mais longe. Fui abordado há tempos pelo então diretor de uma editora / (não o José Olympio) que me pediu para rever uma enciclopédia. Depois que aceitei a incumbência, verifiquei que os colaboradores já haviam sido convidados e que, na realidade, tratava-se de acrescentar uns verbetes brasileiros numa enciclopédia de última ordem, inglesa, mas péssima. Era tarde para recuar, mas cedo para tentar corrigir a improvisação e a verdadeira impostura que resultaria desse processo. Trabalhei durante algum tempo sozinho, até que consegui uns poucos colaboradores de minha confiança, que afinal se resumiram no Ivo Barroso, um sujeito realmente extraordinário de seriedade e dedicação. Revimos tudo o que era humanamente possível. Escrevi à coordenadora da obra, uma senhora intratável, mais de 1.000 memorandos, dos quais tenho cópia para lhe mostrar no dia em que você quisesse. Para Psicologia haviam chamado um professor behaviorista que, por isto, e ignorando tudo sobre os deveres de uma enciclopédia, não queria dar importância à obra de Freud, Jung, etc. Para História do Brasil, um professor que chamava a Inconfidência Mineira de Conspiração Mineira— porque, dizia ele, inconfidência era o termo dos reinóis contra os nacionalistas. Em suma, vivi dias de absoluto horror pela incumbência que aceitara. Fiz o que pude para melhorar a obra, rever, acrescentar, cortar coisas como o verbete no qual uma professora de Filosofia dizia que Abelardo “sofrera grave dissabor” por seu amor a Heloísa – o dissabor, como você sabe, consistiu em que o tio da Heloísa, o bispo, mandou castrar o filósofo.

 

         Finalmente, convencido de que a enciclopédia iria vender pouco, fiz o que pude para me desincumbir da tarefa, até como exercício para um dia trabalhar noutra, mais organizada, mais planejada e melhor executada. Eis senão quando a editora faz um acordo com  o José Olympio, para venda da obra – e ao que parece tem vendido muito. Teve, então, uma repercussão inesperada. Resta perguntar como é que você colaborou numa obra que sabia fraca? Para, quando possível, melhorá-la. Depois, porque a não ser a Delta Larousse nenhuma outra no Brasil é tão melhor do que essa. (Não imagina quantos verbetes cortei que eram cópias da Delta Larousse, pela simples razão de que alguns colaboradores eram os mesmos e não se pejavam de copiar convencidos de que as duas iam sair ao mesmo tempo – o que não se deu, afinal). Em suma, Gilberto, esta explicação talvez não satisfaça, mas é a que tenho para lhe dar. Mando-as em caráter particular, pois o assunto não merece mais – e seria maldade decepcionar gente que agiu de boa fé, apenas não teve discernimento bastante para convidar uma equipe de colaboradores mais homogênea e mais compenetrada das responsabilidades de escrever verbetes para enciclopédia. Basta dizer que, para Sociologia, não havia colaborador especializado… enquanto para literatura havia vários, todos com veleidades de crítico literário, o que obrigou-nos a cortar, emendar, rasurar, etc. para reduzir a um resumo objetivo cada verbete. Houve exceções notáveis, como a de Roberto Teixeira Leite, em Artes Plásticas. Mas, poucas. Daí as disparidades, as impropriedades e, principalmente, a ausência de um plano. Consegui dilatar de uns poucos meses para mais de um ano o prazo de elaboração – e ainda assim…

         Um abraço do Carlos Lacerda

 

P.S. O que não disse, porque não vem ao caso, mas talvez acentue a boa fé com que trabalhei: não me dou com o Jorge desde o tempo do pacto teuto-soviético.     

 

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No dia 3 de janeiro de 1973, quando o táxi chegou à porta do Hotel Tivoli, em Lisboa, saltei ansioso do carro para ajudar minha mulher a descer. E, antes de entrarmos no hotel, puxei-a para mim num abraço e lhe disse eufórico: Conseguimos, Silvia! Estamos de volta! O milagre aconteceu.

