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Archive for junho \30\-03:00 2016

condicao

Publicado precisamente há oitenta e três anos (1933), que impressão poderá causar no leitor de hoje este livro que tanto impacto provocou nos leitores de seu tempo? Com a vulgarização da epopeia através do cinema e da televisão, que força espantosa poderá revestir esta ficção para despertar ainda, nos dias atuais, um sentimento de grandiosidade, de sublime heroís­mo, de desprendimento humano — enfim, de épico — que fez desta novela a ruidosa ganhadora do prêmio Goncourt daquele ano?

       A garantia maior de que este livro representa um dos gran­des romances de nossa época é precisamente a sua total capa­cidade de permanecer legível e empolgante até hoje, de ter en­frentado todas as grandes transformações político-sociais deste fim de século e milênio sem perder a vitalidade de sua narrati­va, transformando-se por isso mesmo no que chamamos de um clássico. Romance engajado, sem ser embora um romance de tese, procurando apresentar sob ângulo favorável uma ideolo­gia hoje esvaziada, nem por isso viu perder ou diluir-se sua qualidade literária, sustentada por um estilo novo à época mas que ainda se revela válido e atuante nos dias atuais.

       O olhar crítico, não raro sardônico, que poderia ter o leitor de agora em relação à figura de Malraux, analisado dentro de uma perspectiva que abrange toda a sua vida (com suas tran­sições de herói e aventureiro para o político e o burocrata) — e não apenas o momento glorioso em que compôs o livro — não consegue, nem mesmo assim, embaciar os reflexos lumi­nosos de sua obra. É certo que nela podemos achar, diante das evoluções sofridas durante todos estes anos pelo tema princi­pal — a revolução chinesa de 1927 — que muito da “ideolo­gia” explicitada no romance há de soar pelo menos ingênua, para não dizer meramente romântica. Malraux escreve seu li­vro quando a revolução estava em processo e ameaçada, mas, apesar de depois traída e desfigurada, ela hoje aparece como triunfante e estabelecida, malgrado todas as contorções de crueldade e prepotência que em geral as revoluções trazem no seu bojo. Terá esse comunismo do plano real da China de hoje algo a ver com a idealização que dele fazem os persona­gens de A Condição Humana? O próprio Malraux, numa en­trevista de 1973, declarou que “o ideário e a ação do livro es­capam forçosamente a seu autor”, sabendo que seu romance, com o passar do tempo, não poderia ser sentido da mesma maneira que o fora por ocasião de seu aparecimento. É certo que a história, em seu desenvolvimento, ensejou novas pers­pectivas, que o ponto de vista dos leitores mudou. Como bem assinala Alain Meyer em seu comentário ao livro, o romance foi escrito “em cima de uma situação”, que evoluiu, mas a vida de A Condição Humana prossegue. Isso, em vez de tornar o livro perempto, o enriquece. Daí a necessidade de lê-lo ao mesmo tempo no passado e no presente.

      André Malraux é um desses raros autores à maneira de Rimbaud que conseguiram realizar uma obra-vida, passando para o campo da realidade — ou vice-versa — o seu ideário ar­tístico. Sua posição política será necessariamente a de um ho­mem de esquerda, embora não radicalizada a ponto de assumir um comprometimento cego com o partido comunista. Seu es­pírito, sempre lúcido, permanece livre para discordar, para se opor ao banimento de Trótski, para se rebelar contra o regime de ferro de Stálin. Antifacista convicto, parte para a Espanha, onde forma e dirige uma esquadrilha de aviadores estrangeiros junto às forças republicanas contrárias a Franco. Durante a in­vasão alemã da França, na II Guerra Mundial, atua como maqui, comandando a brigada Alsácia-Lorena. Mais tarde, une-se ao general De Gaulle, de quem será um companheiro fiel até o fim. Eis aí, muito esquematicamente, em flashes distintos, como retratos de épocas diversas num álbum aberto ao acaso, alguns dos momentos culminantes desse que foi uma das maiores per­sonalidades — para não dizer personagens — de nosso século. Nos anos 30, era a imagem perfeita do intelectual dublê de ho­mem de ação; o aventureiro dotado de extraordinário senso crí­tico, profundo conhecedor de arte e de literatura. Chegou mes­mo a criar um “tipo” físico, cuja aparência era imitada pelos jovens, como os de hoje imitam os superstars do esporte ou da música pop – – mecha de cabelo rebelde, cigarro nervoso nos lábios, olhar febril e inspirado; e, a partir da Guerra de Espanha, o blusão ou o macacão de aviador. Mais tarde, imitaram-lhe o estilo literário, à exaustão, podendo-se dizer que Albert Camus foi o resultado vitorioso na suplantação do modelo. Facilmente constatamos que tudo isso mudou, que o artista de nossos dias de desconstrutivismo está mais propenso à inação, cultor do álcool, das drogas e da promiscuidade, com tendência a produ­zir necessariamente uma literatura de anti-heroísmo, de. anti­sublimidade, de antiépico enfim, mergulhado que está nas par­tes mais lodosas e individualizantes desse ser que é o homem moderno, condenado ao niilismo e à autodestruição. Dentro dessa ótica é muito difícil encontrar um lugar para este livro que é a exaltação da “amizade viril”, da ação social, da tentativa de restabelecimento da dignidade para o ser humano. A menos que o vejamos como essa luz que sempre se espera nas situações desesperadas.

