A primeira edição de “Demian” saiu em 1965 pela Civilização Brasileira. O livro obteve imediata aceitação e logo se esgotaria, permitindo à editora lançar novas edições nos anos sucessivos. Nesse ano em que saiu, o livro foi objeto de sensível análise feita pelo jornalista Carlos Menezes, que editava, à época, uma coluna em O Globo denominada Feira de Livros. O articulista – o que era raro nessa altura – além de comentar a tradução, não deixou de mencionar o nome do tradutor.
DEMIAN, UMA HISTÓRIA BELA E INESQUECÍVEL
Foi assim: vários livros haviam-me sido entregues naquele dia. Ensaios, política, religião, poesia, ficção científica e um romance de Hermann Hesse. A jornada de trabalho fora penosa — como de rotina — e eu precisava de algo que me repousasse o espírito. Abri o livro de Hesse, “Demian”, do qual já ouvira referências, passei por cima da nota do tradutor (que li depois, e vale ser lida) e mergulhei na magia do insigne escritor: “A vida de todo ser humano é um caminho em direção de si mesmo, o seguir de um simples rastro”.
Deixei-me levar, totalmente entregue pela narrativa de Sinclair; suas angústias, seus temores infantis, suas noções distorcidas de crime, pecado, punição e perdão; seu encontro maravilhoso com Demian; seus desencontros com Demian e consigo próprio; seus encontros com Beatrice (a doce e benfazeja miragem em forma de mulher) e com Pistórius, o sábio organista que o evangeliza nas doutrinas de Abraxas (deus e demônio); seus sonhos cheios de luz, de ternura, de misticismo, de dualidade; seus reencontros com Demian e o conhecimento de Eva, como ele, portadora do indelével sinal de Caim.
A noite transcorrera, para mim, como num dos maravilhosos sonhos de Sinclair, e a manhã já era menina nova quando meus olhos, nem um pouco fatigados da longa mas deliciosa viagem noturna por mundos de místicas magias, leram o período final: “Tudo o que depois me aconteceu causou-me mal. Mas quando vez por outra encontro a chave e desço em mim mesmo, ali onde, no sombrio espelho, dormem as imagens do destino, basta-me inclinar sobre a negra superfície acerada para ver em mim a minha própria imagem, semelhante já em tudo a ele, o meu guia e meu amigo”.
Assim é Demian, um livro belíssimo e inesquecível, obra capital do expressionismo alemão. Romance de uma geração — a do primeiro pós-guerra — Demian conserva a mesma indomável força, o mesmo e inarredável valor, atualíssimo, para esta geração jovem, que enfrenta um segundo após guerra (embora distante, mas de efeitos duradouros) e um ante guerra dilacerante, no qual os valores espirituais como que se pulverizam pelas emanações dos experimentos bélicos atômicos, mergulhando todos e tudo num vórtice de materialismo alucinante e desenfreado.
DEMIAN, ainda hoje (foi escrito em 1919), é um livro do dia. Que seja lido pelos adultos, mas principalmente pelos jovens. Nele, em Demian, encontraremos, e encontrarão, algo de irreal mesclado de real, um pouco difuso, mas às vezes de uma clareza de sol a pino, agora um pouco soturno e já gloriosamente jubiloso, numa sucessão saborosa e inebriante de vida e de morte; de amor e de abstinência; de luz e de sombras; de tormento e de paz, uma paz permanente, anestesiante, com a doçura da morte que é refrigério e salvação.
DEMIAN é lançamento da Civilização Brasileira, em tradução esplêndida de Ivo Barroso, que antecede a história de Hermann Hesse com um rápido mas ilustrativo estudo crítico da obra do eminente escritor expressionista. Na “orelha”, Oto Maria Carpeaux dá sucinta aula sobre Hesse, sobre Demian e sobre expressionismo. Assim, Demian é um livro completo, belo, inesquecível.
Carlos Menezes (Feira de Livros – O Globo – 16 de novembro de 1965)
Mas, na maior parte dos casos, os comentaristas chegam a citar frases inteiras da tradução em seu artigo, sem sequer mencionar que se trata de uma tradução, como se aquelas palavras em português fossem as do próprio autor. Eu me agastava com isso, e cheguei a enviar ao Jornal do Brasil uma nota a respeito, que acabou saindo na íntegra:
Hermann Hesse
“Na matérIa sobre Hermann Hesse, recentemente inserida no Caderno B, fala-se no autor mais lido no Brasil nestes últimos tempos, mas nenhuma referência é feita àqueles que, mal remunerados e laboriosamente, puseram a obra de Hesse ao alcance do leitor brasileiro.
Além, da omissão – injustificável em qualquer outro pais, mas comum entre nós, onde a atividade de tradutor, ainda que de alto gabarito, é sistematicamente ignorada – o autor do texto usou, sob a forma de paráfrase, sinonímia ou mesmo transcrição literal, um pequeno estudo que acompanha minha tradução do Demian. Não quero me arvorar em dono do Hesse pelo simples fato de haver traduzido dois de seus livros fundamentais (o outro foi O Lobo da Estepe), mas parece-me questão de honestidade (para não solenizar a coisa, em princípio ético) citar a fonte que nos permite, além da mera informação, esboçar uma opiníão crítica, e mesmo, como é o caso, abalançar afirmativas que são fruto de leitura, conhecímento e estudo da obra de um escritor. Dá uma certa frustração ver tudo isso transformado depois numa notícia anônima e casual, como se as ideias ali expostas não passassem de meras notas biográficas ao alcance de qualquer consulente que se dê ao trabalho de folhear uma encíclopédía. Assim como tive o cuidado, naquele estudo, de dizer que os dados biográficos de Hesse foram extraídos do livro de Hugo Bell, o Caderno B poderia, en passant, dizer em que se baseou para defender alguns conceitos que eu, até então, julgava meus.
