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Archive for maio \27\-03:00 2012

Meu primeiro encontro com Antônio Houaiss foi em 1957 ou 58, na aula de português de um cursinho para candidatos ao Itamaraty, que funcionava à noite na Avenida Almirante Barroso. Na época eu não sabia quem era ele, mas admirei a verve do professor que perguntava aos alunos seu nome de família e discorria longamente sobre seu significado, suas origens, seus membros importantes, etc. Dada a minha timidez, não me lembro se chegou a abordar o meu Barroso, que nada tinha a ver com o Almirante da avenida onde estávamos. Mas lembro-me claramente do encanto que me proporcionou sua digressão sobre a ave que para nós provinha da América do Sul (peru), para os ingleses da Turquia (turkey) e para os franceses da Índia (poule d´Inde). Hoje sei que um processo administrativo absurdo o afastara de suas funções diplomáticas — sem remuneração – e, para se manter, lecionava e escrevia nos jornais. Agora estava ali no curso Barata, que na verdade era bem caro e destinado a jovens da elite que se candidatavam ao corpo diplomático. Sem recursos para tanto, deixei o curso naquela primeira aula, e só vim a saber de Houaiss muitos anos depois.

Em fins de 1958 eu dava meio expediente de manhã na Editora Delta, na travessa do Ouvidor, enquanto trabalhava à tarde no Banco do Brasil, onde entrara por concurso em 1954. Não me lembro bem como fui parar nesse outro emprego (sem carteira assinada), mas na época procurávamos por todo canto quem nos desse verbetes ou artigos para traduzir. Um dos sócios da firma, Dr. Pedro Lorch, estava preparando uma enciclopédia infanto-juvenil “Nosso Mundo Maravilhoso” com base na edição americana do “World Book”. Fui trabalhar diretamente com ele e atuava sozinho na biblioteca da editora, que ocupava um lugar de prestígio no 4º andar, com ar refrigerado e tudo. Minha função: secretariar as reuniões dos conselheiros da enciclopédia – Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Péricles Madureira de Pinho, Otto Maria Carpeaux e outros cinco figurões, que rodeavam a mesa de trabalho presidida pelo editor-mor, Abraão Koogan. Cada capítulo do original americano era analisado por eles, que o consideravam apto para tradução ou sujeito a adaptação para o público brasileiro. Eu tomava nota das resoluções (de início sem saber para que), me sentindo no topo da glória em meio ao que havia de mais representativo da cultura brasileira de então. Lembro-me bem que um dos capítulos iniciais estampava trechos dos diários de Colombo e ficava evidente que deveriam ser substituídos por equivalentes da carta de Caminha. “Anote aí”, me disseram e anotei. Depois é que senti de fato qual era o gosto (ou o preço) da glória. No caso, competia a mim encontrar na carta de Caminha os trechos correspondentes, copiá-los e equacioná-los de modo a cobrirem o espaço substituído. De outra vez, sobrara uma página em que no original havia um poema sobre a América. Como não houvesse sugestões, arrisquei propor: Que tal a Ladainha, de Cassiano Ricardo: “Brasil cheio de graça / Brasil cheio de pássaros/ Brasil cheio de luz”. “Anote aí”, disse sr. Abraão, e corre o Ivo para a Biblioteca Nacional copiar do Martim Cererê o poema inteiro. Bem feito! Mas havia também a redação dos lides para todos os artigos brasileiros, a busca das gravuras, a cata dos trechos indicados nos livros de história e suas respectivas condensações. Com minhas idas e vindas ao ISEB em busca de esclarecimentos e orientações, acabei me tornando familiar de Anísio Teixeira, que mais tarde me honrou com demonstrações de amizade. [Anísio morreu tragicamente em 1971: seu corpo foi encontrado no poço do elevador da casa de Aurélio Buarque de Holanda, onde fora em visita protocolar de postulante à Academia. Com seu desaparecimento por 3 dias, a família supôs que tivesse sido sequestrado pela Ditadura, já que Anísio era considerado de esquerda e fora cassado pela Revolução. A hipótese de que teria sido silenciado criminosamente me horrorizou por muito tempo, até que. mais tarde, seu genro à época (Paulo Alberto M. Monteiro de Barros, o Artur da Távola) me garantiu que a família estava finalmente convencida de que fora de fato um acidente.]

