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Passaro Cego

IVO Barroso por IVO Barroso

Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão, em maio de 1999

Nasci em Ervália, Minas Gerais, num distante Natal. Meu
pai era o farmacêutico da cidade e me dava todos os livros que eu
pedia. Li meus primeiros versos na seção de livros do Tesouro da
Juventude, em geral poemas descritivos, que logo tentei imitar.
Havia também as obras completas de Machado de Assis e de Humberto de
Campos, encadernadas em verde e azul, edições Jackson Inc. Eu achava
Humberto de Campos um grande poeta e fiz muitos sonetos imitando seu
estilo comparativo (ele contava uma história bíblica ou mitológica e
terminava assim: “Também eu, como X…” etc). Meu primeiro soneto
publicado em jornal, O Pássaro Cego (13.04.47 – Gazeta de Viçosa),
trazia uma epígrafe dele. Eu gostava muito de epígrafes.

Mais tarde, conheci por acaso Augusto dos Anjos e passei
a fazer sonetos à semelhança do EU. Lembro de um, que causou
estranheza ao meu professor de Biologia: A Vida é o resultante grau
da orgânica/ Evolução da célula – é energia/ Que mais se apura dia
para dia/ Desde os tempos remotos da Era Oceânica.

Mas antes eu já formara todo um caderno de versos
dactilografados, a que chamei Caixinha de Música. Versos de menino,
escritos entre 1945-48:Caixinha de Música, Soldadinhos de Chumbo,
Papagaio de Papel, Realejo Triste, etc. aos quais juntei a Rapsódia
Ervalense, de 1951, de exaltação à minha terra. Por incrível que
pareça, este livro está saindo agora – quase meio século depois
-pela Editora Atheneu (E-mail: atheneu@nutecnet.com.br), numa edição
para fins beneficentes, de ajuda ao Lar Frei Luiz. Aproveitei para
acrescentar alguns sonetos desse tempo, que achava bons, e vários
poemas familiares, entre eles o Poema a meu Pai, que mandei para o
Jornal de Poesia.


RSL – No programa do Jô Soares, você afirmou que a poesia (depois das grandes guerras) estava morta. Em que alicerce sustenta esta afirmação?
IB – No programa do Jô Soares, em que eu falava sobre Baudelaire, citei (mal)
essa frase de Adorno, que agora parece estar em moda: Como é possível
fazer poesia depois de Auschwitz? Mas a frase é falaciosa: Como foi possível fazer poesia depois da Guerra de Tróia? Ou da derrota de Napoleão? Ou da I Guerra Mundial? Na verdade, a poesia transcende os acontecimentos e por mais que estes subvertam nossas noções de ética e estética, sempre haverá alguém que fará poesia. Quanto à sua eficácia, já é outro problema. Cada vez a poesia “atinge” menos leitores, seja porque recorre a uma linguagem que em última instância a elitiza ou a marginaliza, seja pela sua atual incapacidade de atingir aquilo que parece o fim precípuo dessa arte: o poder de emocionar, de tocar uma corda sensível do leitor e tirá-lo, ainda que por brevíssimos instantes, do fulcro habitual em que vive e pensa. A maior parte da produção poética de nosso tempo
nada tem a ver com a poesia propriamente dita: é prosa ruim ou letra de música ou abjeções destinadas ao vaso sanitário. Além disso há uma persistência inexplicável por métodos que de há muito se revelaram inócuos. Tenho engulhos quando leio poemas com trocadilhos ou jogos de palavra aleatórios tipo pá/lavra e quejandos. Há gente que ainda hoje usa recursos concretistas pensando que está fazendo poesia “avançada”…