       Em 1931, Malraux, em companhia de sua mulher Clara, foi comissionado (e financiado) pela editora Gallimard para fazer uma viagem de volta ao mundo com a finalidade de reunir ele­mentos para uma exposição destinada a mostrar o relaciona­mento do mundo grego com o budismo. O itinerário incluía a Pérsia, o Afeganistão, a índia, Cingapura, Cantão, Xangai, a Mandchúria, o Japão e Nova York, etapa final onde os Malraux tiveram que esperar dez dias pelo envio de fundos por parte dos mandatários, que afinal lhes mandaram um bilhete azul, desti­tuindo-os da missão. Em agosto-setembro daquele ano, o casal se encontra em Xangai, donde segue em visita à China central, antes de partir para a Coréia e o Japão. Da China, até aquela data, Malraux só havia conhecido Hong-Kong, e apenas no âmbito da concessão britânica, numa breve visita em abril de 1925. Nessa segunda passagem por lá, conta sua mulher, Clara Malraux (Voici qui vient l’été, Bernard Grasset, 1973) que “nesse ano da graça de 1931, antes de seguir para o Japão, depois de haver passado pelas índias frutuosas, penetramos na China, pela primeira vez Xangai, depois Cantão. Em Xangai sentamo-nos diante do mais comprido balcão de bar do mundo (Morand dixit), eu para beber um rosé e descobrir que não há nada me­Ihor, depois de passarmos um mês sem engolir sequer um frag­mento de verdura, do que mastigar talos de aipo cru, André para beber não sei o quê e sem dúvida comer batatas fritas. No cais fervilhavam riquixás, autos e bondes, fumaça de carvão, de pe­tróleo, excrementos, suores de brancos e amarelos se casavam. De tempos em tempos, um homem se esgueirava, rápido, en­tre os veículos em disparada, na esperança de que alguma roda passasse em cima do corpo invisível do mau espírito que o ator­mentava. Cantão, onde transcorre a ação de Les Conquérants, Cantão, semelhante e diversa do quadro que `ele’ dela fez. For­ça do mito embalador do irreal, tremendamente maior que a da realidade. Eu, só via a realidade, uma pequena realidade fervi­lhante, mais parecida a um fogo-fátuo que a uma pítia; brinca­lhona, um tanto maliciosa, admirativa também, saltitava em tor­no a `ele’. `Foi mesmo aqui que você teve tal gesto, aqui que você disse isso ou aquilo, que sua iniciativa lhe permitiu…?’ Ele se irritava um pouco. Outros, sem dúvida teriam se irritado bem mais. Um ou dois dias mais tarde, fez-me saber que seu próxi­mo romance se transcorreria ali naqueles lugares e me pergun­tou o que eu achava de A Condição Humana como título.”

       O livro começa no dia 21 de março de 1927, ou seja, relata “acontecimentos” ocorridos havia quatro anos. Malraux conse­gue, no entanto, dar-lhes um tom de reportagem “ao vivo”, como se participando fisicamente da ação. Fantasista até a sofreguidão, apesar da realidade quase ficcional em que vivia, ele sempre ali­mentara uma “biografia paralela”, uma espécie de vida “em cai­xa dois”, onde se atribuía desempenhos e ações que só se passa­vam em seu wishful thinking. antes de A Condição Humana, André Malraux havia conquistado seu espaço literário com as narrativas de La Tentation de l’Occident (1926), Les Conquérants (1928) e La Voie Royale (1930), mas em todas elas o escritor ainda se mostra monocórdio, a ação centrada sempre sobre persona­gens quase intercambiáveis, que pouco se diferenciam uns dos outros. Embora nos dois últimos já se encaminhe para o roman­ce de ação, as idéias e reflexões ainda sufocam o desenrolar da trama. Com A Condição Humana, Malraux atinge finalmente seu momento “polifônico”, ou no dizer de Pierre de Boisdeffre (em seu estudo André Malraux, testemunha do século XX, in Mé­tamorphose de Ia littérature, 1963), “por fim seus personagens — e nisto reside a verdadeira conquista literária — vão indivi­dualizar-se: Clappique, Ferral, Gisors são seres plenos, vivos, au­tônomos, que nossa memória não pode confundir.”

