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Archive for julho \29\-03:00 2010

A atividade do tradutor tem sido vulgarmente comparada à do funâmbulo (ou anemóbata, se quiserem maior precisão) – está sempre sujeito a um passo em falso e tem que ir até o fim. Para evitar tamanhos riscos seria útil que dispusesse de um instrumento chamado desconfiômetro, que infelizmente não é vendido nas livrarias nem pode ser encomendado da Amazon com. Ele indicaria as palavras-armadilhas, as frases de duplo sentido, as insinuações subjacentes, etc. Mas todo bom tradutor dispõem em si de um mecanismo semelhante, graças ao seu conhecimento lingüístico, à sua sensibilidade literária, à sua experiência de escritor capaz de percorrer imensa gama de estilos.  Por exemplo: como você traduziria o título do famoso romance de Honoré de Balzac, “Père Goriot”?  Os ingleses (Father Goriot), os alemães (Vater Goriot) e os italianos (Papà Goriot) seguiram a linha direta Père=Pai, e também é assim que o título aparece, em tradução de Gomes da Silveira, na monumental edição da obra completa de Balzac em português, organizada pelo mestre Paulo Rónai. E com razão: o personagem principal dessa novela é um velho sovina, que economiza seu último tostão, vivendo numa pensão miserável, para poder proporcionar às três filhas, que o desprezam, a possibilidade de viver em boas condições sociais. Mas, por que será que os espanhóis preferiram El tío Goriot? Será porque no livro o personagem omite sempre sua condição de pai das moças? Também os portugueses preferiram tio, e explica-se, pois a palavra tio em Portugal designa qualquer pessoa mais velha, de respeito, mesmo sem qualquer vínculo familiar. Talvez, na tradução brasileira, a palavra pai evoque um antigo significado lingüístico, que aparece em expressões como Pai João, “pai Francisco entrou na roda”, em que a noção de paternidade aparece diluída ou quase inexistente, sobressaindo-se a de velhice. Por outro lado, a palavra tio adquiriu, modernamente entre nós, um novo sentido que nada tem a ver com parentesco.Então, talvez uma boa tradução seria O Velho Goriot. Que acham? Como você faria? Mande seus comentários, perguntas e sugestões, que procuraremos responder e aproveitar as deixas.

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(Desenho do próprio William Blake)

 

The Tyger – poema de William Blake traduzido por Ivo Barroso

 

Tyger! Tyger! burning bright

In the forests of the night,

What immortal hand or eye

Could frame thy fearful symmetry?

 

In what distant deeps or skies

Burnt the fire or thine eyes?

On what wings dare he aspire?

What the hand dare seize the fire?

 

And what shoulder, and what art,

Could twist the sinews of thy heart?

And when thy heart began to beat,

What dread hand? and what dread feet?

 

What the hammer?~ what the chain?

In what furnace was thy brain?

What the anvil? What dread grasp

Dare its deadly terrors clasp?

 

When the stars threw down their spears,

And water’d heaven with their tears,

Did he smile his work to see?

Did he who made the Lamb make thee?

 

Tyger! Tyger! burning bright

In the forests of the night,

What immortal hand or eye,

Dare frame thy fearful symmetry?

 

 

O Tigre

 

Tigre! Tigre! tocha tesa

Na selva da noite acesa,

Que mão de imortal mestria

Traçou tua simetria?

 

Em que abismos ou que céus

O fogo há dos olhos teus?

Em que asa se inspira a trama

Da mão que te deu tal chama?

 

Que artes ou forças tamanhas

Entrançaram-te as entranhas?

E ao bater teu coração,

Pés de horror? de horror a mão?

 

Que malho foi? que limalha?

De teu cérebro a fornalha?

Qual bigorna? que tenazes

No terror mortal que trazes?

 

Quando os astros dispararam

Seus raios e os céus choraram,

Riu-se ao ver sua obra quem

Fez a ovelha e a ti também?

 

Tigre! Tigre! tocha tesa

Na selva da noite acesa,

Que mão de imortal mestria

Traçou tua simetria?

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              Por mais que os críticos tentem rotulá-lo de datado e demodê, e alguns pedantes literários insistam em depreciar suas qualidades poéticas, o Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, toda vez que surge em nova apresentação — seja no palco, no cinema, em vídeo, disco ou livro — faz com que a devotada legião de seus admiradores se engrosse de novos milhares de jovens que não tinham ainda conhecimento da obra. Encenada mais de 14.000 vezes só na França, motivo de quatro filmes, duas óperas, um balé, várias gravações discográficas, um musical, traduzida em todas as línguas vivas, às vezes em mais de uma versão, seu sucesso indeclinável só pode ser explicado pela genialidade de sua concepção e a beleza correspondente de sua feitura.

Quanto à tradução brasileira da peça, devida à pena do escritor pernambucano Carlos Porto Carreiro (1865-1931) e publicada em 1907 (dez anos depois de sua estréia na França) — a absoluta fidelidade ao texto e ao espírito do texto, sem nada omitir, nem modificar sua estrutura, mas sem o menor servilismo, “arrancando do português faíscas que cegam”, às vezes mais ardentes que as do próprio original — esta consegue transmitir ao leitor de língua portuguesa toda a ductilidade do idioma original, a sua verve e suas peripécias verbais sem nunca se desviar da rigorosa vernaculidade cultivada à época pelos grandes escritores de nosso idioma.

