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Archive for setembro \30\-03:00 2010

Homenagem ao Dia do Tradutor – 30 de setembro

Publicado pela Gallimard em 1946, chega ao Brasil [2001], na competente tradução de Joana Angélica d’Ávila Melo, este livro que desde muito tem sido, senão a Bíblia dos tradutores, pelo menos um de seus mais frequentados breviários ou altares de culto. Invocando a figura de São Jerônimo, que institucionalizou em latim vulgar os antigos textos do velho e do novo testamentos, Valéry Larbaud — que por sua vez funcionou como uma espécie de São Jerônimo para a tradução francesa de qualidade — aproveita aqui para teorizar sobre os deveres e liberdades daqueles que se dedicam à arte nem sempre aleatória da tradução literária.

A primeira parte do livro é consagrada a comentários sobre a vida e a obra do Santo, mas Larbaud, preocupado em valorizar a produção original de Jerônimo, passa de leve sobre a história que, para os tradutores, teria sido mais didática, ou seja, de como foi feita por este a – digamos – copidescagem dos textos latinos antigos, hebreus e aramaicos que vieram a constituir a Vulgata, recriados numa linguagem que se tornaria a versão definitiva da Bíblia em latim. Larbaud justifica o en passant de sua atitude com a referência de que a enfatização do trabalho de tradutor de Jerônimo em detrimento de sua obra autônoma equivaleria a tratar Baudelaire tão somente como tradutor de Poe e não como o criador inigualável de “As Flores do Mal” — objurgatória improcedente, pois Jerônimo sem a Vulgata seria apenas um escritor menor, ao passo que a tradução para Baudelaire não passou de um “bico” circunstancial em momentos de penúria.

A história se repete em relação ao próprio Larbaud: embora sua obra original tenha certo interesse, mesmo vista do alto de nossa época, seu nome permanece referencial graças ao seu trabalho de tradutor, e sua obra magna nesse campo, à semelhança do mestre patronal Jerônimo, também foi mais um trabalho de copidescagem do que mesmo de tradução, pois embora muitos pensem que ele tenha traduzido o “Ulysses”, Larbaud na verdade foi o autor da apresentação do livro e incansável revisor do texto de Auguste Morel e Stuart Gilbert, de sua equipe, assessorado pelo próprio Joyce, que conhecia tão bem o francês quanto Larbaud o idioma inglês. A presença decisiva de Joyce certamente concorreu para que o texto francês adquirisse a “souplesse” que as condições tradutórias da época não teriam permitido como ficou evidente no caso das traduções de Svevo, que chega a soar “flaubertiano” em francês e é totalmente “stiff” na pseudo “melhorada” que lhe emprestou o tradutor inglês Beryl de Zoete. [Esclareça-se que Larbaud traduziu apenas alguns capítulos de “A Consciência de Zeno”; a edição integral, embora com sua orientação, foi feita por Paul-Henry Michel].

Não deixam de ser exemplares, no entanto, suas traduções de Samuel Butler, principalmente “The Way of All Flesh” (em francês “Ainsi va toute chair”) e alguns poemas de Walt Whitman, cujo estilo e vitalidade Larbaud conseguiu preservar em sua língua. Quanto à sua produção pessoal, são hoje poucos os leitores de seu romance  “Fermina Marquez” ou dos contos juvenis de “Amants, Heureux Amants”, mas resiste ao tempo, é certo, a figura de seu personagem alter-ego  Barnabooth, homem riquíssimo, cujas viagens são narradas com graça e sabedoria, reflexo da dedicação do autor pelo aprendizado de línguas e sua prática in loco, numa tentativa de não apenas falá-las mas também vivê-las. Não seria exagero, no entanto, dizer que Barnabooth é ainda hoje lembrado graças ao fato de o genial Georges Perec ter em “Vida, modo de usar” fundido essa personificação do delírio ambulatório, com o Bartleby, de Melville, o expoente máximo do maníaco-depressivo, daí resultando o excêntrico-terminal Bartlebooth, a encarnação do desprezo absoluto pelo poder aquisitivo do dinheiro, que para este se justifica apenas como a possibilidade de realizar um projeto de vida inteiramente gratuito. Bartlebooth dedica dez anos de vida a dominar a arte da aquarela; quinze anos a viajar pelo mundo pintando uma aquarela em cada um dos portos principais do planeta; aquarelas que são enviadas a Paris para serem transformadas em peças de quebra-cabeças, que ele armaria em sua volta das viagens. Finalmente, depois de armados, os quebra-cabeças, revertidos à condição de aquarelas, seriam reenviados aos portos de onde se originaram e ali submetidos a um tratamento químico para apagar a tinta, voltando ao estado de simples folhas brancas de papel Whatman de grão fino, para serem finalmente incineradas. A própria exacerbação da inutilidade do processo. Contudo, além do excêntrico Barnabooth, com suas poesias elitistas, gastronômicas e ferroviárias, Valery Larbaud tem a seu crédito outro grande livro que é “Ce vice impuni, la lecture”, cujo título exprime a mesma qualidade requintada dos comentários eruditíssimos com que analisa seus livros prediletos lidos nos originais de várias literaturas.