Também (re)corri muito ao Darcy Ribeiro, principalmente para cobrar as matérias que prometia sobre Lund e a gruta de Maquiné, sobre os quais, segundo o sr. Abraão, eu tinha que dar conta nos prazos estabelecidos. Carlos Scliar, que fazia a diagramação da obra, chegou certa vez lá e disse que precisava de uma foto das Furnas da Tijuca para fechar o caderno. “Hoje!” falou, e o sr. Abraão, em vez do “Anote aí” me disse apenas “Dá um jeito”. E lá fui eu com o fotógrafo e duas funcionárias da firma ao Alto da Boa Vista para conseguir a foto; nela apareço, no livro, magrinho, de costas, apontando ao que parece para alguma hipotética estalactite. Hoje, no ócio elástico da aposentadoria, fico pensando como era possível fazer tanta coisa em tão pouco tempo. O triste é que a enciclopédia não vingou. De repente, tudo parou: cessaram as reuniões, o poderoso comando, as terríveis anotações no bloco. E a presença impositiva de Scliar, que chegara a montar meia dúzia de cadernos que guardo como preciosidades junto à doce/amarga lembrança daqueles tempos afanosos. Num deles ainda posso ver o momento em que o anotador se extrapola em redator por necessidade de serviço: faltava a página de rosto do capítulo “A Terra Dadivosa”, não havia tempo para encomendas ou pesquisas, e em vez do “Anote aí” houve um “Escreva você”. Ei-lo aqui:

Eu ia ficar sem o “bico” que, confesso, graças à proteção de (são) Pedro Lorch, era bem remunerado. Por isso, vibrei quando me garantiu que eu não sairia da editora, talvez apenas da biblioteca. E a minha catedral refrigerada e silenciosa, onde eu fazia as minhas pesquisas e condensações, se viu um dia, de repente, invadida por uma turma ruidosa e descontraída que vinha criar a revista Senhor. O redator-chefe era Nahum Sirotsky que fumava cachimbo e dizia okie dokie para o Ivan Lessa, o Luiz Lobo e o Paulo Francis, todos empolgadíssimos como que antevendo a revolução gráfica que iriam causar no mundo editorial. Diferentemente do que ocorrera na enciclopédia, eu agora me sentia de todo sem função no meio daqueles rapazes agitados que se comportavam como estrangeiros (ou pelo menos com a ideia que eu fazia de estrangeiros). Continuei a ter uma mesinha com máquina de escrever que era, quando necessário, também compartilhada com os dinâmicos redatores. Mas antes de sair o primeiro número, em março de 1959, eu já tinha sido “reconhecido” pelo Francis que me encomendou a tradução de “As Neves do Kilimanjaro”, de Hemingway, para sair no lançamento da revista. Ele gostou da tradução e até escreveu uma nota de abertura dizendo que o tradutor havia propositadamente usado os tratamentos tu e você na mesma frase para dar aos diálogos maior fluência e naturalidade. Ei-la:

Aos poucos me integrava na equipe da Senhor e passei a traduzir sistematicamente todas as novelas e também alguns contos esparsos. Nahum chegou a me encomendar um artigo “Para inglês ver”, que saiu no número de abril de 1959. A revista era bancada por dois dos sócios da Delta, os irmãos Sérgio e Simão Waismann; Sérgio, que também fumava cachimbo, era entusiasmado com a dinâmica de Nahum e gostava de circular pela redação conversando com as figuras importantes que nos visitavam ou vinham trazer suas colaborações. Mas as finanças não andavam bem e os demais sócios resolveram estabelecer um dead line para saírem do vermelho. Contrataram então Ivan Meira e Edeson Coelho para comandar a publicidade e eles apareceram à frente de um grande séquito com a aura de trazerem consigo as contas publicitárias mais gordas do país. Contudo a vinda resultou apenas em acréscimo da folha de pagamento e a consequente redução do dead line antes imposto. Em fins de 1962, Reynaldo Jardim, que já havia assumido o lugar de Nahum, e o Edeson Coelho, o corifeu do gigante publicitário, assumiram o patrimônio da revista. Minha última colaboração foi a novela “Amor no trem”, de Mary Mac Carthy, em setembro de 1962, já com a nova direção da revista, que em seguida mudaria de endereço, deixando a travessa do Ouvidor.

