Feeds:
Posts
Comentários

Archive for março \29\-03:00 2011



Os baús antigos e as gavetas de guardados costumam nos trazer surpresas e lembranças. Encontro – o papel amarelecido está quase ilegível – o script do programa “POESIA VIVA”, que foi levado ao ar no dia 17 de maio de 1955 (terça-feira) entre as 21,00 e as 21,30 horas, na Rádio Ministério da Educação e Cultura, como então se chamava aquela emissora. E me recordo que lá estávamos nós, no estúdio de transmissão, na presença e na companhia do poeta-redator  Geir Campos e dos jovens Allan Lima, Hamilton Santos  e Yeda Oliveira, que iriam ler nossos poemas, caso a grande expectativa nos emudecesse no momento exato, pois eram os locutores oficiais do programa e já tinham a cópia de nossos poemas em mãos. Depois de um preâmbulo (que nos pareceu eterno), em que  divulgava o pensamento de grandes críticos literários sobre a função do poeta, eis que Geir de repente anuncia (reproduzo o script): “E agora, ouvintes, posso dizer que os novos poetas – da “ANTOLOGIA” de “Poesia Viva” – saúdam o povo e a imprensa, e pedem passagem! Vamos fazer ouvir os poemas cujos autores já se apresentaram para rubricar os originais: Edson Guedes de Morais, Ivo Barroso, Lia Feitosa de Castro e Myrthes Riberte”.

O Edson foi quem teve a ideia de reunir os futuros antologiados num clube a que demos o nome de Clube dos Doze, cuja história já contei no artigo O Sequestro de Bandeira, que saiu aqui no blog no dia 25.09.2010; nessa ocasião Edson leu seus poemas “Determinação”, “Poema”, “Nunca mais”, “Final” e “Crepúsculo”, que iriam integrar seu livro “Dispersão”, que sairia no ano seguinte; além deste, publicou vários outros (poesia, contos e um romance) e hoje reside em Jaboatão dos Gararapes (PE), onde tem como hobby a produção de belíssimos calendários culturais, por cujas páginas já desfilaram os melhores poemas de nossa língua, além de serem belamente ilustrados com desenhos e retratos. De Myrthes Riberte não tive mais notícias, mas posso falar algo sobre a Lia Feitosa que, com voz quase sumida mas com bastante clareza, declamou naquela noite seus poemas “O Galo”, “Não quero a morte no sono”, “No outono de tuas mãos” e “Nesga”.  Não me lembro se a emoção de Lia lhe permitiu ler todos os seus poemas ou se foi acolitada alguma vez por Yeda de Oliveira. Sei que em seguida deram alguns de seus dados biográficos onde havia a informação de que era funcionária do Ministério da Aeronaútica. Presumo que com a ida do poder público para Brasília, quando da mudança da Capital, ela também terá tomado o rumo do Planalto. Muitos anos depois de meu regresso ao Brasil, soube por um grande amigo, Arildo Salles Dória, que de fato Lia estava radicada em Brasília e que publicara um belo livro em 2005, precisamente com o título de um dos poemas lidos naquela ocasião, “No outono de tuas mãos”, edição idealizada por Maira Taboza de Moraes e publicada pelo Fundo de Arte e Cultura da Secretaria de Cultura do Governo do Distrito Federal. Tenho agora nas mãos o livro, cuja capa, de uma singeleza e de um sugestivo bom gosto — também devida à autora, que nos brinda ao longo do texto com várias de suas inspiradas aquarelas — já prenuncia ao leitor a delicadeza dos temas que irá encontrar. E ao lê-los, verá que não é só o toque de uma sutil sensibilidade feminina que se entranha na sinceridade das palavras escritas, mas nelas lateja igualmente um desejo de comunicação, de partilha com o leitor, de uma experiência humana, às vezes sofrida como é natural em qualquer vida humana, mas apesar disto impregnada de uma resolução de vitalidade e um espírito de luta, que representam o desejo ideal da superação.  Lia passou pelo grande drama de perder o companheiro amado, que tanto esperou por toda sua vida, e que as Moiras só lhe concederam por uns breves anos. O vazio que essa perda representa não lhe inspirou, no entanto, versos lamentosos, nem muito menos lamuriosos. Realísticos, ainda que nostálgicos,  por meio deles, ela consegue recuperar o passado, passar a limpo os momentos de fruição,  numa linguagem tão sincera, tão confidencial, tão nossa amiga, como se relatasse, sem lágrimas, uma felicidade perdida. Essas evocações, que constituem a primeira parte do livro, são de um altruísmo significativo, seja na atitude de aceitação mas nunca de conformismo, seja no relato casual dos momentos felizes em que interferem objetos e pequenos detalhes do cotidiano. Com grande mestria a autora recompõe fragmentos e fases de sua vida comum pela utilização de um vocabulário tão dela, tão íntimo, tão natural que a poesia aí adquire uma consistência tênue de música, um colorido esvaescente de aquarelas.

Mas não se trata de um livro intimista, meramente confessional. Ele transmite uma experiência sofrida e mostra o caminho da superação, de uma superação sem o esquecimento, mas da superação pela lembrança. Não é sem motivo que a última parte do livro se denomina “Vontade de renascer diferente!” e que os poemas que a compõem exaltem a grandeza da existência mesmo no outono da vida. Esse Outono de todos nós, este avançar pelo território umbroso da velhice tendo no entanto o coração repleto do anseio de existir…

Terminada a leitura, achei que este livro deveria ser exposto nas livrarias ao lado das chamadas obras de Auto-Ajuda. Não que ele compartilhe do oportunismo comercial desse tipo de literatura. Muito ao contrário: refiro-me antes a uma auto-ajuda poética, sem lições nem exercícios, sem os estudos de casos, mas num desdobramento de poemas cristalinos, direcionais, que espelham uma experiência que pode servir a todos principalmente por seu resultado final. Fujam dele os que se comprazem com leituras herméticas, com as frases enigmáticas e os significados difusos. Aqui tudo é clareza, tudo tem a mesma luminosidade das belíssimas aquarelas de Lia Ribeiro: um deleite para os olhos, uma mensagem para o espírito, um estímulo para o coração.

Read Full Post »

Hermann Hesse, o homem e o lobo.