A segunda parte deste “Sob a invocação de são Jerônimo” argui sobre os direitos e deveres dos tradutores, seus instrumentos de trabalho, as várias “filosofias” do ato tradutório. Seria assim a parte “prática” do compêndio. Mas ainda aqui os assuntos são tratados de maneira um tanto empírica, encaminhando-se para uma “filosofia da tradução” e não para o seu exercício efetivo. Larbaud escreve numa época em que o tradutor não era “reconhecido, sentando-se no último lugar, vivendo por assim dizer apenas de esmolas, aceitando preencher as mais ínfimas funções, os papéis mais apagados, quando servir era a sua divisa, fiel ao aniquilamento de sua própria personalidade intelectual”.  Em que essa figura do amanuense na sombra se distingue do profissional de hoje, ansioso das evidências da mídia? Nos dias de agora a tradução, além de ser mais que nunca necessária, tem ainda um caráter “imediatista” e “nivelador”. Os grandes sucessos literários são às vezes lançados simultaneamente em várias línguas e a pressa em traduzir conduz com frequência à contrafação. Não lemos mais o autor, cujo estilo é manipulado pelo tradutor para atender aos cânones da divulgação. Por azar, essa prática não está circunscrita à televisão e ao livro de bolso, mas invade até mesmo as grandes editoras, quando se generaliza a tendência de “modernizar” os textos, de fazê-los “falar” a linguagem de nossa época. Recentemente num livro de Natalia Ginzburg podia-se encontrar, na versão brasileira, expressões como paquerava, bituca, corneia, pegando no pé, um cara, encher o saco, não esquenta, estar gamada, briga de foice — que pela sua gritante impropriedade numa narrativa dos anos ’40, surgiam como borrões na cristalina superfície das frases, depuradas no original de qualquer artificialismo, porém nunca indulgentes com a vulgaridade. Esse vezo de “agilizar” e “nivelar” a frase mediante a transferência das falas e situações para o tempo presente do tradutor, de colocá-las sempre ao alcance de um leitor hipotético e ignorante, só pode ser influência da massificante profissionalização da categoria. Totalmente inútil indicar o livro de Larbaud a essa casta de tradutores. Ele se destina, como em geral se destinam os livros de teoria da tradução, àqueles que ainda encaram o ato tradutório como um exercício de amor, para aqueles que fazem da tradução uma “paixão” genuína, uma auto-realização, até mesmo uma co-autoria..

Nos 55 anos que decorreram da publicação desta suma de Larbaud, cheia das mais criteriosas considerações, que continuam válidas para a maioria dos que se dedicam seriamente ao ofício de traduzir, muitos foram os teorizadores que surgiram, nos especializados mercados acadêmicos, analisando a psicologia, a deontologia, a hermenêutica, etc, etc. da tradução. Desde o clássico Georges Mounin, com “Os problemas teóricos da tradução”, aos aspectos linguísticos do “After Babel” de George Steiner e os ensaios de Todorov, Walter Benjamin e Hans-Georg Gadamer — uma vasta literatura teórica está à disposição dos tradutores para esclarecê-los ou confundi-los ainda mais. O mais recente trabalho do gênero parece ser a “Poétique du traduire” (Verdier, 1999), de Henri Meschonnic, professor de literatura comparada da Paris-VIII, tradutor ele próprio além de autor de numerosos livros sobre os problemas da tradução.  Meschonnic é dos que não se contentam apenas em teorizar e dedica boa parte do livro à prática da tradução. E aí não sobra para ninguém: até mesmo aquelas consideradas exemplares, como a Bíblia, de Chouraqui, são por ele “fritadas” como ineptas. Como a crítica à tradução poética só é honesta quando o crítico é capaz de apresentar algo melhor em defesa de sua tese, Meschonnic analisa 9 traduções francesas do soneto 27 de Shakespeare (“Weary with toil, I haste me to my bed”), feitas em datas distintas, compreendendo um período de 115 anos (François-Victor Hugo, 1857; Charles-Marie Garnier, 1906; Pierre Jean Jouve, 1955; Jean Fuzier, 1959; Henri Thomas, 1961; Armel Guerne, 1964; Jean Rousselot, 1975; Jean-François Peyret, 1990; Jean Malaplate, 1992) e liquida inapelavelmente com todas essas “tentativas” (segundo ele) canhestras de reproduzir a riqueza semântica do original. E para mostrar o “bâton” com que castigou esses “tradutores ineptos”, apresenta a sua versão, que depois de tudo isso, teria que ser perfeita. Mas onde está em inglês, por exemplo, “To work my mind, when body’s work’s expired”, onde rebrilha o jogo de palavras com o verbo “to work” e o substantivo “work”, a solução de Meschonnic-tradutor é um anódino “Que le corps épuisé, l’esprit ravage”. Basta isto para acabar com a contenda crítico versus praticante, pelo menos no presente caso. Na prática, a teoria etc.

Se nos estendemos acima na análise de outra obra sobre os problemas da tradução foi para deixar claro ao leitor que a leitura deste Larbaud, apesar de mais de meio século decorrido, ainda é um proveitoso e despretencioso passeio pelas questões fundamentais do gênero sem a prosápia irritante dos teorizadores de hoje.

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I died for Beauty (Morri pela Beleza) é um verso de Emily Dickinson que soa familiar ao leitor brasileiro, inúmeras vezes traduzido, desde os anos ‘40, quando adquiriu foros nacionais na versão do grande Manuel Bandeira. Segundo o minucioso pesquisador Carlos Daghlian, da UNESP, pode-se contar até agora cerca de 75 tradutores de Emily em língua portuguesa, entre os quais destacamos Aïla de Oliveira Gomes e Idelma Ribeiro de Faria, que nos anos ‘80 nos deram, cada qual, uma centena dessas composições.

Uma nova tradução, de José Lira, lançada agora [2006] pela Iluminuras, contempla 245 delas, o que ainda poderia parecer pouco em relação aos quase 1800 pequenos poemas, que se creditam ao acervo da autora. Mas conhecendo as condições em que foram escritos, e analisados cada um de per se, pode-se dizer — sem ofender os dicksonianos menos ortodoxos — que grande parte dessa produção é perfeitamente descartável, seja pela sua repetitividade, seja pela total impossibilidade de se saber o que está escrito ou o que esses versos querem dizer. No entanto, críticos da importância de um Louis Untermeyer, defensores de um “zelo devocional”, acham que nenhuma linha deles seria dispensável.

