Durante anos o Lucas Carton figurou no Guide Michel como um dos restaurantes mais estrelados de Paris. Reputado pelos gastrônomos como “a melhor carne de toda a culinária francesa”, era quase impossível conseguir-se ali uma reserva se não com meses de antecedência. Situado na Place de la Madeleine 9, bem defronte ao esplendoroso frontal dessa igreja que mais parece um templo grego ou um tribunal de justiça, o restaurante possui à entrada um pequeno pátio para estacionamento privativo de seus clientes, o que, considerando o local, é um verdadeiro privilégio para estes e um motivo de orgulho para o restaurante.
Foi em princípios de 1982. Numa de nossas idas a Paris, resolvemos arriscar a sorte e chegar de improviso ao famoso Lucas Carton sem reservar. Talvez porque fosse ainda cedo, não tive dificuldade em entrar no estacionamento privativo, e saí do carro para falar diretamente com o maître. O garçon, que me atendeu logo à entrada, foi taxativo: Domage, Monsieur, nous sommes complet! E como eu argumentasse que o salão à minha frente estava completamente vazio, ele, condoendo-se de minha ignorância, informou que ainda era cedo para a chegada dos clientes, mas que todas as mesas estavam reservadas. Além do mais, ali só serviam uma refeição por noite; logo, pas de chance, adeus, não havia a menor possibilidade. Enquanto parlamentávamos, o maître se aproximou para saber de que se tratava. Expliquei que éramos de fora, que eu conhecia alguns restaurantes conceituados de Paris, mas que não queria regressar a casa sem ter pelo menos tentado jantar no famoso Lucas Carton. Não haveria uma possibilidade, nem que fosse numa mesa à parte, até mesmo fora do salão principal?! O maître gostou da minha insistência. Eu falava sem parar no nome do restaurante, indicava minha esposa que ficara lá em frente esperando no carro… Ele entrou de novo no salão enquanto aguardávamos à porta. “Esperem uma meia hora”, disse ao voltar. “Um de nossos clientes habituais, M. Dali, que costuma jantar bem cedo, está quase terminando. Vou lhes fazer a exceção de um segundo serviço”. Voltei para o carro com um sorriso aberto e disse à minha esposa que a parada estava ganha.
Algum tempo depois, vi passar em direção à entrada do restaurante, vindo de marcha a ré, um grande carro preto que estacionou em frente ao nosso. Logo saiu do volante um senhor que abriu a traseira do carro, onde havia uma espécie de cadeira especial. Momentos depois, amparado pelo maître e pelo garçom já nosso conhecido, vimos sair do restaurante um velho pálido, visivelmente enfermo, já que não conseguia andar por si mesmo. Ao chegar junto ao furgão, o trio deu uma meia-volta, ficando de frente para nós. Foi quando percebemos nitidamente que o enfermo era o famoso e genial Salvador Dalí, com seus bigodes retorcidos, mas sem aquela expressão agressiva que se vê nas fotografias. Com cuidado ou carinho, puseram-no sentado na cadeira especial e começaram a fechar bem devagar a porta. Atrás, vinha uma figura feminina, espevitada e bem-falante, caminhando normalmente, na qual reconhecemos a igualmente famosa Gala, sua mulher e inspiradora. Ela despediu-se agradecida do maître, contornou o veículo e foi sentar-se ao lado do chofer, que deu partida ao carro.
De fato era mesmo Elena Ivanovna Diakonova, nascida russa em 1894, e mais conhecida pelo apelido de Gala. Musa de poetas, mulher fatal que inspirou várias paixões, a começar com Paul Éluard (1895-1952), o grande poeta surrealista francês, que conheceu em 1912 em Clavadel, na Suíça, num sanatório para tratamento de tuberculose. Ambos tinham 17 anos e se apaixonaram, vindo a casar-se mais tarde, em Paris, em 1917, e tiveram uma filha, Cécile, que ela ignorou e maltratou, revelando a megera que se escondia atrás da musa inspiradora. Em Clavadel, naquele mesmo ano de 1912, Gala conheceu também o poeta alemão (depois naturalizado francês) Max Ernst (1891-1976), ligado ao surrealismo, com quem teve igualmente um caso, e com quem conviveu mais tarde (1924-1927) em Paris, juntamente com Éluard, em regime de casal-a-três. Posteriormente, Éluard, cujo nome era Eugène Emile Paul Grindel, de origem judaica, passou a chamar-se Paul Éluard, “pour motifs três litteraires” (conforme informou em carta a Manuel Bandeira), embora haja razão para se pensar em outra espécie de motivo. Por falar em Bandeira, o nosso Manuel também estava nessa de Clavadel na mesma época e certamente se viu atraído pelos encantos da jovem Elena. Há uma fotografia em que os três aparecem sentados na soleira do hotel, Bandeira se inclinando em direção a Gala, com um ar de quem está lhe fazendo um galanteio (*). Em 1928, numa viagem à Espanha, Gala e Éluard conhecem o emergente pintor surrealista Salvador Dalí, dez anos mais novo do que ela. Gala e Dalí passam a viver juntos em 1929 e se casam no civil em 1934. A cerimônia religiosa só foi possível em 1958, por Gala ser então divorciada. Éluard viria a se tornar um dos poetas mais amados da França, quando seu poema Liberté – J´écris ton nom –, composto em 1942, foi espalhado em milhares de cópias jogadas de avião sobre o povo francês que resistia à invasão nazista.
Quem diria, a Gala, mulher fatal, inspiradora de artistas, que caminhava então sobranceira atrás do que parecia o cortejo fúnebre de um decrépito Dalí, quem diria que ela, com todo o seu ar de pitonisa, iria morrer pouco depois, exatamente a 10 de março daquele mesmo ano. O moribundo Dalí sobreviveu, embora enfermo, só vindo a falecer sete anos mais tarde, a 23 de janeiro e 1989.
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Ah, quanto ao jantar, sentamo-nos à mesa em que esteve o casal, pedimos o recomendado boeuf à bourguignone, digno das estrelas que o consagraram, mas foi impossível manter um ar de vitória diante da lembrança do pintor.
Sr. Ivo Barroso,
Eu conhecia uma marchand paulistana que visitou Salvador Dalí numa residencia dele na Espanha. Ela contou que no pátio tinha uma piscina fina e comprida com a água preta de sujeira, até borbulhando devido à decomposição das folhas nela caídas. A minha amiga olhou para Dalí, estranhando aquela água imunda numa casa tão sofisticada, e ele disse com a cara mais séria do mundo:”Todo inverno, eu mando encher a piscina com coca-cola”.
Abraço,
João Renato.
Bem surrealista, à la Dalí. O leitores vão se divertir com mais essa do gênio.
Obrigado e abraços do
Ivo Barroso
Caríssimo Poeta Ivo Barroso,
Obrigado, por mais esta maravilhosa crônica vivida, tão bem vivida…
Com o meu abraço…
Ivo, tomei a liberdade de transferir essa sua bela história para meu facebook – https://www.facebook.com/waldemarjose.solha.5
Caríssimo,
fico envaidecido com tal consideração, a história é curiosa, mas não merece tanto. Em todo caso, a Gaveta está inteiramente à sua disposição. Infelizmente, como não sou do Facebook, não posso acompanhar seus posts.
Grande abraço,
ivo
Suas informações sobre Gala coincidem com as minhas. A desgraçada era uma rapina. Pelo que me consta, fazia com que Dali – quando já estava ferrado – assinasse telas e folhas de desenho em branco, que ela entregava a contratados seus para que fizessem Dalis falsos. E não foi pouca coisa. Cerca de 400 trabalhos.