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Archive for agosto \30\-03:00 2010

Com pedra ou sem pedra,

Drummond é o caminho.

Ivo Barroso

Quando A rosa do povo foi publicado, em 1945, o nome de Drummond – ou seja, a sua poesia – já era conflitante, com partidários e oponentes acirrados, parecendo impossível uma posição de equilíbrio crítico entre os que o admiravam incondicionalmente e os que o atacavam sem piedade. Seu poema No meio do caminho, publicado alguns anos antes, havia dividido o Brasil, segundo seu próprio autor, em ”duas categorias mentais”, querendo provavelmente se referir aos que o achavam genial e aos que o repudiavam como simples galhofa sem sentido. Mas todos os expoentes da intelectualidade brasileira da época eram concordes em ver em Drummond o nosso primeiro grande poeta, a voz brasileira que se universalizava, a realizada transição do canto intimista para o canto social. Além disso, Drummond era cada vez mais apreciado pelos jovens universitários, que se formavam sob a orientação de professores igualmente jovens e empenhados em traçar diretrizes de modernidade para a cultura do país.

Havia, contudo, jovens como eu que se encontravam num limbo de perplexidade. Sua poesia era desconcertante em relação ao que julgávamos até então como sendo poesia. Passei a ler Drummond dia e noite em busca do sonhado momento da revelação, em que eu percebesse, por mim próprio e não pelo que me diziam os artigos de jornal, a autenticidade, a conquista definitiva do ideal poético, que assumira tantas e tão variadas fases e faces no decorrer de meu aprendizado de poesia. Li que Drummond era um mineiro tímido e esquivo, mas que em geral respondia as cartas que lhe eram enviadas. Um dia consegui vencer a minha ainda maior timidez de interiorano e lhe mandei uma carta em que, depois de me queixar das dificuldades de publicação dos poetas jovens na cidade grande, lhe dizia de minha apreciação por certos poemas seus que, segundo eu, ainda guardavam um sentimento romântico, e juntei à carta dois dos meus, pedindo-lhe uma apreciação. Dias depois, recebi dele a seguinte carta:

Rio, 23 junho 1949.

Ivo N. Barroso:

Não vejo muita razão para o pessimismo de sua carta quanto às dificuldades do moço literato na cidade grande. O que v. chama de ‘indústria da poesia’ creio que não existe. Os poetas que alcançaram maior apreço pela sua obra são, na sua quase totalidade, homens pobres e que não fizeram quaisquer transações com o gosto do público ou dos poderosos. Dificuldades existem para a profissão literária em geral, e não só no Rio. Apesar dessas dificuldades, contudo, nunca se fez ouvir como agora, com tamanha intensidade, a voz dos novos. Com vinte e poucos anos, hoje, no Brasil, os poetas têm uma infinidade de jornais e revistas à sua disposição, xingam valentemente os mais velhos e desfrutam de uma vasta notoriedade. Não me parece desanimador este espetáculo. Dos dois poemas que me mandou, prefiro o primeiro, Criptógamo, que tem uma intenção mais sutil, expressa de maneira mais trabalhada. A morte do poeta moderno é um tanto declamatório e vão, puxado a discurso poético. Não é possível formar juízo diante destas amostras, apenas, e de resto eu me considero o antijulgador por excelência. Mas de uma coisa esteja certo: a poesia acontecerá ou não em você, de forma inelutável, menos pelos palpites que lhe derem do que pelo próprio trabalho interior, sua inclinação irresistível para a expressão poética.

