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Archive for dezembro \22\-03:00 2012

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FELIZ NATAL E LABORIOSO ANO
NOVO AOS LEITORES DA GAVETA
DO IVO QUE, INSPIRADA EM NOSSOS
INCANSÁVEIS LEGISLADORES,
ENCERRA AQUI SUAS ATIVIDADES
DESTE ANO, PROGRAMANDO VOLTAR
NO DIA DOIS DE MARÇO DE 2013.

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Deputados do PT dormindo no plenário sob a bandeira do partido

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O mundo não acaba hoje

20.12.2012

nem vai acabar amanhã,

mas certamente esta foi a ÚLTIMA vez NESTE SÉCULO em que tivemos a possibilidade de escrever uma data com os 4 primeiros dígitos, correspondentes ao dia e ao mês, iguais aos 4 dígitos correspondentes ao ano: 20.12.2012 (vinte de dezembro de dois mil e doze).

A última e definitiva oportunidade será em 31.12.3112, se ainda houver então calendário, anos, meses e dias; se o homem não tiver inventado uma nova forma de avaliar o tempo; ou ainda, se houver homens.. . Quem viver, verá.

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jorge_de_lima_retrato2O LIVRO DE SONETOS, de Jorge de Lima, compõe-se de 78 sonetos, sendo 74 em versos decassílabos, 3 em versos quadrissilábicos e 1 em versos de sete sílabas. Segundo informa José Fernando Carneiro em sua APRESENTAÇÃO DE JORGE LIMA, editada pelos “Cadernos de Cultura”, de Simeão Leal, o livro foi escrito “em estado de hipnagoge, no espaço de dez dias apenas, Jorge de Lima levantando-se às vezes de madrugada e compondo de uma vez dois a três sonetos”. Sabe-se ainda, segundo a mesma “Apresentação”, que o livro, originariamente, devia conter cerca de cem sonetos (103 ao certo), deixando o poeta de incluir 25 entre eles, por motivos que não se esclarecem no referido comentário. Nossa impressão é a de que Jorge de Lima tenha querido fazer o livro compor-se de 77 sonetos (número sabidamente cabalístico) e o próprio Fernando Carneiro menciona este como sendo o número das composições enfeixadas na OBRA POÉTICA; entretanto, conforme tivemos a curiosidade de verificar, tanto no LIVRO DE SONETOS, editado em 1949 pela “Livros de Portugal”, quanto na OBRA POÉTICA, organizada em 1950 por Otto Maria Carpeaux, o número encontrado foi 78.

A ter como certa a informação de Fernando Carneiro quanto ao “tempo de composição” do livro e tomando como 100 o número de produções originais, vamos encontrar a média de 10 sonetos por dia; contudo, como não é de se supor que o poeta haja fixado uma quota certa de produção diária — que as usinas do sonho não se controlam estatisticamente — teremos que, se houve dias em que o poeta escreveu “dois ou três sonetos”, forçosamente em outros chegou a produzir 17 a 18 num só dia! Acrescente-se a isso o fato de o poeta haver recusado 25 sonetos quando da impressão do livro. Não fora tal recusa, poderíamos supor que Jorge de Lima tivesse aproveitado composições anteriores para completar o número fixado para o conjunto do LIVRO DE SONETOS. Portanto, só podemos concluir que o livro foi escrito em estado de sofreguidão, de produção em massa, necessitado que estava o poeta de dar vazão aos “fantasmas” que o atormentavam.

Que teria levado Jorge de Lima a produzir com tamanha sofreguidão? É ainda a J. Fernando Carneiro que vamos recorrer para confirmar nossa suspeita. Ao tempo da composição do LIVRO DE SONETOS, informa ele, Jorge de Lima encontrava-se sob forte estado emocional. Certas recordações de sua primeira infância visitavam-lhe a memória com verdadeira obsessão. O remédio era escrever. E Jorge de Lima escreveu. Escreveu desesperada e proficuamente durante dez dias, até que no décimo descansou. Por uns tempos, as vozes se acalmaram. Mas seus gritos, suas invocações, não haviam cessado por completo. Vieram, mais tarde, suscitar o poeta para a sua grande obra, que é a INVENÇÃO DE ORFEU, e nessa vamos encontrar alguns temas anteriormente esboçados no LIVRO DE SONETOS, fato que evidencia a assertiva da suposição que aventamos a seguir.