HERMANN HESSE, dados biográficos

Contista, poeta, ensaísta e editor de importantes obras da literatura alemã, Hemann Hesse nasceu em 2 de julho de 1877 na pequena cidade de Calw, na Alemanha. Filho de um missionário, pregador pietista, Hesse passou a infância na sua cidade e de 1881 a 1886 viveu na Basiléia. Destinado desde cedo à carreira eclesiástica, frequentou em 1890 o colégio de Goppingen, diplomou-se em 1891, mas interrompeu os estudos de Teologia, fugindo do seminário de Maulbronner. Trabalhou como livreiro e como antiquário, dedicando-se exclusivamente à literatura a partir de 1903. Desencantado com a civilização européia, viajou para a Índia em 1911 a fim de conhecer a vida no Extremo Oriente. Pacifista, lutou contra “a loucura sangrenta da guerra”. Em seus textos, Hesse procurou se manter fiel às tradições literárias românticas e clássicas, em contraposição à “era folhetinesca” e propagandística. Esta índole romântica e mais sua tendência para a análise psicológica caracterizaram suas primeiras obras , como Peter Camenzind e Demian.  Sonho de uma flauta, Sídarta, Narciso e  Goldmund e O jogo das contas de vidro são algumas das muitas obras do escritor alemão que recebeu o Prêmio Nobel de literatura em 1946 e ­morreu em 9 de agosto de 1962.

Por muito tempo negligenciado na Alemanha, onde suas obras foram violentamente suprimidas pelo nazismo, Hermann Hesse conheceu nas últimas décadas uma revitalização de sua popularidade, quando uma classe de leitores passou a ver em seus trabalhos a imagem do “oriente-em-nós”, na expressão de Michael Adams. Mesmo nas obras que não tratam explicitamente de temas orientais, Hesse se mostra sempre preocupado com aspectos da natureza humana que transcendem o esquema da filosofia positivista do Ocidente.

Hermann Hesse, o lobo da estepe

Escrito em 1927, 0 lobo da estepe já desafiou incólume o gosto e as tendências de várias gerações e agora adentra o segundo milênio na certeza de que continuará a despertar a atenção de novos e mais céticos leitores. Porque este é um livro que não se lê inocuamente, por mera distração ou para se  estar em dia com os sucessos do momento. É um livro que mexe, que altera, que subverte a estrutura psíquica do leitor e se coloca além do tempo e de suas influências por se ter transformado num clássico. Por isso, mesmo aqueles que já o leram em outras fases de sua vida encontram na releitura uma nova satisfação, descobrem nas sutilezas de sua trama, na profundidade de suas cogitações, no intrincado de sua simbologia, outras revelações que a experiência da vida ou a apuração da sensibi­lidade literária lhes fará reconhecer.

É curioso notar que Hesse apresenta no livro três versões de seu personagem: a primeira, um suposto prefácio do editor, que, na figura do sobrinho da senhoria do Lobo da Estepe, relata o breve conhecimento que teve do hóspede. É a narrativa típica de um burguês que vê com estranheza a proximidade de um indivíduo singular, de hábitos conflitantes com os seus, os quais julga os únicos apropriados ao ser humano. A segunda é a narrativa do próprio personagem, Harry Hailer, cujo nome aliteratívo já é uma insinuação de ser ele o alter ego do escritor. Na verdade, grandes partes da narrativa, em especial a evocação da juventude de Hailer, são de cunho autobiográfico. Ademais, a propensão de Harry para viver em ambientes burgueses, embora abomine e vergaste a burguesia, torna seu perfil bastante próximo da idealização que dele faz o sobrinho da locadora. E a terceira, atribuída ao desconhecido autor do panfleto Tratado do Lobo da Estepe, que o personagem recebe de um propagan­dista ambulante, é vazada numa linguagem próxima do jargão psicanalítico e contém o estudo do comportamento de um “lobo da estepe”, que é o retrato em corpo inteiro dele mesmo. Este sistema tríplice de exposição vai repetir-se nos outros personagens – Hermínia, Maria e Pablo -, que são desdobra­mentos da personalidade de Harry. A primeira, de forma insistente, afirma ser “o espelho de Harry”, e o modo quase magisterial com que se expressa convém muito mais à formação cultural deste do que a uma garota de programa, que é a atividade dela. Hermínia chega mesmo, em determinado ponto da narra­tiva, a verbalizar a teoria de Ludwig Klages de que o corpo e a alma eram unos a princípio, até serem separados pelo intelecto, que se identifica com a serpente paradisíaca, portanto com o demônio, o que constitui uma das teses preferidas do Lobo. Se Hermínia é o componente feminino de Hailer a partir do próprio nome (Hermann-Hermínia), Maria por sua vez é apenas o corpo que se entrega, a parte “disponível” de Hermínia, pois esta se recusa a unir-se com Hailer e deseja ser “morta” por ele. Já Pablo é sua versão masculina, aquele que gostaria de ser, e por isso suas referências guardam necessariamente um caráter homossexual, masturbatório, ou seja, o ser copulando consigo mesmo. Todos esses personagens vão se encontrar no Teatro Mágico, uma espécie de eufemismo para a prática de drogas. Tudo isto poderia levar o leitor a ver no livro uma dessas narrativas simbólicas, que necessitam de decodifcação psica­nalítica para o seu melhor entendimento. Mas na verdade não chega a ser bem ou só isso. O cerne do livro é sem dúvida mostrar o conflito entre os impulsos naturais do ser e as contenções espirituais de sua contraparte. Mas com pouco o autor reconhece que a dualidade homem-lobo é por demais simplificadora, que dentro de cada ser há centenas, milhares de outros seres, enfim, que a personalidade humana está sujeita a uma  infinidade de atitudes, que encerra toda espécie de labirintos.

A partir desse núcleo, pode-se dizer que o livro é um breviário de reeducação moral, de desmantelamento de uma vida voltada para o ascetismo e sujeita a todo tipo de contenções, uma indução a que o personagem realize os impulsos que nele permaneciam sufocados. Quem conhece a juventude devota de Hesse — destinado por seus pais missionários à carreira ecle­siástica; sua passagem por muitos seminários, donde foge finalmente para tentar vida autônoma na Suíça, como aprendiz de relojoeiro e caixeiro de livraria — percebe logo que o escritor fez da necessidade de “libertar” outros seres retraídos, seme­lhantes a ele, uma bandeira, um programa de vida literária, mediante a apresentação de paralelos que são capazes de reconciliar as partes antagônicas da personalidade. Não se esqueça de que Hesse por essa época tinha uma esposa em crise psiquiátrica e ele próprio se consultava em Luzerna com o Dr. J. Lange, discípulo de Jung.