Cordialmente,

Carlos Drummond de Andrade”

Mais tarde, quando li as Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke, na histórica tradução de Paulo Rónai, senti que a carta de Drummond tivera mais peso para mim do que as palavras teorizantes de Rilke endereçadas a Franz Xaver Kappus. O nosso poeta, em poucas linhas, definira todo o drama da dúvida do poeta novo à procura de um incentivo ou de uma negação definitiva. A poesia era um acontecimento, não uma flor que se cultiva pelo seu poder decorativo, mas um sofrimento que perturba, que satisfaz e angustia. Fazer desse acontecimento uma razão de vida, ou de morte, era o trabalho do poeta, seu aprendizado, sua evolução, sua realização, que estará sempre muito aquém do quanto ele quer ou pensa poder alcançar. Compreendendo isto, todas as dúvidas se desvanecem. E um grande tormento principia.

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Já li e recomendo O RELATO DE PRÓCULA, desse homem dos sete (só?) instrumentos: poeta, romancista, jornalista, ator de teatro e cinema, pintor impressionista, expressionista e outros istas, autor de libretos de ópera, conhecedor profundo de cinema, seus astros diretores etc. – enfim, o factótum literário mais realizado que conheço: W. J. Solha. O livro é um conflito entre o sentimento religioso do padre Martinho e sua vocação carnal desenfreada. E a tese do porquê da defesa de Jesus por Pilatos, uma revelação até agora insuspeitada. Solha, paulista de Sorocaba, radicou-se em João Pessoa-PB, aumentando a valorização daquele território onde se pode encontrar o maior número de intelectuais por metro quadrado no Brasil. O livro tem profundidade ideológica, além de ser uma conquista estilística entre o sinfônico e o cordel, ganhador de uma bolsa da Funarte e finalista do prêmio Jabuti. Mas Solha é muito mais que isto: sua HistóriaUniversal da Angústia escarafuncha as profundidades anímicas de Saul e Parsifal, de Édipo e de Hamlet, etc. fazendo deles personagens dialogáveis entre nós. Seu Trigal com corvos (prêmio João Cabral de 2005) é uma palheta transbordante de cores e de sons poéticos. Seu blog eltheatro.com é um espetáculo de erudição pictórica. E vai por aí. Confiram.

 

Para quem gosta de contos, a pedida certa é sem dúvida a revista especializada Arte e Letra Estórias, editada em Curitiba por I. B. Netto e Thiago Tizzot (www.arteletra.com.brcontato@arteeeletra.com.br) que, em seu número (trimestral) de junho-julho-agosto – 2009, trazia contos de Faulkner, Antonio Tabucchi, Conan Doyle, Ryûnosuke Akutagawa, entre outros. A qualidade da publicação, desde o papel às ilustrações refinadíssimas, coloca-a entre as melhores publicações do gênero já surgidas entre nós.

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Graças às revelações da crítica norte-americana Marjorie Perloff, os cultores de Sylvia Plath já sabiam, desde 1990, que o livro, publicado, em 1965 pelo marido Ted Hughes sob o título “Ariel”, não era exatamente a reprodução dos originais datilografados que a autora deixara sobre a escrivaninha, em 11 de fevereiro de 1963, quando se suicidou aspirando gás de cozinha. Os poemas tinham sido remanejados por Ted, que os submetera a cortes e inclusões, para – segundo ele – “fazer do livro o melhor que pudesse” e, ao mesmo tempo “defender a memória da mãe de seus filhos e de pessoas vivas, além da própria reputação”.

Alguns dos poemas suprimidos deixavam à mostra a grande amargura de Sylvia com a traição do marido, que a abandonou por Assia Wevill, com quem teve uma filha. Esse ato de escamoteamento dos indícios de uma possível culpa fez com que a corrente feminista norte-americana o atacasse furiosamente, atribuindo-lhe a morte da esposa por indução ao suicídio (a palavra “assassinato” foi mesmo utilizada). Via-se nele apenas o poeta inglês conquistador que teve inúmeros casos com suas colegas e
alunas do Pembroke College, em Cambridge, onde conheceu e se casou com Sylvia, que ali fora estudar graças a uma bolsa da Fundação Fullbright.