Foi a consideração do estado de espírito em que o poeta compôs o LIVRO DE SONETOS, acrescido da circunstância de o haver feito em espaço de tempo tão precário, que nos levaram a acreditar na possibilidade de haver uma interligação entre os 78 sonetos do livro. Após várias leituras, acreditamos haver percebido um certo “processus” de desenvolvimento temático, uma espécie de orquestração em torno de palavras-símbolos, tais como: cavalo, anjo, draga, nave, galo, etc. que funcionam como um fio melódico que ora se desvanece, ora ressurge enriquecido de novas sugestões. Vez por outra, entretanto, esse fio se interrompe, quebra-se ou distende-se indefinidamente em sua dimensão temporal, e surgem alguns sonetos “estanques”, de contextura apreensível, como se o poeta, a dizer coisas ininteligíveis, de repente voltasse ao estado de lucidez criadora e permanecesse a excitar-se, a exercitar-se conscientemente, a fim de manter o clima de emoção necessário à recaptura do “ditado exterior”.

Mas, de que elementos podemos dispor para acreditar que o LIVRO DE SONETOS guarde certa relação entre os poemas de que se compõe? Naturalmente, para reforço de nossa suspeita, seria necessário conhecermos a ordem cronológica rigorosa em que os sonetos foram compostos, os locais exatos em que se deram as interrupções de um dia para outro e o texto e localização dos 25 sonetos recusados. À falta de tais elementos esclarecedores, nossas suposições hão de forçosamente revestir-se de um caráter gratuito e meramente especulativo, o que nos teria feito desanimar, não fora a esperança de que alguém, mais chegado à obra do poeta, venha se interessar pela suspeita e ache de verificá-la através do texto original. Entretanto, o simples fato de haver sido escrito em tão curto espaço de tempo a nós pareceu razão suficiente para supor que o livro seja um poema único que se distendeu através de 78 sonetos, em vez de 78 temas distintos de um mesmo livro de sonetos.

Quando falamos em poema único, esteja claro que não nos referimos a um enredo, a uma história que comece, desenvolva-se e encontre desfecho na sequência dos 78 sonetos do livro. A interligação, o fator de encandeamento que supomos existir no LIVRO DE SONETOS — observando através de um “uncharted ground” — às vezes é meramente evolutivo (certas imagens anteriores conduzindo a imagens subsequentes), outras vezes simplesmente ocasional (certa palavra com valor de palavra em si, forma gráfica ou sonora, sem significado, que se encadeia, conduzindo a outras palavras que se vão aglutinar em torno de novas figurações.) Advirta-se que essa interligação, a nosso ver, se deu unicamente em função do fator tempo-de-composição do livro. Se Jorge de Lima, em vez de dez dias, tivesse levado dez anos a escrever o LIVRO DE SONETOS, essa interligação dificilmente se verificaria. Ela nasce e existe em função das próprias limitações do livro, pois além da limitação de tempo, vamos encontrar a limitação formal, constituída pelo soneto, que foi o veículo escolhido pelo poeta para extravasar as suas emoções. Limitando o veículo em que tais vivências ou inspirações se desencadearam, o poeta condicionou a sua “intensidade de descarga” ao módulo do soneto, razão por que alguns temas de frequência” maior “extravasaram”, passando a constituir novos sonetos, a frequentar, a associar-se a outros temas, antes de se esgotarem por completo. Dessa forma, poderíamos alegar que o que chamamos de “sonetos estanques” talvez sejam emanações vivenciais de duração equivalente à forma do soneto, razão por que permanecem finitas em si mesmas, esgotando-se nas “dimensões” em que exsurgiram. Os outros, quando emanados em “durações” inferiores a do soneto, teriam sido “barroquizados” pelo poeta, com auxílio de qualquer das formas associativas conhecidas: logorréia, paranomásia, etc. Finalmente, conforme, já insinuamos, aqueles temas que exorbitavam o módulo dos 14 versos, sofriam “découpages” violentas, interrupções repentinas, que possibilitavam a suspensão emotiva, permanecendo ela em estado latente até encontrar a sua plenitude em um ou em vários outros sonetos subsequentes.

Intentaremos aqui tão somente estabelecer a inter-relação dos 14 primeiros sonetos do livro, procedendo como se todos estes fossem escritos de uma só vez — desprezo do fator tempo que não pesará demasiadamente se considerarmos que se trata apenas de 18% do livro.

