Com pedra ou sem pedra,
Drummond é o caminho.
Ivo Barroso
Quando A rosa do povo foi publicado, em 1945, o nome de Drummond – ou seja, a sua poesia – já era conflitante, com partidários e oponentes acirrados, parecendo impossível uma posição de equilíbrio crítico entre os que o admiravam incondicionalmente e os que o atacavam sem piedade. Seu poema No meio do caminho, publicado alguns anos antes, havia dividido o Brasil, segundo seu próprio autor, em ”duas categorias mentais”, querendo provavelmente se referir aos que o achavam genial e aos que o repudiavam como simples galhofa sem sentido. Mas todos os expoentes da intelectualidade brasileira da época eram concordes em ver em Drummond o nosso primeiro grande poeta, a voz brasileira que se universalizava, a realizada transição do canto intimista para o canto social. Além disso, Drummond era cada vez mais apreciado pelos jovens universitários, que se formavam sob a orientação de professores igualmente jovens e empenhados em traçar diretrizes de modernidade para a cultura do país.
Havia, contudo, jovens como eu que se encontravam num limbo de perplexidade. Sua poesia era desconcertante em relação ao que julgávamos até então como sendo poesia. Passei a ler Drummond dia e noite em busca do sonhado momento da revelação, em que eu percebesse, por mim próprio e não pelo que me diziam os artigos de jornal, a autenticidade, a conquista definitiva do ideal poético, que assumira tantas e tão variadas fases e faces no decorrer de meu aprendizado de poesia. Li que Drummond era um mineiro tímido e esquivo, mas que em geral respondia as cartas que lhe eram enviadas. Um dia consegui vencer a minha ainda maior timidez de interiorano e lhe mandei uma carta em que, depois de me queixar das dificuldades de publicação dos poetas jovens na cidade grande, lhe dizia de minha apreciação por certos poemas seus que, segundo eu, ainda guardavam um sentimento romântico, e juntei à carta dois dos meus, pedindo-lhe uma apreciação. Dias depois, recebi dele a seguinte carta:
”Rio, 23 junho 1949.
Ivo N. Barroso:
Não vejo muita razão para o pessimismo de sua carta quanto às dificuldades do moço literato na cidade grande. O que v. chama de ‘indústria da poesia’ creio que não existe. Os poetas que alcançaram maior apreço pela sua obra são, na sua quase totalidade, homens pobres e que não fizeram quaisquer transações com o gosto do público ou dos poderosos. Dificuldades existem para a profissão literária em geral, e não só no Rio. Apesar dessas dificuldades, contudo, nunca se fez ouvir como agora, com tamanha intensidade, a voz dos novos. Com vinte e poucos anos, hoje, no Brasil, os poetas têm uma infinidade de jornais e revistas à sua disposição, xingam valentemente os mais velhos e desfrutam de uma vasta notoriedade. Não me parece desanimador este espetáculo. Dos dois poemas que me mandou, prefiro o primeiro, Criptógamo, que tem uma intenção mais sutil, expressa de maneira mais trabalhada. A morte do poeta moderno é um tanto declamatório e vão, puxado a discurso poético. Não é possível formar juízo diante destas amostras, apenas, e de resto eu me considero o antijulgador por excelência. Mas de uma coisa esteja certo: a poesia acontecerá ou não em você, de forma inelutável, menos pelos palpites que lhe derem do que pelo próprio trabalho interior, sua inclinação irresistível para a expressão poética.
Cordialmente,
Carlos Drummond de Andrade”
Mais tarde, quando li as Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke, na histórica tradução de Paulo Rónai, senti que a carta de Drummond tivera mais peso para mim do que as palavras teorizantes de Rilke endereçadas a Franz Xaver Kappus. O nosso poeta, em poucas linhas, definira todo o drama da dúvida do poeta novo à procura de um incentivo ou de uma negação definitiva. A poesia era um acontecimento, não uma flor que se cultiva pelo seu poder decorativo, mas um sofrimento que perturba, que satisfaz e angustia. Fazer desse acontecimento uma razão de vida, ou de morte, era o trabalho do poeta, seu aprendizado, sua evolução, sua realização, que estará sempre muito aquém do quanto ele quer ou pensa poder alcançar. Compreendendo isto, todas as dúvidas se desvanecem. E um grande tormento principia.