Essa fúria feminista agravou-se ainda mais quando, seis anos após a morte de Sylvia, a “outra” (Assia Wevill) igualmente se suicidou com gás, depois de matar a filha Shura, que tivera de Hughes. À parte essa acusação pública de mau-caratismo, Ted era considerado pela crítica como o mais importante poeta inglês do século XX, e guardou o título de Poeta Laureado da Inglaterra de 1984 até sua morte em 1988. Pouco antes de morrer, publicou uma coletânea de poemas, “Cartas de Aniversário”, em
que relata seu relacionamento com Sylvia, desde o encontro inicial em Cambridge até a separação, conseguindo com isto granjear alguma simpatia em relação ao seu comportamento conjugal.

Contudo, foi só em 2004 que os mesmos cultores plathianos puderam ter acesso aos verdadeiros originais de “Ariel”, na ordem estabelecida por Sylvia, sem cortes nem substituições. A filha do casal, Frieda Hughes, deu a público uma edição fac-similada dos originais cuidadosamente datilografados pela própria Sylvia, com todas as emendas à mão feitas por ela. O título original era inicialmente “Rival”, emendado para “A Birthday Present” (Um presente de aniversário”), depois para
“Daddy” (Papai), para fixar-se finalmente em “Ariel”, que, nas próprias indicações um tanto despistadoras fornecidas por Sylvia à BBC numa entrevista de 1962, tanto podia significar o personagem shakesperiano de “A Tempestade” quanto o nome de um cavalo de sua predileção.

Nesse prefácio, a filha Frieda, embora defendendo a integridade da obra materna, escusa o pai de ter desfigurado o livro, informando que ele fizera uma leitura crítica dos originais, retirando 13 poemas e os substituindo por trabalhos mais recentes e expressivos que Sylvia compusera nas últimas semanas antes de morrer. E Frieda ataca frontalmente os que acusaram Ted de ter agido em causa própria, dizendo: “Meu pai tinha profundo respeito pela obra de minha mãe, apesar de ter sido um dos alvos de sua fúria. A obra era tudo para ele, que via o cuidado com ela como uma forma de homenagem e uma responsabilidade”.

Destoando do coro da crítica feminista anti-Hughes, a criteriosa Megan O´Rourke publicou, logo após o aparecimento da edição fac-similada de 2004, um artigo em que analisa as alterações introduzidas por Ted, concluindo, com argumentos convincente, que a versão dele “é de fato superior à de Plath – e que a própria [autora] teria ficado satisfeita com ela”. Essa opinião, no entanto, não é incontestável.

Saindo agora [2007] a edição brasileira de “Ariel”, vê-se que foi conservada a reprodução fac-similar dos originais datilografados de Sylvia Plath, vis-à-vis da tradução dos versos feita por Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo. Embora não esteja esclarecido o método utilizado pelos tradutores – uma espécie de execução musical seja a dois pianos ou a quatro mãos – a qualidade do trabalho de transposição (no livro mencionada como “transcriação”) merece ser destacada, tendo em vista a riqueza vocabular, os efeitos guturais, sonoros, dessa poesia que, segundo a própria autora, ganhava intensidade ao ser lida em voz alta.

Quem ouviu a gravação em cassete “The poet speaks” em que T. S. Eliot lê um dos poemas humorísticos de ”Os Gatos” – lembra-se da voz esganiçada e quase histérica de Sylvia dizendo “Daddy”, dedicado ao pai entomologista prussiano, Otto Plath, que ela perdeu aos 8 anos e de cuja lembrança jamais conseguiu libertar-se, tanto assim que cogitou de dar ao livro o mesmo  título do poema. Seu temperamento irritadiço e neurótico levava-a a constantes crises de depressão, mas foi sobretudo a ruptura com Ted que lhe fez escrever alguns versos amargos e espinhosos, sorrateiramente subtraídos por ele em sua edição de “Ariel”.