Figurativamente, o LIVRO DE SONETOS se nos apresenta sob o aspecto de um sistema solar, em que os planetas (ideias-núcleos) se intercomunicam através de suas órbitas (palavras), girando o conjunto em torno de um centro gravitacional comum, no caso, DEUS. Nosso trabalho aqui será, o de estabelecer o ponto de intercomunicação das órbitas, de vez que não nos seria possível, nas limitações deste trabalho, estabelecer as várias ideias-núcleos de que o livro se compõe nem muito menos apontar os sonetos que as formam. Contentar-nos-emos em identificar a “ideia dominante” de cada soneto e a sua relação-de-palavra (órbita) com o soneto subsequente. Esclareça-se, contudo, que da soma das “ideias dominantes”, equivalentes, de uma série de sonetos, é que resulta o que chamamos de ideia-núcleo.

nave

 

O LIVRO DE SONETOS se inicia com três sonetos quadrissilábicos. A interligação entre eles é bastante admissível, não requerendo nenhuma profundidade exegética para justificá-la: o reduzido número de sílabas métricas, obriga o poeta a ser sucinto, síntese essa incompatível com o desenvolvimento projetivo que o tema vai adquirindo em seu interior, razão por que a ideia predominante de um vai sugerir a de seu subsequente e a desse sugerir a do terceiro.

Os seus enfeites,

Suas bandeiras,

O amplo velame

Dormem na sombra.

A ideia dominante do soneto é NAVE, identificada a partir do terceiro verso, em que a palavra VELAME

funciona como síntese substantiva dos anteriormente encadeados enfeites e bandeiras. O último verso — dormem na sombra — fornece o “décor”, o “clima” em que se situa a ideia dominante. O poeta figura em sua mente um navio ancorado (dormindo) numa paisagem (porto) sombria. Essa ideia dominante, entretanto, mal se esboça, já no processo de escrituração do poema adquire uma intensidade de sentido pela correlação com sua homófona-homógrafa NAVE (com significado de interior de templo, igreja):

Os mastaréus

Furam a treva:

Na tarde fria

São como ogivas.

Intensificação de sentido que ocorreu a partir do 8º verso, quando o poeta, procurando uma comparação para os mastros esguios que rasgam as sombras da tarde, os assemelha a ogivas, por extensão, às torres do estilo ogival ou gótico, pontiagudas e afiladas dos templos do século XIV. A impressão de esguio, pontiagudo, continua a impressionar a mente do poeta nos versos seguintes:

É um mudo RITO,

AGUDO, AGUDO

No ar nevoento.

[Os grifos em caixa alta são sempre nossos]

É a associação NAVE (navio) / NAVE (templo) que serve de “órbita” ao segundo soneto, onde a ideia predominante é, evidentemente, IGREJA (templo):

Templo votivo

Sombrio e imóvel

Na tarde viva

Que a noite envolve.

Note-se que, embora tenha havido a metamorfose de nave (navio) em nave (templo), o “décor”, o ambiente em que se incrusta a ideia predominante ainda é o mesmo: sombra, tarde, treva, noite. Entretanto, ao mesmo tempo em que essa associação homofônica se ia consubstanciando no pensamento do poeta, uma outra, em plano mais profundo, mais subjetivamente, também se desenvolvia: as velas do navio são comparadas a asas (2º terceto do 1º soneto) e, por extensão, a pomba (efeito cromático), que por sua vez se transforma, dentro da simbologia católica do poeta (rito), na imagem do ESPÍRITO SANTO. Evidencia essa suposição o terceiro soneto, que assim começa:

Nave ou igreja

Laje ou que for

Suba perfeita

Para o Senhor.

Concluída a associação, a primitiva nave, ora transfigurada no Espírito Santo, ergue voo, como um altar levitante, pelo efeito da GRAÇA, para cuja força de manifestação o poeta invoca o auxílio de DEUS (Coração Vivo):

Só um altar

Corpo votivo

Rasgando o espaço.

Para o inflamar

CORAÇÃO VIVO

Enche-o de graça.

Além de tudo, a própria forma (esguia) desses três sonetos parece favorecer a assertiva de que foram escritos um após outro, no mesmo momento e seguindo o encadeamento de ideias que procuramos retraçar. Seria especioso demais aludir que os três sonetos, na sua forma gráfica quadrissilábica, lembram os mastros de um veleiro?

No quarto soneto, a ideia dominante é DEUS, ou antes, Jesus Cristo, o Nazareno. Ainda assim, o encadeamento nos parece perfeito: o soneto anterior termina com a invocação da graça do Senhor; este mostra as relações do Criador com o poeta:

Sei Teu grito profundo, e não me animo

a cortar a raiz que a Ti me embasa.

Entretanto, fragmentos das palavras anteriormente usadas para vestir as ideias dominantes vez por outra ainda se manifestam neste novo soneto:

(4º verso) – devo-te tudo, origem, patas e ASAS.