A esse propósito, é admirável aquele momento do Teatro Mágico em que Haller (e consequentemente Hesse) recorda de sua timidez diante da primeira namorada, a quem não ousa dizer as palavras que lhe teriam aberto as portas da plenitude. A possibilidade de revisão do passado, de passar a vida a limpo, que lhe oferece o Teatro Mágico encerra a lição de que é preciso vencer as inibições mediante a coragem de agir. Hesse pratica aí uma espécie de surrealismo avant la lettre fazendo a existência prevalecer à essência, como na famosa proposição de Sartre.

No final, percebe-se que o Lobo da Estepe, sem abrir mão de seu refinamento, de seu elitismo, de sua sublimação musical, quer e pode igualmente participar do mundo dos comuns e nele reconhecer alegrias que outrora lhe pareciam vedadas ou indignas. O lobo da estepe é, pois, um Bildungsroman goethiano em sentido contrário, onde se cruzam temas de Hoffmann, Nietzsche, Freud e Dostoiévski.

O livro tem sua parte, por assim dizer, politicamente correta: o personagem é antibelicista (de maneira quase agressiva), ecológico (a ponto de querer arrancar os edifícios para dar lugar a antigos parques e jardins); condena a sociedade capitalista (que gostaria de ver afogada para sempre). Mas tem também suas derrapadas e incongruências: a maneira como descreve Pablo, embora cheia de inuendos, tem algo de racista quando fala em seus “olhos de mestiço” (Kreolenaugen em alemão); a insistência na divisão elitista da sociedade entre homens “diferentes” (intelectualmente bem-dotados) e homens comuns (a massa ignara). Mas é incontestavelmente válida sua conde­nação da guerra e sua análise do nacional-socialismo que então tomava corpo na Alemanha. Outra das cenas singulares que ocorrem no Teatro Mágico (cujo sucedâneo hoje seriam os jogos virtuais) é sem dúvida a “caçada automobilística” em que Haller e seu antigo colega de escola Gustav se postam no belvedere de uma estrada para disparar contra todos os carros que aparecem. Gustav expõe sua teoria de que a guerra serve para equilibrar a proliferação humana e diz que tanto faz abater os carros que venham numa ou noutra direção, querendo Hesse com isso talvez significar que a guerra é uma insanidade sob qualquer ponto de vista. Ao mesmo tempo, Haller, veemente condenador da ação guerreira sob todas as suas formas, expe­rimenta um estranho prazer em destroçar os veículos que surgem. Hesse terá provavelmente pretendido demonstrar com essa espécie de parábola que mesmo os seres ditos racionais podem se entregar à carnificina dependendo das circunstâncias em que se encontrem. Quando surge um transeunte que nada tem a ver com a a existência ou a destruição dos carros, Hailer pergunta a Gustav: “Você gostaria de atirar contra aquele homem e lhe fazer um buraco na nuca? Por Deus que eu não conseguiria.” Ao que o amigo retruca: “Isso porque não te ordenaram”, podendo isso significar que até mesmo os bem-pensantes são capazes de violência e terror quando açulados por um Führer.


É, claro que um livro como este tenha levantado protestos tanto da direita quanto da esquerda. O próprio Hesse, quando de sua publicação, reclamava que “a burguesia rejeitava o livro por ser impiedoso e desordenado, e os socialistas porque o achavam irremediavelmente individualista (ou seja, demasiadamente `burguês’, segundo eles)”. Embora o livro seja tudo isso ao mesmo tempo, ele se coloca num lugar à parte graças à luminosidade de seu estilo, ao poderoso arsenal léxico de suas construções elaboradas, e mesmo à sua poesia, que longe de nos darem a sensação de artificialismo, nos transmitem uma emoção de coisa vívida e vivida, de pulsação, de energia, de clarividência. Além disso, nunca se poderá esquecer que ele representou extraordinário avanço sobre a linguagem da época, com sua temática ousada, onde há referências explícitas ao uso de drogas e a comportamentos eróticos e homossexuais pouco frequentes nas obras sérias de então.

Por este e outros motivos foi que, ao ser atribuído a Hesse o prêmio Nobel de Literatura de 1946, Anders Österling, secretário da Academia desde 1941, entusiasmado defensor dessa candidatura proposta por Thomas Mann, teve de recuar de seu propósito de galardoar “obras cujo estilo apresentassem audácias inovadoras” para atribuí-lo unicamente à poesia de Hesse, em que o melódico se funde numa vaga espiritualidade simbolista. Österling, que escrevera um vigoroso prefácio para a edição sueca de 0 lobo da estepe em 1932, só conseguira  convencer seus pares a conceder a láurea a Hermann Hesse calando sobre os extraordinários impactos demolidores do escritor. Diante desses equívocos, o próprio Hesse achou conveniente escrever um posfácio ao livro, em que ressalta que “a história do Lobo da Estepe é, sem dúvida alguma, de sofri­mentos e necessidades, mas mesmo assim não é um livro de um homem em desespero, mas o de um homem que crê. Embora trate de enfermidade e crise, não conduz à destruição e à morte, mas, ao contrário, à redenção”.

[Prefácio escrito para a  26ª. edição de O Lobo da Estepe publicado pela Editora Record em 2000 – Ilustrações do artista checo Jaroslav Bradac]

Um poema de Hermann Hesse traduzido por Ivo Barroso

Na tradução de O Lobo da Estepe aparecem

dois poemas de Hermann Hesse que foram

traduzidos por mim em prosa, para atender

aos prazos fixados pelo Editor.  Posteriormente

consegui conformar um deles em versos metrificados

e rimados, como abaixo:


Ich Steppenwolf trabe und trabe,

Die Welt liegt voll Schnee,

Vom Birkenbaum flügelt der Rabe,

Aber nirgends ein Hase, nirgends ein Reh!

In die Rehe bin ich so verliebt,

Wenn ich doch eins fände!

Ich nähm´s in die Zähne, in die Hände,

Das ist das Schönste, was es gibt.

Ich wäre der Holden so von Herzen gut,

Frässe mich tief in ihre zärtlichen Keulen,

Tränke mich satt an ihrem hellroten Blut,

Um nachher die ganze Nacht einsam  zu heulen.