A poesia de Sylvia é hermética, desnorteante às vezes, com o leitor sem saber o significado ou a intenção dos versos, mas sempre construída com um vocabulário de riqueza léxica incomparável, bem diversa da poesia do marido que, pelo menos nas “Cartas de Aniversário”, assume um tom narrativo, facilmente decodificável. Já Sylvia, levou a língua inglesa a vórtices de antagonismo sintático, a uma escala de sons espinhosos e aliterantes (“Marble façades with blue veins, and jelly-glassfuls of daffodils” – Berck-Plage), dos quais brotam imagens surrealistas (“Six round black hats in the grass and a lozenge of wood, / And a naked mouth, red and awkward”) dificilmente traduzíveis.

(Artigo publicado na “Ilustrada”, da Folha de São Paulo, em 20.10.2007 – Edição mostra Syvia Plath sem cortes)

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FELICIDADE

Felicidade, pássaro azul da minha

infância! procurei-te pelos diversos

caminhos, em estranhos lugares… Tinha

uma vã esperança, florindo em versos,

a alma simples e boa, os olhos imersos

nos horizontes puros, na imensa linha

do céu, nos caminhos virgens e dispersos

por onde, cansado de buscar, eu vinha…

Cogitei que estivesses no amor e quis

amar; porém, no amor, nunca estás, que eu sei…

Meu ideal de poeta (o afã de ser feliz),

ó pássaro azul, simbolizei em ti.

E hoje penso que se nunca te encontrei,

será talvez porque nunca te perdi.

(1948)

 

 

Nota: Este soneto foi uma experiência de fazer hendecassílabos

acentuados na 6ª e 11ª sílabas, quando o habitual seria na 5ª e 11ª,

como no 8º e 12º versos. O dístico final contém um verso acentuado na

3ª e 7ª e o outro na 4ª e 7ª. Aparentemente trata-se de um soneto

inglês, por ser compacto e acabar em dístico; mas, na verdade

está estruturado no clássico esquema de rímico abab baba cdc ede.

Outra experiência da época é também um soneto, desta vez

decassílabo, mas com acentuação intermediária na 5ª sílaba,

fugindo ao padrão 6ª e 10ª.

 

 

TÚMULO SOB A CHUVA

 

Nas noites de chuva, em golpes de bumbo,

Ressoam trovões… O raio, da escura

Grandeza, ilumina as gotas de chumbo

Da chuva que cai na vil sepultura…

 

Por entre os desvãos do muro, o mofumbo

Alastra-se… Os ramos pendem da altura

Dos verdes chorões… E as gotas de chumbo

Destilam por entre a espessa verdura,

 

Pingando, pingando… – Outrora, foi branca,

Caiada por fora, cheia de mármores,

Legendas também; mas, hoje, esbarranca,

 

Do bojo cuspindo as brancas ossadas…

E o raio que racha o tronco das árvores

Imita o estalar de mil gargalhadas…

(1948)

 

 

Finalmente, um soneto em dísticos:

 

 

ATALARICO

 

 

Atalarico, rei dos godos, penso

no teu reinado fragoroso e intenso.

Estavas com quinze anos e eras rei!

Rodeado pela inculta e forte grei

dos bárbaros, fizeste do poder

um instrumento a mais do teu prazer.

Com rudes favoritos de tua idade

queimaste em chama viva a mocidade

e, aos dezoito anos, velho e decadente

pelas paixões, morreste plenamente

satisfeito em teu mínimo desejo.

Atalarico, rei devasso, invejo

tua curta existência bem vivida:

morres com a boca transbordando vida.