E assim fiquei de novo sozinho na biblioteca, de volta ao trono, mas sem saber o que fazer.

 **

O capítulo seguinte já é do conhecimento daqueles que leram meu post de 06.03.2012 intitulado Três Mementos,veja aqui. Em resumo: quando estava para deixar a firma, dr. Pedro Lorch me disse para ir ao 2º andar e procurar o prof. Rónai, pois talvez ele tivesse algum trabalho para mim na obra que estava dirigindo para a Delta. Fui, tivemos uma conversa de sondagens iniciais da qual acabaram resultando as duas obras abaixo:

     Não sei bem como me mantive à sombra da Delta entre 62 e 66. Lembro-me que havia em curso na editora uma Enciclopédia Judaica, dirigida pelo dr. Elias Davidóvitch, o man for all seasons do sr. Abraão. A redação funcionava num prédio ao lado da Delta e eu ia lá com frequência apanhar verbetes para traduzir. O dr. Elias, que usava suspensórios, era uma figura singular: educadíssimo e modestíssimo, um dos maiores intelectuais que já encontrei, destes que sabem tudo, já leram tudo, nos ajudam na solução de problemas ensinando sem soberba e corrigindo sem reproche. Tradutor de Freud e de Stefan Zweig, de Goethe e Pierre Louÿs, foi o primeiro no Brasil a reivindicar seus direitos quando trabalhos seus apareceram com a nota “tradução revista por Fulano de Tal” e o pagamento passava a ser feito ao pseudo revisor e não a quem havia de fato traduzido. Muito aprendi com ele, com suas revisões, pois só admitia corrigir algo quando tinha uma solução melhor ou mais adequada para apresentar.

Em 1965, encontrei o sr. Abraão por lá, que ficou surpreso por me ver na Judaica. Queria saber se eu ainda estava na Delta, quanto ganhava, etc. Respondi que aprendera com ele a atuar em várias frentes. Mas ele me disse que dessa vez meus dias estavam contados porque a Delta se associara a uma grande editora francesa para levar a cabo um projeto monumental.

Em 1966, o dr. Pedro Lorch confirmou a informação. No segundo andar do prédio formava-se uma equipe totalmente independente para realizar um novo projeto sobre o qual ele não tinha qualquer injunção. Mas que eu desse um pulo até lá, procurasse a pessoa encarregada, me apresentasse como tradutor ou redator. Foi quando, pela segunda vez, me deparei com a figura messiânica de Antônio Houaiss.

(CONTINUA)

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Publicado pela Gallimard em 1946, chega ao Brasil [2001], na competente tradução de Joana Angélica d’Ávila Melo, este livro que desde muito tem sido, senão a Bíblia dos tradutores, pelo menos um de seus mais frequentados breviários ou altares de culto. Invocando a figura de São Jerônimo, que institucionalizou em latim vulgar os antigos textos do velho e do novo testamentos, Valéry Larbaud — que por sua vez funcionou como uma espécie de São Jerônimo para a tradução francesa de qualidade — aproveita aqui para teorizar sobre os deveres e liberdades daqueles que se dedicam à arte nem sempre aleatória da tradução literária.

A primeira parte do livro é consagrada a comentários sobre a vida e a obra do Santo, mas Larbaud, preocupado em valorizar a produção original de Jerônimo, passa de leve sobre a história que, para os tradutores, teria sido mais didática, ou seja, de como foi feita por este a – digamos – copidescagem dos textos latinos antigos, hebreus e aramaicos que vieram a constituir a Vulgata, recriados numa linguagem que se tornaria a versão definitiva da Bíblia em latim. Larbaud justifica o en passant de sua atitude com a referência de que a enfatização do trabalho de tradutor de Jerônimo em detrimento de sua obra autônoma equivaleria a tratar Baudelaire tão somente como tradutor de Poe e não como o criador inigualável de “As Flores do Mal” — objurgatória improcedente, pois Jerônimo sem a Vulgata seria apenas um escritor menor, ao passo que a tradução para Baudelaire não passou de um “bico” circunstancial em momentos de penúria.