       A narrativa reveste-se de um tratamento tão “cinematográfi­co” que quase pode ser lida como um script. Não seria absurdo afirmar que Malraux tivesse, desde o início, a intenção de trans­formar seu romance em filme, ou a de escrever um romance para ser filmado, como procede a maioria dos autores de best sellers modernos. Em todo caso, a técnica era novidade à época, o que assegurou o caráter de ineditismo da obra. A “tomada” inicial do livro mostra o terrorista Tchen no ato de assassinar um trafican­te de armas num quarto de hotel. A cena transcorre a princípio em completo silêncio. O homem está dormindo num somiê sob um cortinado pendente do teto e Tchen hesita entre atingi-lo com sua arma através do cortinado ou erguer o cortinado para atingi­lo. O olho do autor (ou da câmera cinematográfica) faz um close do pé da vítima que parece mais vivo que todo o corpo adormeci­do. Mas não é só o efeito câmera que domina a cena – o autor provê igualmente a iluminação (“A única luz provinha do edifício ao lado: um grande retângulo de eletricidade pálida, cortado pe­las grades da janela, umas das quais riscava a cama precisamente por cima do pé como para acentuar-lhe o volume e a vida” ) e a sonoplastia do momento (“Quatro ou cinco buzinas soaram a um só tempo”). Segue-se a descrição do assassínio cota o mesmo realismo gritante dos filmes noirs atuais, a lâmina que atravessa o corpo, o corpo rechaçado pelas molas do colchão, a mão parali­sada empunhando a arma. E não falta nem mesmo a presença do imprevisto surreal dos filmes impressionistas alemães com o apa­recimento súbito das orelhas de um gato projetadas contra a pa­rede do quarto. Gato que Tchen persegue até a varanda e de re­pente-.grande angular- as luzes da cidade lá embaixo, a volta ao mundo das pessoas vivas. Impossível não se ouvir a música incidental irrompendo com toda a força…

       Há outra cena que se tornou um verdadeiro clichê cinema­tográfico: Tchen, após assassinar (`Assassinar não é só matar”, diz ele para si mesmo) o traficante de armas, vai à sua célula comunicar o resultado aos companheiros que o esperam: “Uma loja cheia de discos. cuidadosamente arrumados, com um vago aspecto de biblioteca municipal; depois os fundos, um quarto espaçoso e nu, e quatro camaradas, em mangas de camisa. Ao se fechar a porta, a lâmpada oscilou: os rostos desapareceram, reapareceram: à esquerda, rechonchudo, Lu-Yu-Dhuen; a ca­beça de boxeador arrebentado de Hemmelrich, cabelo raspa­do, nariz partido, ombros caídos. Ao fundo, na sombra, Katov. A direita, Kyo Gisors; ao lhe passar por cima da cabeça, a lâmpa­da marcava fortemente os cantos caídos de sua boca de estam­pa japonesa; ao se afastar, deslocava as sombras e aquele rosto mestiço parecia quase europeu. As oscilações da lâmpada tor­naram-se cada vez mais curtas: as duas faces de Kyo reapare­ciam a cada vez menos e menos diferentes uma da outra “. Ou ainda esta, repetida até hoje: “A rua deserta. Um riquixá, ao longe, atravessou-a. Um outro. Dois homens saíram. Um cão. Uma bicicleta. Os homens viraram à direita; o riquixá atraves­sou. Rua deserta de novo; só, o cão…” E que pode ser mais cine­matográfico do que a fuga de Clappique, disfarçado de mari­nheiro e empunhando uma vassoura a subir pela escada do navio? Um momento inesquecivelmente chapliniano!

       Era natural que, após o êxito do romance, Malraux buscas­se sua transposição cinematográfica. Em 1934, quando foi a Moscou participar de um congresso de escritores, teve oportu­nidade de visitar a Mezrabpoumfilm, onde lhe prometeram es­tudar uma versão cinematográfica do livro. A adaptação seria feita por Joris Ivens, o metteur en scène e documentarista holandês, ou pelo cineasta soviético Alexandr Dovchenko, e o diretor nada mais nada menos que Sergei Eisenstein, com música de Dimitri Chostakóvitch. Mas o projeto não avançou: houve interferência da censura stalinista, severos cortes foram impostos ao argu­mento. Eisenstein confidenciou a Malraux: “Quando fiz o Potemkin, deixavam-me em paz porque eu era desconhecido e me davam seis semanas para fazer o filme, e se a coisa não des­se certo, pior para mim. Eu tinha 27 anos. Mas agora não vou pedir uma audiência a Stalin, porque, se ele não compreender meu ponto de vista, só me restará o suicídio.”

       O desejo de transformar A Condição Humana em filme po­rém não se arrefeceu com esse primeiro insucesso. (Trinta e cinco anos mais tarde, outra tentativa: a MGM interessou-se pelo pro­jeto, que teria Carlo Ponti como produtor, com Fred Zimmermann na direção. Mas fracassa de novo.) Porém, Malraux teve que se contentar com a proposta de Meyerhold para uma adaptação tea­tral do romance, com música incidental de Prokofiev. Mas nem mesmo essa chance ocorreu. A peça só foi estreada vinte anos de­pois, em dezembro de 1954, no Théâtre Hébertot, numa adapta­ção de Thierry Maulnier, com encenação de Marcelle Tassen­court, que representou igualmente o papel de May. Evidente que um argumento em que a ação predomina sobre a palavra não poderia resultar numa peça de sucesso. As digressões filosóficas de Gisors, as perorações proselitistas de Tchen, as falas amargas de Kyo tornaram-se mero palavrório sem o sustentáculo da in­tensa ação em que elas se integram. Malraux, que chegou a rodar cenas de um filme na Espanha, com roteiro tirado de seu livro L’Espoir (1938-39), morreu (1976) sem ver sua obra-prima trans­posta para o cinema. Parece fatalidade que o mais cinematográfi­co dos livros não tenha encontrado até hoje o seu realizador.