              Carlos Porto Carreiro, nascido em Pernambuco em 1865, era professor de economia política e finanças na Faculdade de Direito do Recife. Havia escrito alguns livros jurídicos e compunha versos, mas não gostava de ser chamado poeta, já que esta designação, na provinciana sociedade mercantil da época, presumia o tipo do boêmio desocupado, que não se coadunava com sua respeitabilidade de professor. Três anos mais velho que Rostand, Porto Carreiro encantou-se à primeira leitura com sua comédia heróica e logo intentou traduzi-la. Dedicava todos os seus esforços a essa empresa e consta que, às vezes, em seu trajeto de bonde para a Faculdade, ocorria-lhe saltar do veículo e entrar no primeiro botequim que via, a fim de tomar nota de versos que a inspiração lhe ditara ao longo do percurso. A tradução passou a ocupar-lhe inteiramente o espírito, conforme testemunha seu aluno e coestaduano França Pereira, um dos primeiros a saudá-la entusiasticamente quando esta saiu em fascículos nas páginas do Diário de Pernambuco , nos primeiros anos do século XX: “Quando, há cerca de um ano, suponho eu, nos encontramos, lembro-me bem do fulgor de seu olhar febricitante, do riso que lhe brincava nos lábios e do tremor que lhe agitava as mãos, ao falar-me do seu Cyrano, como se ele quisesse reviver ante meus olhos deslumbrados o velho Galrão da Gasconha num outro poema dramatizado. Nessa hora eu tive a ventura de escutar-lhe a recitação de vários trechos da obra. O que o desanimava, dizia-me, era a suspeita de se frustrarem seus esforços neste “meio” onde o galardoariam talvez com esta frase esmagadora: — Ora! uma tradução! — E mais nada. Ela aí está e, até eu que julgo um ingrato labor esse de verter a Poesia de um povo na língua de outro povo pensando, sentindo e querendo diferentemente, eu não sei como recusar-lhe agora o qualificativo de perfeita”.

              Depois de publicada em fascículos na província, a tradução apareceu em livro em 1907, impressa pela J. Ribeiro dos Santos, do Rio de Janeiro. José Veríssimo, crítico da escola realista, fazendo à época (1907) a resenha da tradução de Porto Carreiro, assim se expressa, depois de confessar não ter pela obra e seu autor francês “a admiração de praxe” (sic): “Para atingir a perfeição conseguida pelo Sr. Porto Carrero na tradução do Cyrano de Rostand era preciso que o seu amor por esta obra fosse tal que, identificando-se com ela, lhe sentisse o assunto quase tanto como o autor o sentira. E deve ter sido assim, senão o seu trabalho não teria o vigor e a lindeza do original. O talento poético, as suas capacidades de emérito versejador, e ainda o seu raro conhecimento das duas línguas, não bastariam sem essa consubstanciação, para fazer desta tradução a obra-prima que, no seu gênero, ela é. Nem é excessivo o meu elogio, simples atestação de um fato que qualquer leitor poderá verificar. Com a escrupulosa fidelidade, ao pensamento e à expressão do autor, principal qualidade de toda a tradução, distingue-se mais esta pelo vernáculo da linguagem, sem o mínimo ressaibo da francesa, e do estilo que conservam todas as qualidades de brilho, elegância, finura, gentileza e galanteria que os admiradores de Rostand se comprazem em lhe achar.” Depois de analisar alguns trechos da peça, sobre os quais diz ficar “em dúvida qual prefira, o original ou a tradução”, o sisudo crítico arrisca uma profecia que se revelará — felizmente –enganosa: “Edmond Rostand não fez obra de grande poesia e de grande poeta. Menos o será uma tradução, mesmo a do Sr. Porto Carrero, dessa obra, destinada a perecer ao cabo de alguns anos de fama teatral.”

Porto Carreiro nunca teve a felicidade de ver sua magnífica tradução encenada. R. Magalhães Jr. atribui o fato às “dificuldades financeiras e artísticas que uma realização de tal ordem envolveria, já que a peça tem mais de quarenta personagens e grande variedade de cenários e roupagens do século XVII”. Mas a peça, como leitura, nunca deixou de circular. Já em 1902 saía a 2ª edição; posteriormente à morte do tradutor, vieram outras, já então editadas pela Pongetti, do Rio: a 5ª é de 1944. Nesse mesmo ano, a Confraria dos Bibliófilos Brasileiros CATTLEYA  ALBA fez uma edição de luxo, de 200 exemplares fora do comércio, ilustrada com desenhos a bico de pena por Martha P. Schidrowitz. A última de nosso conhecimento, a 8ª, data de 1966. É curioso notar que os livros de direito de Porto Carreiro conheceram êxito semelhante ao de sua inigualável tradução. Suas Lições de economia política e noções de finanças tiveram sete edições publicadas pela Briguiet, do Rio. Contudo, até nessa gloríola jurídica Porto Carreiro foi um raté como Cirano: as edições são todas póstumas — a 3ª é de 1935, a 4ª de 1940, a 5ª de 1944, a 6ª de 1952 e a 7ª de 1957!.