 

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Aos sete anos me apaixonei perdidamente pela leitura. Não em sentido figurado, mas num verdadeiro ato de amor. De amor e solidão, pois me escondia nos lugares mais insólitos para ler, exigindo do livro uma reserva, um segredo, um acumpliciamento que não poderia existir às claras e testemunhável. A volúpia de ler era o meu pecado. E eu pecava com volúpia, escondido embaixo do sofá da sala de visitas que cheirava a cera e a vermelhão, no oásis do linóleo verde, vendo os acenos das cortinas de filó que pendiam da janela – possíveis bridas de meus corcéis do sonho. Ali possuía fisicamente os livros pelo tato, pelo olfato, pela visão de olhos esbugalhados e gozosos, na mente que se despenhava pelos abismos de mil léguas submarinas ou escoteiramente acompanhava o pequeno vigia lombardo pelas florestas infiltradas de inimigos. Horas e meses e anos devorei – mas degustando cada palavra, principalmente aquelas cujo sentido não sabia – os quinze voluptuosos volumes do Thezouro da Juventude, encadernados em couro verde, com letras de ouro nas lombadas. Ler era viver, era mais: era viver muitas outras vidas além da minha, em terras em que eu jamais sonharia alguma vez estar, e mais ainda, em terras que nem mesmo existiam, já que nem eram mencionadas no livro e que o êxtase da leitura me induzia em mente a percorrer.

A leitura fez de mim um aventureiro e um cientista, às vezes com riscos de catástrofe. Minha irmã mais nova serviu de alvo às nossas flechas moicanas e um tiro de espingardinha de chumbo repercutiu no beco da farmácia. Ajoelhado em grãos de milho, de castigo por causa da peripécia, minha única preocupação era a de que meu pai me proibisse de ler. Eu não saberia suportar essa paixão contrariada. Mas meu pai era compreensivo, incentivava meu capricho, fazia gosto no namoro. E passei às biografias, aos romances, à medida que ia crescendo e já não me escondia embaixo do sofá. Agora procurava os jardins, o alto do Santo Cristo para meu ato público de ler. Minha volúpia se tornava mais discreta: quem me visse diria que eu estava apenas lendo e não possuindo voluptuosamente as páginas do livro.

Com o passar do tempo, meu ritual de ler assumiu várias formas: a leitura à noite, enquanto os outros dormiam; a leitura nos momentos de espera e nos meios de transporte – mas leitura em todo e qualquer instante em que não estivesse executando alguma obrigação. Pois ler era agora sobreviver. Era fugir às condições precárias que me eram impostas. Era continuar senhor de um mundo só meu, onde as coisas mais incríveis aconteciam pelo arranjo mágico de um conjunto de letras dispostas no papel.

Sempre fui fiel à minha paixão, embora fosse uma paixão pluralística e donjuanesca, pois inúmeros eram os objetos do meu amor: fileiras e mais fileiras de livros que eu ia guardando nas estantes. Hoje me surpreendo de, às vezes, tomar de um livro que li há quarenta anos ou de encontrar num deles uma dedicatória cuja data me enche de espanto pela brutal passagem do tempo. Mas, ao abri-lo, como que volto a provar daquela mesma emoção com que o li em criança ou muito jovem e me dou conta de que, apesar do tempo, a minha paixão pela leitura não arrefeceu. Olho para a estante e vejo enfileirados todos os gritos de angústia que feriram a minha sensibilidade de ontem, todos os versos de amor que retiniram nos meus ouvidos de rapaz. E me surpreendo, às vezes, ao fechar cauteloso a porta do quarto e tomar com carinho algum volume recém-saído, ao ver que o vou possuir hoje, agora, com aquela mesma volúpia do menino que lia embaixo do sofá.

(Artigo publicado no Jornal do Brasil, de 14.05.2005)

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No tempo em que se estudava francês no colégio, era comum saber-se de cor aqueles versos maviosos de Verlaine

Les sanglots longs

Des violons

De l´automne

Blessent mon coeur

D´une langeur

Monotone.

(Tradução literal, mecânica: Os soluços longos/ dos violinos/ do outono/ferem meu coração/ de um langor/ monótono.) Deles, conheço três versões em português:

Guilherme de Almeida:

Estes lamentos

Dos violões lentos

Do outono

Enchem minha alma

De uma onda calma

De sono.