      Mas a grandeza da narrativa não se fundamenta apenas em sua estrutura cinematográfica. Malraux aliou a ela um estilo tenso, de imagens fortes e percucientes, com frases extrema­mente trabalhadas às vezes no intuito de levar o leitor a um misunderstanding, que só se esclarece após uma releitura aten­ta. Utiliza uma pontuação muito pessoal e um sistema de no­tação dialogal que mistura aspas e travessões nem sempre de maneira canônica. Na tradução, esforçamo-nos por manter essas características. Contudo, o que ressalta eloqüente é to­mar como enredo o instante mais drámatico da História de seus dias, trabalhá-lo como um depoimento pessoal, uma ex­periência vivida, dar-lhe um tom de reportagem fragmentária e transfigurá-lo à força da inteligência e profundidade dos diá­logos. Malraux, testemunha do mundo moderno.

       Mais tarde, em seu livro Les Voix du Silence, de 1951, irá dizer: “A arte não tem que copiar o mundo, mas recriá-lo.” Assim entendido, temos que A Condição Humana, nascida de uma tentativa de transformar a História em ficção, acaba por transcender a própria História, o que nos permite hoje ler o livro abstraindo a existência real e passada de uma revolução chinesa em 1927 para senti-lo como uma narrativa atemporal em que predominam comportamentos arquetípicos talvez oriundos das tragédias gregas.

O Malraux que havia mitificado a arte é hoje uma teste­munha do futuro.

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barco-verde

Um amigo de Ponte Nova-MG, que está fazendo pesquisa literária em antigos jornais daquela cidade, me informa que em dezembro de 1952 eu inaugurava no Jornal do Povo de lá uma seção denominada Bilhete do Rio com a crônica intitulada Sylvia (naquela época eu ainda escrevia o nome dela com y). Na verdade tratava-se de uma rentrée, pois já bem antes eu colaborava no suplemento literário daquele jornal, sob a égide de Tony Brant Ribeiro, que conseguira fazer com que um modestíssimo encarte de literatura da província se tornasse lido e elogiado por grandes escritores nacionais.

Em 1952, havia conhecido Sílvia, que viera visitar uma de suas irmãs, a bem dizer minha vizinha. Eu trabalhava (meu primeiro emprego) no Santos Dumont e, vindo de ônibus da Tijuca, saltava na Esplanada do Castelo e caminhava pela Avenida Beira Mar até chegar ao aeroporto. Completamente apaixonado, vinha sempre divagando sobre aquele amor que me parecia afinal definitivo, mas que estava sofrendo constantes interrupções principalmente pela minha então impossibilidade de assumir um compromisso mais sério. Um dia, no caminho à beira mar, dei com um barco que estava sendo construído no trapiche, e que tinha gravado na proa precisamente o nome da minha namorada. Associar esse barco à situação que eu estava vivendo foi quase fatal: um dia o barco estaria pronto, entraria nas águas do mar e eu nunca mais o veria ali no meu caminho. Mas, eis que o final feliz aconteceu: em 1956 nós nos casamos e em maio deste ano completamos 60 anos de união! 

bilhete-rio

“Sílvia” era um grito verde no olhar vazio da paisagem. Este caminho, muitas vezes percorrido, que me leva ao aeroporto, já perdeu para mim o encanto dos primeiros dias, quando, extasiado, contemplava a madrugada lentamente diluir-se na vastidão do mar. Agora, já se familiarizaram olhos e percepção íntima, e esta manhã que vejo – escama e ouro líquido – escorrendo pelas águas, transfigurando as coisas, não consegue despertar o velho entusiasmo, propenso à evocação contemplativa e lírica. Mas “Sílvia” raiou assim como a fuga ao diuturno, a eterna renovação do cotidiano. E dizer que possivelmente já estivesse ali há tempos, e eu a passar de olhos fechados ao que pensava sobejo e gasto, não reparasse na estranha fascinação que se propaga…

O trapiche inclina-se para o mar; preso a ele, de ambos os lados, protegido de escoras, o casco emerge alguns palmos da proa na amurada, o suficiente para deixar, faiscantes ao sol, as seis letras do nome “Sílvia” aparecendo. É um pequeno iate em construção, mas há que deitar-lhe os olhos de um devaneio esquecido nos corredores da infância, e navegar, pois “Sílvia” é o roteiro para as ilhas sonhadas, a mágica peregrinação às terras desconhecidas.