Sogar mit einem Hasen wär ich zufrieden,

Süss schmeckt sein warmes Fleisch in der Nacht –

Ach, ist denn alles vor mir geschieden,

Was das Leben ein bisschen fröhlicher macht?

An meinen Schwanz ist das Haar schon grau,

Auch kann ich nicht mehr ganz deutlich sehen,

Schon vor Jahren starb meine liebe Frau.

Und nun trab ich und träume von Rehen,

Trabe und träume von Hasen,

Höre den Wind in der Winternacht blasen,

Tränke mit Schnee meine brennende Kehle,

Trage dem Teufel zu meine arme Seele.


O LOBO DA ESTEPE


Eu, o Lobo da Estepe, vago errante

Pelo mundo de neve recoberto;

Um corvo sai de uma árvore, adejante,

Mas não há lebre ou corça aqui por perto!

Ansiando eu vivo de encontrar a corça,

Ah! se pudesse achar alguma um dia!

Tê-la entre os dentes, agarrá-la à força,

Nada mais belo para mim seria.

Havia de tratá-la tão cordial,

De cravar-lhe nas ancas o meu dente,

Beber-lhe o sangue todo, até o final

E uivar na noite solitariamente.

Até mesmo uma lebre hoje me basta!

À noite a carne tenra é preferida.

Porque sempre de mim logo se afasta

Tudo o que torna alegre a nossa vida?

Já meus pelos da cauda estão grisalhos

Nem posso ver mais nítida uma cousa;

Há muito que morreu a minha esposa

E vago e vejo corças nos atalhos,

E sonho e sinto lebres; a ânsia é tanta

Que ouvindo o vento uivar na noite incalma,

Com neve aplaco o fogo da garganta

E entrego ao diabo a minha pobre alma.

Read Full Post »

CONSELHO LITERÁRIO

Depois que recebeu as cartas de Rilke, o jovem poeta Franz Xaver Kappus não escreveu mais nada.

***

PSEUDO HAI KAI

Em breve estaremos

Nas varandas da Lua

Contemplando a Terra

***

POEMA DE AMOR

Um amigo-leitor me pergunta se o Poema (de Amor), que publiquei aqui no blog em 04.02.2011, era um poema concreto. Não diria; o concretismo tinha por programa acabar com o discurso tradicional,  abolir as frases completas, o sentido coerente; esperava que as palavras isoladas conseguissem dar ao leitor uma sugestão do que seria – digamos — o “sentido” do verso. Já no caso do meu poema de amor o que houve foi uma utilização de recursos espaciais em voga durante aquele movimento, além de lançar mão, principalmente, de uma estrutura – também digamos —  bifronte, que permitisse ao poema dizer duas coisas distintas ao mesmo tempo, mas unidas por um eixo significante comum: ou seja uma espécie de poema-xifópago. Isto foi obtido com a utilização de palavras semelhantes de dois campos diversos: palavras referentes a órgãos do corpo humano (peito, aorta, cava, crossa, termos todos estes correlatos ao coração) justapostas a palavras relativas a casa, habitação (pátio, porta, cave, fossa). A duplicidade é logo introduzida pela flexão verbal “late”, que tanto pertence ao verbo later (pulsar) como ao verbo latir (ladrar), prosseguindo com um cruzamento de ações dos dois campos, atribuíveis ao cão e ao homem, para concluir numa alternância de extremos (matar/morrer) que se amalgamam numa ação única.

***

O FUTURO DA CRÔNICA

Discutiu-se ultimamente o futuro da crônica. Que formato terá daqui a alguns anos essa categoria ambígua que escapa a definições precisas e invade atualmente um espaço cada vez mais amplo dos jornais? Alguns estrelados medalhões deitaram fala, expuseram teorias quase antagônicas e chegaram mesmo a esquematizar modelos aplicáveis à maioria dos profissionais do gênero.

Um deles seria o do cronista-padrão, esse que consegue se incluir em todas as regras, vestir todas as camisas, adotar como bíblia o manual do politicamente correto, para agrado total de seus leitores. Ele votou no governo, mas para acompanhar o rumo atual da mídia, vez por outra aplica uma cotovelada no baço presidencial, nada no entanto que lhe possa comprometer a esperança de reeleição. É de esquerda, é claro, daquela esquerda que ganha, mora e come bem; opõe-se em passeata ostensiva às potências opressoras (os EUA, é claro), e sonha com Aspen e a Disneylândia. Mesmo sem propósito, arranja sempre  uma oportunidade para falar no reacionarismo ou na pedofilia da Igreja e condenar o atual Papa como ex-participante das milícias nazistas. Seu posicionamento ético vai ao cuidado de evitar os adjetivos, de nunca incidir no elitismo de um advérbio de modo, e, se acaso emprega, sem querer, uma palavra proparoxítona, não deixa de fazê-la seguir-se de um (opa!) (hein!) (urgh!) para que o leitor saiba que ele abomina a erudição e ser tratado de culto seria para ele o mesmo que saber-se aidético.

Outro filão abrigaria os cronistas-biográficos. Mesmo tendo lido Drummond (“Não recomponhas /tua sepultada e merencória infância”), eles estão certos de que os leitores se amarram em suas conquistas amorosas (falsas ou não), que se tornarão sonhadores com suas histórias familiares ou lendo as descrições do tempo em que soltavam pipa ou batiam uma – bola – no quintal. O papagaio do vizinho, o porteiro do 301, a moça que passa de bicicleta para a praia assumem no seu teclado a condição de heróis, o fascínio das lendas.   Quando alertados, dizem sempre que Drummond, em prosa e verso, se socorreu com frequência (com mestria, digo eu) de suas recordações infantis, seus casos de família, a cobertura do cotidiano, mas se esquecem de que a um Drummond se perdoam todas as contradições ante a força de um estilo irretocável.

Um terceiro nicho seria habitado pelos cronistas-truculentos: nas duas primeiras frases já mostram as bordunas com que vão baixar o cacete (agora diz-se pegar pesado) em quem quer que seja o bode (agora diz-se a bola) da vez. Seus leitores (em geral frustrados) se divertem com suas grosserias, seu desrespeito generalizado, suas atitudes contra-culturais. Ele interpreta a voz enrustida dos que não sabem reclamar, dos que têm medo de falar alto, dos que vivem pagando mico sem pedir sequer abatimento. Numa sub-seção se acoitam os pornógrafos e os escatológicos (pois há quem goste).