 

                                                                      ***

 

              A leitura comparada dos textos — original e tradução — permite ao leitor verificar a extrema fidelidade de Porto Carreiro à estrutura e ao estilo da peça. As falas são rigorosamente respeitadas, sem cortes ou acréscimos, cada verso traduzido vis-à-vis do verso original. A beleza e a sonoridade das frases encontram sua exata correpondência em língua portuguesa, conservando-se aqui o timbre e a gama das inflexões. Vez por outra, o efeito, conseguido em francês pela utilização de uma rima rara ou preciosa, se não é correspondido sur place, vai aparecer em outro trecho onde melhor se ajusta. Mas o tradutor jamais foge às dificuldades estilísticas do original; utiliza recursos semelhantes, imagens reverberadas, rimas esdrúxulas, alusões consentâneas num surpreendente equilíbrio de isotopias. Veja-se, por exemplo, a tirada em que Cirano, após seu duelo com o visconde de Valvert, sabe pela aia de Roxana, que esta deseja encontrá-lo (Ato II, Cena VII). Le Bret, o amigo, vendo seu contentamento, pergunta-lhe se doravante ele será mais calmo. Ao que Cirano retruca:

 

Em Rostand

 

                                                                                    Maintenant…

                            Mais je vais être frénétique et fulminant!

                            Il me faut une armée entière à deconfire!

                            J’ai dix coeurs; j’ai vingt bras; il ne peut me suffire

                            De pourfendre des nains…

                                                                                    Il me faut des géants!

 

E a devolução de Porto Carreiro, conservando (e ampliando) a magnífica aliteração em ff do segundo verso, mantendo a elegância do verbo (pourfendre) e procedendo a duas antonomásias (Briareu e Golias) — muito no estilo de Rostand — para tornar o dito ainda mais grandiloqüente:

 

                                                                                                  Doravante

                            É que vou ser feroz, furioso, fulminante;

                            Não basta um contendor: de exércitos preciso!

                            Sinto-me um Briareu. Na luta já não viso

                            Desbaratar anões…

                                                                                    Careço de Golias!

 

Outro exemplo da magistral perícia do tradutor se encontra na graciosa receita em versos que o bom pasteleiro Ragueneau lê aos seus “pares” (Ato II, Cena IV). A dificuldade maior está na manutenção do tom equivalente desses versos curtos, de ritmo sincopado, com rimas ricas e sestrosas, em que, além disso, há jogos de palavra brilhantemente mantidos pelo tradutor:

 

 

 

ROSTAND                                                                                    PORTO CARREIRO

 

Battez, pour qu’ils soient mousseux,              Batam-se bem alguns ovos

              Quelques oeufs;                                                                      — Inda novos —

Incorporez à leur mousse                            Nas ondas que a espuma trouxe,

Un jus de cédrat choisi;                                                        De cidra o sumo se deite,

              Versez-y                                                                                    Grosso leite,

Un bon lait d’amande douce;                                          Bom leite de amêndoa doce.

Mettez de la pâte à flanc                                                        Passe-se dentro da lata

              Dans le flanc                                                                      Fresca nata

De moules à tartelette;                                                        Em fôrmas de bom-bocado;

D’un doigt preste, abricotez                                          De damasco a borda peje-se;

              Les côtés;                                                                                    E despeje-se

Versez goutte à gouttelette                                          Gota a gota, com cuidado,

Votre mousse en ces puits, puis                                          Tudo na fôrma, de forma

              Que ces puits                                                                      Que essa forma

Passent au four, et, blondines,                            Vá para o forno e, rendendo-a,

Sortant en gais troupelets,                                          Sigam-se as outras: saindo,

              Ce sont les                                                                                    Venham vindo

Tartelettes amandines!                                                        As tortazinhas de amêndoa!

 

              Não passará certamente despercebida ao leitor a pletora de momentos estelares — verdadeiras árias de ópera — como a balada do duelo, as (vinte)  tiradas sobre o nariz, a apresentação dos cadetes de Gasconha, os “não, obrigado!”, a cena do balcão com o arquifamoso beijo de Roxana (un point rose qu’on met sur l’i du verbe aimer), as incríveis patranhas da viagem à Lua e a divertida e ao mesmo tempo angustiosa gazeta de Cirano. Em todas elas, Porto Carreiro — espadachim à altura de seu contendor francês — apara os golpes estilísticos do mestre, retruca-lhe com idênticos tintilares do verso, devolve-lhe a exuberância das rimas, num duelo em que as belezas dos idiomas em choque saem da refrega empatadas. O que talvez lhe passe despercebido, se não é versado na arte sutil da tradução, será aquela seqüência inesgotável de “estalos”, a série infindável de achados, que constituem o apanágio dos grandes tradutores. A identificação tradutor/autor é aqui obtida com tamanha propriedade que um texto pode ser visto como reflexo do outro num jogo de espelhos de virtuosidades. Vejamos mais um exemplo, o trecho em que Ragueneau descreve a figura de Cirano (Ato I, Cena II):

 

Em Rostand:

 

                            Certes, je ne crois pas que jamais nous le peigne

                            Le solennel Monsieur Philippe de Champaigne;

                            Mais bizarre, excessif, extravagant, falot,

                            Il eût fourni, je pense, à feu Jacques Callot

                            Le plus fol spadassin à mettre entre ses masques:

                            Feutre à panache triple et pourpoint à six basques,

                            Cape que par-derrière, avec pompe, l’estoc

                            Lève, comme une queue insolente de coq,

                            Plus fier que tous les Artabans dont la Gascogne

                            Fut et sera toujours l’alme Mère Gigogne,

                            Il promène en sa fraise à la Pulcinella,

                            Un nez!… Ah! messeigneurs, quel nez que ce nez-là!…

 

Em Porto Carreiro:

 

                            Semelhante perfil duvido que o desenhe

                            O pincel do Senhor Philippe de Champaigne;

                            Mas, bizarro, excessivo, estróina, caprichoso,

                            Jacques Callot lhe achara o exemplo vigoroso

                            De louco espadachim, de trêfego brigão:

                            Três plumas no chapéu, seis abas no gibão,

                            Capa que, sobre a espada, eleva-se arrogante,

                            Como um rabo de galo afoito e petulante!