(14º verso) – na vazante maré com inversa PROA.

O poeta dirige-se ao “Lume Primo” como simples “enguia de águas rasas”, primeiramente admitindo que toda sua força criadora emana diretamente de Deus:

Se desses versos outro lume alar-se

misturado com os Teus em joio e trigo,

sete vezes por sete me perdoa.

Mas logo o poeta se crê REVELADOR dos tempos que persegue, sugerindo aquela “inversa proa” um desnorteamento, um “desobedecimento a (os ditames da tua) Casa”. Essa ideia, de poeta como criador absoluto, ou seja a contrariação da doutrina de que a manifestação poética provém de Deus, é que nos vai dar a tônica predominante do 5º soneto; curiosamente, em vez de associação, o processo agora usado é o de contraste: DEUS / DEMÔNIO. O “sentido” de todo o soneto está no 11º verso:

sorriso em gargalhada má, LUSBEL

Confirma-se a nossa suposição de desobediência: o poeta julgando incorrer no desrespeito às leis da Casa do Senhor (doutrina), reconhece haver pecado por orgulho (em se reconhecer criador):

Eu te sinto pecado original

não só corroendo ainda os meus tecidos

porém entumescendo-me com a lava

do ORGULHO em que um arcanjo se abrasou.

A cadeia é perfeita: ORGULHO sugerindo ARCANJO e este sugerindo LUSBEL, o anjo caído por querer igualar-se ao Criador. Já o poeta crê estar sob a inspiração de Lusbel durante a criação desses poemas, a ponto de sentir-se reconhecido, “mimetizado” no próprio Arcanjo:

vês que a minha figura se assemelha

à tua, tu que foste o meu modelo

orgulhoso da luz que me cegou.

O soneto seguinte parece ajustar-se perfeitamente ao anterior através da associação (luz que cegou):

Olhos, olhos de boi pendidos vertem

prantos por quem se foi…

paracleto

Temos LUZ – OLHOS – PRANTOS (por quem se foi) – MORTE que é a ideia dominante do soneto.

Será por intermédio da “ampliação” da ideia de Morte em Morte Que Vem do Céu que iremos penetrar no sétimo soneto. Este, à semelhança do quarto e de muitos outros sonetos no decorrer do livro, aborda o conceito, da criação poética. A princípio, a ideia “setas dos céus”, sugerida pelo desenvolvimento MORTE – O CÉU MATA – O CÉU MATA COM SETAS, adquire nova intensidade SETAS – RAIOS – LÍNGUA DE FOGO – ESPÍRITO SANTO. E temos assim a volta à ideia do Paracleto, esboçada nos três primeiros sonetos, que aparece com o valor dinâmico de Inspirador. Realmente, segundo o NOVO TESTAMENTO, a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade — o Espírito Santo — “baixou” sob forma de “línguas de fogo” sobre os Apóstolos, iluminando-os, “inspirando-os” para o trabalho da pregação evangélica. Jorge de Lima, parece, a princípio, concordar in totum com essa acepção “exterior” da criação poética:

E são setas do céu. (Ó Sagitário!).

Versos brotam de mim. Depois de lidos

os distribuo por um destino vário,

depondo em seus percursos meus sentidos.

Tanto assim que, somente “depois de lidos”, logo: depois de escritos, é que o poeta depõe os “seus sentidos” em sua trajetória, ou seja, procura, identificar neles as suas reações particulares, trabalho esse que vai fazendo através dos versos seguintes:

Reconheço-me: aqui os meus gemidos,

e ali esse vulcão desnecessário

jogando lava em todos os sentidos.

Aqui, a poesia é claramente catártica, inconsciente: o poeta, à semelhança de um vulcão, vomita palavras informes, sem que haja (aparentemente) elementos de concordância ou seqüência entre eles; entretanto, o que se deu, na realidade, foi a “mudança de estado” – o minério incandescente toma a forma de lava, a metáfora substitui o significado. Mas, quando se pensa que Jorge de Lima vai reafirmar a inconsciência do poeta diante do Verbo Inspirador, ei-lo que se nos apresenta vigilante, elegendo os “fluxos” que se identificam com seu processo criador autônomo:

Que chegar de presenças! Que contágio!

Que pagens anunciados e banidos!

Nos bosques sugeridos — que presságio!