Onestaldo de Pennafort:

Os longos sons

dos violões

pelo outono,

me enchem de dor

E de um langor

de abandono.

Alphonsus de Guimarães

Os soluços graves

Dos violinos suaves

Do outono

Ferem a minha alma

Num langor de calma

E sono.

Ora, tanto Guilherme de Almeida (1890-1969) quanto Onestaldo de Pennafort (1902-1987), excelentes e tarimbados tradutores do francês e, em especial, de Verlaine, sabiam muito bem que violon em francês é violino e não violão. Como se deu, no caso, a mudança? Sem dúvida nenhuma, para reproduzir o timbre, a tonalidade grave dos versos em “ô” (sanglô lon violôn otône), atentos ao lema verlainiano “de la musique avant toute chose”. E creio ainda que ambos quiseram transpor, além do sentido do poema, a “atmosfera” geradora da sensação nele contida; daí “reclimatizaram” a ambientação do mesmo. O outono a que Verlaine se refere é aquela estação europeia, geradora do spleen baudelairiano, depressiva, que antecede o ainda mais sombrio e gelado isolamento do inverno. Os soluços longos são do vento que assovia como o arranhar de violinos desafinados, ferindo o coração do poeta de uma languidez persistente. Já o outono brasileiro sugeriu aos dois tradutores uma quadra sazonal bem próxima do verão, em que ainda se sente uma apatia preguiçosa, acentuada pelos graves sons monótonos dos violões. Essa reambientação se torna ainda mais localizada em Onestaldo ao rimar “sons” com “violões”, sugerindo uma prosódia circunscrita a determinados estados do sudeste (principalmente o Rio de Janeiro) em que a palavra é pronunciada “soins” (ou sões), diversamente de outras áreas, principalmente a de Minas Gerais, em que ela é duramente emitida como “sonz” . Em Guilherme, o planger dos violões provocam a sensação de calma e mesmo de sono; já em Onestaldo, o sentimento é de dor (de cotovelo?) e mesmo de abandono (amoroso?).

Na versão do poeta simbolista mineiro Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), que morou toda a vida na friorenta Mariana-MG, os violinos são restaurados, bem como os soluços e o langor, e o “monotone” é transposto pela expressão “de calma e sono”. Mas os longos soluços se transformam em graves (mais próprios de violões que dos agudos violinos) e estes se apresentam suaves quando no original seriam quase dissonantes. Uma possibilidade para ficar próximo do sentido talvez fosse: Gemidos finos/ dos violinos/ do outono… mas, e o timbre, o tom grave, surdo, quase oco daqueles “ô-ô-ô”s? Quem sabe: Graves bordões/ dos violões/ do outono… saiu bem, mas, e o sentido? Eta versinho miserável! Ah, e a propósito: Como você faria?

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Em 1934, já com seu nome firmado como poeta, Onestaldo de Pennafort publica um livro de traduções em versos que lhe traria o definitivo renome e acolhimento irrestrito entre o público leitor. Falo de Festas galantes, as Fêtes galantes que Paul Verlaine escrevera entre 1867 e 1868, em que, diversamente dos Poèmes saturniens, que publicara antes — onde invocava o signo pesado e terráqueo de Saturno — se descortina agora uma paisagem ricamente colorida e musical, aérea e volátil, qual se fora a própria transposição poética da pintura de Watteau e Fragonard. Essa poesia encontrou em Onestaldo o seu tradutor privilegiado pela identificação não só de estilo como de temática, qual se ambos, autor e tradutor, afinassem suas liras pelos mesmos sentimentos. Certamente, como teórico da tradução, defendo a tese de que não há necessidade dessa comunhão para que uma tradução seja bem sucedida. Há casos, de traduções de qualidade exemplar, em que a personalidade do tradutor é quase oposta à do autor original, explicando-se o sucesso do trabalho pelo grau de profissionalismo daquele que traduz. Mas quando, por coincidência — e aqui cabe o lugar-comum da feliz coincidência — ternos um tradutor de grande técnica poética que é ao mesmo tempo uma (outro chavão) alma gêmea do autor, o resultado é essa perfeita simbiose poética que transformou as Fêtes galantes de Verlaine nas Festas galantes de Onestaldo, ou seja, fez desse livro um clássico da poesia brasileira. Esse passe de mágica, essa transposição perfeita, esse conceder de um passaporte poético à poesia alheia — é o título máximo a que aspiram todos aqueles que se dedicam ao laborioso, incompreendido e nunca assaz louvado trabalho de traduzir.