                            Orgulhoso Artaban, que, altivo de caráter,

                            A Gasconha gerou no ventre de alma mater,

                            Mostra uma crista rubra e polichinelesca,

                            — Um nariz! Ah! Meu Deus! Que penca gigantesca.

 

Poder-se-ia argumentar que algumas rimas (falot/Callot, masques/basques, l’estoc/coq) sofreram simplificações na tradução, principalmente a última, em que a expressão ce nez-là se embebe totalmente na palavra anterior Pulcinella. No entanto, uma tentativa de se manter esse malabarismo rímico, algo como

                           

Qual de Polichinelo um narigão a que ele

                            Se subjuga. Ah! Meu Deus! mas que nariz aquele!

 

pecaria pela falta de força e agilidade em relação à equivalência que Porto Carreiro encontrou com aquela “crista rubra e polichinelesca”. Tem-se, assim, em muitos casos, que o aparente sacrifício de um recurso formal resulta em ganho para a graça da frase e o brilhantismo do verso.

Há um ponto, contudo, que Porto Carreiro certamente teria feito de outra forma se vivesse em nossos dias, quando uma liberdade maior de linguagem se permite sem que haja estremecimento dos bons usos e costumes vernáculos. Trata-se do verso em que Cirano, observando que Lise, mulher de Ragueneau, dá excessiva atenção a um mosqueteiro, a ela se dirige com firmeza:

 

                            Ragueneau me plaît. C’est pourquoi, dame Lise,

                            Je défends que quelqu’un le ridicoculise.

 

No verbo ridicoculer , criação de Rostand, está embutida a palavra cocu (=corno, marido enganado). A palavra, na França de Rostand, não tinha o impacto-tabu de termo chulo de que se coloria entre nós. Por isso, dentro das limitações da época, Porto Carreiro traduziu simplesmente

 

 

                            …Ragueneau me agrada. É bom saberdes, Lise:

                            Não permito a ninguém que o ridicularize!

 

perdendo, para o público de língua portuguesa, a maliciosa graça do original. Hoje talvez tivesse tentando algo como:

 

                            …Ragueneau me agrada. É bom saberdes, Lise:

                            Não permito a ninguém que o ridicornalize!

 

A tradução de Porto Carreiro é justalinear: a cada verso do original corresponde igual verso em português; não há o recurso da paráfrase, nem da transposição. Por isso, sempre nos admirou que, na parte final, precisamente no epitáfio de Cirano, o fidelíssimo tradutor Porto Carreiro tivesse omitido um verso – e, a nosso ver, o verso mais significativo de toda a estrofe: “Qui fut tout, et qui ne fut rien” (Que foi tudo, e que nada foi”), sem que houvesse uma razão para isso. Poderia terminar, por exemplo, assim:

 

— Aqui repousa Saviniano,

Aqui jaz Hércules Cirano

De Bergerac, um pobre herói,

O que foi tudo e nada foi. 

 

simplesmente passando o Bergerac para rima interna e dotado a estrofe de um verso a mais, sempre melhor do que um verso a menos. A única razão que me ocorre para essa omissão de Porto Carreiro é a de que ele amava tanto o “seu” Cirano que não podia admitir não ter  sido ele nada, ainda que no dizer do próprio.

              Acreditam alguns que a tradução de Porto Carreiro esteja hoje um pouco defasada, que tenha envelhecido, vazada que foi numa linguagem escorreitamente  vernácula. Contraria a imputação o fato de continuarmos a gostar de Machado e outros clássicos, apesar de a linguagem destes destoar da indigência vocabular dos escritores de hoje. Há certamente palavras e expressões que, correntes na época do tradutor, já não são hoje usadas. O leitor estranhará, por exemplo, encontrar, no I Ato, a palavra “botequineira”,  designando a pessoa que vende guloseimas e bebidas nos teatros; pois era assim no tempo de Porto Carreiro; hoje ele certamente diria: a baleira ou a vendedora de balas. Além disso, essa personagem põe ao dispor de Cirano os artigos que traz consigo e ele escolhe apenas uma uva, um copo d´água pura e meio macarrão. Esse macarrão era um confeito daquela época, um pequeno canutilho doce em formato do macarrão de massa. Os revisores do texto de Carreiro, temerosos de que os leitores entendessem mal o termo, acabaram emendando para “macarroni”, a forma que, na verdade, designa, em francês, a massa e não o confeito, que é mesmo “macaron”. Ocorre, porém, que, ao fazê-lo, estavam acrescentando uma sílaba métrica ao verso, adulterando, dessa forma, a perfeição do alexandrino. Por isso resolveu  -se, nesta edição, manter o termo tal como o escreveu Porto Carreiro e explicar o seu significado ao leitor. O mesmo ocorre na descrição do cenário do II Ato – A Pastelaria dos Poetas – em que se menciona uma lareira ou forno aberto “diante do qual, entre monstruosos cachorros, sustentando cada um sua marmita, lacrimejam assados dentro dos pingadouros”. “Cachorros” e “marmitas” são termos especiais para designar o que chamaríamos hoje de  “ganchos da lareira” e seus “tabuleiros de folha”. O cão da lareira é uma espécie de armação metálica para apoiar a lenha que arde na lareira e evitar que ela role para fora; chama-se assim em português porque na origem tinham o formato de cães. Sobre eles estavam então essas formas para receber os pingos de gordura que gotejavam dos assados e não deviam cair sobre a lenha e o fogo. Outra palavra que vai aparecer nesse ato – cuque – é hoje conhecida por “cuca” (mestre-cuca).     

