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Archive for abril \23\-03:00 2017

Já contei esta história algumas vezes: eu morava em Londres nos anos ’80 e, em companhia do douto José Guilherme Merquior, fomos assistir à estreia do musical “Cats”, de Andrew Lloyd Weber, mais para ver como o compositor se havia comportado diante daqueles versos de    Eliot, que tanto admirávamos. Ficamos surpresos por ver que ele havia conseguido levar à cena os principais lances do livro sem alterar em nada os versos. Merquior argumentou comigo que seria, portanto, possível fazer uma tradução sem deturpar seus elementos constitutivos (métrica, rima, jogos de palavras, etc), desde que se encontrassem, evidentemente, equivalências de linguagem e situações que correspondessem às glosadas pelo autor. Da hipótese à intimação foi só um momento, que passou a se materializar em cobranças quase diárias sobre o andamento dos trabalhos.

Os leitores conhecem meu ideário tradutório: fidelidade absoluta ao texto, nada de inversões, substituições, cortes, suplementações e, menos que nunca, de recriações, que é como chamo a esses trabalhos em que o tradutor substitui o texto traduzido por outro, de sua autoria, servindo-nos dessa forma gato por lebre. Mas há casos em que a tradução dita ao pé da letra resulta num texto incongruente para o leitor, em especial quando estão implícitas referências alheias ao conhecimento deste. Como deve o tradutor proceder em tal caso? Vou lhes mostrar o que fiz na tradução de “Old Possum’s Book of Practical Cats”, de Eliot, tomando como exemplo uma das figuras de que mais gosto, “Gus: the Theatre Cat”. Vejamos o original:

O ator Stephen Tate no papel de Gus (Gogó) na estreia da peça em Londres em 1981

Gus is the Cat at the Theatre Door.
His name, as I ought to have told you before,
Is really Asparagus. That’s such a fuss
To pronounce, that we usually call him just Gus.

Em tradução literal seria mais ou menos isto: Gus é o Gato da Porta de Teatro. Seu nome, como lhes devia ter dito antes, é de fato Aspargo. Era tal a confusão para pronunciar que em geral o chamávamos apenas de Gus. Muito bem: o texto é perfeitamente compreensível para o leitor brasileiro, mas perderam-se aqui o ritmo e as rimas. Além disso, Gus e Aspargo não são nomes comuns de gatos para nós. Primeiro, teremos de “nacionalizar” os nomes e ambientes. Examinemos o personagem: trata-se de um ex-ator decrépito, desempregado, esquecido do público, mas que continua um faroleiro (termo do meu tempo), um exibicionista, e vai para a porta dos teatros a fim de ver se algum antigo fã se lembra dele ou se algum ex-colega tem a piedade de lhe pagar um trago. Lembrei-me logo do termo “gogó”, que significa “garganta, indivíduo alardeador, exibicionista” (Houaiss). Gogó serve para nome de gato, mas como encontrar sua relação com “aspargo”? No primeiro verso há uma expressão inarredável: porta de teatro, temos de mantê-la. Logo: Gogó é o gato-ator de porta de teatro. Para rimar com ela, temos poucas opções: atro, quatro e outras a bem dizer inaplicáveis. Lembrei-me então da expressão “diabo a quatro”, que significa “desordem, confusão”; logo tradução ideal para o “fus” do texto inglês.  E avançamos: Gogó é o gato-ator de porta de teatro. Seu verdadeiro nome era um diabo-a-quatro /de se dizer. Bom, e qual sua relação com aspargo? Ocorreu-me usar sua forma vernácula (aspárago) e escandir a palavra de modo a ressaltar a última sílaba: AS-PA-RA-GÓ. Chegando ao seguinte resultado para  primeira quadra:

Gogó é o gato-ator de porta de teatro.
Seu verdadeiro nome era um diabo-a-quatro
De se dizer: AS-PA-RA-GÓ.  De dó,
Passamos a chamá-lo apenas de Gogó.

Valeu. Mas vamos ter complicações em seguida:

His coat’s very shabby, he’s thin like a rake,
And he suffers from palsy that makes his paw shake.
Yet he was, in his youth, quite the samartest of Cats —
But no longer a terror to mice and rats.

O tradutor ainda se sai bem desta: Seu casaco é surrado, é magro como um ancinho (palito ficaria melhor), e sofre de paralisia (Parkinson) que faz sua pata tremer. Contudo, ele foi, na juventude, o mais esperto dos gatos – mas agora já não é o terror dos camundongos e ratos.