Essa volta era de fato milagrosa. Nos anos 1968 a 1970 tínhamos vivido na Holanda, na capital Haia, onde exerci as funções de adido comercial junto à Embaixada do Brasil. Oportunidade de ampliarmos nossa visão de mundo, nossos conhecimentos artísticos principalmente quanto à música e as artes plásticas. A temporada foi tão marcante em nossas vidas que, mal regressamos ao Brasil, já alimentávamos o desejo de viver outra experiência no Exterior. Durante dois anos, de volta ao Banco do Brasil e trabalhando na Cacex, inscrevi-me em todas as bolsas de estudo que surgiam por lá, principalmente as do IRI (Istituto per la Riconstruzione Industriale), que propiciava a permanência do bolsista, por até seis meses na Itália, para o estudo de técnicas de promoção comercial. Certa vez, com vários colegas se candidatando, achei que a minha chance havia chegado, pois o IRI exigia sólidos conhecimentos da língua italiana, o que não era evidentemente o caso dos demais participantes. Para minha surpresa, o escolhido foi um colega que, dotado de qualidades profissionais, não tinha o menor conhecimento da língua. Fui então ao consulado para retirar meus papéis de inscrição e vi que eles permaneciam na mesma gaveta e na mesma posição em que foram deixados naquela época. Ao ficar ciente de que a escolha se dera exclusivamente por indicação da Gerência da Carteira, concluí que eu não tinha nem teria a menor chance. A volta não seria por aí…

Então deu-se o milagre. Vejo um dia, no Jornal do Brasil, que a firma Seleções do Reader’ s Digest estava procurando um candidato para exercer as funções de diretor da revista em Portugal, onde era então editada. Alain de Lyrot, um dos principais executivos da firma em Pleasantville, viajaria ao Brasil logo depois do Natal para entrevistar os candidatos e escolher o editor. Corri a fazer minha inscrição e soube que já havia vários “candidatos de peso”.

Em casa, meu tom não era muito animador: um desses candidatos tinha vínculos familiares com a cúpula do poder; outro era conceituado artista plástico que dirigia então uma revista de arte e, um terceiro, velho jornalista conhecido por suas demissões de todos os jornais em que atuou. Sem quaisquer apoios, somente um milagre poderia nos ajudar…

Depois de uma semana, ou mais, de silêncio, comunicaram-me por fim que o senhor de Lyrot me receberia para um almoço no Hotel Ouro Verde, em Copacabana. Mr. de Lyrot provinha de família nobre francesa (soube depois que era conde), usava anel blasonado e era apreciador da boa mesa e dos bons vinhos. O Ouro Verde, famoso por ser um dos melhores representantes da gastronomia carioca de então, fora escolhido pessoalmente por ele para se hospedar durante sua curta permanência no Rio. Eu intuí que o almoço tinha não só a finalidade de entrevistar um candidato quanto às suas habilitações profissionais, mas igualmente a de avaliar seu desempenho social. De Lyrot fora informado de minha atividade de tradutor e jornalista free-lancer, mas  desconhecia minha atuação no setor de enciclopédias, ficando bem impressionado quando lhe falei a respeito e de minha anterior experiência fora do Brasil. O almoço foi rápido mas não corrido, e nos despedimos após o café com sua advertência de que estava entrevistando várias pessoas, sem ter ainda uma escolha definitiva. Novo silêncio seguido de um segundo convite, desta vez para um café, no Ouro Verde. Depois de algumas frases protocolares, de Lyrot me disse que eu era um de seus candidatos, mas que ele teria grande dificuldade de convencer a Sede em Pleasantville de que ele estava contratando um bancário e não um experiente profissional da área. Expliquei-lhe que no Brasil de então, com uma inflação desregrada, praticamente todo mundo tinha um segundo emprego, no meu caso vários, todos eles ligados a livros e editoração, e que meu ideal de emprego único sempre fora o de dirigir uma edição de livro ou de revista. Já prevendo uma pergunta dessa natureza, eu vira no dicionário que o equivalente em inglês do nosso “ter um bico” era o incrível verbo “moonlight”, já que essas atividades suplementares eram em geral exercidas à noite. Mas na hora, parti mesmo para o mais expressivo “sideline job” e detalhei a série de atividades correlatas ao jornalismo que eu exercera ou vinha até então exercendo. Saí de lá meio desesperançado, mas ao mesmo tempo satisfeito em saber que a minha candidatura tinha sido, desta vez, levada em consideração.