A tradução de Porto Carreiro é um clássico de nossa língua que nos cumpre preservar. Está solidamente integrada no patrimônio de nossa literatura. Ela transcende o teatro; é uma obra literária de grande beleza, um poema de qualidades incontestes, a preservação de nobres sentimentos e belas atitudes fixados para sempre na mágica intemporal da Poesia. Diferentemente daquela sombra do nariz no muro do jardim, que fazia Cirano sair de seus devaneios para voltar à torpe realidade, esta tradução — sombra luminosa do original — nos faz sair do estreito mundo em que vivemos para desfrutarmos um momento de sonho na Lua de Cirano e de Rostand.

 

                                                                                                                              Ivo Barroso

 

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Passaro Cego

IVO Barroso por IVO Barroso

Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão, em maio de 1999

Nasci em Ervália, Minas Gerais, num distante Natal. Meu
pai era o farmacêutico da cidade e me dava todos os livros que eu
pedia. Li meus primeiros versos na seção de livros do Tesouro da
Juventude, em geral poemas descritivos, que logo tentei imitar.
Havia também as obras completas de Machado de Assis e de Humberto de
Campos, encadernadas em verde e azul, edições Jackson Inc. Eu achava
Humberto de Campos um grande poeta e fiz muitos sonetos imitando seu
estilo comparativo (ele contava uma história bíblica ou mitológica e
terminava assim: “Também eu, como X…” etc). Meu primeiro soneto
publicado em jornal, O Pássaro Cego (13.04.47 – Gazeta de Viçosa),
trazia uma epígrafe dele. Eu gostava muito de epígrafes.

Mais tarde, conheci por acaso Augusto dos Anjos e passei
a fazer sonetos à semelhança do EU. Lembro de um, que causou
estranheza ao meu professor de Biologia: A Vida é o resultante grau
da orgânica/ Evolução da célula – é energia/ Que mais se apura dia
para dia/ Desde os tempos remotos da Era Oceânica.

Mas antes eu já formara todo um caderno de versos
dactilografados, a que chamei Caixinha de Música. Versos de menino,
escritos entre 1945-48:Caixinha de Música, Soldadinhos de Chumbo,
Papagaio de Papel, Realejo Triste, etc. aos quais juntei a Rapsódia
Ervalense, de 1951, de exaltação à minha terra. Por incrível que
pareça, este livro está saindo agora – quase meio século depois
-pela Editora Atheneu (E-mail: atheneu@nutecnet.com.br), numa edição
para fins beneficentes, de ajuda ao Lar Frei Luiz. Aproveitei para
acrescentar alguns sonetos desse tempo, que achava bons, e vários
poemas familiares, entre eles o Poema a meu Pai, que mandei para o
Jornal de Poesia.


RSL – No programa do Jô Soares, você afirmou que a poesia (depois das grandes guerras) estava morta. Em que alicerce sustenta esta afirmação?
IB – No programa do Jô Soares, em que eu falava sobre Baudelaire, citei (mal)
essa frase de Adorno, que agora parece estar em moda: Como é possível
fazer poesia depois de Auschwitz? Mas a frase é falaciosa: Como foi possível fazer poesia depois da Guerra de Tróia? Ou da derrota de Napoleão? Ou da I Guerra Mundial? Na verdade, a poesia transcende os acontecimentos e por mais que estes subvertam nossas noções de ética e estética, sempre haverá alguém que fará poesia. Quanto à sua eficácia, já é outro problema. Cada vez a poesia “atinge” menos leitores, seja porque recorre a uma linguagem que em última instância a elitiza ou a marginaliza, seja pela sua atual incapacidade de atingir aquilo que parece o fim precípuo dessa arte: o poder de emocionar, de tocar uma corda sensível do leitor e tirá-lo, ainda que por brevíssimos instantes, do fulcro habitual em que vive e pensa. A maior parte da produção poética de nosso tempo
nada tem a ver com a poesia propriamente dita: é prosa ruim ou letra de música ou abjeções destinadas ao vaso sanitário. Além disso há uma persistência inexplicável por métodos que de há muito se revelaram inócuos. Tenho engulhos quando leio poemas com trocadilhos ou jogos de palavra aleatórios tipo pá/lavra e quejandos. Há gente que ainda hoje usa recursos concretistas pensando que está fazendo poesia “avançada”…