Uma rima de graça: gatos/ratos. Mas vamos examinar de perto a figura do ex-galã: são elementos característicos, insubstituíveis coat’s shabby=casaco surrado e his paw shakes=sua pata treme, principalmente a última expressão, que caracteriza a precária saúde de Gogó.   Vamos ter de sacrificar a menção à magreza do personagem, sem descaracterizar a sua condição de quase indigente; daí usei boêmio. De casacão surrado, ares de pobre boêmio, palavra que vai me ensejar a possibilidade de rima com a pata que treme. Veremos adiante:

De casaco surrado, ares de pobre boêmio,
Já teve uma trombose e a pata ainda lhe treme. E o
Certo é que se foi, em moço, um songamongas,
Hoje não pega mais nem mesmo as camundongas.

Tivemos que fazer uma pequena ginástica poética para rimar com “boêmio”; trata-se da chamada rima partida, pois a frase extravasa para o verso subsequente, e recorremos a uma palavra antiga, mas apropriada — songamongas — para significar “pessoa esperta, dissimulada” (Houaiss), evitando com isto a rima fácil gatos/ratos do original.

Sigamos:

For he isn’t the Cat that he was in his prime:
Though his name was quite famous, he says, in its time.

Tradutor principiante de inglês: Pois ele não é (mais) o Gato que foi na plenitude [bingo! pela tradução de “prime”]: embora seu nome tenha sido muito famoso, diz ele, no seu tempo.

Aqui nos permitimos uma pequena modificação, sem alterar de todo o sentido da frase, para aproveitar um trocadilho inevitável:

Sombra do que ele (diz que) foi tempos atrás,
Quando — nome famoso — andava no cartaz.

(O “andava” é usado aqui com o duplo sentido de caminhar e permanecer).

Em seguida vamos ter uma série de “nacionalizações” de nomes e ambientes:

And whenever he joins his friends at their club
(Which takes place at the back of the neighbouring pub)
He loves to regale them, if someone else pays,
With anecdotes drawn from his palmiest days.
For he once was a Star of the highest degree —
He acted with Irvin, he acted with Tree.
And he likes to relate his succes on the Halls,
Where the Gallery once gave him several cat-calls.
But his grand creation, as he loves to tell,
Was Firefrorefiddle, the Fiend of the Fell.

O tradutor esforçado, querendo estar por dentro:

E sempre que  reúne seus amigos no clube deles/ (que se situa nos fundos do bar das vizinhanças) /adora regalá-los, se é um outro quem paga, /com os casos extraídos de seus dias de sucesso. / Pois já foi um astro do mais alto grau/ E atuou com Irvin, atuou com Tree [ou seja, dois famosos atores teatrais ingleses: Jeremy Irvin (1838-1905) e Herbert Beerbohm Tree [1852-1917)]. E gosta de relatar seu sucesso nos teatros / quando a Galeria uma vez lhe deu vários aplausos/vaias. [A palavra “call” em inglês significa aplauso, chamada à cena, mas “cat-call” é o contrário, tem o sentido de vaia. Aqui o trocadilho tem maior sentido por implicar a palavra cat, gato]. Mas sua grande criação, como adora dizer, foi Fogogeladorabeca, o Demônio da Matança.

Claro que Eliot quis aqui criar apenas, com uso de aliterações, um nome que desse a impressão de um herói destemido. (Atenção estudiosos de inglês: a palavra “frore”, que acompanha “fire”, é um arcaísmo; vocês não vão encontrá-la nos dicionários comuns, mas está no Webster’s New Twentieth Centutry = frozen, frosty). Daí a necessidade de se criar em português um título bombástico, igualmente aliterativo, que desse aquela mesma (ou semelhante) impressão. Também procurei usar aliterações em “f”, como no original, e cheguei a Zaragatafanho, a Fúria do Mafuá, aproveitando para incluir aí o termo zaragata, que significa confusão e tem implícita a palavra gato. Nunca me satisfiz muito com o Mafuá, que não me parece muito beligerante, mas deu uma sonora onomatopeia. Vejamos toda a estrofe traduzida:

Agora, se acompanha amigos para uns tragos
(Antes que alguém lhe fale em gotas e lumbagos),
Costuma lhes brindar — outro pagando a história —
Com seus casos do tempo em que viveu na Glória.

Notem que desapareceu a referência ao “pub das vizinhanças”, mas em compensação houve a insistência no estado doentio do personagem, fato que ele não quereria ver mencionado pelos amigos (gotas e lumbagos). E no fim, a “nacionalização” da cena graças ao trocadilho entre glória, sucesso, fama e Glória, logradouro conhecido do Rio de Janeiro. Esperem que liberdades maiores (e necessárias) vêm por aí em seguida:

Pois época já houve em que foi Astro e atuou
No colo de Ziembinski e aos pés da Marineau.