A poesia do LIVRO DE SONETOS está figurada nessa imagem preciosa que encerra o sétimo soneto: “O bosque ermo de pássaros calados!” O livro é o bosque, nas proporções em que chamaríamos a INVENÇÃO DE ORFEU de uma “selva selvaggia”. Há silêncio aí, mas silêncio cheio de palpitações. Pássaros de obstinada mudez para os que não sabem adivinhar o canto…

A ideia de “visões”, de presenças que circunvagam junto ao poeta durante o movimento criador — inicialmente com sentido ideal — procuram revestir-se de “realidade” e o poeta quer ver. E QUEM o poeta vê nesse delírio, que acredita real? Justamente o antônimo do Paracleto: Lusbel (o Anjo das Trevas), no sentido contrário em que o Espírito Paráclito representa a Luz-Sabedoria. Como uma espécie de reminiscência do soneto anterior, observem-se os versos:

Sagitários de flechas interiores

urge dizer os nomes luminares!

Lusbel, Lusbem, Lussom, Lusfer, Lusguia.

Em seguida, o poeta parece atribuir a atividade criadora a uma espécie de encantamento, a um bruxedo provocado por filtros e beberagens, como nas crenças da Idade Média (associação obtida através de Lusbel e a demonologia antiga), que nos parece tratar-se de metáfora para indicar o estado de alheamento e abstração do poeta durante o processo criador. A palavra FILTROS já ao final do 8º soneto sugere-lhe imediatamente ABSINTO e TORPOR no início do soneto seguinte.

O soneto é de um hermetismo quase impenetrável: por alto, diríamos que nos sugere visões obtidas com o uso de drogas, em que o (poeta) entorpecido vê todas as coisas com aspecto gelatinoso. O próprio Jorge de Lima parece ter achado o soneto muito “fechado” e talvez tenha sido essa ideia que o conduziu ao soneto seguinte, onde o tema, pelo menos inicialmente, é o da “torre de marfim”. Notem-se as semelhanças de tonalidade entre esse (pág. 29), e os três sonetos iniciais do livro. Até o estilo segue aí o fundo: é flagrantemente alphonsino. O que nos leva a acreditar que esse soneto esteja ligado ao precedente e sirva de “ponte” para o da página 31, é o processo “visionário”, as metáforas patenteadas nos versos finais:

Olhei a torre de marfim exangue

e vi a torre transformar-se em brasa

e a brasa rubra transformar-se em sangue.

O soneto da página 31 é fragmentário; possui, no mínimo, três “ideias”, sem que haja predominância de uma sobre as demais. Funciona como uma espécie de “soneto-recapitulativo” de temas já desenvolvidos em sonetos anteriores. Até o 5º verso: “Não máscaras nos olhos. Nem simulo”, a “ideia” será a das metáforas (“mundo de relativos compromissos”, “germes em casulo”), altamente desenvolvida no soneto anterior. Do 6º ao 8º verso, o tema é o da recordação da infância, verdadeiro leit motiv do LIVRO DE SONETOS. Mas do 9º ao 14º o conteúdo é evidentemente místico, evocando a queda de Lusbel e a permanência gloriosa de Miguel (“teu rei colaço”). Mais uma vez aparece manifesta a ideia da identificação entre o poeta e o anjo caído, este porque pretendeu igualar Deus no Seu Reino, e aquele por querer igualar o Criador no seu processo fiático.

Em seguida, no soneto da página 33, um dos mais esclarecedores do pensamento jorgeano, o poeta arrepende-se da concepção da autonomia criadora do homem para adotar, de novo, a ideia da inspiração proveniente do Criador:

Sinto-me salivado pelo Verbo,

rodeado de presenças e mensagens,

de santuários falhados e de quedas,

de obstáculos, de limbos e de muros.

E chegamos ao ponto em que o próprio poeta parece assegurar a nossa assertiva de que o LIVRO DE SONETOS seja uma “cadeia”, um contraponto:

Não quero interromper-me nem findar-me.

Desejo respirar-me no Teu sopro,

aparecer-me em Ti, continuado.

Eis que se fundem no soneto seguinte (página 35) as “ideias” de metamorfose (no sentido lato de transformação do mundo, re-criação cosmogônica, operando o poeta como re-Criador), de visões (no sentido de super-realidade, com o sensório do poeta acrescentando significado às coisas comuns), de hermenêutica (o poeta como decifrador do mistério do Universo) e a fusão dicotômica Torre de Marfim / Torre de Babel, talvez pela sugestão de que o hermetismo possa conduzir à pura perda da expressão significante. Este será também uma espécie de soneto – recapitulativo, que encontra seu ápice naquele da página 37, onde há uma síntese admirável do “processo criador” de Jorge de Lima:

Era um tempo de olhares alternados

em que dois entes ou anjos, curiosos

me fitavam das trevas ou de cima,

dias e noites, duros, obstinados.