RSL – O que o fez dedicar toda uma vida à tradução dos Poemas de Rimbaud? Foi alguma angústia da influência? Valeu deixar de nutrir o poeta que é para trazer aos leitores de língua portuguesa a poesia do jovem gênio?
IB – Antes de Rimbaud dediquei muito tempo aos sonetos de
Shakespeare. A primeira edição (1975) trazia apenas 24 deles; na 2a.
(1971) já eram 30 e preparo agora outra para o fim do ano, com 50.
Se ainda me sobrasse tempo, gostaria de fazê-los todos, mas é sonho
apenas. A “descoberta” de Rimbaud foi assim: em 1971 havia um filme
com Jean-Claude Brialy, Terence Stamp e Florinda Bolkan que ia
passar no Brasil. Eu colaborava assiduamente com o Suplemento
Literário do Jornal do Brasil e escrevi um artigo em que lamentava a
ausência de livros de/sobre Rimbaud, pois as traduções de Xavier
Placer e de Ledo Ivo estavam de há muito esgotadas. Pouco depois
recebi o convite de Ênio Silveira para traduzir Une Saison. A
tradução foi entregue em janeiro de 1973, no mesmo dia em que
embarquei para a Europa, onde iria acabar ficando por um quarto de
século. Antes de partrir, tive a surpresa de ganhar um prefácio de
Alceu Amoroso Lima (Tristão de Atahyde), que era, à época, a nossa
maior autoridade no assunto. A edição devia sair naquele ano em
homenagem ao centenário de publicação da obra. Acontece que o livro
só veio a sair em 1977 por motivos que só recentemente chegaram ao
meu conhecimento. A censura da época embargou o livro porque o
prefácio do Dr. Tristão continha um rasgado elogio ao Ênio Silveira,
ali chamado de “o mais perseguido e o mais corajoso de nossos
editores”. A capa do livro era horrível, parecia um opúsculo do
Instituto Butantan, mas vendeu e fizemos uma reedição em 1983.
Enquanto isto, morando na Europa, passei a me dedicar ao assunto e
acabei adquirindo mias de 150 livros de/sobre Rimbaud. Cada um que
lia me dava a convicção de que se tratava de um fabuloso poeta, não
devidamente conhecido no Brasil. Resolvi traduzi-lo todo e em, 1995,
já de volta ao Brasil, lancei, pela Topbooks, o primeiro volume das
obras completas, seguido em 1998 de Prosa Poética (com o qual ganhei
o Jabuti de tradução deste ano) e agora preparo o último, A
Correspondência, que deve sair daqui a uns dois anos. No prefácio do
2º volume respondo precisamente à sua pergunta. Achei que era mais
proveitoso para o público brasileiro publicar a poesia de Rimbaud do
que a minha própria; estaria, dessa forma, trabalhando mais
efetivamente para a literatura brasileira, incorporando a ela esses
textos, do que lançando os meus livrinhos de poesia, que seriam
lidos apenas por uns poucos.

RSL – Rimbaud tem links no rock. Exerceu influência no The Doors e Bob Dylan. Por que demorou tanto tempo para ter uma tradução à altura?
IB – Há muito equívoco em torno de Rimbaud. O maior deles
consiste talvez em considerar sua vida superior à sua obra. É claro
que todos nós vibramos com um autor que conseguiu “viver” seus
escritos, suas idéias; isso demonstra uma profunda coerência. Mas no
caso de Rimbaud não é bem assim: o chamado “Rimbaud africano” (fase
em que o poeta se transfere para a África e passa a se dedicar ao
comércio) já não é o escritor, mas seu duplo. E o que deve contar é
o que ele deixou escrito, fosse ele tabelião, açougueiro ou jogador
de futebol. Os surrealistas, com Breton à frente, “popularizaram”
Rimbaud, ou melhor, deram-lhe sua verdadeira dimensão depois que
Paul Claudel tentou transformá-lo em um “místico em estado
selvagem”. Mas os beatniks resolveram tomá-lo como precursor ou
endossante de suas idéias. Jim Morisson chegou ao absurdo de se
mudar para Paris para estar mais próximo de seu ídolo, mas a
“poesia” de Morisson está a anos-luz da poesia de Rimbaud. Acho no
entanto todo approach válido, desde que conduza à obra do poeta,
pois ela é que verdadeiramente importa; sua insubmissão poética, sua
revolução vocabular, seus avanços estilísticos e, mais que tudo, sua
capacidade de exprimir o desespero. É muito difícil pensar em
alguém, principalmente num jovem brasileiro, que lhe sirva de
paralelo. Atribuo a demora em ver sua obra integral transposta para
o português às inúmeras dificuldades que ela coloca ao tradutor. São
poucos os que estão dispostos a se dedicar muito tempo à obra
alheia.

RSL – Me parece impossível que um garoto possa escrever, hoje em dia, com tamanha genialidade. Existe alguma teoria capaz de explicar a precocidade de Rimbaud? ou estamos diante de um fenômeno metafísico?
IB – Há certamente muitos outros gênios precoces e o maior deles foi sem
dúvida Mozart. Na literatura, na própria França temos os exemplos de
Victor Hugo e de Radiguet. Mas nenhum deles conseguiu expressar o
inexprimível com a genialidade de Rimbaud. Bastava ter escrito o
Barco Ébrio, embora meu poema preferido seja Memória; acho que toda a
poesia está ali – a lembrança que se projeta para o futuro, a
impossibilidade de mover esse barco do destino…. Há muitas
tentativas de explicar essa genialidade; há mesmo tentativas de
negá-la, de reduzi-la a simples imitações. Nenhum autor como Rimbaud
despertou tanta controvérsia; há livro que discute uma vírgula em um
poema. Pessoalmente acho que sua genialidade precoce se concentrou
em uns poucos anos de atividade literária; que explodiu; que acabou.
Nada mais havendo a dizer, Rimbaud corajosamente calou-se.