Houve a substituição dos artistas teatrais ingleses Irvin e Tree pelos dois maiores e mais conhecidos vultos do moderno teatro brasileiro de pós-guerra (anos 40-50): o polonês Zbigniew Marian Ziembinski (1908-1978) e a francesa Henriette Morineau (1908-1990). [Não sei quem citaria no lugar deles, se tivesse hoje de “modernizar” o texto; certamente haveria lugar para a Fernanda Montenegro, mas deixo ao leitor essas especulações…] Agora a tentativa de conseguir algo equivalente ao “cat-call”:

Adora relatar o sucesso de certa
Noite em que foi pre-miado (assim!) em cena aberta…
Mas seu papel genial, que lhe rendeu crachá,
Foi “Zaragatafanho, a Fúria do Mafuá”!

Pre-miado, assim com um hífen de separação, deixa exposta a “voz” do gato ao mesmo tempo em que alude ao seu sucesso (prêmio), pretendendo embora que a palavra sugira mais vaia que aplauso.  O assim! é um evidente decalque do sic latino e crachá está aí no lugar de condecoração, já que ele foi premiado em cena aberta.

Mas, prossigamos:

“I have played”, so he says, “every possible part.
And I used to know seventy speeches by heart.
I’d extemporize back-chat, I knew how to gag,
And I knew how to let the cat out of the bag.
I knew how to act with my back and my tail,
With an hour of rehearsal, I never could fail.
I’d a voice that would soften the hardest of hearts,
Whether I took the lead, or in character parts.
I have sat by the bedside of poor Little Nell;
When the Curfew was rung, then I swung on the bell.
In the Pantomime season I never fell flat,
And  I once understudied Dick Whittington’s Cat.
But my grandest creation, as history will tell,
Was Firefrorefiddle, the Fiend of the Fell.”

Agora o trabalho vai ser duro para o tradutor: “Representei”, diz ele então, “todos os papeis possíveis. E costumava saber uns setenta textos de cor. Imitava a voz em surdina, sabia fazer cacos, e sabia como tirar o gato do saco [gozação para “tirar o coelho da cartola”]. Sabia como atuar com as costas e com o rabo; com uma hora de ensaio, eu nunca podia falhar. Tinha uma voz que amolecia os corações mais duros, fosse interpretando o galã principal ou um personagem qualquer. Já me sentei ao lado da Pequena Nell [nome de uma peça teatral infantil]; quando tocavam o cobre-fogo [antigo alarme para apagarem as lareiras], eu me pendurava na corda do sino. Nas sessões de pantomima eu nunca falhava. E uma vez fiquei de ator-substituto para o gato de Dick Whittington [personagem célebre, cuja fortuna foi atribuída às peripécias de seu gato]. Mas minha criação mais grandiosa, como a história dirá, foi o Fogogeladorabeca, o demônio da matança.”

Estão vendo? Se vocês não são ingleses não teriam entendido nenhuma das alusões. A partir daí, então, tomei coragem (ou perdi a inibição) e resolvi entrar de corpo inteiro na história, a fim de poder corresponder à enxurrada de trocadilhos, segundos-sentidos e jogos de palavras, para os quais era necessário encontrar equivalências brasileiras. Recorri a todas as frases que conhecia capazes de encerrar referências a gatos:

“Representei”, diz ele, “o que houve de melhor,
E uns setenta papéis pude guardar de cor.
Fiz de tudo: Romiau, Gato-de-Botas…  Célebre
Ficou sendo a expressão com que passei por lebre.
Sabia erguer o rabo, olhava de soslaio;
Não podia falhar com uma hora de ensaio.
Minha voz comovia o coração mais duro,
Fizesse eu o galã ou um lacaio obscuro.
Fiz peças infantis — é claro, baboseira —
Em que contracenei com a Gata Borralheira.
Mas lembro, numa peça americana, o afinco
Que quase me levava a me torrar no zinco.
Mas meu melhor papel, como a história dirá,
Foi “Zaragatafanho, a Fúria do Mafuá”!

Umas pequenas ousadias: transformei o Romeu em Romiau, acrescentando-lhe uma voz de gato, e me lembrei até da “Gata em teto de zinco quente”, a famosa peça americana de Tennessee Williams. Notem a rima imperfeita (célebre/lebre) usada aqui para não perder a citação do conhecido gato por lebre.

