
A Editora Record patrocinou, no dia 8 de dezembro, uma palestra na Livraria da Travessa (Shopping Center do Leblon), para comemorar o lançamento de uma nova tradução do DEMIAN, de Hermann Hesse, que completava neste ano meio século de sua publicação inicial, em 1965. O escritor Jair Ferreira dos Santos, autor do premiado livro de contos “Kafka na Cama e do ensaio “Em Breve, o pós-moderno” falou sobre a importância da obra de Hesse, e o tradutor da obra, Ivo Barroso sobre a influência que o livro exerceu em sua vida e a necessidade que sentiu de traduzi-lo para o grande público.
Eis, em síntese, as palavras de apresentação do Jair:
Perto de comemorar os cem anos de sua primeira edição alemã, em 1919, o romance Demian, de Hermann Hesse, está sendo relançado pela editora Record em nova tradução de Ivo Barroso. As várias linhas de força que compõem a obra de Hesse, com cerca de 50 títulos entre romances, contos, poesia, ensaios, artigos para jornais e revistas, deram origem a uma singularidade avant la lettre do que hoje denominamos “autoficção”.
O conceito carece ainda de uma definição menos porosa, mas a extensão e a profundidade com que vida e texto se fundem, se trabalham mutuamente na literatura de HH tornam o seu caso único, porque forjaram uma lógica inflexível calcada sobretudo na coerência.
Hermann Hesse nasceu no pequeno burgo de Calw, na Alemanha, em 1877, e faleceu em 1962 na Suíça. Sua adolescência, que aliás inspira Demian, ostenta um número apreciável de rebeliões e fugas no âmbito da família e da escola, à época focos do rigorismo protestante que levou seus avós a serem missionários cristãos na India, enquanto, em casa, preparava-se o suicídio de seu irmão devido aos maus tratos, supõe-se, dos professores.
O destino de Hesse também passaria, cumprindo um rito famíliar, pela India, em missão religiosa, mas a fuga de um colégio o levou a trabalhar como livreiro, depois como relojoeiro em Tubingen, o que o pôs na estrada que o conduziria, felizmente, para o autodidatismo. Aos dezesseis anos, edita um livro de poemas sem grandes consequências, mas em 1904 vem a público o romance Peter Camezind, best seller recheado de conflitos familiares e amorosos que inaugura de fato sua carreira literária. Como para pagar um tributo ao clã, viaja para a India em 1911, experiência que será narrada no livro, estranho em toda linha, Viagem ao Oriente, em 1932.
O dinheiro significará para Hesse antes de mais nada casamento, oportunidade de fracassos que enfrentará mais duas vezes ao longo da vida, até estabilizar-se na relação com Ninon Dolbin, cujo pai doa uma casa para o escritor na Suiça, país para onde se transferiu em 1916, por conta de sua postura pacifista, e cuja cidadania adotou em 1923.
Filhos em série, problemas psicológicos que o levaram a ser analisado por um discípulo de Jung, não inteferiram significativamente na consolidação da sua personalidade literária e intelectual nos anos 1910 e 1920. Neste lapso HH realizou suas três obras primas – Demian (1919), Sidarta (1922), O Lobo da Estepe (1927) – todas elas às voltas com o drama existencial da autodescoberta e da autocriação num mundo espiritualmente devastado.
Em Hesse a fusão entre literatura e autobiografia não elide de modo algum, antes implica, um claro envolvimento com a História então contemporânea. Em seus 85 anos de vida ele foi testemunha das duas grandes guerra mundiais, contra as quais se insurgiu, das revoluções russa e chinesa, da ascensão das massas proletárias e urbanas com o desenvolvimento industrial capitalista, do intenso debate intelectual em curso na Europa.
A grande efusão social visível em toda parte forçou-o a refugiar-se num individualismo fortemente influenciado por Nietzsche, ao qual se associaram os pensamentos nada otimistas de Freud e Jung. Mestres, época e uma inclinação romântica por temperamento e gosto literário delineiam a via antimoderna que pretende trilhar.
Em 1946, recebe o Prêmio Nobel. Traduções de seus principais romances em língua inglesa preparam, nos anos 1950, a insurreição cultural que explodirá nos 1960 sob o rótulo de “movimento hippie” ou “contracultura”. Implícita nessas denominações está a rejeição à cultura ocidental como um todo, a seu racionalismo, seu materialismo vulgar, seu consumismo, sua destruição da natureza, sua repressão sexual, sua consciência enlatada, seu coletivismo anônimo. Para lutar contra todas essas forças, especialmente no front juvenil, nenhum artista ou intelectual oferecia uma obra com armas tão eficazes quanto a de Hermann Hesse, que se tornou o guru da sociedade alternativa.