RSL – Depois dessa empreitada gloriosa, você está lançando uma antologia com seus poemas. É natural que a convivência “intelectual” com Rimbaud construa uma autocrítica capaz de silenciar qualquer um. Fale um pouco do seu livro? É a sua vez agora? Em que trabalha?
IB – Em geral as minhas traduções, por serem todas de autores altamente representativos, concoorreram para um aguçamento de minha autocrítica e a conseqüente inibição da criação original. Mas sempre fiz versos. Em garoto
tocava três sonetos por dia. Depois passei a amadurar longamente
meus poemas: Papel & Chão, de meu livro Nau dos Náufragos,
editado em :Lisboa em 1981, ficou dez anos gestando dentro de mim,
até que de repente veio à tona de uma vez, em uma só noite (trata-se
de um longo poema). O mesmo pode ser dito para as Vistações de
Alcipe. Cada vez a poesia me visita com mais espaço, mas isso parece
uma constante em muitos poetas e Ferreira Gullar, por quem tenho a
maior das dmirações, lavado quando diz que gostaria e poderia fazer
um poema por dia, pois domina o ofício, mas só se sente
“lavado”quando o poema acontece por si mesmo. Estou juntando os
poemas esparsos, escrevendo ou reescrevendo alguns outros e
esperando a chegada daquela que será o poema de abertura do livro,
já todo estruturado na mente, mas que ainda não quis “vir”.
Curiosamente, apesar do demorado convívio com Rimbaud posso dizer
que não tenho ou que me esforcei por evitar qualquer influência
dele. Tenho dois poemas dedicados a ele, mas o estilo é
completamente diferente, até mesmo no Poetas de Setenta Anos, que é
uma paródia ao seu Poetas de Sete Anos, em que falo das angústia de
um tradutor. Espero ter o livro pronto até o fim do ano; não terá
muitos poemas pois não estou transcrevendo na íntegra os dois livros
anteriores, mas fazendo neles uma rigorosa seleção. Por outro lado,
incluo sonetos da fase juventude, já que reconheço valores poéticos
em alguns deles. Não iria desprezá-los só por serem sonetos, forma
que nem sempre é vista com bons olhos pelos que se dizem de
vanguarda.

RSL – Quando começou a navegar? Qual uso faz da internet?
IB – Só passei a usar o computador a partir do segundo volume de Rimbaud, que me teria dado um trabalho incalculável se feito simplesmente a máquina, por
causa das notas. O computador facilita uma série de tarefas e, assim
como ninguém mais aprende tabuada depois da calculadora eletrônica,
daqui há pouco ninguém saberá escrever senão em computador. Mas sou
um internauta fraco, apanho muito da técnica.

RSL – Em “Burocrático”, poema do livro “Nau dos Náufragos”, você é conciso. São características do poema ou do poeta?
IB – Embora abomine o hai-kai, tenho alguns poemas
curtos, como o Burocrático; nasceram assim. Meu ideal, no entanto,
talvez por influência de Mário Faustino, que vivia reclamando de nós
um “épico”, é o poema longo. Só no poema longo você pode revelar sua
capacidade de manter a peteca da emoção no ar. Os Poemas de Amor
foram um desafio: já não se fazem poemas de amor. Mas eu tinha que
fazer aqueles, eram meu secret garden, meu paraíso oculto que exigia
de mim o seu lugar ao sol. O poeta escreve para não deixar que as
coisas morram dentro dele.

RSL – Consegue explicar o por quê um brasileiro gasta vinte reais num disco do Tchan e ainda tem a “cara-de-pau” para afirmar que não compra livros por serem estes muito caros? A poesia é só para poetas?
IB – A explicação é a nossa falta de cultura. Se
os leitores tivessem a possibilidade de ser mais cultivados
certamente leriam poesia e não só. Mas a educação básica no Brasil é
um desastre e a televisão está aí mesmo para impingir o que há de
mais vulgar e deprimente. A poesia não é só para poetas. O poeta
quer transmitir suas emoções para um grande número de leitores e é
sempre mais gratificante ouvirmos uma palavra de satisfação de um
leitor não versado em poesia do que a de um outro poeta, que estará
comprometido com todos os engenhos da arte.Um poeta da atualidade
pelo qual tenho grande entusiasmo é o Gullar, capaz de fazer uma
poesia simples, direta, mas nem por isso despida de emoção. Gosto de
Foed Castro Chamma, autor de A Pedra da Transformação, poema de 10
mil versos, quase para iniciados.

RSL – Qual o verso de Rimbaud que mais lhe agrada?
IB – O verso de Rimbaud que me ocorre à mente com freqüência é aquele trecho de
Uma Estadia no Inferno: “Mas tudo isso passou. Hoje sei reverenciar
a beleza”. É um atestado da volta por cima.

RSL – Qual o papel do escritor na sociedade?
IB – O poeta não tem necessariamente que exercer um papel
na sociedade, mas também não pode se omitir dela. O escritor tem por
obrigação exprimir a voz de seu tempo, suas dúvidas, reclamar de
suas injustiças. Mas sem ser arengueiro, sem orador de palanque. Sou
contra a chamada poesia social. A poesia é uma tentativa de afirmar
e ao mesmo tempo de romper uma individualidade.