O desfecho foi rápido, na véspera de seu regresso a Nova York, o “chief-editor” me disse pelo telefone que a TAP me forneceria duas passagens de primeira classe para Lisboa, e que eu teria de estar lá nos primeiros dias de janeiro – isto a apenas uma semana do final do ano. O milagre havia acontecido.

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Na manhã seguinte, fui à redação da revista que ficava bem próxima do hotel. Fiquei conhecendo o então redator-chefe, Tito Leite, que estava de regresso ao Brasil. Tito, figura simpaticíssima: cordial e tranquilo, era adorado por toda a “equipa” da revista (quatro mulheres e três homens). Disse-me que estava deixando o cargo por várias razões, inclusive pela idade: “Beware the sixties!”, advertiu-me. O Digest nos tratava com tapete vermelho, cartão de crédito, bônus anual enquanto estávamos na ativa, mas nos demitia inexoravelmente ao chegarmos aos sessenta. Evidentemente não era o meu caso, acrescentou, e disse que, na verdade, estava com sérios problemas de saúde: fumante inveterado, não raro durante a conversa tinha assustadores ataques de tosse, mas se recuperava com galhardia e voltava à conversação fluente e colorida. Inteirou-me das funções que eu iria exercer: a leitura dos originais de artigos enviados pela Sede, a seleção do material que comporia o próximo exemplar em língua portuguesa, a elaboração da chamada “table of contents” a ser submetida a Pleastville e a revisão das traduções de artigos feitas no Brasil e em Lisboa.

Uma das tarefas a que logo nos entregamos, juntos, foi a da seleção de “fillers”. Quando os artigos impressos não cobriam toda a página final, o espaço resultante devia ser preenchido por frases filosóficas ou humorísticas adequadas. Esses enchimentos vinham em grandes folhas impressas que líamos, recortávamos e mandávamos traduzir os que achávamos adequados à nossa edição. Da primeira vez em que tomei uma dessas páginas para recortar, dei com o seguinte pensamento que me surpreendeu:

 To most men only the cessation of the miracle would be miraculous, and the perpetual exercise of God’s power seems less wonderful then its withdrawal would be.

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que tentei logo traduzir: Para a maioria dos homens, apenas a cessação do milagre seria milagrosa, e o perpétuo exercício do poder de Deus parece menos maravilhoso de que seria a sua retirada. Uma primeira versão literal que requeria aprimoramento. Mas o que me chamara atenção fora precisamente aquela “permanência do milagre”: eu e minha mulher havíamos vivido num milagre permanente e, de súbito, ei-lo que se interrompe e ficamos mais surpresos com a sua cessação do que com o fato de que vínhamos vivendo permanentemente nele.  Agora, de súbito, o milagre voltara a acontecer, a cadeia se reestabelecera, era preciso louvar “o perpétuo exercício do poder de Deus”.

Henry Wordsworth Longfellow (1807-1882), poeta e pensador norte-americano, autor de uma infinidade de “wittcisms” e de uma epopeia exaltando os primitivos habitantes da América (Song of Hiawatha), foi um dos primeiros tradutores da Divina Comédia  e – sim, senhor! – amigo de D. Pedro II. Pedi ao nosso calígrafo que escrevesse a frase em letra de forma e mandei emoldurar o pergaminho. Esse quadro, nossa perene lembrança do milagre, nos acompanhou durante os mais de 20 anos que vivemos fora do Brasil e ainda hoje está ali, bem visível, no alto de minha estante.

Frase 1

P.S. A história mais detalhada de minha atuação na revista Seleções do Reader’ s Digest pode ser lida aqui na Gaveta nos artigos  Minha carreira jornalística-I (17.09.2010)  e II (18.09.2010).

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congresso eucaristico II

 

Eu me lembro, eu me lembro, era menino e não brincava na praia nem o mar bramia porque ainda estava em Ervália, no interior de Minas, na sacristia da igreja, atento à lição de catecismo. A catequista – uma versão feminina de Anchieta pregando aos tupiniquins – está empenhada em ministrar-nos (?) instrução religiosa e continua a nos surpreender com perguntas enigmáticas: Quem é Deus? Quantos deuses há? Então há três deuses? E depois de nos maravilhar com os mistérios da fé, eis que nos propõe, radiosa: Vamos cantar o hino do congresso?!