A história se repete em relação ao próprio Larbaud: embora sua obra original tenha certo interesse, mesmo vista do alto de nossa época, seu nome permanece referencial graças ao seu trabalho de tradutor, e sua obra magna nesse campo, à semelhança do mestre patronal Jerônimo, também foi mais um trabalho de copidescagem do que mesmo de tradução, pois embora muitos pensem que ele tenha traduzido o “Ulysses”, Larbaud na verdade foi o autor da apresentação do livro e incansável revisor do texto de Auguste Morel e Stuart Gilbert, de sua equipe, assessorado pelo próprio Joyce, que conhecia tão bem o francês quanto Larbaud o idioma inglês. A presença decisiva de Joyce certamente concorreu para que o texto francês adquirisse a “souplesse” que as condições tradutórias da época não teriam permitido, como ficou evidente no caso das traduções de Svevo, que chega a soar “flaubertiano” em francês e é totalmente “stiff” na pseudo “melhorada” que lhe emprestou o tradutor inglês Beryl de Zoete. [Esclareça-se que Larbaud traduziu apenas alguns capítulos de “A Consciência de Zeno”; a edição integral, embora com sua orientação, foi feita  por Paul-Henry Michel].

Não deixam de ser exemplares, no entanto, suas traduções de Samuel Butler, principalmente “The Way of All Flesh” (em francês “Ainsi va toute chair”) e alguns poemas de Walt Whitman, cujo estilo e vitalidade Larbaud conseguiu preservar em sua língua. Quanto à sua produção pessoal, são hoje poucos os leitores de seu romance  “Fermina Marquez” ou dos contos juvenis de “Amants, Heureux Amants”, mas resiste ao tempo, é certo, a figura de seu personagem alter-ego  Barnabooth, homem riquíssimo, cujas viagens são narradas com graça e sabedoria, reflexo da dedicação do autor pelo aprendizado de línguas e sua prática in loco, numa tentativa de não apenas falá-las mas também vivê-las. Não seria exagero, no entanto, dizer que Barnabooth é ainda hoje lembrado graças ao fato de o genial Georges Perec ter em “Vida, modo de usar” fundido essa personificação do delírio ambulatório, com o Bartleby, de Melville, o expoente máximo do maníaco-depressivo, daí resultando o excêntrico-terminal Bartlebooth, a encarnação do desprezo absoluto pelo poder aquisitivo do dinheiro, que para este se justifica apenas como a possibilidade de realizar um projeto de vida inteiramente gratuito. Bartlebooth dedica dez anos de vida a dominar a arte da aquarela; quinze anos a viajar pelo mundo pintando uma aquarela em cada um dos portos principais do planeta; aquarelas que são enviadas a Paris para serem transformadas em peças de quebra-cabeças, que ele armaria em sua volta das viagens. Finalmente, depois de armados, os quebra-cabeças, revertidos à condição de aquarelas, seriam reenviados aos portos de onde se originaram e ali submetidos a um tratamento químico para apagar a tinta, voltando ao estado de simples folhas brancas de papel Whatman de grão fino, para serem finalmente incineradas. A própria exacerbação da inutilidade do processo. Contudo, além do excêntrico Barnabooth, com suas poesias elitistas, gastronômicas e ferroviárias, Valery Larbaud tem a seu crédito outro grande livro que é “Ce vice impuni, la lecture”, cujo título exprime a mesma qualidade requintada dos comentários eruditíssimos com que analisa seus livros prediletos, lidos nos originais de várias literaturas.

