Feeds:
Posts
Comentários

Archive for outubro \11\-03:00 2020

O 10º aniversário da Gaveta, a 25 de julho, nos passou batido, ou, como se dizia antigamente, “em brancas nuvens”: nenhuma estante com 10 gavetas, nenhum bolo com 10 velinhas! É que a bruxa nessa altura andava solta: um estranho reumatismo endureceu-me a mão direita impedindo-me de escrever — mesmo agora tenho o indicador inteiramente torto, o que me leva quase  sempre à troca de letras ao bater nas teclas… Em setembro, uma enfermidade estranha, espécie de coronavírus avant la lettre, levou minha querida irmã Léa, o esteio da família. A cada perda ou ameaça, fui perdendo algo do antigo élan. Por fim, foi-me embora  toda a vontade de escrever e até mesmo de ler, atividades que faziam parte do meu DNA. Dias e dias tentando compor alguma coisa, e nada: uma obstrução total de ideias, um regresso à infância pré-escolar. Passei algum tempo em hibernação, talvez meses, como se tivesse perdido a memória ou sofresse a gradativa paralisação dos movimentos. Pensei em dar por encerrada a minha carreira literária, despedir-me dos leitores, encerrar definitivamente esta Gaveta. Mas veio um dia em que senti saudades, em que para a minha perplexidade, fazia já um ano em que a minha irmã morrera. E consegui escrever uma nota de carinho, entreabrindo uma Gaveta emperrada. Depois, contudo, novamente o silêncio, a apatia, a retração da vontade, a volta ao analfabetismo, à frase sem nexo, à garatuja…


De repente, brotando do mais fundo da lembrança, veio um grito – um pedido de socorro ou um gesto firme de ajuda? – uma voz de desespero e de esperança:


Quero escrever, mas só me sai espuma…

 

Quero dizer muitíssimo e me embrulho…

 

Ah! Vallejo! Meu deus, meu consolo, inspiração e crença.

Onde estavas? SAIBA MAIS SOBRE VALLEJO: link 01, link 02 

Deus sabe o quanto me penitencio por não ter conseguido que os nossos editores publicassem os seus livros (Tilcee Los Heraldos Negros); ofereci-me para traduzi-los a qualquer preço, por nada mesmo. Sem sucesso. Me diziam que nosso tempo não estava para poesia, como se ela não fosse necessária em qualquer época. Mas consegui pelo menos divulgar alguns poemas seus em minha antologia (O Torso e o Gato) e aqui na Gaveta (vide Cesar Vallejo). Sim, estavas ao meu alcance: era só invocar-te e ver que

Quero escrever mas só me sai espuma

mas que insistindo acabaríamos por domar o infortúnio e

fecundar a corva!

Foi o que aconteceu agora: espuma, espuma, gosma, nada, silêncio, inapetência, solidão e, de repente, o teu grito que me desperta, me obriga a resistir, não com a fluência antiga, mas comendo as ervas sorvas das palavras.Lembro-me que, um dia, varado por um sentimento inexprimível de saudade, lembrei-me de teus poemas e um turbilhão de versos invadiu-me a mente e fui escrevendo cartas a quem? a uma transfigurada Alcipe, versos que me salvaram do abismo total da angústia...

Ah! Companheiro das tristes caminhadas, dos inexplicáveis infortúnios, dos silêncios constrangedores, deste ruminar de espuma, a mão de novo se agita, terei de novo

fecundado a corva?

________________________

Para os meus perplexos leitores do emaranhado acima, reproduzo o inspirador soneto de Cesar Vallejo, seguido da canhestra tradução que consegui fazer dele. Até breve, espero!

 

Intensidad y altura
de César Vallejo

 

Quiero escribir, pero me sale espuma,
quiero decir muchísimo y me atollo;
no hay cifra hablada que no sea suma,
no hay pirámide escrita, sin cogollo.

 

Quiero escribir, pero me siento puma;
quiero laurearme, pero me encebollo.
No hay toz hablada, que no llegue a bruma,
no hay Dios ni hijo de Dios, sin desarrollo.

 

Vámonos, pues, por eso, a comer yerba,
carne de llanto, fruta de gemido,
nuestra alma melancólica en conserva.

 

Vámonos! vámonos! estoy herido;
vámonos a beber lo ya bebido,
vámonos, cuervo, a fecundar tu cuerva.

 

 

INTENSIDAD Y ALTURA

CÉSAR VALLEJO

 

Quero escrever, mas só me sai espuma,

Quero dizer muitíssimo e me entulho;

Não há cifra falada sem ser suma

Nem pirâmide escrita, sem cogulho.

 

Quero escrever, porém me sinto puma;

Quero a glória, e no entanto a mim me esbulho.

Não há engasgo que não seja bruma,

Não há deus nem seu filho, sem acúleo.

 

Vamos, por isso, comer erva sorva,

Carne de pranto, fruta de gemido,

A nossa alma em conserva sempre torva.

 

Vamos agora porque estou ferido;

Vamos beber o que já foi bebido,

E vamos, corvo, fecundar a corva.

Read Full Post »