Quatro anos antes, em 1936, fora realizado em Belo Horizonte o II Congresso Eucarístico Brasileiro, que reuniu não só na capital mineira, mas em todas as cidades do Estado, verdadeiras multidões de devotos. Naqueles tempos sem televisão, as pessoas se congregavam nas praças e igrejas para cantar o famoso hino, tão famoso, aliás,  que, muitos anos depois (aqui no caso, quatro) ainda era cantado toda vez que havia uma festividade religiosa.   Todos os anos, por ocasião do aniversário do Congresso, o pároco local, Monsenhor Rodolfo, convocava as Filhas de Maria, os Congregados Marianos, as cantoras do coro da igreja e os fiéis em geral para cantar, em altas vozes, o hino eucarístico. Todos o sabiam de cor, tanto os moradores da cidade quanto os que viviam no campo, talvez ainda mais devotos e chegados a uma cantoria.

O catecismo era frequentado maciçamente pelos meninos da roça, que, além de devotos, viam nas aulas uma espécie de recreio para os seus trabalhos agrícolas. Todos eles sabiam cantar o hino sem titubeios:

 

Tuske Rei e nos pobres de Minas

Finca aqui seu tronco, ai Jesus,

E nas pragas famosas de Minas   

O Brasil para a grória com luz.

 

Era um hino que de certa forma me perturbava: quem seria aquele rei Tuske (ou turco?), certamente um tirano que torturava os pobres pedintes mineiros fincando-lhes um tronco (empalação? não, porque na época eu nem conhecia a palavra), que lhes fazia gritar ai Jesus! E porque pragas famosas? Famosas eram, segundo o catecismo, as do Egito. Quais seriam as nossas: pobreza, miséria, doença, analfabetismo? E porque esse miserável déspota iria iluminar o Brasil para a “grória”? Seria uma alusão a Getúlio Vargas que gozava as regalias do poder? Impossível, a Igreja estava em paz com o governo ditatorial.

Mas a douta coadjuvante que nos fora capaz de explicar que o deus trino era de fato uno, que Padre não era o Monsenhor Rodolfo mas uma forma genérica de dizer Pai (no caso o Pai do Filho), que o Filho era na verdade Deus (que é Pai) e que o Espírito Santo não era o nosso estado limítrofe mas uma pomba, que na verdade não era uma pomba mas o espírito de Deus – pressurosa  correu para o quadro negro e lá caligrafou:

 

Tu, que és Rei, e que aos povos dominas,

Firma aqui teu trono, ó Jesus!

E, das plagas formosas de Minas,

O Brasil para a glória conduz!

 

Ficamos transtornados com o texto, embora as palavras escritas nos servissem de alívio. Sim, senhor, então o terrível rei turco não era outro senão o próprio Jesus que na verdade era Deus?! Um Deus benigno que não obstante dominava os povos?! E que não fincava nada em ninguém, mas pelo contrário devia estabelecer seu trono (foi difícil explicar que não se tratava realmente de um trono, mas da vontade todo poderosa de Deus), e que ninguém havia gritado ai Jesus! e sim invocado a sua condição de Deus. Não, não havia pragas em Minas, embora os meninos da roça achassem que sim; o que havia eram plagas, estranha palavra desconhecida tanto para nós, os da cidade, quanto para os trabalhadores do campo. E ficamos sabendo afinal que a suposta “glória com luz”, que nos soava tão prometedora, não passava do nosso conhecido  e cotidiano ato de levar alguém para algum lugar.

De qualquer forma, foi um alívio: o Tuske Rei nascera de um defeito de pronúncia (“Tu, que és rei”), embora nos parecesse um desrespeito chamar Jesus por tu, já que chamávamos nossos pais de Senhor e Senhora. Mas foi bom livrar os pobres daquele martírio de serem espetados por um tronco. Também ficamos livres das pragas, embora sobrecarregados com aquelas plagas que ninguém sabia o que eram. Como para nós condução fosse apenas a pirua, o único veículo coletivo da cidade, saímos leves, certos de que o nosso Rei, fosse ele quem fosse, levaria o Brasil de automóvel para a glória…

O curioso é que, décadas e décadas depois, eu às vezes ainda me surpreendo a cantar na memória: Tuske rei e que os pobres de Minas

 

(outra historinha divertida só para variar)

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