Fácil será reconhecer-se aí os dois pólos opostos da criação poética: o Anjo e o Demônio. O primeiro, como a inspiração emanada de Deus; o segundo, o Decaído, o-que-quis-reinar-por-si, correspondendo à criação absoluta, à catarse. Entre os dois, o poeta; falando por ambos, recebendo os influxos, as sugestões, participando das alucinações que ambos lhe provocam. Luz e treva, noite e dia, céu e terra.

Livraram-me dos seres entranhados

em nós, uns mansos e outros tumultuosos

transmitidos de sangues e de climas,

da vida extinta dos antepassados.

Aqui os fantasmas da infância que atormentavam o poeta e que dele foram “livrados” pelo processo criador, atribuído por ele mesmo à síntese inspiração-catárse: Miguel-Lusbel.

Esperaram que me fizesse poeta

para dissimular seus graves rostos

e me espreitarem hoje disfarçados.

E eis que deixando essa órbita secreta:

lançam ao poema risos e desgostos,

gritam em torno, chamam-me dos lados.

Essas vozes de nós que vêm aos poemas! Os nossos fantasmas acumulados no sangue, fermentados nos climas! Tudo sob os olhares alternados de Miguel e de Lusbel, arrebentam em poemas, viram livros!

Nossa empresa tem seu fim. Estamos sufocados pelas forças selvagens e divinas do poeta. Saímos da Babel. Deixamos longe a Torre de Marfim. A Nave. O Paracleto. Os Anjos. Mas dessa luta (com os anjos) voltamos conturbados, embora radiantes, pois que o LIVRO DE SONETOS é um diálogo inconsútil entre a criatura e o Criador, sem que um compreenda a linguagem do Outro, distante, simbólica, e dela só nos traga os remanescentes hieróglifos do Mistério.

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JANET MALCOLM OU A JORNALISTA E A SUICIDA

 Quando publicou em 1990 o ensaio “O jornalista e o assassino”, Janet Malcolm já sabia a querela em que estava se metendo. O assunto, bastante controverso desde a publicação em 1983 do livro de Joe McGuinniss (“Fatal Vision”), era ali radicalmente escrutinado por ela, com todo o peso de sua condição de a mais contundente colunista e editora da famosa The New Yorker, revista literária com a melhor equipe de verificação de fatos de toda a imprensa americana. O jornalista e escritor Joe McGuinniss tinha obtido, sob a forma de entrevistas, a confissão do Dr. Jeffrey Mac Donald, de que este havia assassinado a própria esposa grávida e as duas filhas do casal em 1970. Traindo a confiança do entrevistado, o autor do livro acabou produzindo provas que levaram à condenação do então suspeito, sobre o qual havia indícios de que talvez fosse inocente. Uma grande celeuma se originou no mundo jornalístico sobre as limitações e/ou deveres de um jornalista na divulgação de notícias obtidas em caráter reservado. Mas então veio Janet, como um novo Sherlock da imprensa, com todo o seu poder de análise conjugados a um estilo autoral que aliava a objetividade do jornalista à capacidade descritiva do escritor para dissecar a ética profissional e a liberdade de imprensa e julgar o comportamento de McGuiniss como jornalista e escritor. O ensaio começava com a frase “o jornalismo é uma profissão moralmente indefensável” e afirmava que entre o jornalista e a fonte, esta “é sempre o lado mais frágil da relação”, e acusava McGuinniss de má-fé por afirmar, oportunisticamente, a inocência de Mac Donald mesmo depois de estar convicto de sua criminalidade e de que esteve tratando com “um psicopata assassino”. As críticas ao livro de Janet Malcolm começaram desde março de 1989, quando seus temas principais saíram publicados em duas partes no The New Yorker, e até hoje ainda causam celeuma, apesar de ter sido considerado um clássico, figurando na lista das 100 melhores obras de não-ficção da Modern Library.