Finalmente, há muitos outros que vivem à sombra dos faits divers. Em geral escrevem diariamente e nada mais cômodo que embarcar na notícia quente: mortes trágicas, sismos, inundações, chacinas (eles adoram chacina até como palavra) são os estímulos que os levam às 3500 batidas com espaço ou sem. Soltam-se nos sueltos. Quando o tema das notícias se repete à náusea, por ex. ilustres mortes sucessivas (de figurões e artistas de cinema, sem contar com a de policiais ou de pessoas inocentes assassinadas por policiais) – recorrem logo à direção oposta: maternidades, jardins-de-infância, inseminação artificial, gravidez tubária, dia das Mães. Ou ainda: telefonam aos zoológicos para saber se não veio à luz algum cacarequinho capaz de disputar (e ganhar) as próximas eleições.

Como resultado dessas parlendas, tivemos a proclamação de que esses cronistas do cotidiano serão forçados, no futuro, a mudar de divisão com a crescente concorrência das próprias notícias dos jornais, das revistas e da televisão, veículos mais empenhados ainda em baixar o nível para subir no Ibope da audiência. Depois de analisarem essas categorias, os novos apóstolos das mesas-redondas acabaram profetizando a volta da crônica literária, de reflexão ou filosófica, ou seja, de textos no estilo de um  Ruben Braga, um  Carlos Drummond, uma Clarice Lipector. Com a carência atual de valores desse nível, talvez quisessem assinalar com isso a futura desaparição da crônica.

***

CARREIRA PROFISSIONAL

Meu pai queria ver os filhos encaminhados para as grandes profissões liberais ou, melhor ainda, para a carreira das armas (Exército, Marinha e Aeronáutica). Eu, a contra-gosto, andei namorando as três, mas a essa altura já estava de beiço caído pela Dama Branca da Literatura.

***

OUTRO PSEUDO HAIKAI

Já não tenho auroras

Vivo em crepúsculos

A meia-luz é o meu amanhecer

***

EXTREMA UNÇÃO

No artigo sobre Alphonsus de Guimaens, publicado aqui na semana passada, aludimos à observação de Dom Marcos Barbosa a respeito da expressão “olhos bentos”, que o poeta empregou no soneto VI da Segunda Dor de seu livro “Setenário das Dores de Nossa Senhora”. A ressalva de Dom Marcos (“óleos bentos”) é de todo pertinente e não sabemos por que as edições posteriores não emendaram o que teria sido um erro de revisão da primeira. Sabe-se que a extrema unção, sacramento ministrado aos enfermos in articulo mortis, em que o moribundo é ungido (untado) pelo sacerdote por seis vezes (nos olhos, narinas, ouvidos, boca, e nas mãos e nos pés), é feita mediante a umidificação dos dedos do celebrante numa espécie de plaqueta branca embebida de azeite puro de oliva. Este azeite, chamado óleo dos enfermos, é consagrado pelos Bispos na Quinta-feira Santa, na Missa Crismal, e é denominado comumente de santos óleos ou óleos bentos. Fica evidente que o poeta quis dizer que as mãos de Maria eram feitas da mesma essência pura desses óleos e não compará-las a improváveis olhos astrais e bentos, que seriam algo fantasmagóricos.

Read Full Post »

Depois da  quase lendária edição de 1938, dirigida e revista por Manuel Bandeira, com notícia biográfica e notas de João Alphonsus, numa publicação que dignificava o Ministério da Educação e Cultura da época, coube agora [2001] à Editora Nova Aguilar, em co-edição com  a Biblioteca Nacional, trazer-nos de volta a poesia completa de Alphonsus de Guimaraens, num ato de justiça literária para com um poeta de altíssima expressão, que não teve em vida o reconhecimento popular que merecia, numa clarividência editorial para com o leitor de hoje, carente e desejoso de uma poesia que tenha tal altura e qualidade. Digo — de volta — porque a antiga Aguilar, em 1960, já nos dera a edição de sua “Obra Completa”, na qual se incluíam a prosa e a poesia humorística do chamado “místico de Mariana”; mas ao revê-la criteriosamente e  reestruturá-la agora, seus organizadores, filho e neto do poeta, acolitados pela acurácia editorial de Alexei Bueno,  parecem ter encontrado a medida exata para a tornar definitiva, ao dela expurgarem aquelas partes que, conquanto curiosas do ponto de vista histórico, nada acrescentavam ao Alphonsus que ficará, para nós e os vindouros, como um dos três grandes simbolistas, ao lado de Cruz e Souza e Augusto dos Anjos.

Houve acréscimos na edição atual, como o soneto XXXVI da “Escada de Jacó”, a tradução do soneto de Arvers e outros; mas o enriquecimento principal desta edição — a par da compactação poética a que nos referimos — deve ser creditado às notas  e variantes e à seletiva fortuna crítica que precede os poemas, na qual, em flashes cinematicamente expressivos,  alguns dos nossos melhores poetas e críticos literários se manifestam sobre o autor. Entre esses depoimentos se destaca – pela sua atualidade, embora escrito em 1942 — a palavra de Carlos Drummond de Andrade, que já (e ainda) àquela época fazia um “convite aos críticos  para viajarem na poesia de Alphonsus”. Essa viagem continua à espera de adesões, pois são poucos os que de fato estudaram a poesia do solitário poeta provinciano. Com exceção de Bandeira e Henriqueta Lisboa, que fizeram sensíveis observações sobre a técnica poética de Alphonsus — ainda assim em opúsculos ou artigos de jornal — os que escreveram sobre ele se mantiveram no umbral das reminiscências ou das alusões insubstanciais; o único ensaio que esclarece ou aprofunda “o   universo poético de Alphonsus de Guimaraens” continua sendo este que Eduardo Portella escreveu há mais de quarenta anos para a edição das “Obras Completas”, merecidamente reproduzido como prefácio da edição atual.  Pode o leitor no entanto ter idéia de algumas “homenagens” prestadas ao poeta, não só graças à recolha dessa bem selecionada mostra “Alphonsus de Guimaraens e alguns de seus exegetas”, mas igualmente com a leitura dos vários poemas que lhe foram dedicados, o mais importante dos quais o de Murilo Mendes, um excerto dos 442 versos que ele próprio considerava “a cousa mais importante que escrevi até hoje”, e o mais belo e “alfonsino” de todos, a “Elegia para Alphonsus”, do poeta bissexto Augusto Meyer. À parte isso, coube ao filho do poeta, Alphonsus de Guimaraens Filho, dar-nos um retrato de corpo inteiro da obra/vida de seu pai em “Alphonsus de Guimaraens no seu ambiente”, editado pelo Departamento Nacional do Livro em 1995, texto de singularíssima estrutura, em que se relata ao biografado a sua própria biografia.  Nele se discutem também  problemas relativos à técnica do verso, a variantes e correções, inclusive o famoso caso dos “olhos bentos” do soneto VI da Segunda Dor do “Setenário das Dores de Nossa Senhora”, que o poeta-monge Dom Marcos Barbosa, com base na terminologia litúrgica, admitia ler como “óleos bentos”, em paralelo com os “santos óleos” da extrema-unção — parecer que se nos afigura dos mais procedentes, já que a palavra chave desse verso, “essência”, é mais consentânea com óleos que com olhos.