A segunda parte deste “Sob a invocação de são Jerônimo” argui sobre os direitos e deveres dos tradutores, seus instrumentos de trabalho, as várias “filosofias” do ato tradutório. Seria assim a parte “prática” do compêndio. Mas ainda aqui os assuntos são tratados de  maneira um tanto  empírica, encaminhando-se para uma “filosofia da tradução” e não para o seu exercício efetivo. Larbaud escreve numa época em que o tradutor não era “reconhecido, sentando-se no último lugar, vivendo por assim dizer apenas de esmolas, aceitando preencher as mais ínfimas funções, os papeis mais apagados, quando  servir era a sua divisa, fiel ao aniquilamento de sua própria personalidade intelectual”.  Em que essa figura do amanuense na sombra se distingue do profissional de hoje, ansioso das evidências  da mídia? Nos dias de agora a tradução, além de ser mais que nunca necessária,  tem ainda um caráter “imediatista” e “nivelador”. Os grandes sucessos literários são às vezes lançados simultaneamente em várias línguas e a pressa em traduzir conduz com frequência à contrafação. Não lemos mais o autor, cujo estilo é manipulado pelo tradutor para atender aos cânones da divulgação. Por azar, essa prática não está circunscrita à televisão e ao livro de bolso, mas invade até mesmo as grandes editoras, quando se generaliza a tendência de “modernizar” os textos, de fazê-los  “falar” a linguagem de nossa época. Recentemente num livro de Natalia Ginzburg  podia-se encontrar, na versão brasileira, expressões  como paquerava, bituca, corneia, pegando no pé, um cara,  encher o saco, não esquenta, estar gamada, briga de foice — que pela sua gritante impropriedade numa narrativa dos anos ’40, surgiam como borrões na cristalina   superfície das frases, depuradas no original de qualquer artificialismo, porém nunca indulgentes com a vulgaridade. Esse vezo de “agilizar” e “nivelar” a frase mediante a transferência das falas e situações para o tempo presente do tradutor, de colocá-las sempre ao alcance de um leitor hipotético e ignorante, só pode ser influência da massificante profissionalização da categoria. Totalmente inútil indicar o livro de Larbaud a essa casta de tradutores. Ele se destina, como em geral se destinam os livros de teoria da tradução, àqueles que ainda encaram o ato tradutório como um exercício de amor, para aqueles que fazem da tradução uma “paixão” genuína, uma auto-realização, até mesmo uma co-autoria.

[Nota triste: Em agosto de 1935 um ataque cerebral deixou Valéry Larbaud paralisado e afásico — estado em que permaneceu durante 22 anos até vir a falecer em 1957. Não pode haver agonia maior que essa de ficar tanto tempo em estado vegetativo, sem poder falar nem escrever!…]

Nos 55 anos que decorreram da publicação desta suma de Larbaud, cheia das mais criteriosas considerações, que continuam válidas para a maioria dos que se dedicam seriamente ao ofício de traduzir, muitos  foram os teorizadores que surgiram, nos especializados mercados acadêmicos, analisando a psicologia, a deontologia, a hermenêutica, etc. etc. da tradução. Desde o clássico Georges Mounin, com “Os problemas teóricos da tradução”, aos aspectos linguísticos do “After Babel” de George Steiner e os ensaios de Todorov, Walter Benjamin e Hans-Georg Gadamer — uma vasta literatura teórica está à disposição dos tradutores para esclarecê-los ou confundi-los ainda mais. O mais recente trabalho do gênero parece ser a “Poétique du traduire” (Verdier, 1999), de Henri Meschonnic, professor de literatura comparada da Paris-VIII, tradutor ele próprio além de autor de numerosos livros sobre os problemas da tradução.  Meschonnic é dos que não se contentam apenas em teorizar e dedica boa parte do livro à prática da tradução. E aí não sobra para ninguém: até mesmo aquelas consideradas exemplares,  como a da Bíblia, de Chouraqui, são por ele “fritadas” como ineptas. Como a crítica à tradução poética só é honesta quando o crítico é capaz de apresentar algo melhor em defesa de sua tese, Meschonnic analisa 9 traduções francesas do soneto 27 de Shakespeare (“Weary with toil, I haste me to my bed”), feitas em datas distintas, compreendendo um período de 115 anos (François-Victor Hugo, 1857; Charles-Marie Garnier, 1906; Pierre Jean Jouve, 1955; Jean Fuzier, 1959; Henri Thomas, 1961; Armel Guerne, 1964; Jean Rousselot, 1975; Jean-François Peyret, 1990; Jean Malaplate, 1992) e liquida inapelavelmente com todas essas “tentativas” (segundo ele) canhestras de reproduzir a riqueza semântica do original. E para mostrar o “bâton” com que castigou esses “tradutores ineptos”, apresenta a sua versão, que depois de tudo isso, teria que ser perfeita. Mas onde está em inglês, por exemplo, “To work my mind, when body’s work’s expired”, em que rebrilha o jogo de palavras com o verbo “to work” e o substantivo “work”, a solução de Meschonnic-tradutor é um anódino “Que le corps épuisé, l’esprit ravage”. Basta isto para acabar com a contenda crítico versus praticante, pelo menos no presente caso.