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Quando soube que eu andava traduzindo poemas de Rimbaud para publicá-los no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, o editor Ênio Silveira me intimou a traduzir Une Saison en Enfer para ser editada pela Civilização Brasileira entre abril e agosto de 1973, em comemoração ao centenário de publicação da obra. Terminando-a em fins de 1972, no mesmo ano da encomenda, levei-a ao Centro Dom Vital para submetê-la à apreciação do Dr. Alceu Amoroso Lima (1893-1983), que eu não conhecia mas sabia ser uma das maiores autoridades brasileiras em assuntos rimbaldianos. Dr. Alcêo, como era conhecido o influente pensador católico da época, igualmente famoso como crítico literário com o pseudônimo de Tristão de Athayde, era uma personalidade cultuada pelos jovens por sua corajosa atitude em defesa das liberdades democráticas, ameaçadas e coibidas pela ditadura militar que se instalara no país desde 1964. Ele me recebeu com grande simpatia e lemos juntos alguns trechos da tradução, cotejando-os com o original. Dr. Alceu, vez por outra, fazia pequenas anotações à margem e me pediu que deixasse os papéis com ele, pois queria examiná-los com mais vagar. À saída, para minha surpresa e evidente satisfação, vi-o tomar de um livro na estante, Voz de Minas, de sua autoria, e escrever na folha de rosto a seguinte dedicatória: Ao poeta! Ivo Barroso,! que conheci hoje, mas/ que, pelo que me leu de! sua extraordinária/ tradução de Rimbaud,/ posso dizer que me/ entusiasmou, no sentido/ platônico da palavra: Deus/ em nós!! Rio, Nov. 2-1972! Alceu Amoroso Lima. Dois dias depois, fui vê-lo novamente e recebi de volta, além dos originais da tradução, mais cinco folhas datilografadas com o título Data Vênia, que, para gáudio meu e do edi tor, nos foram oferecidas como prefácio.

A 2 de janeiro de 1973, antes de partir para a Europa, numa viagem que iria durar vinte anos, passei pela casa de Ênio Silveira já a caminho do aeroporto para lhe entregar os originais duramente emendados, pois não houvera tempo de redatilografá-los. Ficou assentado que eu reveria as provas em Portugal. No entanto, em vez de publicada por ocasião do centenário, a primeira edição só foi aparecer em 1977, sem que eu nunca soubesse os motivos da demora. No princípio daquele ano, o editor comunicou-me que o livro estava prestes a sair e que o Dr. Alceu havia sofrido um acidente, quando vinha de automóvel de Petrópolis para o Rio, a fim de votar a 15.11.76. Escrevi-lhe para Campinas, onde estava se recuperando, para lhe desejar melhoras e comunicar a boa notícia do breve aparecimento da edição. Dele recebi um cartão, com letra trêmula e difícil: Campinas, 17 janeiro 77/ Como gostei das notícias/ que me enviou. Sofri um acidente de que / estou lentamente me restabe le-/ cendo. Que o Rimbaud apareça/ quanto antes./ Alceu Amoroso Lima.

Nunca mais tive contato com o Dr. Alceu, nem soube, em 1983, quando de seu falecimento e quando foi lançada a 2ª edição, se ele tivera conhecimento dos motivos que determinaram o atraso da primeira. Após meu regresso, em 1992, estive várias vezes com o Ênio, chegamos a falar numa 3ª edição, mas nunca lhe ocorreu contar-me o motivo que o levara a adiar por quatro anos o lançamento da inicial.

Só muito recentemente o soube. Num artigo publicado no Jornal do Brasil de 14.03.1997, a propósito do livro 0 Instituto Nacional do Livro e as ditaduras – Academia Brasílica dos Rejeitados, de Ricardo Oiticica, encontrei a seguinte revelação, que passo a transcrever: “Aos 62 anos, funcionário apo sentado da Biblioteca Nacional, Roberto Menegaz aceitou falar ao JB sobre o período negro do INL. ‘Integrei as reuniões de escolha da publicação das obras. E fui obrigado a opinar sobre os livros’, diz. Menegaz sofreu pressões para dar pareceres “sensatos”, segundo padrões do regime da época: ‘Certa manhã, um grupo de policiais invadiu minha casa. Traziam uma ficha completa com meus empregos e diziam que eu participara de um assalto a banco no Rio Grande do Sul. Ora, eu nunca tinha ido lá’, conta Menegaz. Contra sua própria vontade, assinou parecer proibindo a publicação da tradução de Ivo Barroso para Uma Estadia no Inferno, do poeta Arthur Rimbaud, só porque o prefácio de Alceu Amoroso Lima continha um elogio a Ênio Silveira, dono da Editora Civilização Brasileira, célebre pela resistência cultural aos arbítrios políticos da época. “Alceu apresentava Ênio como figura injustiçada. Ora, a gente sabia que alguns textos não podiam ser aprovados, era o tempo de Médici, você acha que aprovariam aquilo?”

 

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No céu, nuvens azuis
tomaram formas de mulheres nuas:
as nádegas soberbas como as tuas
e os mesmos seios sensuais que tu possuis.

Algumas, tênues, esvoaçam;
outras, se aglomerando em legiões tamanhas,
ao se deitarem no horizonte, abraçam
os corpos sinuosos das montanhas.

Quando o rubro sol dardeja
os seus raios na pele dos stratus
deve sentir o anseio dos contatos
e aquela mesma volúpia de quem beija.

Porém, se a nuvem, a opala
de seu corpo reflete nas águas tranquilas,
que desejo o das águas! É tê-la nas pupilas,
sabendo-a alta demais para alcançá-la.

Também eu, como o Sol, anseios
sinto ao beijar-te as carnes brancas:
Que volúpia não mora em tuas ancas
e que taças de ventura são teus seios!

Porém, quando te vejo
e não posso abraçar-te, sinto mágoas
e aquela mesma frustração das águas
que anseiam tanto e calam seu desejo.

(1951)

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