O final, então, exigiu um número maior de “intervenções” para reproduzir as tiradas (gogó=garganta=faroleiro) exibicionistas do gato:

Then, if someone will give him a toothful of gin,
He will tell how he once played a part in East Lynn.
At a Shakespeare performance he once walked on pat,
When some actor suggested the need for a cat.
He once played a Tiger — could do it again —
Which an Indian Colonel pursued down a drain.
And he thinks that he still can, much better than most,
Produce blood-curdling noises to bring on the Ghost.
And he once crossed the stage on a telegraph wire,
To rescue a child when the house was on fire.

Tradução direta: Então, se alguém lhe der uma golada de gim, vai contar como certa vez desempenhou um papel em East Lynn [um dramalhão]. Numa representação shakespeariana ele saiu de fininho (na ponta dos pés) quando um ator mencionou necessitar de um gato. Certa vez fez um Tigre – faria até de novo – que um coronel indiano persegue num esgoto. E pensa que ainda pode, melhor que os demais, produzir ruídos de gelar o sangue ao invocar fantasmas. E uma vez cruzou o palco num fio telegráfico para resgatar uma criança quando o teatro estava em chamas.

Nossas equivalências:

Se então mais outro gim, de graça, ele derruba,
Vai contar que atuou de dentro de uma tuba.
Numa peça do Bardo, empolgou-se no treino
Porque Ricardo quis trocá-lo por seu reino.
Já fez papel de Tigre (ainda tem este plano!)
Que foge de Bengala, entrando por um cano.
Dava um grito de dor que emocionava a Casa
Na cena de tirar as castanhas da brasa.
Certa vez, sobre o palco, agarrado ao pendente
Da luz, salvou do incêndio uma fãzinha ardente.

(Aproveitamos muitas frases populares: tem gato na tuba, tigre de Bengala, entrar pelo cano. Utilizamos a mesma referência de Eliot ao famoso “My kingdom for a horse”, da peça Ricardo III, de Shakespeare, só que, é claro, mudando também o cavalo pelo gato. Quanto às castanhas na brasa, trata-se de alusão à fábula de La Fontaine em que o símio convence o gato a tirar, com suas garras, umas castanhas que estavam na brasa e que o macaco não conseguia alcançar por lhe arder a pata. Gus banca o herói pendurando-se num fio telegráfico para salvar uma criança do teatro em chamas; Gogó faz o mesmo, dando uma de Tarzan num frágil pendente de luz,  e consegue resgatar do incêndio uma fãzinha ardente (jogo aqui com os dois sentidos).

Última estrofe:

And he says: “Now, these kittens, they do not get trained
As we did in the days when Victoria reigned.
They never get drilled in a regular troupe.
And they think they are smart, just to jump through a hoop.”
And he’ll say, as he scratches himself with his claws,
“Well, the Theatre’s certainly not what it was.
These modern productions are all very well,
But there’s nothing to equal, from what I hear tell,
That moment of mystery
When I made history

As Firefrorefiddle, the Fiend of the Fell.”

Tradução final: E ele diz: “Bem, esses gatinhos (de hoje) não são treinados como éramos nos dias em que (a Rainha) Vitória reinava; nunca se exercitam numa trupe regular. E pensam que são sagazes só por saberem pular por dentro de um arco”. E dirá, enquanto se coça com as garras, “Bom, o Teatro certamente não é o que era antes. Essas produções modernas são boazinhas, mas não há nada que iguale, segundo ouvi dizer, ao momento de mistério em que fiz história como o Fogogeladorabeca, o demônio da matança”.

Pedimos desculpas a Eliot se, neste final, nos mostramos um tanto mais explícitos do que lhe permitia sua tradicional fleugma britânica:

E prossegue: “Hoje o Palco, o que tem de bichanos!
O inverso dos gatões que fomos tantos anos.
E as gatinhas a achar que cena é erguer a saia,
A posarem de atriz, mas só levando… vaia.”
E acaba por dizer, usando a garra em pente,
“O Teatro não é mais o que era antigamente.
As novas produções são boas, são, vá lá!
Mas nada se compara, um dia se verá,
Ao momento de glória
Em que fazia história
No “Zarragatafanho, a Fúria do Mafuá!”

P.S. A primeira edição de “Os Gatos” saiu em 1991 pela Nórdica e obteve o prêmio Jabuti de tradução daquele ano. Trazia a seguinte nota: “Dedico esta tradução à memória de José Guilherme Merquior, que tanto me incentivou a fazê-la. I.B.”. Ele havia falecido  naquele mesmo ano sem ter visto o livro publicado.