Janet Malcolm conquistou seu lugar na vanguarda do jornalismo investigativo da revista depois de demonstrar suas qualidades em vários outros setores da publicação. Nascida em Praga, na Tchecoslováquia, em 1934, sua família emigrou em 1939 para os Estados Unidos, onde o pai se firmou como psicanalista. Janet estreou no The New Yorker em 1963 com um poema (Thoughts on living in a shaker house) e nos dez anos seguintes escreveu artigos sobre design e decoração. De 1975 a 1981, deu conta de uma avançada sessão sobre fotografia, e dali em diante participou ativamente das notas Talk of the town (sobre a vida novaiorquina) e fez resenhas literárias para a New York Review of Books. Seu grande momento surgiu em 1991 com o ensaio Psychoanalysis: The Impossible Profession, seguido de The Freud Archives de 1984, em que demonstra sua preocupação com a legitimidade da profissão exercida inclusive por seu pai. O jornalista e o assassino, de 1990, firma definitivamente a elegância de seu estilo, a ferocidade de sua sátira, sua capacidade de pesquisa e a inventiva de sua forma. Elogiada por nomes como Peter Gray e Harold Bloom, e combatida por outros igualmente famosos, Janet Malcolm, nas palavras de sua entrevistadora Katie Roiphe, é “ao mesmo tempo a grande dama do jornalismo americano e, apesar disto, às vezes sua enfant terrible”.

Lançado inicialmente em 1995 pela Companhia das Letras e agora reeditado em formato de bolso, o leitor brasileiro encontra em “A mulher calada” , este outro livro de Janet Malcolm, um mergulho nas vidas e biografias de Sylvia Plath e Ted Hughes. O escândalo envolvendo o consagrado casal de poetas, com o suicídio de Sylvia em 11 de fevereiro de 1963, poucos meses depois de se separar do marido, criou um campo de opiniões com o permanente choque entre defensores e detratores de Hughes, principalmente depois de sua instituição como poeta laureado em 1984. Qual seria a posição de Janet Malcolm nesse conflito e o que teria a nos dizer desses personagens literários sobre os quais já existiam pelo menos cinco biografias [Edward Butscher (1976), Linda Wagner-Martin (1987), Anne Stevenson (1989), Ronald Hayman (1991) e Paul Alexander (idem)]? Antes de mais nada, ela faz grande objeção às biografias, que considera sempre falaciosas, por tenderem a retratar mais o biógrafo do que o biografado. “A biografia é o meio pelo qual os últimos segredos dos mortos famosos lhe são tomados e exposto à vista de todo mundo”, diz ela. E mais, “O biógrafo se assemelha a um arrombador profissional que invade uma casa, revira as gavetas que possam conter joias ou dinheiro e finalmente foge exibindo em triunfo o produto de sua pilhagem”. Com estas proposições em mente, parte para entrevistar os cinco autores em seu próprio habitat (quase sempre na Inglaterra) e nos dá uma descrição quase palpável de suas pessoas físicas, do tom e inflexão de suas vozes, seus traços fisionômicos, além de visualizar para nós o ambiente em que vivem. As entrevistas são feitas com um gume de escalpelo e uma objetividade científica, o que lhe permitiu um visão mais profunda e completa de cada obra. Janet se detém mais demoradamente nas circunstâncias em que Anne Stevenson escreveu Bitter fame, a biografia que reputa “a mais inteligente das cinco” e mostra como a autora teve que disputar com a irmã de Ted (Olwyn Hughes) sobre o que devia ou não devia entrar no texto. “Os familiares são os inimigos naturais dos biógrafos”, comenta Janet. Mas, além das entrevistas, ela vasculhou arquivos, correspondência, diários, manuscritos, memórias, praticamente tudo o que poderia estar ligado ao caso em discussão. A troca de cartas e, depois, de e-mails entre ela e Olwyn, seus breves contatos epistolares com o próprio Ted Hughes, já constituem uma história à parte ou suplementar, onde as conclusões de Janet são enunciadas. Que não comentaremos para não roubar ao leitor o prazer e admiração que terá com a leitura deste livro.

(Publicada com o título O biógrafo como saqueador de vidas, em Prosa & Verso, 14.07.2012)

 

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A VIRTUALIDADE DO MAR DE SARGAÇOS

 Engana-se o leitor que espera do Vasto Mar de Sargaços, de Joan Rhys, uma simples sequela, ou antes uma prequela, de Jane Eyre, o “clássico” romance de Charlotte Brontë. Lendo-o, verá que é muito mais, e que talvez seja até contraproducente a publicidade editorial que insiste em vincular uma obra à outra. Podemos falar em inspiração, em transposição, até mesmo em um livro nascido de outro, mas nunca em uma narrativa paralela, similar ou dependente, que subsiste apenas em função da história original. Ouso mesmo dizer que o livro de Jean Rhys tem ainda mais interesse para os leitores que não leram Jane Eyre e nunca se depararam com “a louca do sótão”, criada por Charlotte, e que o venham ler como a obra totalmente original – que de fato é.

