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Archive for agosto \04\-03:00 2020

Foi o meu grande amigo José Carlos Teixeira quem veio sacudir-me

do marasmo em que estava me afundando. Mandou-me este

barco salva-vidas, a minha tradução do Bateau Ivre, do Rimbaud,

que fiz, há tempos, entre lágrimas e risos de alegria. Para cada

verso que encontrava a rima adequada, o ritmo certo, as palavras

precisas, eu me rejubilava; e agora, aqui no meu marasmo, no meu

desânimo, na minha entrega, na minha submissão ao coronavirus,

como que desperto de uma síncope, as mãos enrijecidas adquirem

um certo movimento, o dedo indicador me obedece com mais frequência,

consigo dactilografar sem querer rasgar tudo a cada instante.

E obrigado a você, leitor, que também não me abandonou, que continua

consultando as postagens antigas, obrigado; creio que em breve voltarei

a escrever. Mando-lhe o poema, a tradução. Essa obra-prima,

um dos dez maiores poemas que já se escreveram, feito por aquele

menino zureta de Charleville.

O BARCO ÉBRIO

ARTHUR RIMBAUD

Tradução de Ivo Barroso

Como descesse ao léu nos Rios impassíveis,
Não me sentia mais atado aos sirgadores;
Tomaram-nos por alvo os Índios irascíveis,
Depois de atá-los nus em postes multicores.

Estava indiferente às minhas equipagens,
Fossem trigo flamengo ou algodão inglês
Quando morreu com a gente a grita dos selvagens,
Pelos Rios segui, liberto desta vez.

No iroso marulhar dessa maré revolta,
Eu, que mais lerdo fui que o cérebro de infantes,
Corria agora! e nem Penínsulas à solta
Sofreram convulsões que fossem mais triunfantes.

A borrasca abençoou minhas manhãs marítimas.
Como uma rolha andei das vagas nos lençóis
Que dizem transportar eternamente as vítimas,
Dez noites sem lembrar o olho mau dos faróis!

Mais doce que ao menino os frutos não maduros,
A água verde entranhou-se em meu madeiro, e então
De azuis manchas de vinho e vômitos escuros
Lavou-me, dispersando a fateixa e o timão.

Eis que a partir daí eu me banhei no Poema
Do Mar que, latescente e infuso de astros, traga
O verde-azul, por onde, aparição extrema
E lívida, um cadáver pensativo vaga;

Onde, tingindo em cheio a colcha azulecida,
Sob as rutilações do dia em estertor,
Maior que a inspiração, mais forte que a bebida,
Fermenta esse amargoso enrubescer do amor.

Sei de céus a estourar de relâmpagos, trombas,
Ressacas e marés; eu sei do entardecer,
Da Aurora a crepitar como um bando de pombas,
E vi alguma vez o que o homem pensou ver!

Eu vi o sol baixar, sujo de horrores místicos,
Para se iluminar de coagulações cianas,
E como um velho ator de dramas inartísticos
As ondas a rolar quais trêmulas persianas!

Sonhei com a noite verde em neves infinitas,
Beijo a subir do mar aos olhos com langores,
Toda a circulação das seivas inauditas
E a explosão auriazul dos fósforos cantores!

Segui, meses a fio, iguais a vacarias
Histéricas, a vaga a avançar nos rochedos,
Sem cogitar que os pés piedosos das Marias
Pudessem forcejar a fauce aos Mares tredos!

Bati, ficai sabendo, em Flóridas perdidas
Ante os olhos em flor de feras disfarçadas
De homens! Eu vi abrir-se o arco-íris como bridas
Refreando, no horizonte, às gláucicas manadas!

E vi o fermentar de enormes charcos, ansas
Onde apodrece, nos juncais, um Leviatã!
E catadupas dágua em meio das bonanças;
Longes cataratando em golfos de titãs!

Geleiras, sóis de prata, os bráseos céus! Abrolhos
Onde encalhes fatais fervilham de esqueletos;
Serpentes colossais devoradas de piolhos
A tombar dos cipós com seus perfumes pretos!

Bem quisera mostrar às crianças as douradas
Da onda azul, peixes de ouro, esses peixes cantantes.
– A espuma em flor berçou-me à saída de enseadas
E inefável o vento alçou-me por instantes.

Mártir que se cansou das zonas perigosas,
Aos soluços do mar em balouços parelhos,
Vi-o erguer para mim negra flor de ventosas
E ali fiquei qual fosse uma mulher de joelhos…

Quase ilha, a sacudir das bordas as arruaças
E o excremento a tombar dos pássaros burlões,
Vogava a ver passar, entre as cordagens lassas,
Afogados dormindo a descer aos recuões!…

Ora eu, barco perdido entre as comas das ansas,
Jogado por tufões no éter de aves ausente,
Sem ter um Monitor ou veleiro das Hansas
Que pescasse a carcaça, ébria de água, à corrente;

Livre, a fumar, surgindo entre as brumas violetas,
Eu que rasguei os rúbeos céus qual muro hostil
Que ostentasse, iguaria invulgar aos bons poetas,
Os líquenes do sol e as excreções do anil;

Que ia, de lúnulas elétricas manchado,
Prancha doida, a arrastar hipocampos servis,
Quando o verão baixava a golpes de cajado
O céu ultramarino em árdegos funis.

Que tremia, de ouvir, a dstâncias incríveis,
O cio dos Behemots e os Maelstroms suspeitos,
Eterno tecelão de azuis inamovíveis,
Da Europa eu desejava os velhos parapeitos!

Vislumbrei siderais arquipélagos! ilhas
De delirantes céus se abrindo ao vogador:
– Nessas noites sem fundo é que dormes e brilhas,
Ó Milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor? –

Certo, chorei demais! As albas são cruciantes.
Amargo é todo sol e atroz é todo luar!
Agre amor embebeu-me em torpores ebriantes:
Que minha quilha estale! e que eu jaza no mar!

Se há na Europa uma água a que eu aspire, é a mansa,
Fria e escura poça, ao crepúsculo em desmaio,
A que um menino chega e tristemente lança
Um barco frágil como a borboleta em maio.

Não posso mais, banhado em teu langor, ó vagas,
A esteira perseguir dos barcos de algodões,
Nem fender a altivez das flâmulas pressagas,
Nem vogar sob a vista horrível dos pontões.

(Le Bateau Ivre; in: Poesia Completa. Tradução, prefácio e notas de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. p.203-209)

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