Assistiu-se, naqueles anos, com marcas ainda longe de estarem extintas, a introdução e expansão das religiões e saberes orientais no ocidente, do budismo ao Tai Chi Chuan. Aguardava-se ansiosamente o despertar de uma nova consciência individual, grupal ou cósmica, e para isto mobilizaram-se as drogas psicoativas e seu elenco de revelações anímicas. Os mantras, as cores, as batas, os véus levaram para as ruas traços de uma paisagem e uma esperança diferentes. Um outro olhar, entre o cuidado e o lirismo, dirigiu-se à natureza. Deuses arcaicos integraram-se à cultura pop, já que Abraxas foi título de álbum do guitarrista Carlos Santana, e um grupo de rock adotou o nome Steppenwolf, que traduzimos por O Lobo da Estepe, significantes com forte presença em obras de Hesse.
Mas por que seria importante, hoje, editar e ler Demian?
Romance, genericamente, de formação, trata da passagem do adolescente Emil Sinclair para a juventude nas vizinhanças da vida adulta, percurso em que o personagem deixa o universo ordeiro, protetor, luminoso da família para ganhar o mundo e suas zonas de sombra, de perversidade, de trevas. Como dizia o escritor americano John Barth, “o autoconhecimento é sempre má notícia”. Sinclair, no entanto, receberá a ajuda do impressentível e inefável Demian, um colega de classe furtivo, principesco, dono de conhecimentos iniciáticos invejáveis, que efetivamente se tornará seu guia numa jornada cheia de perigos e transgressões.. É também a relação imprevisível entre os dois, a partir de dado momento apoiada por Eva, a mãe de Demian, uma figura solar e altiva, que encaminha Sinclair para as sendas da autonomia, da identidade como construção pessoal e de novos poderes como “a arte de adivinhar pensamentos”. O entorno dos protagonistas é permeado por sonhos, coincidências, intuições e sinais esotéricos com significados à espera de interpretação. Eles se movem num mundo que não se restringe á experiência factual, mas gravita igualmente num plano, certamente para poucos, no qual se pode ter uma visão mais profunda da existência do ponto de vista moral e espiritual.
Não é preciso uma grande reflexão para constatar que passamos por um período de alta taxa de desencanto, o que pode ser traduzido também por uma irremediável pobreza simbólica. Desde o Renascimento, com a ascensão das ciências, as religiões declinam, os deuses se retiraram, as bandeira nacionais nada significam, a cruz intimida bem menos, os heróis escasseiam. Essa modesta listagem assinala um processo de dessimbolização cultural que respondia, e em grande parte ainda hoje responde, pelos dados fundamentais da existência – o tempo, o amor, a morte, a amizade, a angústia – áreas sobre as quais a ciência e a tecnologia quase nada tem a dizer. São campos onde os símbolos imperaram com saberes não conceituais, porém altamente eficientes porque o simbólico vive da reverência que enseja, da emoção em que sua presença nos envolve, da interpelação que nos faz, do peso e profundidade que dá ao momento. Crentes ou não, não circulamos por uma igreja do mesmo modo em que batemos perna num shopping.
Ora, Demian, se atentamos para o essencial em seu enredo, visa à reintrodução do simbolismo no tecido do nosso cotidiano, desfigurado pela vulgaridade embutida da mercantilização total da existência. O romance apresenta até mesmo um símbolo, o deus grego e egípcio Abraxas, a quem a tradição concedeu o dom de fundir numa só entidade o bem e o mal, o masculino e o feminino, a luz e a sombra. É preciso assinalar, ainda, que nas condições atuais tais símbolos não remetem a sujeitos ao mesmo tempo transcendentes e reais com poderes superiores, nosso modelo midiático para naturezas, digamos, não naturais, mas solicitam para elas a vigência de um regime poético de existência e funcionamento, na medida em que poemas, como figuras poéticas, podem veicular saberes psicológica e pragmaticamente reveladores em circunstâncias diversas.
Por fim, o apelo de Hermann Hesse em Demian não é estranho à tragédia ocorrida recentemente com o menino sírio que morreu nas praias da Turquia. A foto simbolizou, no sentido genuíno de emoção, reverência, interpelação, envolvimento, toda a nossa tolerância com a insanidade e toda a nossa implicação em um crime por omissão, por alienação voluntária. Tanto é assim que no dia seguinte Angela Merkel, a chanceler alemã, abriu as fronteiras da Alemanha para os imigrantes árabes. É dessa potência simbólica que Hermann Hesse nos ensinou a não abrir mão.
A preleção do tradutor será apresentada na próxima semana
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