Associo esse barco ao meu destino. O pressentimento de que, amanhã, ao chegar, não o encontre mais ali, perturba em mim a íntima estruturação de uma felicidade arquitetada a custo; por isso, enredo-o, firmemente o quero preso ao trapiche, encrustado entre as pedras, fora de seu elemento de mobilidades naturais. Dele me aposso à força da contemplação e do silêncio, sem os ditames do egoísmo, procurando mais me conformar a ele do que fazê-lo configurar-se a mim. Ocorre, em paralelo, que, uma vez me alvoroçando na pretensão da posse, empresto-lhe inadvertidamente as minhas tintas, meus cordames e escotilhas, supondo embelezá-lo para mim, quando, na verdade, acelero com isto o seu acabamento e a consequente escapatória. A minha insegurança cresce cada vez que, pela imposição de meu desejo de permanência, venho sondá-lo, ausculto-o e me dou conta de que o verde se carrega em mãos de tinta sucessivas, de que os desvãos se locupletam e as corredeira funcionam bem.

Avança a fase final do acabamento: há uns poucos reparos que têm sido protelados pela tremenda firmeza de minha vontade em lhes frustrar a conclusão – de modo que tudo permanece numa flutuante dependência, que é a medida áurea entre a ancoragem permanente e a fuga terminante para o mar…

Por ventura não me acordo de que, incrementando em mim a permanência de “Sílvia”, estarei associando-o a esse mesmo cotidiano que me enfara? Não me ocorre a ideia de que esse desejo de constância implica uma dependência cada vez maior do meu enfraquecido anseio de mobilidades? E, se houve uma corda interior estremecida pela inflexão do nome, um olhar magnetizado pela exaltação do verde, não pode dar-se o caso de que a vibração se desvaneça, de que se desbote o colorido? Permanece realmente o impulso a acelerar-se no correr dos dias ou seu movimento se desloca “à contre cœur”? Mas a desconhecida tranquilidade que me vem de o ver ainda, no trapiche, a cada instante, subtrai essas possibilidades e volatiliza o enevoado das cogitações. E o certo é que, dos meios que possuo, já empreguei todos – da retenção pelo esforço físico à inconcebível fraqueza das lágrimas – para que o bojo não resvale para o mar e a quilha não demande as distâncias do ignoto. Por outro lado, constrange-me a possibilidade, última, de que se deixe ficar no trapiche, com o mar tão perto, sonhando tanto — e sem roteiros. Deve pertencer a alguém, destinar-se a algum viajante que desconheço ou que, como eu, lhe vive rondando as proximidades. Seria justo empregar tanto esforço mental – o verde-sonho, o azul-quimera, a mastreação de tantas fantasias – e desejar que tudo isto se redunde num adeus de lenço branco?! Ou, calçá-lo tanto, escorá-lo dessa forma pela satisfação estúpida de o ver, aos poucos, na inutilidade da fixação, parado e sem destino, perecer como um peixe que se lançou na areia?!

Decerto a solução reside na impossibilidade aquisitiva de o ter para mim e navegá-lo em minhas águas; mas, desde que a única solução descamba no golfo de uma impossibilidade, o dilema persiste, atormentando, e grave.

“Sílvia”… um grito verde no vazio da paisagem: resta saber se de angústia ou de esperança.

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Já apresentamos aqui várias semelhanças literárias, tais como a de Machado de Assis e William Blake (Ainda Blake e Machado: uma curiosa coincidência) 04/09/2010 veja aqui, entre versos de Rimbaud, Vinicius e Fernando Pessoa (Duas semelhanças curiosas) 13/03/2016 veja aqui e entre poesias de Rimbaud e Castro Alves, 16/12/2013, veja aqui.

Pois temos outra, agora em prosa: 

A parábola do Filho Pródigo, originalmente em LUCAS 15-16, inspirou o escritor francês André Gide em 1948 a escrever um traité (relato), um tanto simbólico em que insinuava sua apreensão em converter-se ao catolicismo, o que era esperado por boa parte de seus amigos. Gide faz o pródigo retornar depois de “uma longa ausência” e é recebido em casa festivamente, mas em seguida terá quatro conversas com seus familiares (a reprimenda do pai, a reprimenda do irmão mais velho, o diálogo com a mãe e o diálogo com o irmão mais novo, a quem ajuda a fugir de casa na esperança de que este consiga alcançar o objetivo a que ele teve de renunciar.)

O mesmo relato bíblico terá certamente inspirado o nosso escritor brasileiro Raduan Nassar a publicar em 1975 seu livro Lavoura Arcaica, um êxito literário que levaria seu autor a obter recentemente o prêmio Camões. Também aqui temos os diálogos com os familiares, inexistentes no relato bíblico, só que com uma pequena variante: Raduan faz o pródigo regressar a casa, trazido pelo irmão mais velho, enquanto em Gide ele regressa, conforme na Bíblia, premido pela fome e o desencanto. O que mais nos chamou a atenção nessas coincidências estruturais, inexistentes na parábola de Lucas, foi a cena final em que tanto o Pródigo gideano quanto o de Nassar entram no quarto do irmão mais novo, que se recusou a compartilhar de sua festa de acolhimento.