Alphonsus de Guimaraens possuía domínio absoluto das formas métricas do Simbolismo e das escolas anteriores, e até mesmo influenciou as práticas libertárias do Modernismo subsequente. Aquele alexandrino de Verlaine que chamou a atenção de Rimbaud — Et la tigresse épouvantable d´Hyrcanie — a ponto de nele ver “forte licence” por lhe faltar a cesura na 6ª sílaba, com os acentos deslocados para a 4ª e 8ª, foi pioneiramente empregado por Alphonsus no Brasil, conforme ele próprio afirma numa carta a um poeta novo. Veja-se, por exemplo, o Electa ut Sol, de “Dona Mística”, onde abundam exemplos como: Ah que eu não seja um padre velho, um pobre cura!//Sonhei contigo… Eras tão boa, eras tão pura!//A lua vem. Vamos rezar. O paraíso,/Anjos e santos ao redor do teu sorriso, etc. Também nos versos ímpares, de 5 e 9 sílabas, tão gratos aos simbolistas franceses, Alphonsus foi um mestre, bastando ler os poemas de abertura de “Kiriale” e de “Dona Mística”. Mas é no decassílabo em que se revela toda a sua criatividade e saber fazer: o uso extensivo do enjambement e da suspensão, alguns de espantoso arrojo,  permitiu-lhe criar uma variedade de ritmos que tornam sua linguagem pessoal e inequívoca. É sua marca de fábrica, de uma fábrica na qual os instrumentos e aparelhos permanecem ocultos pela espontaneidade e melodia dos versos que dela jorram. Versos que se guardam para sempre na memória, que fazem parte de nosso território poético, assim como amigos que reconhecemos à distância. Dotados de tamanha musicalidade — não aquela habitualmente cultivada pelos simbolistas, com seus efeitos sinestésicos e sensualizantes, mas essa música atemporal, de sonoridades seráficas, de luminosidades sidéreas — que fazem de cada verso uma “joy forever”.

O leitor de hoje pode perguntar: mas para que tais estudos de métrica, rimas, musicalidade, etc. se a poesia de agora não depende dessas conjunturas? Elas fazem parte da formação de todo grande poeta e só pelo seu conhecimento sedimentado é que ele as pode dispensar ou libertar-se delas. Nas multidões de poetas livres que passeiam pelas nossas letras atuais há poucos, muito poucos que deixarão um verso na memória do leitor. Nenhum talvez conseguirá vencer as muralhas do tempo produzindo um “Mãos que os lírios invejam, mãos eleitas” ou “Rosas que já vos fostes, desfolhadas” ou “Quando Ismália enlouqueceu/ Na torre pôs-se a sonhar”. Aproveite pois o leitor para esse contato de primeiro grau com a poesia que fica, a de altura e qualidade, tão diversa dos modismos mediáticos ou das catarses  irresolutas em que se transformou boa parte da lírica nacional. Alguns sonetos de Alphonsus deviam ser tombados como outros monumentos de sua histórica Mariana.

Em 1895, Alphonsus, antes de mergulhar em sua província mineira, vem de S. Paulo ao Rio para estar pessoalmente com Cruz e Sousa, a quem muito admirava. Em 10 de julho de 1919, já é Mário de Andrade, o futuro  corifeu do modernismo, quem vai a Mariana saudar o “principe dos cantores de sua terra”. A reação de Alphonsus, do fundo da vida modesta que levava, foi: “Príncipe? Pobre príncipe! Pobre Alphonsus”. Esse encontro inspirou a Drummond o poema “A visita”, que tem  um momento simplesmente mágico: é quando os versos do velho poeta, recitados pelo jovem visitante, ganham corpo e forma, ficam patentes no ar como elfos espiralantes. Bela imagem para caracterizar a poesia etérea de Alphonsus. Uma poesia na qual tudo parece fácil, natural, espontâneo, brotado da mina do quintal. Nada se vê da espantosa estrutura técnica que permite esse evolar da poesia, como na  música de Mozart, extremamente complexa em sua aparência de facilidade. Rico Alphonsus!

DOIS POEMAS DE ALPHONSUS DE GUIMARAENS

Ismália


Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar…
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar…
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar…

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar…
Estava perto do céu,
Estava longe do mar…

E como um anjo pendeu
As asas para voar…
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar…

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par…
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar…

Mãos que os lírios invejam…


Mãos que os lírios invejam, mãos eleitas
Para aliviar de Cristo os sofrimentos,
Cujas veias azuis parecem feitas
Da mesma essência astral dos olhos bentos;

Mãos de sonho e de crença, mãos afeitas
A guiar do moribundo os passos lentos,
E em séculos de fé, rosas desfeitas
Em hinos sobre as torres dos conventos.

Mãos a bordar o santo Escapulário,
Que revelastes para quem padece
O inefável consolo do Rosário;

Mãos ungidas no sangue da Coroa,
Deixai tombar sobre a minha Alma em prece
A bênção que redime e que perdoa !