Se nos estendemos acima na análise de outra obra sobre os problemas da tradução foi para deixar claro ao leitor que a leitura deste Larbaud, apesar de mais de meio século decorrido, ainda é um proveitoso e despretensioso passeio pelas questões fundamentais do gênero sem a prosápia irritante dos teorizadores de hoje.

(Publicado no Mais! da Folha de S. Paulo (4.11.2001), sob o título Santo Forte)

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 O DIA DAS MÃES

O dia de hoje é teu, ó minha mãe – de quantas
mulheres como tu que, do seio fecundo,
fizeram no milagre ideal das horas santas
uma vida surgir entre as luzes do mundo.

Tu, que sofres sorrindo e que, chorando, cantas,
recebe neste dia o meu louvor profundo,
embora eu não encontre em meio a frases tantas
nenhuma só que expresse o amor de que me inundo.

O dia de hoje é teu – nos diz o calendário;
no entanto sabes bem que este dia é arbitrário
— dias não há no amor que sinto dentro, aqui.

Desponta a cada instante e cresce a cada hora,
porque no coração do filho que te adora
todos os dias do ano ele os dedica a ti.

Ivo Barroso
(1950)

MÃE

Mãe – quer dizer: a que sabe; a que, vendo
O bem, se alegra e, vendo o mal, perdoa.
Mãe – é a que sente, a que sofre e, sofrendo,
Tem para tudo uma palavra boa.

Mãe – é a que chora em silêncio, temendo
Que alguém lhe veja o pranto e se condoa.
Mãe – é a que embarga o seu soluço e, erguendo
O rosto, diz: “Estou chorando à-toa…”

Mãe – é a que vê no coração da gente;
A que adivinha tudo em nós, e esquece
— Qual anjo que, fiel, nos acompanhe…

E eu que já fui em outros tempos crente
E que hoje me esqueci de toda prece,
Quando quero rezar, murmuro: MÃE!

Ivo Barroso

(1954)

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Tiro do fundo da gaveta um esmaecido 16×11 “De Luxe” Nº 15 – Pautado, adquirido na antiga Casa Cruz do Rio de Janeiro em 1948, cuja capa me faz sorrir ante a pretensiosa inscrição: Cahier de Voyage.

Explico: meu pai achava que meu curso de Neolatinas (na então chamada Faculdade de Filosofia) era incompatível com as esperanças que a cidade nutria em relação à sua descendência; donde ele, farmacêutico, querer um filho médico, advogado ou militar.

Os militares estavam em alta (inclusive em termos salariais) e, para atender aos desígnios paternos, me inscrevi naquele ano nos vestibulares das Escolas Militar, Naval e de Aeronáutica.

Uma oportuna (?) miopia salvou-me dos quartéis, dos conveses ou das pistas de pouso – reprovando-me no exame médico das três. Até o novo ano letivo, lá estavam as sonhadas, as benditas férias no interior de Minas, onde meu pai continuava a manter sua farmácia apostolar, vocacional, beneficente. Parti, levando o caderninho.