Temos em Gide: 

Le prodigue, une lampe à la main, s´avance près du lit où son frère puiné repose, le visage tourné vers le mur.

(O pródigo, uma candeia à mão, se aproxima do leito onde repousa o irmão mais novo, rosto voltado contra a parede.) (grifos nossos)

ANDRÉ GIDE – LE RETOUR DE L´ ENFANT PRODIGUE – Gallimard, 1948 – pág. 199

E em Nassar: 

Ao entrar no quarto, embora achando um tanto estranho, não me surpreendi vendo Lula na cama, deitado de lado contra a parede, coberto por um lençol branco da cabeça aos pés.

RADUAN NASSAR – LAVOURA ARCAICA – J. Olympio, 1975 – PÁG. 169

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ceu

Este soneto escrito em 1947 demonstra o quanto eu, que morava havia dois anos no Rio de Janeiro, ansiava pelas férias de junho ou de dezembro para ir passá-las em minha terra natal, Ervália, no interior de Minas. Por anos seguidos, fiz religiosamente essa peregrinação de volta, até o dia em que a casa de minha avó, uma bela edificação em estilo colonial português, foi posta abaixo na Praça da Matriz e ergueu-se no terreno um clube social. Depois disso, não sobrou nem o retrato na parede…

jornal-gazeta

 

OUTRA GRANDE SAUDADE

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    Neste dia 15 de junho, há dois anos, falecia meu irmão, o professor Ney Julião Barroso. Submetido a uma operação de safena, não resistiu e  nos deixou prematuramente. Tinha grande ânsia de viver e dele esperávamos ainda grandes realizações, ativo e batalhador como era. Seus alunos, inconsoláveis, lamentaram a perda. E nós ficamos sem a sua presença que era como a outra parte de nós mesmos. Paz à sua alma!

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PEQUENA INTRODUÇÃO DO AUTOR

Este meu conto (primeiro e único) foi escrito em 1972, quando trabalhava em casa de Carlos Lacerda revisando verbetes de uma enciclopédia.  Achei-o um tanto artificioso e resolvi submetê-lo à leitura de Antônio Carlos Villaça, que era meu colega de pesquisas. Depois da leitura , com ar meio enigmático, ele acabou dizendo: “Não foi você quem escreveu este conto, foi seu demônio”. Recordo-me que, em vez de “demônio”, ele disse “seu daimon”, numa alusão aos Sonetos de Abraxas, que eu tinha escrito e que também lhe dera para ler. Guardei o conto sem mostrá-lo a outros, receoso de que, conhecendo meu temperamento afável, viessem imaginar que o fizera apenas para épater. Somente muitos anos depois, a bem dizer vinte, convidado a falar sobre o ‘‘conto no Brasil’’, numa tertúlia do centro cultural das Casas de Fronteira e Alorna, em Lisboa, resolvi botar à prova a narrativa, e li-o sem mencionar o nome do autor. O espanto seguiu-se, a plateia manifestou sua preferência pelos nossos contistas regionais, e o Roteiro voltou à escuridão da gaveta. De volta ao Brasil, depois de longa permanência no exterior, comecei a fazer contato com os meios de comunicação e, entre poemas e resenhas, acabei cedendo o conto a uma revista do Paraná (Rascunho), que o publicou sem maiores comentários e sem que tivesse a menor repercussão. Até que um dia tive a sorte de corresponder-me com o arquifamoso tradutor alemão de Guimarães Rosa, Curt Meyer-Clason, que se interessou pelos meus escritos e verteu para o alemão mais de uma dezena de poemas e… o famigerado conto. Clason manifestou especial simpatia por ele e pediu-me autorização para publicá-lo numa revista alemã. Não só (satisfeitíssimo) permiti como lhe outorguei os possíveis direitos autorais que pudessem advir da publicação. Confesso que ao lê-la (ou decifrá-la) em alemão, a narrativa me pareceu ainda mais bizarra e macabra do que a sentia em português. Eis que, quase logo em seguida, o grande tradutor de Drummond para o francês, Didier Lamaison, me faz a surpresa de publicar na conceituadíssima revista literária francesa Caravanes  (2003) sua versão do Roteiro, que me chegou como um verdadeiro presente de Natal. Já era o bastante para considerá-lo editado e não pensar jamais em escrever outro, fosse agindo por mim próprio ou atuado por forças alheias ao meu temperamento. Se o republico hoje na Gaveta é para preservar do limbo estas duas excepcionais traduções. Os conhecedores de línguas e os que se comprazem em estudar os meandros da arte tradutória terão aqui exemplos estelares de recriação literária.