A Emily Dickinson cult, uma “poeta para poetas” no dizer de Carpeaux, goza de absoluta unanimidade no mundo literário e seria inteiramente fora de propósito achar que seu mérito seja discutível. Mesmo os que reconhecem um acentuado parti pris nas opiniões de um Harold Bloom — que a considera “a maior poeta ocidental de todos os tempos, colocada logo abaixo de Shakespeare” – estão cônscios de que o ineditismo formal, a profundidade conceptualística, a “espantosa complexidade intelectual” da poesia dessa americana de Amherst (Massachusetts), fazem de sua obra a influência referencial mais identificável da poesia moderna. Parece que Emily tinha a intuição de estar escrevendo para além de seu tempo, tanto assim que quase nada (apenas dez poemas) publicou em vida, engavetando sistematicamente todos seus papéis avulsos e os bilhetes cifrados num código de hermética poesia que enviava às amigas, com as quais se recusava a conviver. Tia, feia e solteirona à semelhança de Jane Austen, passou os últimos 25 anos de sua vida de 56, enclausurada num quarto sem receber ou falar com ninguém. Alguns estudiosos procuram atribuir sua atividade literária a um ou vários amores, que sua formação calvinista não lhe permitiu assumir. Mas isto seria muito pouco para gerar um corpus de tamanha abrangência estrutural, com sua pontuação personalíssima; a impregnação de um sentimento ontológico capaz de transformar a ideia da Natureza em símbolo da morte; a dislexia frasal, com suas interrupções bruscas e desvairadas mudanças de rumo. Emily viveu uma ascese espiritual em sentido oposto, um mergulho no nada, a descoberta do outro lado da alma, uma luta não para vencer a morte mas a vida.

Toda nova tradução de um livro célebre tem por obrigação ser superior às que a antecederam. E aqui está o grande mérito de José Lira, que desde muito vem se dedicando ao estudo de Emily Dickinson, principalmente no que respeita ao seu uso peculiar da rima. Ele próprio afirma no prefácio da obra que se ocupou “não apenas em traduzir poesia, mas em fazer poesia”. Daí ter optado por um processo tripartite de tradução que consiste em transladar os poemas por meio de “recriações”, “imitações” e “invenções” (denominações do próprio).  Por sorte, “recriações” aqui não têm o mesmo sentido que em outras plagas, em que o tradutor substitui o poema original por outro, seu. Essas recriações – algumas excelentes – são aquilo que se chamava antigamente de “tradução integral”, em que o tradutor procura captar o máximo de elementos formais e substanciais do original. Com esta edição bilíngue, o leitor poderá facilmente avaliar até que ponto o conseguiu. Preocupado com seu profundo entendimento da rima dickinsoniana, Lima às vezes opta por uma solução que, embora tecnicamente perfeita, nem sempre agradará o leitor por forçar um desvio ou “ruído” na ânsia de reproduzir um aspecto formal (talvez de pouca importância para o leitor). Nas “imitações”, os aspectos formais são menos observados, há alguma “desambiguição de termos e expressões mais obscuras, resultando em textos menos fiéis”, porém mais ‘fluidos’ ”. E, finalmente, nas “invenções”, a técnica usada equivale ao que para outros tradutores é a chamada “recriação”: a substituição de Emily por experiências formais à la Pound.

Embora seja um verdadeiro tratado tradutório (“tradução para tradutores”), que certamente os cultores do gênero não deixarão de apreciar, estes magníficos “resgates” de José Lira o recomendam como livro que nenhum leitor habitual de poesia poderá dispensar.