Nele encontro, com data de Rio, 8 [1948]: Em grandes preparativos para embarcar. Vence o prazo do livro de Blake e tenho de copiar aqui seus provérbios para terminar a tradução em Minas. Seguem-se, numa letrinha caprichosa, que fui perdendo ao longo do tempo, os 70 “Provérbios do Inferno”, parte capital de The Marriage of Heaven and Hell, de William Blake. Como cheguei a esse livro? Por essa época, havia descoberto Gide (Trozos escogidos, em espanhol) e comecei a ler tudo dele numa edição de luxo, feita na Suíça, e existente na Biblioteca Nacional. Lá pelas tantas, Gide fala em Blake como sendo a quarta estrela de uma constelação composta por Nietzsche, Dostoiévsky e Browning, e cuja leitura o levou a traduzir  Le Marriage du Ciel et de l´Enfer, em 1922. Fui atrás do original, que encontrei na Biblioteca do IPASE (excelente à época, tinha todos os livros da Modern Library) e levei de empréstimo para casa, reformando o pedido várias vezes, pois meti-me na cabeça que o devia traduzir. Comecei a tentar com um ou outro dos provérbios, sem avançar muito, mas, como ia de férias, o recurso foi copiá-los para acabar a tradução em Minas.

Eis minha primeira tentativa de traduzir um livro completo; já havia conseguido traduzir sonetos e até pequenos poemas, do espanhol e do francês, mas nunca um livro inteiro, tarefa que me parecia impossível, principalmente do inglês. E foi mesmo, no caso de Blake, pois ficou apenas no caderno de viagem. O Casamento arrastou-se por muito tempo no namoro. Em fases sucessivas, fui tocando os provérbios até traduzi-los todos. Mas não conseguia vencer a barreira das “visões memoráveis” e o projeto adormeceu na comodidade dos rascunhos. Em 1956, apareceu a tradução de Oswaldino Marques, e achei que Blake tinha caído no “domínio do público” e não valia mais a pena ser tratado como “a quarta estrela” da constelação de Gide. Ao longo do tempo foram aparecendo As Núpcias, O Matrimônio, o Enlace, a Aliança, a União e até – em Portugal, é claro – O Conúbio (do Céu e do Inferno), o que me dava a impressão de que a prosa direta e visionária de Blake estava passando por  processos de retocagem gongórica, sofrendo um empolamento bombástico capaz de fazê-la perder seu impacto subversivo e contestador. Portanto, Good-Bye, Blake!

Por força do acaso, recebi em 2007, na pessoa de seu jovem editor Bruno Costa,  o convite da Editora Hedra, de S. Paulo,  para traduzir o Jerusalém, de William Blake. Desculpei-me, dizendo que, com o 3º volume da Obra Completa de Rimbaud (Correspondência), eu dava por encerrada minha “carreira” de tradutor e ia tratar de fazer um segundo livrinho de versos meus (o primeiro A Caça Virtual e outros poemas havia aparecido em 2001). Como alternativa, aceitei fazer o prefácio para Sagas, uma coleção de contos de Strindberg, autor da minha mais franca predileção. Mas o convívio com a Editora, que esperava ainda lançar uma tradução minha, fez com que, de pura brincadeira, eu lhes propusesse casamento. Sim, seria, desta vez, o Casamento sem rebuços, sem berloques, sem firulas. Blake restituído à sua prosa agressiva, contestatória, modernamente poética. Teríamos o fechar de um ciclo: o primeiro livro que sonhei traduzir seria o último a ser traduzido por mim. E assim foi.

O livro, Blake – O Casamento do Céu e do Inferno, saiu pela Hedra em 2008 e pode ser encontrado nas livrarias. Dele constam os famosos “Provérbios do Inferno” que copiei no caderninho e reproduzo aqui:

PROVÉRBIOS DO INFERNO

Na semeadura aprende, na colheita ensina, no inverno desfruta.

Conduz tua carroça e o arado sobre os ossos dos mortos.

O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria.

A prudência é uma solteirona rica e feia cortejada pela incapacidade.

Quem deseja e não age, procria a pestilência.

O verme perdoa o arado que o cortou.

Enterre-se no rio aquele que ama as águas.