ROTEIRO TURÍSTICO

Ivo Barroso

Em Bangkok (ou Nova York, não sei) há uma rua chamada Sarkanda, que significa Esgoto. Quando um mendigo é apanhado esmolando pela cidade ou um bêbedo caído nas ruas centrais, a polícia o carrega para lá. Um guarda, junto ao portão de arame farpado à entrada da rua, impede os párias de fugir. O confinamento dura em geral até a morte por inanição ou extermínio.

Se os segregados gritam durante o dia, os moradores dos sobrados que dão para a viela atiram sobre eles garrafas vazias ou baldes de água quente. À noite, os mais recalcitrantes são calados a pauladas, pois a população obreira do bairro precisa de repouso para o trabalho da manhã.

Por alguns dólares os turistas podem se divertir com esse curioso espetáculo: montes de lixo humano que se movem e uivam. É cobrada uma taxa especial a quem quiser fotografar. Se durante a visita os mendigos ficam parados e a cena se torna monótona, o guarda do portão permite aos meninos das vizinhanças entrarem em bando pelo beco desferindo pontapés nos corpos caídos. As vítimas já quase não ligam aos chutes nem reagem ao mijo quente que as crianças lhes acertam nos ouvidos. Alguns sangram e cantam quando os meninos os golpeiam com latas vazias de leite em pó amarradas a um fio de barbante, gritando: Canta! Canta! Os turistas sorriem ao guarda e dão pequenas gorjetas às crianças. Os que vêm do interior ou de outros países para conhecer a cidade e podem ficar por mais tempo preferem almoçar num dos restaurantes que funcionam nos sobrados com varandas abertas para o beco. A princípio, costumava-se jogar comida lá de cima para ver como os mendigos reagiam. O garçom explicava que não se devia jogar muita quantidade, pois o objetivo não era alimentar os pobres, mas vê-los disputar as migalhas. Nessas disputas, na ferocidade dos avanços e dos repelões, não raro morria algum. Na manhã seguinte, o lixeiro levava o cadáver para jogar no rio. Nas poucas noites frias, era possível cremá-los em fogueiras feitas de cavacos, restos de caixas, jornais e outras matérias combustíveis que os vizinhos piedosos jogavam das janelas.

Os dois restaurantes, situados um de cada lado da ruela, sempre empenhados em animar a vida do bairro, buscam atrair novas levas de turistas para comer e desfrutar o espetáculo. Mas há problemas a contornar. Como a tendência dos mendigos é a de se aglomerarem a um canto, ocorre às vezes que os clientes do restaurante à direita se divertem mais que os do lado esquerdo. Além disso, a preguiça e a debilidade tornam os miseráveis quase imóveis. Com poucas migalhas se satisfazem; comem e se acocoram para dormir, ou, o que é pior, refugiam-se embaixo de folhas de jornal para evitar a luz dos fortes holofotes que ambos os restaurantes despejam sobre eles. Daí o acordo tácito entre as duas casas: os clientes não podem mais atirar diretamente à rua os restos de seus pratos. A comida que passou a ser lançada consistia de pequenas almôndegas que continham ou não fortes doses purgativas ou veneno. Os mendigos apanhavam as bolas e as cheiravam antes de comê-las; mas nem pelo odor nem pelo gosto era possível distinguir as que tinham das que não tinham veneno. Com a mortandade diária os restaurantes prosperaram. Mas um pequeno grupo conseguiu sobreviver fazendo a seleção alimentar por um critério extra-sensorial. Os espertalhões perceberam que o restaurante mais afastado de onde estavam tendia a atirar uma quantidade maior de almôndegas puras para atraí-los em sua direção. O que gerou uma espécie de dança, para cá e para lá, pouco interessante para os clientes de ambos os restaurantes, que preferiam como dantes ver os mendigos se estrebuchando ou se esvaindo em fezes quando tentavam comer.  Surgiu assim um novo problema para os pobres proprietários dos restaurantes: como os mendigos comem pouco, estava se tornando impossível abrir a casa para as duas refeições diárias. Os mendigos, quando conseguiam engolir algumas bolas inócuas na hora do almoço, não tinham fome por ocasião do jantar e ficavam rindo-se do esforço dos garçons para atraí-los. Claro, os clientes se retraíam: não haviam ido ali para ver mendigos sorridentes. Alguns fregueses saíam contrafeitos ou frustrados, prometiam vir para o jantar ou o almoço do dia seguinte, mas não voltavam mais. Daí terem os donos recorrido experimentalmente ao regime do jejum absoluto: nenhuma comida em hora alguma, com ou sem purgantes e venenos. Mas com a fome, o grupo tendeu a se encolher ainda mais, a permanecer abúlico, e a cada manhã os lixeiros tinham mais trabalho – só que o trabalho dos lixeiros não interessava a ninguém. Além disso, arriscava-se a uma dizimação improdutiva da mão-de-obra integrante do espetáculo.