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Ettore Schmitz nasceu em Trieste a 19 de dezembro de 1861, numa bela e confortável casa da rua do Aqueduto nº 10 (hoje rua XX de Setembro, 16), filho de Francesco e Allegra Schmitz, ele, judeu de origem húngara, ela, italiana. O casal teve dezesseis filhos e Ettore será o quinto dos oito que sobreviveram.
Embora em casa se fale o dialeto italiano de Trieste e se viva à italiana, Francesco para efeitos de instrução só acredita nas escolas alemãs. Por isso Ettore foi enviado em 1874 para o colégio de Segnitz, na Baviera, onde permaneceu interno durante três anos. Apaixonado pela leitura, devora Schiller, Hauff, Körner, Heine, Shakespeare, Jean-Paul Richter e Turguéniev, sem deixar no entanto de namorar a neta do reitor, a bela Anna Herz. Durante toda a sua vida e mesmo depois de casar-se, Ettore sempre se mostrará sensível ao fascínio das mulheres, fazendo delas um dos temas persistentes de sua obra literária.
Obrigado a regressar a Trieste, vem embriagado de literatura e só pensa em escrever, não se sentindo inclinado para o comércio. Mas, em consequência da ruína financeira do pai, vê-se obrigado a empregar-se na filial triestina do Banco União de Viena, onde exerce as funções de correspondente em línguas estrangeiras. Nos momentos de folga, lê, escreve e fuma muito. O irmão Elio, seu confidente, irá consignar em seu diário os primeiros passos do futuro escritor, mas não conhecerá as glórias de Ettore, pois morre de nefrite a 29 de setembro de 1886, marcando profundamente a sensibilidade do irmão. Como que para preencher o vazio deixado pela morte de Elio, Ettore toma-se de amizade pelo pintor Umberto Veruda, que, pelo menos em parte, compensará, com sua riqueza interior de artista e seu devotamento, a perda do irmão.
Em 1887-91, Ettore Schmitz começa a escrever: primeiro uma novela intitulada Uma Vida, cujo pano de fundo é o ambiente bancário em que trabalha. Além disso, colabora com o jornal O Independente, onde publica seus contos em capítulos.
Em 1892, Francesco Schmitz, o pai, falece, e no enterro Ettore volta a encontrar Livia Veneziani, sua prima em segundo grau, com quem dá início a uma aventura sentimental que durará para sempre. Neste mesmo ano, no outono, publica seu primeiro livro (Uma Vida), com o pseudônimo Italo Svevo, que exprime, por assim dizer, sua dupla cidadania cultural, italiana e alemã, duplicidade sócio-cultural que o marca a fundo.
Em fins de 1895, morre a mãe, Allegra; em dezembro, Ettore pede Livia em casamento. Pretende dedicar-se à dramaturgia, escrevendo, nesse período, várias peças para o teatro. O casamento realiza-se em 1896, não sem transtornos. A família de Livia se opõe relutante à união da filha, que é católica, com um judeu, embora não praticante do judaísmo; além disso, Ettore é mais velho 13 anos que Livia; e, mais que tudo, não passa de um pobre empregado bancário, cujo pai faliu, ao passo que o sogro é um bem sucedido industrial, inventor da fórmula química de vernizes e tintas resistentes à maresia, com as quais se pintavam os cascos dos navios, invenção que proporcionou riqueza à família, administrada por sua poderosa sogra.
Em 1897 nasce a única filha do casal, Letizia. Ettore continua a trabalhar no banco e, para melhorar o salário, dá aulas noturnas de correspondência alemã e francesa no Instituto Comercial Revoltella, além de se tornar redator noturno do jornal Piccolo della sera. Adepto fervoroso do Irredentismo (movimento italiano de reivindicação, depois de 1870, dos territórios que tinham permanecido como possessões da Áustria), Ettore mal suporta o domínio austríaco, pois acredita, como vários outros judeus, que Viena era culpada de tolerar, se não mesmo de encorajar, o anti-semitismo nas regiões germânicas do Império Austro-Húngaro, o que levara a rica e influente minoria judaica triestina a assumir uma atitude pró-itálica. Embora sob a vigilância da autoridade dominante, não deixa de levar uma vida cheia de atividades jornalísticas e de publicar seu segundo livro, Senilidade, que, como o primeiro, encontra por parte da crítica e do público a maior indiferença.
Desiludido da literatura, Svevo resolve deixar o banco e aceitar o convite do sogro para trabalhar em sua fábrica de tintas e vernizes. Em função de sua nova atividade, viaja pela Alemanha e a Inglaterra e começa a se interessar pela língua inglesa. Sua intenção de abandonar a literatura é meramente de fachada, talvez para agradar o sogro: às escondidas, continua a escrever fábulas e contos e a esboçar projetos de comédias.
Em 1906, morre seu dileto amigo, o pintor Veruda, que lhe inspirara o personagem Stefano Balli de Senilidade. Nessa mesma época, Svevo faz conhecimento (e posteriormente amizade) com o então professor James Joyce, que viera ensinar inglês na Escola Berlitz de Trieste. Joyce irá, por sua vez, inspirar-se em Svevo para criar a figura do judeu Leopold Bloom, do Ulisses, e (pelo menos no nome de) sua mulher, Livia Veneziani, para a de Livia Plurabelle, do Finnegans Wake.
Em 1918-19, Svevo passa a interessar-se pela psicanálise e traduz o livro de Freud sobre a interpretação dos sonhos; começa, nessa mesma época, a escrever A Consciência de Zeno.
Quando finalmente o publica, em 1923, sente que, dessa vez, o sucesso não lhe será negado, mas o livro só obtém uma crítica azeda e injusta de Silvio Benco, no Piccolo della sera. Joyce, que estava nessa ocasião em Paris, tratando da publicação do Ulisses, consegue interessar o crítico Benjamin Crémieux e o tradutor Valéry Larbaud no trabalho de Svevo, os quais, entusiasmando-se ambos pelo livro, se dispõem a introduzi-lo na França, onde Svevo é apresentado como “um Proust italiano”. Em novembro-dezembro de 1925 e janeiro de 1926, surgem os primeiros artigos italianos consagratórios da genialidade de Svevo, assinados pelo poeta Eugenio Montale. Mas Svevo não irá saborear por muito tempo o êxito alcançado tão tardiamente: a 13 de setembro de 1928 morre num acidente de automóvel, ao voltar de um passeio em companhia da esposa.

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LXXI

No longer mourn for me when I am dead

Than you shall hear the surly sullen bell

Give warning to the world that I am fled

From this vile world, with vilest worms to dwell:

Nay, if you read this line, remember not

The hand that writ it; for I love you so,

That I in your sweet thoughts would be forgot,

If thinking on me then should make you woe.

O! if, – I say, you look upon this verse,

When I perhaps compounded am with clay,

Do not so much as my poor name rehearse,

But let your love even with my life decay;

Lest the wise world should look into your moan,

And mock you with me after I am gone.

 

 

 

71

Não lamentes por mim quando eu morrer

Senão enquanto o surdo sino diz

Ao mundo vil que o deixo e vou viver

Em meio aos vermes que inda são mais vis.

Nem te recorde o verso comovido

A mão que o escreveu, pois te amo tanto

Que antes achar em tua mente olvido

Que ser lembrado e te causar o pranto.

Ah! peço-te que ao leres esta queixa

Quando for minha carne consumida,

Não te refiras ao meu nome e deixa

Que morra o teu amor com minha vida.

Não veja o mundo e zombe desta dor

Por minha causa, quando morto eu for.

 

(Publicado
em “William Shakespeare, 42 Sonetos

           
Editora Nova Fronteira, 005)


[Nota: Na “visita” de Manuel Bandeira ao Clube
dos Doze, em 1954, tive a oportunidade de mostrar-
lhe a tradução deste soneto de Shakespeare.
Bandeira leu-o com atenção e me disse:“Este sim!
Eu assinaria embaixo.” Tais palavras me deram
estímulo para iniciar uma batalha que só terminaria
recentemente: o auto-desafio de traduzir 50 dos 154
sonetos do Vate.]