Um tolo não vê a mesma árvore que um sábio vê.

O homem cuja face não brilha jamais se tornará um astro.

A Eternidade está de amores com as produções do tempo.

A abelha diligente não tem tempo para lástimas.

As horas da insensatez são medidas pelo relógio, mas as da sabedoria relógio algum pode marcar.

Todo alimento sadio se consegue sem armadilha ou rede.

Pássaro algum voa alto demais se o faz com as próprias asas,

Um corpo morto não refuta injúrias.

O ato mais sublime consiste em colocar alguém antes de si.

A Loucura é o manto da velhacaria.

A Vergonha é o manto do Orgulho.

As prisões são erguidas com as pedras da Lei e os Bordéis com os tijolos da Religião.

O orgulho do pavão é a glória de Deus.

A luxúria do bode é a generosidade de Deus.

A fúria do leão é a sabedoria de Deus.

A nudez da mulher é a obra de Deus.

O excesso de tristeza, ri; o excesso de alegria, chora.

O rugir dos leões, o uivar dos lobos, o estrondo do mar tempestuoso, e o gládio destruidor são porções de eternidade grandes demais para o olhar humano.

A raposa condena a armadilha, e não a si mesma.

Alegrias fecundam, tristezas procriam.

Que o homem use os despojos do leão e a mulher o tosão das ovelhas.

Ao pássaro o ninho, à aranha a teia, ao homem a amizade.

O tolo egoísta e sorridente & o tolo carrancudo e triste serão ambos considerados sábios se servirem de exemplo.

O que hoje está provado não passava ontem de imaginação.

O rato, o camundongo, a raposa, o coelho espreitam as raízes; o leão, o tigre, o cavalo, o elefante espreitam os frutos.

A cisterna contém: a fonte transborda

Um pensamento enche a imensidade,

Fala sempre o que pensas e os vis te evitarão.

Tudo o que é crível é uma imagem da verdade.

A águia perdeu todo o seu tempo se deixando ensinar pela gralha.

A raposa provê para si, mas Deus provê para o leão.

De manhã, pensa; de dia, age; de tarde, come; de noite, dorme.

Quem permite que o imponhas é porque te conhece.

Assim como o arado obedece a palavras, assim Deus recompensa as preces.

Os tigres da ira são mais sábios que os cavalos da instrução.

Espera veneno das águas paradas.

Só se sabe o que é bastante depois de se saber o que é demais.

Escuta a censura dos tolos! É um privilégio de reis!

Os olhos do fogo, as narinas do ar, a boca da água, a barba da terra.

O fraco em coragem é forte em astúcia.

A macieira nunca pergunta à faia como crescer, nem o leão ao cavalo como abater sua presa.

Quem recebe agradecido produz colheita abundante.

Se outros não tivessem sido tolos, nós é que o seríamos.

A alma do doce deleite jamais será maculada,

Quando vês uma Águia, vês uma porção do Gênio. Ergue tua cabeça!

Como a lagarta escolhe as folhas mais belas para lançar seus ovos, assim o padre lança sua maldição sobre as alegrias mais belas.

Criar uma pequena flor exige o trabalho de séculos.

A blasfêmia, distende; a bênção, afrouxa.

O melhor vinho é o mais velho, a melhor água a mais nova.

As preces não aram! Os louvores não colhem.

As alegrias não riem! As tristezas não choram!

A cabeça Sublime, o coração Pathos, o sexo a Beleza, as mãos e os pés Proporção.

Assim como o ar ao pássaro e o mar ao peixe, seja o desprezo ao desprezível.

O corvo gostaria que tudo fosse preto, a coruja que tudo fosse branco.

Exuberância é Beleza.

Se o leão fosse aconselhado pela raposa, acabaria astuto.

O Progresso constrói estradas retas, mas as estradas tortuosas sem Progresso são os caminhos do Gênio.

Antes matar um infante no berço do que acalentar desejos reprimidos.

Onde o homem falta, a natureza é estéril.

A verdade não deve ser dita para ser apenas compreendida, e não acreditada.

Bastante! Ou demais

 

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