RSL – O que o fez dedicar toda uma vida à tradução dos Poemas de Rimbaud? Foi alguma angústia da influência? Valeu deixar de nutrir o poeta que é para trazer aos leitores de língua portuguesa a poesia do jovem gênio?
IB – Antes de Rimbaud dediquei muito tempo aos sonetos de
Shakespeare. A primeira edição (1975) trazia apenas 24 deles; na 2a.
(1971) já eram 30 e preparo agora outra para o fim do ano, com 50.
Se ainda me sobrasse tempo, gostaria de fazê-los todos, mas é sonho
apenas. A “descoberta” de Rimbaud foi assim: em 1971 havia um filme
com Jean-Claude Brialy, Terence Stamp e Florinda Bolkan que ia
passar no Brasil. Eu colaborava assiduamente com o Suplemento
Literário do Jornal do Brasil e escrevi um artigo em que lamentava a
ausência de livros de/sobre Rimbaud, pois as traduções de Xavier
Placer e de Ledo Ivo estavam de há muito esgotadas. Pouco depois
recebi o convite de Ênio Silveira para traduzir Une Saison. A
tradução foi entregue em janeiro de 1973, no mesmo dia em que
embarquei para a Europa, onde iria acabar ficando por um quarto de
século. Antes de partrir, tive a surpresa de ganhar um prefácio de
Alceu Amoroso Lima (Tristão de Atahyde), que era, à época, a nossa
maior autoridade no assunto. A edição devia sair naquele ano em
homenagem ao centenário de publicação da obra. Acontece que o livro
só veio a sair em 1977 por motivos que só recentemente chegaram ao
meu conhecimento. A censura da época embargou o livro porque o
prefácio do Dr. Tristão continha um rasgado elogio ao Ênio Silveira,
ali chamado de “o mais perseguido e o mais corajoso de nossos
editores”. A capa do livro era horrível, parecia um opúsculo do
Instituto Butantan, mas vendeu e fizemos uma reedição em 1983.
Enquanto isto, morando na Europa, passei a me dedicar ao assunto e
acabei adquirindo mias de 150 livros de/sobre Rimbaud. Cada um que
lia me dava a convicção de que se tratava de um fabuloso poeta, não
devidamente conhecido no Brasil. Resolvi traduzi-lo todo e em, 1995,
já de volta ao Brasil, lancei, pela Topbooks, o primeiro volume das
obras completas, seguido em 1998 de Prosa Poética (com o qual ganhei
o Jabuti de tradução deste ano) e agora preparo o último, A
Correspondência, que deve sair daqui a uns dois anos. No prefácio do
2º volume respondo precisamente à sua pergunta. Achei que era mais
proveitoso para o público brasileiro publicar a poesia de Rimbaud do
que a minha própria; estaria, dessa forma, trabalhando mais
efetivamente para a literatura brasileira, incorporando a ela esses
textos, do que lançando os meus livrinhos de poesia, que seriam
lidos apenas por uns poucos.

RSL – Rimbaud tem links no rock. Exerceu influência no The Doors e Bob Dylan. Por que demorou tanto tempo para ter uma tradução à altura?
IB – Há muito equívoco em torno de Rimbaud. O maior deles
consiste talvez em considerar sua vida superior à sua obra. É claro
que todos nós vibramos com um autor que conseguiu “viver” seus
escritos, suas idéias; isso demonstra uma profunda coerência. Mas no
caso de Rimbaud não é bem assim: o chamado “Rimbaud africano” (fase
em que o poeta se transfere para a África e passa a se dedicar ao
comércio) já não é o escritor, mas seu duplo. E o que deve contar é
o que ele deixou escrito, fosse ele tabelião, açougueiro ou jogador
de futebol. Os surrealistas, com Breton à frente, “popularizaram”
Rimbaud, ou melhor, deram-lhe sua verdadeira dimensão depois que
Paul Claudel tentou transformá-lo em um “místico em estado
selvagem”. Mas os beatniks resolveram tomá-lo como precursor ou
endossante de suas idéias. Jim Morisson chegou ao absurdo de se
mudar para Paris para estar mais próximo de seu ídolo, mas a
“poesia” de Morisson está a anos-luz da poesia de Rimbaud. Acho no
entanto todo approach válido, desde que conduza à obra do poeta,
pois ela é que verdadeiramente importa; sua insubmissão poética, sua
revolução vocabular, seus avanços estilísticos e, mais que tudo, sua
capacidade de exprimir o desespero. É muito difícil pensar em
alguém, principalmente num jovem brasileiro, que lhe sirva de
paralelo. Atribuo a demora em ver sua obra integral transposta para
o português às inúmeras dificuldades que ela coloca ao tradutor. São
poucos os que estão dispostos a se dedicar muito tempo à obra
alheia.

RSL – Me parece impossível que um garoto possa escrever, hoje em dia, com tamanha genialidade. Existe alguma teoria capaz de explicar a precocidade de Rimbaud? ou estamos diante de um fenômeno metafísico?
IB – Há certamente muitos outros gênios precoces e o maior deles foi sem
dúvida Mozart. Na literatura, na própria França temos os exemplos de
Victor Hugo e de Radiguet. Mas nenhum deles conseguiu expressar o
inexprimível com a genialidade de Rimbaud. Bastava ter escrito o
Barco Ébrio, embora meu poema preferido seja Memória; acho que toda a
poesia está ali – a lembrança que se projeta para o futuro, a
impossibilidade de mover esse barco do destino…. Há muitas
tentativas de explicar essa genialidade; há mesmo tentativas de
negá-la, de reduzi-la a simples imitações. Nenhum autor como Rimbaud
despertou tanta controvérsia; há livro que discute uma vírgula em um
poema. Pessoalmente acho que sua genialidade precoce se concentrou
em uns poucos anos de atividade literária; que explodiu; que acabou.
Nada mais havendo a dizer, Rimbaud corajosamente calou-se.