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Em 1954, o poeta Geir Campos tinha na Rádio Ministério da Educação um programa semanal chamado “Poesia Viva”, em que discorria sobre arte poética e grandes escritores, além de solicitar dos ouvintes que lhe enviassem seus poemas. Cada semana um deles era “premiado” com a leitura dos versos feita pelos locutores da emissora. Quando esses premiados alcançaram o número de doze, Geir os convocou para uma leitura personalizada em seu programa e prometeu fazer uma antologia reunindo os poetas escolhidos. Éramos: Albertus Marques, Alfredo Benvenuto da Silva, Edson Guedes de Moraes, Índia (Nídia) Rego, Jorge Cooper, Lia Feitosa de Castro, Maria Teresa Willaume, Marly Santos de Oliveira, Myrtes Riberte, Ruth Maria Chaves, Wilson Alvarenga Borges e eu. Como o livro, que seria editado pelo Serviço de Documentação do MEC, demorasse a sair, um dos premiados teve a idéia de reunir os doze poetas num clube para nos encontrarmos regularmente, a fim de palestrarmos e promover a edição de nossas “obras”. Tempos depois, em 1956, ocorreu-nos carregar com Manuel Bandeira até a nossa “sede social” (a casa de uma das nossas poetisas, Nídia Rego) onde, além de pedir seus conselhos, iríamos submetê-lo à tortura de ouvir os nossos versos e lhe fazer a clásica pergunta se devíamos continuar ou desistir. Bem humorado, o bom Manu, que tinha sido nosso professor de literatura hispano-americana na Faculdade Nacional de Filosofia, ali pertinho, nos recebeu em seu apartamento da Avenida Beira-Mar, 406, e se dispôs a ir conosco, de carro, até a Tijuca, onde um pequeno grupo nos esperava com suas laudas de poemas e alguns quitutes caseiros. Logo que chegou, fizemos ao poeta uma apresentação com estas palavras:

Caro poeta Manuel Bandeira:

Os jovens que o convidaram a esta reunião, incumbiram-me de expressar-lhe o nosso intuito e objetivo. Por isso, para que o senhor tenha uma ideia do lugar para onde foi “sequestrado” e da “tortura” que lhe intentaremos impor, devo dizer-lhe, inicialmente, que esta sala – o local do crime – é a sede do “Club dos 12”, gentilmente cedida pela sra. Índia Rêgo, dona da casa e nossa vice-presidenta. Em seguida, direi – para sua tranquilidade ou desespero maior – que os doze a que se refere o nome do club, não constituem nenhuma sociedade fechada, de propósitos sicários, mas um grupo de poetas daquela que poderíamos chamar de a “novississima geração”. Decerto, a esta altura, o senhor já deve estar rememorando os conselhos que o seu colega de grandeza o poeta Carlos Drumond de Andrade, em crônica naturalmente célebre, andou pontificando sobre a maneira mais estratégica de como se proceder em presença de escritores plumitivos. Mas, aqui, o senhor pode ficar com o espirito desprevenido, pois somos poetas de boa paz. Conhecemo-nos e formamos este clube, de intenções amigas, por inspiração do colega Edson Guedes de Moraes, nosso indispensável presidente, que nos agarrou à unha, um por um, num programa radiofônico dedicado à poesia, e mantido pelo Ministério da Educação, em sua emissora especializada. Ali obtivemos prêmios iniciais de classificação que muito nos incentivaram, principalmente depois que o Serviço de Documentação, do Dr. Simeão Leal, aceitou selecionar doze premiados para com eles editar uma antologia de novíssimos. Nós somos esses 12. Aliás, já somos esses 12 há algum tempo, mas a antologia não saiu até agora. É bom dizer que isso não representa uma reclamação e que não o trouxemos aqui para conhecer as nossas queixas; mas o fato é que não temos tido muita sorte e a antologia está sendo protelada de contínuo. Da última vez, quando os originais já estavam no prelo, a Imprensa Nacional foi forçada a interromper esse trabalho para enfrentar a árdua tarefa de produzir cédulas-únicas para as eleições passadas. Resultado: a antologia atrasou-se, mas em compensação, o Brasil, com isso, já teve vários presidentes*. Aí, para não perdemos o contato uns com os outros, fizemos o club. Editamos mensalmente um caderninho de poesia com as nossas últimas produções, no mimeógrafo, que é, por assim dizer, a imprensa dos escritores inéditos – e o distribuímos entre os sócios que já são muitos, e cujos trabalhos, selecionados, também aparecem naquelas páginas, juntamente com os doze.
Com isso, tenho como apresentados os executores deste “estado de sítio”. Agora direi porque o escolhemos para “vítima”, ou melhor, para a primeira de nossas “vitimas”.0 senhor é hoje, poeta Manuel Bandeira, uma espécie de instituição nacional. Mas, instituição nacional “par droît de conquête”. O tempo vai passando, vão surgindo os chamados “valores novos”, as rodinhas literárias fazem um alvoroço danado, dizendo que o livro do Fulaninho é lindo, que o poema do outro rapaz é uma coisa genial, mas tudo besteira – quando a gente quer mesmo sentir a Poesia, aquela coisa muito viva e muito simplicicade, que nenhuma definição consegue satisfazer, conforme o senhor mesmo já nos disse; quando a gente quer sentir aquela espécie de sopro renovado, aquela chuva madura caindo muito boazinha nas tardes consumidas; quando a gente procura no eu de hoje a serena mansidão do nós-criança, e lembramos o tempo grande, o mistério quente das palavras antigas, uns certos caminhos ladeados de sombras, uns amigos apagados no pranto, uma tristeza incutida nas coisas – aí então a gente se volta para o velho Manu e vai buscar a “Consoada”, o “Vou-me embora pra Pasárgada”, o “Profundamente”, enfim todos aqueles milagres de palavras que conseguiram captar tantos momentos de inefável. Parece que há no senhor, em sua vida, em seu jeitão calado, em seus livros, em tudo que recebe o seu toque, uma efusão de poesia – mas de uma poesia permanente, sem intervalo entre os poemas, – como se lhe fosse dado esse dom de continuidade poética numa ação criadora que o acompanha em todo o seu modo de existir.Como se o senhor, possuísse o encantamento de transformar as coisas todas da vida, as bonitas e as feias, as comuns e as incomuns, em grandes momentos de beleza, transformando-se com elas, transmutando-se na própria beleza das coisas. Foi por isso, nosso grande Manuel Bandeira, que o convidamos a esta reunião. Acontece que escrevemos os nossos poemas, pretendemos a Beleza, mas estamos sempre insatisfeitos com aquela que conseguimos produzir. Muitas indecisões nos atrapalham e a nossa compensação única são aqueles momentos em que pensamos na possibilidade de nos transformarmos, deixando cair as tristes penas feias de nossas dúvidas.