Narrativas famosas não raro têm despertado em escritores secundários o ensejo de entrar na onda do sucesso por meio de continuações ou enredos paralelos. Jane Austen parece a preferida desses “sequencialistas”, que não satisfeitos em inventar apêndices para seus romances, deram agora para neles introduzir vampiros, bruxas e duendes. Alexandra Ripley escorregou feio quando tentou em 1991 “continuar” o êxito literário de E o vento levou, com uma Scarlett que obteve apenas o desprezo unânime do público. O escritor sueco Frederick Colting, sob o capcioso pseudônimo de J. D. California, teve o desplante de lançar uma continuação de O apanhador no campo de centeio, cuja ação se passaria 60 anos depois, mas foi imediatamente sustado por Salinger, que conseguiu embargar a obra sob alegação de plágio e usurpação de direitos autorais. E a editora internacional Macmillan está anunciando agora uma Jane Eyre Laid Bare (mais ou menos, Jane Eyre posta a nu), em que a antes contida heroína se mostra em seus arroubos mais explícitos, transformando o texto exemplar de Brontë numa banal novela erótica.

Jean Rhys, cujo verdadeiro nome é Ella Rees Williams, nasceu na ilha de Dominica, no mar das Caraíbas, de pai galês e a mãe creole, ou seja pessoa nascida no Caribe, em oposição aos brancos que vieram da Inglaterra e aos negros escravos trazidos da África. Moça branca vivendo numa comunidade de predominância negra, Jean, sentindo-se social e intelectualmente isolada, deixou sua terra natal aos 17 anos para estudar na Inglaterra, só regressando à ilha uma única vez em 1936. Sua origem caribenha, no entanto, deixou fundos vestígios em sua sensibilidade, e a experiência de ter vivido em meio a uma multiplicidade racial marcou definitivamente sua obra.

Jean publicou seu primeiro livro, The Left Bank and Other Stories, em 1927, aos 37 anos, depois de longa permanência na França, onde viveu em condições miseráveis e se tornou alcoólatra; tendo sido corista, posado nua para sobreviver, passou por uma conturbada vida afetiva que a levou a vários casamentos, inclusive a um propalado triângulo amoroso com o escritor Ford Madox Ford e sua companheira, Stella Bowen. Essa permanência parisiense ensejou-lhe, no entanto, a familiarização com a arte e a literatura modernista francesa, o que viria refletir-se de maneira evidente em seu trabalho de escritora.

Depois de uma ausência de uns vinte anos da mídia literária e mesmo do convívio social, Rhys publicou O Vasto Mar de Sargaços em 1966, com o qual obteve o prestigioso prêmio literário WH Smith. Tendo lîdo na juventude a Jane Eyre, de Charlotte Brontë, Jean Rhys viu-se atraída por uma das figuras menos relevantes da história: a esposa crioula de Robert Rochester, a chamada Bertha, a louca do sótão. Jean simplesmente se identificou com essa personagem de Jane Eyre, e conseguiu desenvolver a seu jeito uma história não abordada na obra de Brontë. Também ela, Jean, conhecera os conflitos de uma jovem crioula, hostilizada tanto pela população branca europeia quanto pelos negros libertos de sua ilha caribenha. Passara pelos condicionamentos da submissão feminina vitoriana, do declínio econômico da família escravagista que perde sua propriedade rural e se encontra nos limbos da loucura.

Toda a semelhança entre o livro de Jean Rhys e o de Charlotte Brontë está na colocação em primeiro plano de um personagem que fora marginalizado pela outra. Mas o livro expõe uma técnica literária avançada, com um relato tripartite iniciado pela moça até sua entrada no convento, seguida da narrativa do marido que a desposara somente pelo seu dote e que não a ama nem consegue ser amado por ela, finalizando com a história de sua reclusão contada pela própria moça. Nestes relatos há elementos invulgares que dão o tom e a textura de um livro independente e inovador: as descrições sintéticas da vegetação, da chuva, dos insetos, dos pássaros, das águas, da luminosidade, tudo feito em fragmentos inconclusos que criam uma sensação de profundidade, de algo mais além, de magia mesmo, seja epifânica ou ritualística. Curioso: o mar em torno é quase nunca mencionado e tem como que uma presença apenas virtual. Há um clima de mistério, de opaca densidade que lembra os momentos opressivos de O Coração das Trevas, de Conrad, e todo o livro nos remete à noção de uma literatura atual, cheia de surpresas e invenções. Daí a necessidade de o lermos como uma obra absolutamente autônoma, até mesmo original, e não como um simples apêndice oportunista a uma obra de gênio.

(Publicada com o título ‘Jane Eyre’ inspira obra totalmente original, em Prosa & Verso, 15.9.2012)

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