Ivo Barroso – Rio.”
Não era a primeira vez que reclamava dos jornais a omissão do tradutor nas resenhas de livros. De outra feita, mandei a um deles a seguinte nota:
A SITUAÇÀO DO TRADUTOR
Há alguns anos, quando ainda morava no exterior, vi numa revista brasileira de grande circulação uma resenha literária sobre o Martin Fierro, de José Hernández, que acabara de sair em excelente tradução de Augusto Meyer. O resenhador deitava falação sobre o personagem e o autor, citava abundantemente os versos em português, falava da beleza das imagens — mas não dizia uma única palavra sobre a tradução ou o tradutor, cujo nome sequer aparecia no alto da página, com outros informes sobre a edição. Eu que morava num país onde se davam créditos até para as legendas dos filmes da televisão, escrevi uma carta à revista, reclamando contra tamanha negligência. “Não se esqueçam”, dizia-lhes, “que quando o resenhador fala na ‘beleza destes versos’ e os cita em português, o que está citando já não é Hernández mas Augusto Meyer, que conseguiu fazer com que eles ficassem igualmente belos em português”. A revista naturalmente não deu importância à minha carta importuna: tradutores, entre nós, com raríssimas exceções, ainda não tinham seu lugar ao sol.
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É bem verdade que a história mudou (um pouco): hoje o nome do tradutor aparece devidamente no colofon do livro junto com o título original, o nome da editora e o ano da publicação. Alguns leitores já se preocupam, ao comprar um livro traduzido, em saber o nome de quem o traduziu. Alguns tradutores são até mesmo conhecidos do público e pesam na escolha de uma edição.
MEA CULPA!
Eu já havia traduzido dois os três livros sem importância antes de me aventurar na transposição do Demian. A edição que eu tinha, feita em 1930 por Luís López Ballesteros y Torres (conhecido tradutor espanhol de Freud e vários outros autores importantes) fora lida por mim tantas vezes que eu já a sabia quase de cor. Minha tradução de 1965 foi feita totalmente por ela, pois só vim a conhecer o original alemão muito depois (“Hermann Hesse – Demian – Die Geschichte Von Emil Sinclairs Jugend”, da Suhrkamp taschenbuch), quando então fiz o cotejo de palavra por palavra, emendando muita coisa. Tradutor bisonho, eu às vezes pensava estar “melhorando” as frases, quando as alongava para as tornar mais sonoras. O mesmo fazia o tradutor espanhol que, diante de um simples “Ja” (sim) do original, às vezes me vinha com um “Por supuesto que sí”, que, estou certo, lhe parecia mais natural em sua língua. Esses exageros, em sua maior parte, foram corrigidos quando da revisão, mas há dois momentos que persistiram sobre os quais quero hoje, diante dos leitores, fazer o “mea culpa!”
Ambos ocorrem no primeiro capítulo: Sinclair conhece o fanfarrão Franz Kromer, garoto mais velho e mandão, diante do qual, para não bancar o fraco, admite ter roubado maçãs de um pomar vizinho. Kromer aproveita a confissão para chantagear o pobre do menino, dizendo-lhe que irá denunciá-lo ao dono do pomar, pois este teria prometido dois marcos a quem apontasse o culpado. É quando lhe pergunta se ele sabe de quem é o pomar. E Sinclair responde: “Não, não sei… Acho que é do Müller” . Claro que Sinclair disse, em alemão, achar que o dono do pomar era o moleiro (Müller). Mas eu (e bem assim o tradutor espanhol) repudiamos o moleiro, palavra horrível, provavelmente desconhecida para o leitor brasileiro… e lá tacamos o Müller, como se a palavra fosse nome próprio e não o substantivo comum que, em alemão, se escreve sempre com letra maiúscula (Numa das últimas revisões, sugeri fosse trocado o “Müller” por “o dono do moinho”, ficando assim fiel ao original mas fugindo ao mesmo tempo do abominável moleiro).
A outra é mais engraçada: Sinclair, chantageado, não sabe o que fazer e, sob tensão emocional, acaba por cair de cama depois de ter vomitado. A falsa enfermidade lhe permite fugir ao compromisso com Kromer e ele banca o doentinho recebendo as atenções da mãe que lhe prepara um “Kamillentee” (chá de camomila, no original). Fiquei desolado. Na minha terra, chá de camomila era medicação exclusiva de parturientes em resguardo! Para mim era inconcebível que o meu herói Sinclair tomasse um chá de camomila. Então (– pasmem! como hoje eu também!) resolvi transformar o Kamillentee em suco de frutas! Salvei a honra de Sinclair mas cometi um erro de tradução, uma deformação do texto, que jamais hoje o faria, pois agora tenho a convicção de que o tradutor não pode e não deve alterar o texto do autor.
Pagando os pecados: muitos e muitos anos depois, na década de ’80, passei umas férias em Badgastein, na Áustria, no Hotel Grüner Baum, uma maravilhosa estação de esqui que funciona igualmente no verão graças à beleza do vale alpino em que está localizada. Pois todos os dias, por falta de opções reconhecíveis, tomávamos de manhã, de tarde e à noite o famoso Kamillentee, diante do sorriso enigmático da Kellnerin no belo chalé de caça do hotel.