Bandeira, com sua voz meio velada, e a característica tossezinha com que pontilhava suas frases mais longas, mostrava uma discreta simpatia diante dos nossos versos e de uns eventuais salgadinhos. Em tom absolutamente informal, como numa conversa entre amigos, absteve-se de dar conselhos ou fazer julgamentos, indicando-nos apenas a leitura de autores fundamentais, deles excluindo, por modéstia, a sua própria poesia, que era, aliás, o motivo de nossa grande busca e maior veneração. Disse que a seleção feita por Geir tinha sido já um batismo, um atestado de qualidade que nos distinguia entre centenas de outros jovens que escreviam versos. Que ele próprio tinha tido dificuldades em publicar seus livros, contando com a ajuda da família para a edição dos primeiros. Mas se a poesia era de fato um impositivo em nossas vidas, uma experiência inelutável, então saberíamos continuar sem a pressa de aparecer, sem o desejo imediato de reconhecimento, apenas pela necessidade íntima e profunda de nos realizarmos no poema. Em nenhum momento demonstrou estar cansado de nossa apegada companhia e só se levantou quando nos oferecemos a levá-lo de volta. Muito educado sempre, ouvi-o arrematar a “visita” com a frase: “Obrigado pelos versos e pelos salgadinhos.” (Eu nunca soube se uns estavam à altura dos outros, mas sei bem que foi uma palavra sua que me levou à suprema coragem de traduzir Shakespeare).

(*) O momento político de então era incerto e agitado: entre a morte de Getúlio (1954) e a posse de Juscelino (1956), tivemos 3 presidentes: Café Filho, Carlos Luz e Nereu Ramos.

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(ENTREVISTA CONCEDIDA A JEFFERSON DE SOUSA)

Ivo Barroso é figura rara: intelectual de ponta sem a arrogância dos “mestres da sapiência”, dos acadêmicos donos de feudos intransponíveis. Afinal de contas, grande parte de sua vida foi dedicada a este trabalho de “democratização cultural”. Foi por meio de suas competentes traduções que deu aos falantes de português brasileiro o melhor da poesia universal: Shakespeare, Rimbaud, Eliot, Leopardi, Montale. Como já havia anunciado aqui mesmo no Rascunho a porção poeta invade de vez o espaço do tradutor. E a primeira publicação posta no mercado (Barroso já havia publicado outros dois livros em edições quase artesanais) é uma grande obra: A caça virtual. Foi numa conversa por correio eletrônico que ele concedeu esta entrevista, na qual demonstra o conhecimento, a visão, a sensibilidade, a crítica, a autocrítica e o bom humor deste que passa a ser um dos melhores poetas em atividade.

A caça virtual é o seu primeiro grande lançamento, apesar da reconhecida vereda intelectual. Foi muito angustiante a espera deste livro? Aliás, por que só agora?

Toda espera angustia. Confesso que esperei muito pela “Caça”, que começaria aliás com um poema que nunca cheguei a concluir e que daria  título ao livro. Por fim descobri que o poema permanecia inconcluso para justificar a minha indecisão. Resolvi publicar o livro sem o poema embora conservasse o título. Quem sabe um dia eu volte à caça. Naquele poema inconcluso, caminho por um bosque (versão moderna da “selva selvaggia), onde encontro vários tipos de poetas (jovens) e dialogo com eles. São os representantes da poesia eletrônica, que prescinde da gramática e até mesmo dos princípios básicos da linguagem. Mas o poema termina com a esperança de que possa surgir desse emaranhado de equívocos uma voz realmente nova que exprima os gritos da tribo. Estou à caça dessa voz.

Os críticos, de uma maneira geral, estão dizendo que seu livro não é exatamente fácil. Reynaldo Jardim, por exemplo, escreveu na Folha de S. Paulo que “exige um leitor bem informado”. Por outro lado, o senhor optou por tirar as referências cronológicas, notas… O que o senhor espera dos leitores deste livro?

O livro não é difícil nem hermético, ou melhor, não é propositalmente difícil nem hermético, no sentido de que seu referencial exija decodificações exegéticas. Basta um razoável conhecimento mitológico para tornar um texto como a primeira meditação a respeito do Cisne perfeitamente inteligível. Há casos que pedem certo aprofundamento, como Le Tombeau de Couperin, que é o título de uma composição de Ravel, feita para homenagear cinco amigos mortos na primeira Guerra. Ravel presta um tributo ao mesmo tempo a eles e a Couperin, modernizando-lhe o estilo. Quis fazer o mesmo, porém só selecionei um dos cinco para o livro. Fiz questão de eliminar notas ou dicas no corpo do volume para que os poemas falassem por si mesmos, e se o leitor encontrar aí a aridez de um talo de flor nascendo num arenoso vaso de cimento num túmulo de cemitério, é tudo o que o poema pretende transmitir em sua estrutura minimalista. Como o livro aborda temas muito variados, o leitor pode escolher à vontade entre os poemas que mais o sensibilizem, já que todos eles pretendem sensibilizar de alguma forma.

A maioria das resenhas têm apresentado A caça virtual como sendo sua “estreia”, como sendo obra de um poeta quase secreto. Ao meu ver quem traduz Rimbaud, Shakespeare, Eliot, Leopardi e Montale tem de, necessariamente ser um baita poeta. Traduzir a obra dessas figuras requer a  inventividade, o talento, a visão, a sensibilidade dos raros poetas. O que você acha?

A “Caça” é de fato uma estréia quando vista como meu primeiro livro de versos editado no Brasil. Tanto “Nau dos Náufragos” quanto “Visitações de Alcipe”, impressos em Portugal, foram edições restritas, fora do comércio. Eu me achava intimamente comprometido com a realização de algumas traduções de poesia que considerava fundamentais e por isso fui postergando a edição das minhas. Recriar o alheio chegou, em certo momento, a ser para mim mais importante do que tentar a afirmação do próprio, já que me havia preparado durante muito tempo para isso e me considerava então maduro para a tarefa.