UM POEMA DE IVO BARROSO DEDICADO A ALPHONSUS DE GUIMARAENS


ROSAS

A Alphonsus de Guimaraens

Rosas de róseos seios perfumosos,

Cristais de carne transbordando aromas,

A ávidos ventos entregais as pomas,

Vosso perfume suspirando em gozos…

 

E vós, ó brancas rosas, entre as ramas

Ao cilício entregai-vos silenciosas,

E no silêncio recolheis, ó rosas,

As vossas carnes das crestantes chamas…

 

Ó rosas rubras como as ânsias loucas,

Sois como corpos de ondulosas ancas

E purpurinas como as rubras bocas…

 

E vós, ó brancas rosas de alabastros,

São como as almas vossas carnes brancas,

Vosso perfume como a luz dos astros!…

Read Full Post »

O recesso meditativo propiciou proustianas recorrências ao tempo perdido da infância. Voltei disposto a reevocá-las, a deixar aqui consignadas algumas passagens que marcaram de certa forma a criança que eu fui. Mas, como sempre acontece, vem o contraponto cartesiano de perguntar: a quem interessariam tais histórias além de a ti mesmo? Fiquei em dúvida, o pior dos meios-termos. Mas já que tenho um blog, que eu próprio defini como ‘caixa de lixo espacial’, acabei escrevendo estas lembranças. Fique, pois,  o leitor prevenido para não perder aqui seu tempo; vá em frente: no blog há coisas interessantes sobre autores de verdade, livros excepcionais, feitos de tradutores consagrados. Basta mudar de canal. Zapear, como andei fazendo…

***

MINHAS INCURSÕES LITERÁRIAS – II (DOIS PANFLETOS)

Um dia destes, zapeando pelo blog, notei que a matéria sobre o meu primeiro livro, “Alma de Creança” (14.09.10), acabava com a promessa (Continua), e não continuou. Talvez porque não valesse a pena falar mais nada sobre aquele “livro”, que necessariamente ficou inédito, para o bem dos leitores e mais ainda do seu “autorzinho”. Mas a ele seguiram-se outras tentativas igualmente frustradas e definitivamente esquecidas: dois opúsculos minguadíssimos, datilografados, ambos de 1948: Carta Aberta a Ervália (um descarado plágio do estilo de André Gide, cujo “Retour de l´Enfant Prodigue” eu estava tentando traduzir à época) e Angústia e Transfiguração (!), o relato de um   grande medo que me assaltou quando menino.

Naquele ano de 1948, passei umas longas férias em minha cidade natal, cujo vigário fazia violentas prédicas contra os bailes carnavalescos e ameaçava com o Inferno as moças (leia-se: minhas namoradas) que se atrevessem a frequentá-los. Escrevi, então, uma espécie de carta à minha terra, que na verdade era um diálogo com o padre local, em que incitava meus conterrâneos a se libertarem de sua tirania religiosa. Dizia o introito: ‘Como um filho pródigo, eu me prostrei aos vossos pés, a face de lágrimas coberta. Pensava estar diante dos meus pais, compreensivos e amorosos, mas reconheci em vós, apenas o irmão primogênito, invejoso e autoritário. Nossa palestra, então, foi cheia de orgulho e de palavras duras. Um desmascaramento de falsos valores. Na minha voz, porém, estava o eco das vozes de muitos de meus irmãos. Hoje, bem o sabeis, reconheço a inutilidade daquele discurso, — já que possuís a lei que vos garante autoridade. E se o rememoro e o transcrevo aqui, é que guardarei, contudo, um supremo reconhecimento se as minhas palavras servirem para elevar um pouco o ânimo de meus irmãos, que vós, despoticamente, vindes porfiando em reprimir’. Não vale a pena prosseguir: era tudo um pastiche gideano, vergonhoso, embora aqui e ali aparecesse uma ou outra frase de efeito. Lembro-me que o dei a ler a algumas pessoas amigas, que manifestaram diferentes reações, e é possível que, à época, eu me tenha vangloriado de incentivar a presença feminina  naqueles bailes de carnaval.

 

O segundo “opúsculo” trata da história real de quando os meninos do catecismo me prenderam no sótão da igreja de Ervália, onde havia – sem que eu soubesse – o féretro do Senhor Morto, só exposto ao público durante as celebrações da Semana Santa. O sótão era escuro, a porta foi trancada por fora e de repente, ao abaixar-me para apanhar o catecismo que me caíra das mãos com aquele baque surdo da porta e a surpresa imediata da  escuridão, dei de cara com a imagem mortuária estendida no sepulcro. Naturalmente tive um choque e senti medo; devo ter chorado e batido insistentemente na porta, até que me abriram – mas foi tudo. O tratamento que dei ao episódio, no entanto,  é que são elas. A descrição inicial até que é sofrível: ‘Eu devia ter no máximo uns seis anos. Por esse tempo já frequentava  assiduamente a igreja, assistia às aulas de catecismo, e a minha alma ia captando os mistérios e os dogmas da minha religião como a cera virgem grava os sons altos e baixos de uma sinfonia fantástica. Auxiliado pelo poder de transfiguração do catolicismo, eu procurava ascender ao mundo ideal das criaturas sobrenaturais. Era a amplidão, a féerie católica, que deslumbra a alma do infante. E como é angustioso para a criança, que ainda não viu o mundo das coisas palpáveis, conceber um mundo invisível! O meu mundo superior era composto principalmente de anjos. O anjo era o meu ideal. O Anjo era a criatura que não agride, não zanga, protege e dá presentes às crianças. Claro está que eu me sentia à vontade com eles. Muito embora nunca os houvesse visto [na verdade, antes dos anjos eu vi mesmo  foi o demônio! Um dia eu conto] sabia que um deles protegia o meu sono e andava comigo pelas ruas, de um modo sutil que eu ainda não conseguira penetrar. Se visse um anjo, nem teria medo [Só li Rilke umas três décadas depois]. E tive o desejo de ver anjos. O lugar mais apropriado para essa entrevista seria naturalmente a igreja.  Em breve, alguns meninos, mais crescidos que eu, entraram em posse do meu segredo e resolveram me proporcionar a tão esperada entrevista. Uma tarde, depois do catecismo, chegaram-se a mim na igreja vazia:

— Você já foi ao altar de São Vicente? É aquele  em cima da sacristia. É lá que ficam os anjos. Você não quer ir lá? — Relutei a princípio. Não acreditava que os anjos morassem ali, tão perto da gente. — Quem vai comigo? — Ninguém. Você tem que ir sozinho, senão eles fogem todos.