RSL – Depois dessa empreitada gloriosa, você está lançando uma antologia com seus poemas. É natural que a convivência “intelectual” com Rimbaud construa uma autocrítica capaz de silenciar qualquer um. Fale um pouco do seu livro? É a sua vez agora? Em que trabalha?
IB – Em geral as minhas traduções, por serem todas de autores altamente representativos, concoorreram para um aguçamento de minha autocrítica e a conseqüente inibição da criação original. Mas sempre fiz versos. Em garoto
tocava três sonetos por dia. Depois passei a amadurar longamente
meus poemas: Papel & Chão, de meu livro Nau dos Náufragos,
editado em :Lisboa em 1981, ficou dez anos gestando dentro de mim,
até que de repente veio à tona de uma vez, em uma só noite (trata-se
de um longo poema). O mesmo pode ser dito para as Vistações de
Alcipe. Cada vez a poesia me visita com mais espaço, mas isso parece
uma constante em muitos poetas e Ferreira Gullar, por quem tenho a
maior das dmirações, lavado quando diz que gostaria e poderia fazer
um poema por dia, pois domina o ofício, mas só se sente
“lavado”quando o poema acontece por si mesmo. Estou juntando os
poemas esparsos, escrevendo ou reescrevendo alguns outros e
esperando a chegada daquela que será o poema de abertura do livro,
já todo estruturado na mente, mas que ainda não quis “vir”.
Curiosamente, apesar do demorado convívio com Rimbaud posso dizer
que não tenho ou que me esforcei por evitar qualquer influência
dele. Tenho dois poemas dedicados a ele, mas o estilo é
completamente diferente, até mesmo no Poetas de Setenta Anos, que é
uma paródia ao seu Poetas de Sete Anos, em que falo das angústia de
um tradutor. Espero ter o livro pronto até o fim do ano; não terá
muitos poemas pois não estou transcrevendo na íntegra os dois livros
anteriores, mas fazendo neles uma rigorosa seleção. Por outro lado,
incluo sonetos da fase juventude, já que reconheço valores poéticos
em alguns deles. Não iria desprezá-los só por serem sonetos, forma
que nem sempre é vista com bons olhos pelos que se dizem de
vanguarda.

RSL – Quando começou a navegar? Qual uso faz da internet?
IB – Só passei a usar o computador a partir do segundo volume de Rimbaud, que me teria dado um trabalho incalculável se feito simplesmente a máquina, por
causa das notas. O computador facilita uma série de tarefas e, assim
como ninguém mais aprende tabuada depois da calculadora eletrônica,
daqui há pouco ninguém saberá escrever senão em computador. Mas sou
um internauta fraco, apanho muito da técnica.

RSL – Em “Burocrático”, poema do livro “Nau dos Náufragos”, você é conciso. São características do poema ou do poeta?
IB – Embora abomine o hai-kai, tenho alguns poemas
curtos, como o Burocrático; nasceram assim. Meu ideal, no entanto,
talvez por influência de Mário Faustino, que vivia reclamando de nós
um “épico”, é o poema longo. Só no poema longo você pode revelar sua
capacidade de manter a peteca da emoção no ar. Os Poemas de Amor
foram um desafio: já não se fazem poemas de amor. Mas eu tinha que
fazer aqueles, eram meu secret garden, meu paraíso oculto que exigia
de mim o seu lugar ao sol. O poeta escreve para não deixar que as
coisas morram dentro dele.

RSL – Consegue explicar o por quê um brasileiro gasta vinte reais num disco do Tchan e ainda tem a “cara-de-pau” para afirmar que não compra livros por serem estes muito caros? A poesia é só para poetas?
IB – A explicação é a nossa falta de cultura. Se
os leitores tivessem a possibilidade de ser mais cultivados
certamente leriam poesia e não só. Mas a educação básica no Brasil é
um desastre e a televisão está aí mesmo para impingir o que há de
mais vulgar e deprimente. A poesia não é só para poetas. O poeta
quer transmitir suas emoções para um grande número de leitores e é
sempre mais gratificante ouvirmos uma palavra de satisfação de um
leitor não versado em poesia do que a de um outro poeta, que estará
comprometido com todos os engenhos da arte.Um poeta da atualidade
pelo qual tenho grande entusiasmo é o Gullar, capaz de fazer uma
poesia simples, direta, mas nem por isso despida de emoção. Gosto de
Foed Castro Chamma, autor de A Pedra da Transformação, poema de 10
mil versos, quase para iniciados.

RSL – Qual o verso de Rimbaud que mais lhe agrada?
IB – O verso de Rimbaud que me ocorre à mente com freqüência é aquele trecho de
Uma Estadia no Inferno: “Mas tudo isso passou. Hoje sei reverenciar
a beleza”. É um atestado da volta por cima.

RSL – Qual o papel do escritor na sociedade?
IB – O poeta não tem necessariamente que exercer um papel
na sociedade, mas também não pode se omitir dela. O escritor tem por
obrigação exprimir a voz de seu tempo, suas dúvidas, reclamar de
suas injustiças. Mas sem ser arengueiro, sem orador de palanque. Sou
contra a chamada poesia social. A poesia é uma tentativa de afirmar
e ao mesmo tempo de romper uma individualidade.

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