Meus poemas podiam esperar. Até o momento em que achei minha função de tradutor realizada, e sem muito tempo mais para esperar pela minha própria realização. A arte de traduzir foi para mim uma grande escola, de dicções, de estilos, de inventividade e técnicas. Acho que seria proveitoso aos poetas exercitarem-se de vez em quando na tradução de seus ídolos tutelares. A palavra “estréia” no entanto vem quase sempre associada a precocidade, a promessas, e pega mal quando empregada para alguém que apresenta o resultado final de suas esperas e experiências. Daí eu falar com frequência em antologia, que pressupõe uma atitude mais amadurecida.

O crítico Barroso, que tem informações privilegiadas sobre a vida e a obra do poeta-autor de A caça virtual, classificaria de que maneira as várias fases contidas nesta obra. Como cada uma delas instigou a produção poética?

A Caça… é na verdade um expurgo dos vários livros que não cheguei a publicar, seja porque achasse a “fase” ultrapassada, seja porque o “corpus” não correspondesse ao que eu desejava então como poesia. Com isso ia protelando. Mas como eu próprio digo na abertura de Nau dos Náufragos: a espera cansa. E assim selecionei, de cada um dos livros que não chegaram a ser, um ou outro poema que me pareceu apto a desafiar o tempo e concorrer com os do dia de hoje. Tive foi o cuidado de evitar colocá-los em ordem cronológica para não induzir o leitor a julgá-los em seu condicionamento temporal: se achar o poema bom, tanto faz que seja um soneto simbolista, um ideograma concretista ou uma estrofe em versos livres modernos.

O poeta Alberto da Cunha Melo disse que seu livro “é um desafio para a chamada(…) ciência da literatura”, por apresentar, além de experiências formais, muitos poemas que ele chama de “polimétricos”, ou seja, vários metros, cadência, ritmo, harmonia e conteúdo. Qual a sua definição de poesia?

Houve em meu aprendizado, ao longo desses anos todos, muita experimentação. Digamos, para afinar o instrumento. Salvei apenas aqueles poemas que, no meu entender, iam além do mero jogo formal e conseguiam incarnar algum sentimento digno de sobrevida, por mais estranha que fosse a sua forma. Nos poemas longos, pude “executar” várias espécies de instrumentos: desde os pífaros aos contrabaixos, passando pelas madeiras e cordas. Facilitou-me a tarefa ter divido o poema longo em “tempos” ou “movimentos”, como na música, o que permitia a mudança de tom ou sua variação. Daí ter jogado com uma multiplicidade de metros e cadências, do que resultaram estrofes “polimétricas”, que fogem aos cânones da poesia tradicional. É difícil definir poesia, mas ela se parece com a sensação daquele vago prazer estético que se apossa de nós quando ouvimos música. Só que nesta todo o valor está no som, ao passo que, na poesia, a chave se encontra na palavra, que na maior parte das vezes independe até de seu próprio significado.

Em algum momento poeta e tradutor divergiram sobre os rumos de um poema?

Sobre os rumos de um poema nem tanto. No caso de Os Poetas de Setenta Anos, que é uma glosa à minha tradução de Os Poetas de Sete Anos, de Rimbaud, o poema original até que balizou o caminho. Tinha que ser o mais igual possível, do ponto de vista da técnica poética (enjambements, rimas ricas, etc.), mas exibindo a diversidade do conteúdo discursivo. Por outro lado, a simples percepção de uma palavra, frase ou modo de expressão de meus poetas traduzidos, que aparecessem no momento de feitura de um poema próprio, faziam com que fosse posto de quarentena e, por ocasião do livro, sistematicamente rejeitado. Não quero com isso negar influências, tenho-as como todos os poetas; apenas dizer de minha tentativa de não ser mais um diluidor.

Seu livro começa praticamente com um poema de dois versos e acaba com um de trinta páginas. Virtuosismo? Exibicionismo? Afirmações de ecletismo?

São dois episódios distintos. Quando tentava traduzir o célebre verso de Ungaretti, percebi que era impossível manter em português o que foi dito na forma em que o foi. Em italiano o verbo é proparoxítono (illúmino) e as letras dobradas têm valor fônico além do visual. A função daqueles “mm” dá ao poema a forma física de sua imensidade. A solução foi preservar a forma e modificar o conteúdo, e até mesmo subvertê-lo, para obter um efeito semelhante. Mas aí já não era tradução e sim um poema próprio, embora me apropriasse de uma forma alheia: 50% tradução, 50% original. Assim, dediquei-o a Ungaretti e aproveitei-o para o livro. No caso de Papel e Chão, ele é um eco dos valores poéticos que cultivávamos desde os tempos do Suplemento Literário do Jornal do Brasil (Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar, Mário Faustino, anos ’60), quando Faustino preconizava a excelência do poema longo como a realização máxima do poeta. Ele próprio escrevia “O Homem e sua hora”. Mas só em 1973, morando em Portugal, senti que estava a ponto de fazer um longo poema, que seria uma espécie de mea culpa pelo fato de estar no primeiro mundo (Sião) enquanto o Brasil (Babel) vivia sob a asfixia da ditadura. Escrevi todo o poema (4 partes) em uma única noite, na agência do Banco do Brasil em Lisboa, onde trabalhava na ocasião. O vigia noturno, vendo-me amassar folhas de papel, escrever desesperadamente à máquina, levantar-me, ler em voz alta e voltar a escrever com fúria, imaginou que eu estivesse louco e telefonou ao gerente do Banco que lá apareceu de madrugada, simulando estar de volta de uma festa. Só anos depois me revelou a verdade. O vigia telefonou para o hotel quando ele já estava de pijama; vestiu-se e foi até o banco. Olhou-me com certa preocupação, perguntou se tudo estava bem, eu disse que sim e ele se foi. Mal sabia que eu estava ralando a consciência, vertendo a minha bílis, celebrando o ritual da minha sagração.

Depois deste grande livro, o poeta vai de fato prevalecer sobre o tradutor? Essa inversão é certa? Afinal, agora, o melhor da sua poesia não está “apenas” nas suas traduções, como o senhor costuma dizer.

Como já disse, considero encerrada minha carreira de tradutor de poesia. Minha última tradução nesse campo foi o Diário Póstumo, de Eugenio Montale, uma espécie de “compensação” por não ter traduzido Ossos de Sépia, seu livro que mais me impressionou e para cuja tradução me preparei durante muito tempo. Mas fico devendo, a mim mesmo e ao público, o terceiro volume da obra completa de Rimbaud (a correspondência), que ainda espero traduzir. O ponto final na tradução de prosa estou pondo agora: uns contos curtos de Svevo cuja temática é a doença e a velhice. Faço-o certamente por exorcismo, como tenho dito.

A Caça…, pela sua aceitação junto à crítica e aos leitores, está criando para mim um compromisso: publicar outro livro de versos, desta vez com minha produção inédita e futura, que guarde – diversamente deste – a unidade que se espera de um poeta que pretende estabelecer a sua dicção. É um projeto que me assusta, mas ao mesmo tempo me encanta e desafia. [Nota: a Correspondência de Rimbaud foi finalmente editada pela Topbooks em novembro de 2009. Os contos de Svevo continuam inéditos.O novo livro de versos anda sempre in progress.INB]

Para o intelectual Ivo Barroso, a quantas anda a “nova profissão de fé” no Brasil?

É realmente assustadora a proliferação da pseudo-poesia principalmente na Internet. Há sites que abrigam milhares de poetas, em sua gritante maioria escrevendo a pior prosa que o país já teve, pois destituída de todos os ingredientes que poderiam transformá-la em poesia. Já não digo os instrumentos da chamada poesia clássica, como a métrica, a rima, a estrofação. Falta-lhes principalmente língua, capacidade oral, articulação, vocabulário, sem mencionar a inexistência absoluta das ideias. Além de tudo essa massa de equívocos cria um público, igualmente despreparado, que absorve esse produto como sendo poesia, incentivando com isso a proliferação dessas dengues poéticas. É claro que, como digo no poema, sempre há de se salvar algum que procura sua aurora noite adentro, feroz como um espermatozóide entre milhões de concorrentes, que irá fecundar o óvulo da poesia. E é nesse que deponho minha esperança.

O senhor tem afirmado que não quer ser mais um diluidor, qual é o caminho para uma dicção própria (ainda é possível fazer algo realmente novo?) e qual é a marca que Ivo Barroso quer impressa em sua poesia?

Sempre temi as diluições. Sofria ao ver um poeta novo repetindo, mil furos abaixo, o torso de Apolo ou as elegias de Duíno. Dava-me pena ver toda uma geração imitando, sem as qualidades poéticas necessárias, os altos vôos de Drummond ou de Bandeira, ou tentando secar seus poços para se parecerem com a aridez que em João Cabral era orgânica. Mais tristeza me dava ver os novos vates insistindo em recursos inanes e datados como os trocadilhos concretistas e simplesmente perdia as esperanças se era um caso do tipo sol sal sul. Eu próprio andei por esses caminhos, mas foi para reconhecer finalmente que não levavam a nada. Agora digo a todos: tentem ser vocês mesmos; é preferível fazer uma poesia ainda que bisonha do que macaquear essas alturas poéticas. O que eu chamo de criar uma dicção própria é encontrar um modo autêntico, nascido da necessidade íntima de exprimir sentimentos individuais, modos de ver, concepções do mundo e dos seres. Isso pode ser dito com palavras simples. Sem a necessidade de um karaokê com a música dos outros. Se abomino a profusão de “raps” que andam por aí pretendendo ser poesia, também não me agradam os “arranjadores” de melodias alheias. Não digo para ninguém esperar. Repito: a espera cansa. Mas não desperdicem a palavra inutilmente. Aprendam a cultivá-la, que é riqueza e dádiva.

Todo poeta aspira a expressar em seus versos o seu próprio “tom” de voz. Sua maneira de dizer deve ser sua, só dele, distinguível na multidão como uma face de outra face.  Tenho afirmado que a poesia é uma atividade inteiramente inútil e por isso relegada a um espaço ínfimo no mundo imediatista em que vivemos. Mas ocupa ainda no fundo secreto do homem um lugar semelhante ao da crença e do amor – abstrações sutis que, no entanto, fazem-nos querer voltar à luz e riveder le stelle.

O poeta é um recordista de desafios. Creio que o maior deles é o trabalho alquímico de transformar a prosa em poesia. Se além disso consegue deflagrar com seu bruxedo uma fagulha, mínima que seja – sua visão do mundo – já estará criando alguma coisa, cujo valor e durabilidade irá depender de sua maior ou menor capacidade de expressar-se. Nem sempre é possível jogar luz sobre a vida; às vezes é até necessário obliterar o excesso de luz para tornar as coisas mais visíveis. A poesia também vive de sombras.

(Entrevista publicada no jornal “Rascunho”, de Curitiba, em abril de 2002)

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Frases

No meu primeiro dia como diretor de Seleções, examinando um lote de “fillers” (frases curtas destinadas a preencher os finais em branco das páginas da revista) dei com essa tirada de Longfellow, que me tocou de perto, pois me acreditava vivendo um milagre, pela quantidade de obstáculos que se opuseram à minha volta à Europa. Tentei traduzi-la e não consegui uma forma que me parecesse condizente com o tom da frase ou seu estilo. Recortei-a e mandei fazer com ela um quadro que até hoje me acompanha, pendurado à parede de meu escritório, com outras gravuras e diplomas. Eis um bom exercício: como você a traduziria?


A outra, simples lema de minha autoria, igualmente pendente da parede do escritório, é apenas uma provocação: você concorda com ela?

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