Eu era um menino franzino, frágil, dois olhos grandes e humílimos, as pernas muito finas, e usava constantemente um macacão azul, com as minhas iniciais em vermelho, roupa esta a que lá em casa davam o estranho nome de alverol (sic) [O certo seria escrever overol, do inglês over all]. Meus pés calçados galgaram os degraus que levavam ao altar de São Vicente. Foi quando os meus olhos repousaram sobre uma estranha figura: Era um homem bastante magro, os ossos salientes,  a carne rosada, o torso desnudo, os olhos fechados, uma coroa de espinhos maltratando-lhe a fronte, gotas de sangue pisado tingindo-lhe a face, encarcerado num caixão de vidro. Era o Senhor Morto. Invadiu-me uma vertigem; a angústia aliara-se à tristeza, à mortificação, e os meus olhos se encheram de lágrimas’.

Mas já  o livrinho, na verdade um caderno, além de contar a história, se mete a fazer suposições pseudo-filosóficas comparando a minha cena com a transfiguração do Senhor no monte Tabor. Ou seja, digo ali que me senti morto e estendido no caixão de Jesus, com a cabeça coroada de espinhos; em suma, que me transfigurei no Cristo. Esse pecado de jactância poderia perdoar-se pela alegação de infantilidade, não fosse o “poderoso” arsenal “filosófico” que acompanha a narrativa. Há menções a Hegel, Turgueneff (sic), Marx, Kant, J. Von Muller (?), Schelling ‘e os modernos Maritain, Mauriac, Claudel e Chesterton’, tudo assim de cambulhada. Lembro-me agora que eu estava  lendo, em espanhol, “El concepto de la Angustia”, de Sören Kierkgaard, e  me considerava por isto filósofo. Daí certas  tiradas como esta: ‘A angústia cria a imobilidade. Os meus olhos não conseguiam se desviar da face neutra.  O mundo era o caos que antecedera o Fiat. Eu era o ser que se concentrava em sua angústia, na angústia total que precede uma ‘criação total’. Estava absorvido no espírito-uno de Deus. Era o próprio Deus, na minha insignificância planetária. Tinha passado pela morte. Sim, a morte devia ser aquilo: a identificação com o Ser. Já não via os bancos da igreja, as cadeiras; não havia eleitos, nem superiores. A Morte era o NÍVEL esperado na terra e prometido nos céus! As almas, de fato, eram iguais e a morte era  a liberdade absoluta para a integração no Espírito Uno de Deus’. Indefensável, ilegível, impublicável, fantasioso, farsesco, embromador, canastrão! não sei porque arranquei agora esta baboseira de seu merecido esquecimento. Mas houve um que eu consegui imprimir. Depois eu conto  (Continua)

ANJO OU DEMÔNIO (adendo)

Falei acima em ter visto o demônio e que um dia talvez contasse como foi. Pois conto agora: O quintal da farmácia de meu pai se comunicava com a rua por um beco bastante largo por onde podia passar até mesmo um carro de bois; havia um portão para isolar o beco, mas quase sempre estava aberto, pois dava passagem para um depósito de cal do negociante vizinho. Meu irmão e eu brincávamos o dia todo nesse terreiro onde havia um morrote, na verdade um barranco, que nós escavávamos criando pontes e viadutos para a passagem de nossos caminhõezinhos de brinquedo. Uma trilha estreita, ladeando o alto muro que nos dividia do plano superior da rua, levava à parte superior do morrote, onde havia uma laranjeira não muito frondosa. Mas embaixo, no início desse caminho, uma abastada touceira de banananeiras nos causava certa impressão por ser muito densa, formando quase um esconderijo. A estradinha – que fantasiávamos com pontilhões e atoleiros difíceis de cruzar – conduzia à imaginária fazenda de “seu” Marandão (uma possível corruptela de Mário Andrade,  poderoso cliente da farmácia, cujo chapéu de aba  e  vozeirão autoritário nos assustavam). Percorríamos todo o caminho que ia acabar na touceira – a suposta fazenda de “seu” Marandão, mas nosso medo infantil nos impedia sempre de chegar até lá.  Um dia, quando eu brincava sozinho, vi, de repente, saindo da bananeira um preto semi-nu que me arreganhou duas fileiras alvíssimas de dentes. Dei um grito de pavor e fiquei insistindo com as pessoas que me socorreram (empregados da farmácia, depois meus pais) que eu tinha visto o capeta. Meu pai, chegado ao positivismo de Augusto Comte,  concluiu mais tarde que se tratava de um passante que, premido por necessidades fisiológicas, tivesse visto, da rua, a bananeira – e resolveu seu problema ali mesmo, sem a menor cerimônia… Fiquei muito tempo sem voltar ao quintal e só o fiz depois que papai mandou cortar a touceira. Muitos anos depois, cheguei a compor um soneto em que evocava a “visão”:

“SEU” MARANDÃO

“Seu” Marandão era um senhor já velho,

Rabugento e, no fundo, um bom amigo;

Morava em meio ao bananal – abrigo

Da moura-torta e do saci vermelho.

Nasceu da minha ideia, andou comigo,

E era eu mesmo me dando algum conselho;

Fora a imagem de alguém, talvez o espelho

De meu avô, de bigodão antigo.

Um dia, atrás da bananeira, preta

E asquerosa, surgiu-me a cara à-toa

De um negro que supus fosse o capeta.

Chorei convulso, em salto o coração…

Por isso, a moita, um dia alguém cortou-a.

— Nesse dia morreu “seu” Marandão.

Read Full Post »

FILOSOFIA (poema de ASCENSO FERREIRA)

Hora de comer — comer!
Hora de dormir — dormir!
Hora de vadiar — vadiar!

Hora de trabalhar?
— Pernas pro ar que ninguém é de ferro!

***

Ascenso Ferreira (1895-1965) foi um grande poeta pernambucano de cunho popular; seus principais poemas estão reunidos no livro “Catimbó  e outros poemas”, da Editora José Olympio, 1995. Grandes admiradores de suas meditações filosóficas, estaremos, durante todo o período carnavalesco, recolhidos e enclausurados na Sociedade Patafísica Anti-stress – SPA – do “Templo Filosófico Ascenso Ferreira”, em Portobello (Mangaratiba), entregues a profundos exercícios de meditação tran-sedentária.  Os posts voltarão a partir de 14 de março, mas há artigos aí que não perderam a validade. Aproveitem os saldos da ausência.

Read Full Post »

%d blogueiros gostam disto: