Hermann Hesse, o homem e o lobo.

HERMANN HESSE, dados biográficos
Contista, poeta, ensaísta e editor de importantes obras da literatura alemã, Hemann Hesse nasceu em 2 de julho de 1877 na pequena cidade de Calw, na Alemanha. Filho de um missionário, pregador pietista, Hesse passou a infância na sua cidade e de 1881 a 1886 viveu na Basiléia. Destinado desde cedo à carreira eclesiástica, frequentou em 1890 o colégio de Goppingen, diplomou-se em 1891, mas interrompeu os estudos de Teologia, fugindo do seminário de Maulbronner. Trabalhou como livreiro e como antiquário, dedicando-se exclusivamente à literatura a partir de 1903. Desencantado com a civilização européia, viajou para a Índia em 1911 a fim de conhecer a vida no Extremo Oriente. Pacifista, lutou contra “a loucura sangrenta da guerra”. Em seus textos, Hesse procurou se manter fiel às tradições literárias românticas e clássicas, em contraposição à “era folhetinesca” e propagandística. Esta índole romântica e mais sua tendência para a análise psicológica caracterizaram suas primeiras obras , como Peter Camenzind e Demian. Sonho de uma flauta, Sídarta, Narciso e Goldmund e O jogo das contas de vidro são algumas das muitas obras do escritor alemão que recebeu o Prêmio Nobel de literatura em 1946 e morreu em 9 de agosto de 1962.
Por muito tempo negligenciado na Alemanha, onde suas obras foram violentamente suprimidas pelo nazismo, Hermann Hesse conheceu nas últimas décadas uma revitalização de sua popularidade, quando uma classe de leitores passou a ver em seus trabalhos a imagem do “oriente-em-nós”, na expressão de Michael Adams. Mesmo nas obras que não tratam explicitamente de temas orientais, Hesse se mostra sempre preocupado com aspectos da natureza humana que transcendem o esquema da filosofia positivista do Ocidente.
Hermann Hesse, o lobo da estepe

Escrito em 1927, 0 lobo da estepe já desafiou incólume o gosto e as tendências de várias gerações e agora adentra o segundo milênio na certeza de que continuará a despertar a atenção de novos e mais céticos leitores. Porque este é um livro que não se lê inocuamente, por mera distração ou para se estar em dia com os sucessos do momento. É um livro que mexe, que altera, que subverte a estrutura psíquica do leitor e se coloca além do tempo e de suas influências por se ter transformado num clássico. Por isso, mesmo aqueles que já o leram em outras fases de sua vida encontram na releitura uma nova satisfação, descobrem nas sutilezas de sua trama, na profundidade de suas cogitações, no intrincado de sua simbologia, outras revelações que a experiência da vida ou a apuração da sensibilidade literária lhes fará reconhecer.

É curioso notar que Hesse apresenta no livro três versões de seu personagem: a primeira, um suposto prefácio do editor, que, na figura do sobrinho da senhoria do Lobo da Estepe, relata o breve conhecimento que teve do hóspede. É a narrativa típica de um burguês que vê com estranheza a proximidade de um indivíduo singular, de hábitos conflitantes com os seus, os quais julga os únicos apropriados ao ser humano. A segunda é a narrativa do próprio personagem, Harry Hailer, cujo nome aliteratívo já é uma insinuação de ser ele o alter ego do escritor. Na verdade, grandes partes da narrativa, em especial a evocação da juventude de Hailer, são de cunho autobiográfico. Ademais, a propensão de Harry para viver em ambientes burgueses, embora abomine e vergaste a burguesia, torna seu perfil bastante próximo da idealização que dele faz o sobrinho da locadora. E a terceira, atribuída ao desconhecido autor do panfleto Tratado do Lobo da Estepe, que o personagem recebe de um propagandista ambulante, é vazada numa linguagem próxima do jargão psicanalítico e contém o estudo do comportamento de um “lobo da estepe”, que é o retrato em corpo inteiro dele mesmo. Este sistema tríplice de exposição vai repetir-se nos outros personagens – Hermínia, Maria e Pablo -, que são desdobramentos da personalidade de Harry. A primeira, de forma insistente, afirma ser “o espelho de Harry”, e o modo quase magisterial com que se expressa convém muito mais à formação cultural deste do que a uma garota de programa, que é a atividade dela. Hermínia chega mesmo, em determinado ponto da narrativa, a verbalizar a teoria de Ludwig Klages de que o corpo e a alma eram unos a princípio, até serem separados pelo intelecto, que se identifica com a serpente paradisíaca, portanto com o demônio, o que constitui uma das teses preferidas do Lobo. Se Hermínia é o componente feminino de Hailer a partir do próprio nome (Hermann-Hermínia), Maria por sua vez é apenas o corpo que se entrega, a parte “disponível” de Hermínia, pois esta se recusa a unir-se com Hailer e deseja ser “morta” por ele. Já Pablo é sua versão masculina, aquele que gostaria de ser, e por isso suas referências guardam necessariamente um caráter homossexual, masturbatório, ou seja, o ser copulando consigo mesmo. Todos esses personagens vão se encontrar no Teatro Mágico, uma espécie de eufemismo para a prática de drogas. Tudo isto poderia levar o leitor a ver no livro uma dessas narrativas simbólicas, que necessitam de decodifcação psicanalítica para o seu melhor entendimento. Mas na verdade não chega a ser bem ou só isso. O cerne do livro é sem dúvida mostrar o conflito entre os impulsos naturais do ser e as contenções espirituais de sua contraparte. Mas com pouco o autor reconhece que a dualidade homem-lobo é por demais simplificadora, que dentro de cada ser há centenas, milhares de outros seres, enfim, que a personalidade humana está sujeita a uma infinidade de atitudes, que encerra toda espécie de labirintos.
A partir desse núcleo, pode-se dizer que o livro é um breviário de reeducação moral, de desmantelamento de uma vida voltada para o ascetismo e sujeita a todo tipo de contenções, uma indução a que o personagem realize os impulsos que nele permaneciam sufocados. Quem conhece a juventude devota de Hesse — destinado por seus pais missionários à carreira eclesiástica; sua passagem por muitos seminários, donde foge finalmente para tentar vida autônoma na Suíça, como aprendiz de relojoeiro e caixeiro de livraria — percebe logo que o escritor fez da necessidade de “libertar” outros seres retraídos, semelhantes a ele, uma bandeira, um programa de vida literária, mediante a apresentação de paralelos que são capazes de reconciliar as partes antagônicas da personalidade. Não se esqueça de que Hesse por essa época tinha uma esposa em crise psiquiátrica e ele próprio se consultava em Luzerna com o Dr. J. Lange, discípulo de Jung.
A esse propósito, é admirável aquele momento do Teatro Mágico em que Haller (e consequentemente Hesse) recorda de sua timidez diante da primeira namorada, a quem não ousa dizer as palavras que lhe teriam aberto as portas da plenitude. A possibilidade de revisão do passado, de passar a vida a limpo, que lhe oferece o Teatro Mágico encerra a lição de que é preciso vencer as inibições mediante a coragem de agir. Hesse pratica aí uma espécie de surrealismo avant la lettre fazendo a existência prevalecer à essência, como na famosa proposição de Sartre.
No final, percebe-se que o Lobo da Estepe, sem abrir mão de seu refinamento, de seu elitismo, de sua sublimação musical, quer e pode igualmente participar do mundo dos comuns e nele reconhecer alegrias que outrora lhe pareciam vedadas ou indignas. O lobo da estepe é, pois, um Bildungsroman goethiano em sentido contrário, onde se cruzam temas de Hoffmann, Nietzsche, Freud e Dostoiévski.
O livro tem sua parte, por assim dizer, politicamente correta: o personagem é antibelicista (de maneira quase agressiva), ecológico (a ponto de querer arrancar os edifícios para dar lugar a antigos parques e jardins); condena a sociedade capitalista (que gostaria de ver afogada para sempre). Mas tem também suas derrapadas e incongruências: a maneira como descreve Pablo, embora cheia de inuendos, tem algo de racista quando fala em seus “olhos de mestiço” (Kreolenaugen em alemão); a insistência na divisão elitista da sociedade entre homens “diferentes” (intelectualmente bem-dotados) e homens comuns (a massa ignara). Mas é incontestavelmente válida sua condenação da guerra e sua análise do nacional-socialismo que então tomava corpo na Alemanha. Outra das cenas singulares que ocorrem no Teatro Mágico (cujo sucedâneo hoje seriam os jogos virtuais) é sem dúvida a “caçada automobilística” em que Haller e seu antigo colega de escola Gustav se postam no belvedere de uma estrada para disparar contra todos os carros que aparecem. Gustav expõe sua teoria de que a guerra serve para equilibrar a proliferação humana e diz que tanto faz abater os carros que venham numa ou noutra direção, querendo Hesse com isso talvez significar que a guerra é uma insanidade sob qualquer ponto de vista. Ao mesmo tempo, Haller, veemente condenador da ação guerreira sob todas as suas formas, experimenta um estranho prazer em destroçar os veículos que surgem. Hesse terá provavelmente pretendido demonstrar com essa espécie de parábola que mesmo os seres ditos racionais podem se entregar à carnificina dependendo das circunstâncias em que se encontrem. Quando surge um transeunte que nada tem a ver com a a existência ou a destruição dos carros, Hailer pergunta a Gustav: “Você gostaria de atirar contra aquele homem e lhe fazer um buraco na nuca? Por Deus que eu não conseguiria.” Ao que o amigo retruca: “Isso porque não te ordenaram”, podendo isso significar que até mesmo os bem-pensantes são capazes de violência e terror quando açulados por um Führer.

É, claro que um livro como este tenha levantado protestos tanto da direita quanto da esquerda. O próprio Hesse, quando de sua publicação, reclamava que “a burguesia rejeitava o livro por ser impiedoso e desordenado, e os socialistas porque o achavam irremediavelmente individualista (ou seja, demasiadamente `burguês’, segundo eles)”. Embora o livro seja tudo isso ao mesmo tempo, ele se coloca num lugar à parte graças à luminosidade de seu estilo, ao poderoso arsenal léxico de suas construções elaboradas, e mesmo à sua poesia, que longe de nos darem a sensação de artificialismo, nos transmitem uma emoção de coisa vívida e vivida, de pulsação, de energia, de clarividência. Além disso, nunca se poderá esquecer que ele representou extraordinário avanço sobre a linguagem da época, com sua temática ousada, onde há referências explícitas ao uso de drogas e a comportamentos eróticos e homossexuais pouco frequentes nas obras sérias de então.
Por este e outros motivos foi que, ao ser atribuído a Hesse o prêmio Nobel de Literatura de 1946, Anders Österling, secretário da Academia desde 1941, entusiasmado defensor dessa candidatura proposta por Thomas Mann, teve de recuar de seu propósito de galardoar “obras cujo estilo apresentassem audácias inovadoras” para atribuí-lo unicamente à poesia de Hesse, em que o melódico se funde numa vaga espiritualidade simbolista. Österling, que escrevera um vigoroso prefácio para a edição sueca de 0 lobo da estepe em 1932, só conseguira convencer seus pares a conceder a láurea a Hermann Hesse calando sobre os extraordinários impactos demolidores do escritor. Diante desses equívocos, o próprio Hesse achou conveniente escrever um posfácio ao livro, em que ressalta que “a história do Lobo da Estepe é, sem dúvida alguma, de sofrimentos e necessidades, mas mesmo assim não é um livro de um homem em desespero, mas o de um homem que crê. Embora trate de enfermidade e crise, não conduz à destruição e à morte, mas, ao contrário, à redenção”.
[Prefácio escrito para a 26ª. edição de O Lobo da Estepe publicado pela Editora Record em 2000 – Ilustrações do artista checo Jaroslav Bradac]
Um poema de Hermann Hesse traduzido por Ivo Barroso

Na tradução de O Lobo da Estepe aparecem
dois poemas de Hermann Hesse que foram
traduzidos por mim em prosa, para atender
aos prazos fixados pelo Editor. Posteriormente
consegui conformar um deles em versos metrificados
e rimados, como abaixo:
Ich Steppenwolf trabe und trabe,
Die Welt liegt voll Schnee,
Vom Birkenbaum flügelt der Rabe,
Aber nirgends ein Hase, nirgends ein Reh!
In die Rehe bin ich so verliebt,
Wenn ich doch eins fände!
Ich nähm´s in die Zähne, in die Hände,
Das ist das Schönste, was es gibt.
Ich wäre der Holden so von Herzen gut,
Frässe mich tief in ihre zärtlichen Keulen,
Tränke mich satt an ihrem hellroten Blut,
Um nachher die ganze Nacht einsam zu heulen.
Sogar mit einem Hasen wär ich zufrieden,
Süss schmeckt sein warmes Fleisch in der Nacht –
Ach, ist denn alles vor mir geschieden,
Was das Leben ein bisschen fröhlicher macht?
An meinen Schwanz ist das Haar schon grau,
Auch kann ich nicht mehr ganz deutlich sehen,
Schon vor Jahren starb meine liebe Frau.
Und nun trab ich und träume von Rehen,
Trabe und träume von Hasen,
Höre den Wind in der Winternacht blasen,
Tränke mit Schnee meine brennende Kehle,
Trage dem Teufel zu meine arme Seele.
–
O LOBO DA ESTEPE
Eu, o Lobo da Estepe, vago errante
Pelo mundo de neve recoberto;
Um corvo sai de uma árvore, adejante,
Mas não há lebre ou corça aqui por perto!
Ansiando eu vivo de encontrar a corça,
Ah! se pudesse achar alguma um dia!
Tê-la entre os dentes, agarrá-la à força,
Nada mais belo para mim seria.
Havia de tratá-la tão cordial,
De cravar-lhe nas ancas o meu dente,
Beber-lhe o sangue todo, até o final
E uivar na noite solitariamente.
Até mesmo uma lebre hoje me basta!
À noite a carne tenra é preferida.
Porque sempre de mim logo se afasta
Tudo o que torna alegre a nossa vida?
Já meus pelos da cauda estão grisalhos
Nem posso ver mais nítida uma cousa;
Há muito que morreu a minha esposa
E vago e vejo corças nos atalhos,
E sonho e sinto lebres; a ânsia é tanta
Que ouvindo o vento uivar na noite incalma,
Com neve aplaco o fogo da garganta
E entrego ao diabo a minha pobre alma.
Curtir isso:
Curtir Carregando...
Read Full Post »