Surgiu a ideia brilhante de se pendurar os alimentos em longas varas de pescar, sobre a rua, fora do alcance das mãos. Iscavam-nas com algumas almôndegas puras e boas, a recender ainda fumegantes e tiradas diretamente dos pratos dos clientes para afastar qualquer dúvida por parte dos mendigos. A princípio deu certo. O espetáculo voltou à animação dos primeiros dias: a massa informe movia-se, quase ficava em pé. Os recém-recolhidos, novatos com algumas semanas ainda de vida, conseguiam mesmo pular na tentativa de alcançar as iscas. Alguns se aproveitavam dos corpos dos companheiros caídos para subir-lhes por cima.

Mas a alegria do público foi logo esmorecendo. Quando um deles, no extremo do sacrifício de arrimar à almôndega, chegava próximo da isca, os gritos de advertência dos espectadores faziam com que os garçons levantassem as varas, criando a sensação de uma pescaria às avessas, que consistia em evitar que o peixe ferrasse o anzol. Enquanto isto, os garçons do lado oposto baixavam seus caniços para atrair os peixes famintos, e como a distância entre uma varanda e outra era muito reduzida, os oponentes passaram a esgrimir-se com as varas numa tentativa de evitar que o adversário facilitasse a pesca dos mendigos. A prática foi abolida no dia em que, entre urros, ameaças e impropérios, as iscas de carne tombaram no beco em razão da contenda. Os miseráveis apossaram-se delas e foram comê-las tranquilos em seus cantos, divertindo-se com a disputa dos garçons. Houve protestos gerais, alguns clientes saíram reclamando, outros chegaram a falar em devolução do dinheiro.

A solução do impasse pendia dos mais antigos habitantes do bairro: os ratos. Mas não se mostrou evidente no primeiro instante. Aconteceu por acaso. Eles apareciam apenas à noite, rondavam por baixo das varandas quando as luzes dos restaurantes se apagavam; era-lhes fácil farejar as últimas migalhas que os mendigos enjeitavam; quando até mesmo essas rações começaram a rarear, os animais subiam ao longo das paredes de palha, alcançavam as varandas, raspavam do chão das salas suspensas os salpicos de sopa. Depois, saciados, desciam, voltando céleres aos esgotos.

Quando se instituiu o uso das bolas purgativas, com pouco os ratões proliferaram, grande era a sobra que os mendigos deixavam receando a escolha. Os ratos devoravam todas as almôndegas aparentemente sem sofrer efeitos secundários. Mas quando os garçons começaram a carregar nas doses para ver os mendigos gemendo e defecando em público, revolvendo-se sobre o fel de suas próprias entranhas, os ratos também sofreram com isso. Os de pêlo gasto e curtido, que agora já vinham acompanhados de outros mais espertos e claros, a correr sem temor pelo centro da rua – os ratos passaram a guinchar em plena caça e a morrer às dezenas, à entrada dos esgotos, sob o efeito do tóxico. Os que restaram esconderam-se em galerias mais profundas, passaram tempos sem aparecer. Quando voltaram à superfície, estava em plena moda a prática do jejum absoluto e, logo depois, a das iscas suspensas por varas. As ratazanas vasculhavam os cantos, riscavam os muros, roíam as varandas e fugiam famintas. Depois que os andrajosos exauriram o que lhes restava de engenho nas grotescas tentativas de alcançar os caniços, e a prática das varas foi abolida, os ratos voltaram ao desespero da fome, em declarada guerra. Começaram a farejar as sombras, o fétido dos corpos caídos que tresandavam a excremento, e corriam por entre os molambos molhados, roendo os restos de merda das roupas. Uma noite, alguém, insone, que veio com um pau aplacar os gemidos dos mendigos, viu a faina dos ratos, e, como as idéias nascem de acasos, a solução se fez.

Os restaurantes mandaram armar grandes gaiolas de tela de arame para as quais atraem os ratos com torresmo e raspas. Com pouco, fazem várias criações em seu interior e, defronte às varandas, ali onde antes pendiam as varas, vêem-se agora gaiolas suspensas. Há um cuidadoso revezamento delas, e a que pende a cada dia encerra ratos que estão com três dias de regime.

Quando se aproxima a hora do espetáculo, a fome dos bichos é tamanha que seus guinchos vão se ritmando, cada vez  mais agudos, e os focinhos sangram de gana esgueirando-se entre as grades.

Tudo o que os garçons têm a fazer agora é atirar sobre o grupo um bocado de molho e puxar o cordel que abre a ratoeira em cima. Os ratos caem das jaulas aos saltos e avançam atraídos pelo cheiro do molho. O grupo, atacado, se acovarda e esperneia, e o espetáculo atinge seu auge quando os bichos arrancam primeiro os lábios e os lóbulos. E depois, quando as crianças entram armadas de porretes e começam a matar sobre os corpos dos mortos os ratos já fartos.

Por uma questão de ordem, ajustou-se que um dos restaurantes só funciona para o almoço e o outro para o jantar.

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REISEFÜHER

Curt Meyer-Clason

Curt Meyer-Clason

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 ÉTAPE TOURISTIQUE

Didier Lamaison

Didier Lamaison

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