Quando Onestaldo traduz, por exemplo

Les hauts talons luttaient avec les longues jupes

por

Com as caudas os tacões altíssimos lutavam

percebemos que não só o ritmo magnífico desse passo de mulher foi captado como igualmente o tradutor conseguiu preservar as aliterações que respondem pelos efeitos sincopados desse andar: em Verlaine — hauts talons luttaient — em Onestaldo — com as caudas os tacões — numa transposição da consoante “t” para a consoante “c”; mas ainda reforçando-as com os termos — altíssimos lutavam — em que, de lambujem, recorrem, marcados, os efeitos do “t”.

Quando publicou sua tradução, Onestaldo recebeu a seguinte carta do escritor e bibliófilo austríaco Stefan Zweig, chegado em 1940 ao Brasil, onde se refugiara das perseguições nazistas: “Ainda não falo português, mas leio-o, e ainda mais facilmente numa tradução de poesias que sei de cor. O senhor gostará de saber que possuo o manuscrito original das Fêtes galantes — infelizmente na Inglaterra, ameaçado pelas bombas! — Será que um dia voltarei a revê-lo? Mas que alegria em ler Verlaine na língua de seu tradutor e captar-lhe ainda assim a música! Agradeço-lhe sinceramente por isso de todo o coração”.

Todo o livro é uma soma de achados, de transposições felizes, de captações harmônicas, de preservações estilísticas que fazem dele a suma e a bíblia de quantos se dedicam à arte tradutória. Dificilmente outro poeta francês ou não encontrou em língua portuguesa seu intérprete mais perfeito. À primeira edição, de 1934, seguiu-se outra em 1958, pela Editora Civilização Brasileira, trazendo na capa uma reprodução de L´Embarquement pour Cythère, de Antoine Watteau, cujo original se encontra no Louvre.

O amor pela obra de Verlaine fez com que em 1945, Onestaldo de Pennafort publicasse um volume de Poesias escolhidas daquele autor, com poemas traduzidos de dez de seus livros: Poèmes saturniens, Fêtes galantes, Bonne chanson, Romances sans paroles, Sagesse, Jadis et naguère, Amour, Paralèllement, Dédicaces e Bonneur. Onestaldo, além de suas próprias traduções, recolheu as de outros poetas que haviam, como ele, homenageado Verlaine, tais como Batista Cepelos, Guilherme de Almeida, Edmundo Costa, Manuel Bandeira, Augusto Rodrigues, Rodrigo Solano, Alphonsus de Guimaraens, Dante Milano, Celso Vieira e Leão de Vasconcelos. O livro, estampado pela Editora Globo, de Porto Alegre, além de estudos introdutórios sobre a poesia de Verlaine, traz um extenso levantamento sobre os tradutores do poeta em língua portuguesa, tendo Onestaldo concluído, de sua pesquisa, que se devia a um brasileiro, embora à época radicado em Portugal, Gonçalves Crespo, a primeira tradução de Verlaine em português. É ainda ricamente ornado de gravuras de pintores da época (Watteau, Giorgione, Lanclet, Manet, Dulwich, Boucher, Fragonard, Corot) e traz um apenso iconográfico de fotos de Verlaine e contemporâneos seus. Trabalho de dedicação, justamente prestigiado pela crítica e público.

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