Lista dos artigos publicados no Caderno B do Jornal do Brasil entre maio/outubro de 2005:
07.05 – Uma lembrança de Drummond *
14.05 – A paixão da leitura – Em louvor da Bienal *
21.05 – Lula, uma vocação contrariada
28.05 – Protestos e implicâncias
04.06 – O nariz de Villaça *
11.06 – A bandeja da abjeção *
18.06 – Está faltando um nome para a Presidência *
25.06 – Corrupção e/ou incompetência
02.07 – U arraiá di Lula e a maratona de ridículos *
09.07 – Brasil, o país da cultura esférica *
16.07 – Um pouco mais de pão, senhores do destino
25.07 – A outra margem do rio
30.07 – A enganosa ilusão do Eldorado
06.08 – Brasil de duas faces
13.08 – Esperando Erwartung *
20.08 – Depois do Muro de Babel
27.08 – Lições de culinária parlamentar
03.09 – Vim do Norte Severino
10.09 – Bastou um vento para a desfolhar *
17.09 – ‘Passons au déluge’
24.09 – Briga de cachorro grande
01.10 – Fim do Bolo Brasil
08.10 – Esta arma nós não podemos depor
15.10 – A generalização do mineirismo
22.10 – O verdadeiro plebiscito
29.10 – Ainda resta uma esperança *
(Os assinalados com asterisco foram republicados aqui no blog)
Talvez para amenizar a visão depressivamente ridícula dos” espetáculos populares” que integram em geral nossas representações oficiais no exterior, a televisão francesa (canal TV5) apresentou na semana passada um documentário de quase duas horas sobre a cidade mineira de Diamantina, considerada patrimônio da humanidade. Em geral, toda vez que os estrangeiros documentam alguma coisa sobre o Brasil, é fatal que o foco da reportagem recaia sobre os aspectos mais deprimentes do nosso país: favela, miséria, doenças, pauperismo, indigência, ignorância, extermínio de índios, folclore mambembe, exotismo primitivista. Desta vez, foi um tanto diferente: embora fossem registrados demoradamente aspectos da procissão de Notre-Dame des Douleurs, a ênfase recaiu sobre 1.700 alunos (disseram), uniformizados e bem-portantes, que se dedicam ao aprendizado da música instrumental naquela cidade.
Por algum tempo, ficava-se na dúvida se a cena se passava realmente na terra do futebol e do carnaval. Em vez de estarem na rua jogando pelada ou batendo tamborim, os meninos de Diamantina empunhavam com seriedade seus violinos, seus instrumentos de sopro, de percussão, etc. e se dedicavam ao estudo da música barroca. Qual seria a entidade pública capaz de criar em Minas um projeto tão avançado e tão benéfico? Que sociedade progressista e instruída estaria por trás desse milagre brasileiro? A objetiva dos franceses não permitia dúvidas: a garotada local estava levando a sério aquela atividade pelo fato de nela reconhecer os benefícios desse aprendizado na formação de sua personalidade.
É sabido que a música estimula a capacidade mental, que age como uma espécie de matemática sonora, enriquecendo o raciocínio e a criatividade. Não é sem razão que os povos civilizados da Europa e do continente norte-americano investem nas escolas de música, nos orfeões, nos corais, incluindo esse aprendizado mesmo nos currículos primários. Bastante diferente aqui da terra em que os nossos dirigentes, sempre antenados na demagogia mais rendosa e eleitoreira, só pensam em criar campos de futebol e terreiros de capoeira. Não que se tenha algo contra o esporte, igualmente necessário para a eugenia da raça; nem contra os ritmos populares, a alegria do povo; o que se gostaria de ver é a não exclusividade deles em detrimento de quaisquer outras atividades que poderiam ser úteis ao desenvolvimento intelectual da nossa juventude
Recentemente o governo do Rio de Janeiro anunciou, em campanha publicitária, que estava liberando verbas para a construção de duas centenas de campos de futebol. Seria mais construtivo se parte dessa verba pudesse ser aplicada em outros tipos de educação de massa, no auxílio às entidades culturais falidas por falta de recursos oficiais, na manutenção de orquestras sinfônicas que se estiolam pela ausência de interesse particular ou público, pela criação de mais bibliotecas. Mas falar em cultura no Brasil desperta o escárnio daqueles que vêem na atividade cultural um ato de elitismo. O povo tem que ter é bola; bater bola na rua, nas calçadas, nos pátios, nos playgrounds, na praia, no saguão dos prédios, e até nos elevadores de edifícios (já vimos!). A bola é o nosso deus, nosso futuro, nosso único momento de glória. Músicos, pintores, escultores, artistas plásticos, arquitetos, escritores, tudo isto é frescura. Se a fome-zero não deu certo, a bola-milhão certamente dará: 120 milhões de bolas para serem distribuídas por todo o país e seremos os invencíveis campeões do mundo. A cabeça não nasceu para pensar, mas para poder cabecear.
Na maratona de ridículos à qual estamos assistindo, surge, a cada semana, um fato mais grotesco para superar a marca anterior. Só que desta vez tivemos um empate. Que será mais hilariante: o prefeito de Campinas proibindo o uso de “roupas típicas” na festa de São João ou o presidente Lula editando mais um de seus “arraiá” nos jardins do Palácio do Planalto? No caso de Campinas, o ato é tão absurdo como seria um desfile de carnaval sem escolas de samba. E, quanto à festa junina do Planalto, ela nos parece redundante, já que o governo vive num permanente forró caipira, em que o mais lamentável provincianismo se alia ao que de pior existe no folclore (cultural) brasileiro. Animados pelo quentão, certamente irão ouvir o mestre-de-cerimônias Dr. Dirceu, com impecável sotaque caipira, dizer: “0 PT não róba nem deixa róbar”, e já talvez por força do hábito roubando um “u” na conjugação verbal.
Enquanto isso, fogos, foguetes, foguetões, bombinhas, traques, girândolas, busca-pés, rojões estarão pipocando, explodindo, espiralando pelos salões do Congresso nas mil e uma CPIs que se instalam, se enroscam, se desfazem ou se multiplicam, sempre gerando ainda a ilusão ingênua de que veremos alguns fogos-de-bengala luzindo no céu da esperança de que algo vai mudar com essas movimentações. Mas, até agora, pelo rolar da carruagem, ou melhor, pelo rinchar preguiçoso dos fueiros dos carros-de-boi, a única vítima certa e previsível é o deputado Roberto Jefferson, que será, nas linhas do atual clima folclórico, impiedosamente malhado como um Judas de sábado da Aleluia.
O mais triste de tudo é que essa maratona de ridículos representa apenas uma parte ínfima do descrédito nacional. Desmotivada pelos exemplos negativos que vêm de seus governantes e das elites apodrecidas, a classe média– a verdadeira espinha dorsal da nação, na frase estereótipo — só pode sofrer as artroses do arrocho, os entorses do achatamento. Sem acesso à cultura, que foi escamoteada, varrida dos ideogramas nacionais como uma doença que tem de ser erradicada; sem possibilidades de ascender na escala de conhecimentos imprescindíveis à vida moderna; e intoxicada pelo mau gosto das artes populares, que lhes são impostas como o supra-sumo da criatividade humana, as gerações atuais estão sofrendo um processo de catarata progressiva, de otite obstrutora. de olfação degenerante em que os odores mefíticos são confundidos com aromas transcendentes.
A televisão, a propaganda martelante, o consumismo pé-de-chinelo, tudo puxa para baixo, para o inferior; para a falta de classe, de bom gosto, de cultura, de civilização. Entregue a uma governança sem programa, sem meta, cujo único objetivo é o de salvar a própria pele (e a de seus familiares, segundo Severino), a população brasileira está chegando aos mais baixos níveis de alfabetização, de desempenho cultural, de atividade criadora de que se tem notícia. Em vez de música séria, tome forró. Em tez de, espetáculos enriquecedores da mente, as baboseiras da vulgaridade rastaquera.
Enquanto os outros povos se aculturam, avançam no domínio da técnica, progridem no campo das artes, constroem países mais ricos e mais poderosos, nós vamos aqui — com a ajuda dos de cima, que pisam sobre as nossas costas — cada vez nos afundando mais na ignorância, na grossura e, daí para baixo, no crime e na devassidão. Chega de forró, chega de folclore esclerosante, chega de cultuar o que temos de pior e de mais preguiçoso. Está na hora de um governo decente e progressista nos dar educação, cultura, tecnologia e arte, que são os instrumentos garantidores da verdadeira liberdade.