Foi o meu grande amigo José Carlos Teixeira quem veio sacudir-me
do marasmo em que estava me afundando. Mandou-me este
barco salva-vidas, a minha tradução do Bateau Ivre, do Rimbaud,
que fiz, há tempos, entre lágrimas e risos de alegria. Para cada
verso que encontrava a rima adequada, o ritmo certo, as palavras
precisas, eu me rejubilava; e agora, aqui no meu marasmo, no meu
desânimo, na minha entrega, na minha submissão ao coronavirus,
como que desperto de uma síncope, as mãos enrijecidas adquirem
um certo movimento, o dedo indicador me obedece com mais frequência,
consigo dactilografar sem querer rasgar tudo a cada instante.
E obrigado a você, leitor, que também não me abandonou, que continua
consultando as postagens antigas, obrigado; creio que em breve voltarei
a escrever. Mando-lhe o poema, a tradução. Essa obra-prima,
um dos dez maiores poemas que já se escreveram, feito por aquele
menino zureta de Charleville.
O BARCO ÉBRIO
ARTHUR RIMBAUD
Tradução de Ivo Barroso
Como descesse ao léu nos Rios impassíveis,
Não me sentia mais atado aos sirgadores;
Tomaram-nos por alvo os Índios irascíveis,
Depois de atá-los nus em postes multicores.
Estava indiferente às minhas equipagens,
Fossem trigo flamengo ou algodão inglês
Quando morreu com a gente a grita dos selvagens,
Pelos Rios segui, liberto desta vez.
No iroso marulhar dessa maré revolta,
Eu, que mais lerdo fui que o cérebro de infantes,
Corria agora! e nem Penínsulas à solta
Sofreram convulsões que fossem mais triunfantes.
A borrasca abençoou minhas manhãs marítimas.
Como uma rolha andei das vagas nos lençóis
Que dizem transportar eternamente as vítimas,
Dez noites sem lembrar o olho mau dos faróis!
Mais doce que ao menino os frutos não maduros,
A água verde entranhou-se em meu madeiro, e então
De azuis manchas de vinho e vômitos escuros
Lavou-me, dispersando a fateixa e o timão.
Eis que a partir daí eu me banhei no Poema
Do Mar que, latescente e infuso de astros, traga
O verde-azul, por onde, aparição extrema
E lívida, um cadáver pensativo vaga;
Onde, tingindo em cheio a colcha azulecida,
Sob as rutilações do dia em estertor,
Maior que a inspiração, mais forte que a bebida,
Fermenta esse amargoso enrubescer do amor.
Sei de céus a estourar de relâmpagos, trombas,
Ressacas e marés; eu sei do entardecer,
Da Aurora a crepitar como um bando de pombas,
E vi alguma vez o que o homem pensou ver!
Eu vi o sol baixar, sujo de horrores místicos,
Para se iluminar de coagulações cianas,
E como um velho ator de dramas inartísticos
As ondas a rolar quais trêmulas persianas!
Sonhei com a noite verde em neves infinitas,
Beijo a subir do mar aos olhos com langores,
Toda a circulação das seivas inauditas
E a explosão auriazul dos fósforos cantores!
Segui, meses a fio, iguais a vacarias
Histéricas, a vaga a avançar nos rochedos,
Sem cogitar que os pés piedosos das Marias
Pudessem forcejar a fauce aos Mares tredos!
Bati, ficai sabendo, em Flóridas perdidas
Ante os olhos em flor de feras disfarçadas
De homens! Eu vi abrir-se o arco-íris como bridas
Refreando, no horizonte, às gláucicas manadas!
E vi o fermentar de enormes charcos, ansas
Onde apodrece, nos juncais, um Leviatã!
E catadupas dágua em meio das bonanças;
Longes cataratando em golfos de titãs!
Geleiras, sóis de prata, os bráseos céus! Abrolhos
Onde encalhes fatais fervilham de esqueletos;
Serpentes colossais devoradas de piolhos
A tombar dos cipós com seus perfumes pretos!
Bem quisera mostrar às crianças as douradas
Da onda azul, peixes de ouro, esses peixes cantantes.
– A espuma em flor berçou-me à saída de enseadas
E inefável o vento alçou-me por instantes.
Mártir que se cansou das zonas perigosas,
Aos soluços do mar em balouços parelhos,
Vi-o erguer para mim negra flor de ventosas
E ali fiquei qual fosse uma mulher de joelhos…
Quase ilha, a sacudir das bordas as arruaças
E o excremento a tombar dos pássaros burlões,
Vogava a ver passar, entre as cordagens lassas,
Afogados dormindo a descer aos recuões!…
Ora eu, barco perdido entre as comas das ansas,
Jogado por tufões no éter de aves ausente,
Sem ter um Monitor ou veleiro das Hansas
Que pescasse a carcaça, ébria de água, à corrente;
Livre, a fumar, surgindo entre as brumas violetas,
Eu que rasguei os rúbeos céus qual muro hostil
Que ostentasse, iguaria invulgar aos bons poetas,
Os líquenes do sol e as excreções do anil;
Que ia, de lúnulas elétricas manchado,
Prancha doida, a arrastar hipocampos servis,
Quando o verão baixava a golpes de cajado
O céu ultramarino em árdegos funis.
Que tremia, de ouvir, a dstâncias incríveis,
O cio dos Behemots e os Maelstroms suspeitos,
Eterno tecelão de azuis inamovíveis,
Da Europa eu desejava os velhos parapeitos!
Vislumbrei siderais arquipélagos! ilhas
De delirantes céus se abrindo ao vogador:
– Nessas noites sem fundo é que dormes e brilhas,
Ó Milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor? –
Certo, chorei demais! As albas são cruciantes.
Amargo é todo sol e atroz é todo luar!
Agre amor embebeu-me em torpores ebriantes:
Que minha quilha estale! e que eu jaza no mar!
Se há na Europa uma água a que eu aspire, é a mansa,
Fria e escura poça, ao crepúsculo em desmaio,
A que um menino chega e tristemente lança
Um barco frágil como a borboleta em maio.
Não posso mais, banhado em teu langor, ó vagas,
A esteira perseguir dos barcos de algodões,
Nem fender a altivez das flâmulas pressagas,
Nem vogar sob a vista horrível dos pontões.
(Le Bateau Ivre; in: Poesia Completa. Tradução, prefácio e notas de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. p.203-209)
Caro Ivo, só podemos concluir que você fez outra obra prima. Estávamos com saudades. Abraço em vocês. Fabrício e Malú.
Caro Ivo, jamais abandonaríamos a Gaveta, verdadeiro revigorante intelectual e espaço terno à sensibilidade. Percebo, ao ler algumas postagens, como já tivemos no país um ramo de sólida cultura intelectual pública. Em regra, é com grande decepção que leio nossos atuais articulistas.
Sobre o Barco Ébrio, sou muito limitado para dizer algo a respeito, afirmo apenas que suas notas ajudam muito na compreensão dessa assustadora obra prima, o mesmo ocorre com os demais poemas.
Espero que tudo esteja bem com o senhor, que assim se mantenha e que, em breve, possa voltar a escrever mais — o que para nós seria uma grande alegria, um sopro de esperança.
Mestre Ivo, sua gaveta é de tesouros literários imprescindíveis a todos que apreciamos as melhores leituras. Abraço e admiração!
Querido amigo, fico muito feliz em tê-lo de volta neste espaço. Muita saudade.
Um terno abraço do sempre amigo, José Carlo A. Teixeira.
Surpresa! Só agora vi que havia novidade na Gaveta! E como é bom saber que seus movimentos estão voltando! Também andei tendo meus desmantelamentos. Estou vendo tudo duplo e a boca está um tanto torta, resultado de pandemia misturada com hipertensão. Mas trabalhando. Escreva, Ivo! Bote isso tudo que há dentro de você pra fora. Traduza. Verseje. Comente. Porque é bom que nos diga o que vê do alto dessa pirâmide.
Beleza de tradução de um belo momento do Rimbaud, Ivo. Mostra o quanto você é necessário neste pais de repente tão pobre. De pé! Pense no Lautrec pintando todo estropiado, no Aleijadinho esculpindo aos pedaços, no Joyce escrevendo com lupa, no Borges ditando!
Meu caro Ivo,
Sou teu leitor desde os meus 15 anos. Lá se vão 19. À época nos correspondemos muito brevemente, por e-mail, e as lições de arte poética então recebidas me ficaram sempre. Que o resto do ano traga muitos outros momentos como esse. Se também forem lenitivos as outras partes de sua obra, estou certo de que nunca vão faltar.
Caro Ivo, envio os mais sinceros cumprimentos e agradecimentos pela revisão da nova reimpressão de “Prosa poética” e “Poesia completa” de Rimbaud que já estão disponíveis na Topbooks desde o fim de agosto. Parabéns pelo trabalho! Já é sucesso! Forte abraços em vocês.
Pessoal, a Topbooks disse qua faz cotações de envio por transportadora (Jamef, Fedex, etc). Então greve dos Correios não é desculpa para adiar o pedido destes belos trabalhos do Ivo. Abraços em todos.
Lindo! Só mesmo voce, Ivo, pra fazer uma tradução tão especial. Grata!
A poesia de Sylvia Plath é espetacular. Não conhecia. Misterioso momento.
Uma vida só não é bastante! Para conhecer tudo que a humanidade criou! Só por Deus a nosso favor para continuar recebendo tanto apreço pelo conhecimento! Que Deus te abençoe hoje e sempre, ad eternum