 

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Os estudos biográficos assumiram nos dias atuais características bem definidas que os distanciam bastante dos relatos empíricos e presuntivos das obras do passado, em que os autores se compraziam em relatar histórias sobre a vida de seus personagens sem quaisquer compromissos com a veracidade dos fatos ou com sua comprovação. Diversamente, o conceito atual de biografia implica um estudo — a bem dizer científico — de testemunhos e documentos, passíveis de cotejo e verificação por parte dos leitores, exigindo-se para tanto a citação rigorosa das fontes (bibliografia) e a identificação precisa dos textos em que as proposições se encontram (volume, parágrafo, página, etc). Donde estarem hoje os biógrafos na contingência de solicitar permissão a autores e editores toda vez que citarem um texto que não seja de sua exclusiva autoria e, em alguns casos, até mesmo para a menção de uma única frase alheia. Este não é seguramente o caso de “Edgar Allan Poe, o mago do terror”, de autoria de Jeanette Rozsas, editado pela Melhoramentos – 2ª ed. 2012, em que tais preocupações bibliográficas estão longe de existir.

Ainda bem que logo na capa do livro há algo como que uma advertência ao leitor: romance biográfico – ou seja, o mesmo que biografia romanceada, esse gênero em que o autor assume não só o poder de onisciência sobre os acontecimentos da vida dos personagens, mas ainda lhes empresta voz, lhes dá vazão aos sentimentos e interpreta até mesmo as suas intenções. De modo que o relato resultante se assemelha a algo como as transposições televisivas de romances famosos, destinadas a deles transmitir apenas o desencadear da ação sem se preocupar com sua substância literária. Situado pois como “romance biográfico”, totalmente descompromissado com os rigores da biobibliografia atual, este “E. A. Poe – o mago do terror” é de excelente leitura, agradável e sentimental, permitindo ao leitor conhecer as dificuldades pelas quais passou o grande poeta, filho adotivo de um patrono que o ajuda e ao mesmo tempo repudia, suas tentativas para se firmar no mundo literário, suas paixões e casamento, seu fim de miséria e irrealização.

Essas várias etapas (ou episódios) decorrem dentro de uma cronologia amparada nos melhores biógrafos de Poe (Hervey Allen, por exemplo) e o livro cumpre com sua finalidade primordial, que, suponho, seja a de dar ao leitor iniciante, ou que lhe desconhece a obra, as linhas gerais de quem foi considerado o mais significativo dos escritores norte-americanos. E ficará sabendo também algo de sua vida literária: que foi redator e editor de jornais, que escreveu contos e poemas, sendo o mais famoso deles “O Corvo”, no livro apresentado (apenas) nas traduções de Machado de Assis e Fernando Pessoa. A propósito, é de se observar que todas as frases do livro – todas as falas de Poe e dos demais personagens — são devidas à autora e é preciso aceitar que eles falassem assim. Mas quando se trata de citar o texto dos poemas, já não é ela quem fala, mas se vale de traduções alheias, infelizmente sem citar o nome do autor ou a fonte donde as tirou, o que não se justifica nem mesmo nas biografias romanceadas. É o caso, por exemplo, da p. 74 em que é transcrito na íntegra o poema “To Helen”, ou da p. 81: uma estrofe da tradução de “Tamerlão”, ou ainda da p. 168:  duas estrofes de “O Corvo”, todos em tradução de Milton Amado, sem que o nome dele apareça sequer na bibliografia onde deveria estar o livro donde foram tirados. Aparece apenas numa epígrafe da p. 9, onde é transcrita uma estrofe de “O Corvo”, em tradução atribuída a Oscar Mendes e Milton Amado. (Pobre Milton: marginalizado a vida toda por Oscar Mendes, que o inferiorizava como “colaborador” em vez de creditar-lhe a tradução de todos os poemas do livro, ainda hoje é citado de maneira sub-reptícia ou quase ilegível).

*

Deserdado por seu pai adotivo, o escocês John Allan, o jovem Edgar Poe se mantinha precariamente com a publicação de trabalhos literários em jornais e revistas. Suas tentativas iniciais de firmar-se como poeta fracassaram inteiramente (Tamerlane and others poems, 1827; Al Aaraaf, Tamerlane and Minor Poems, 1828 e Poems, Second Edition,1831), mas seu conto “Manuscrito encontrado numa garrafa” valeu-lhe o prêmio de cinquenta dólares num concurso organizado pelo Saturday Visitor, de Baltimore, em 1833. Suas narrativas ficcionais, inaugurando um novo gênero literário em que predominavam o mistério e o terror, logo o tornam conhecido nos meios jornalísticos e já em 1835 ei-lo feito redator do Southern Literary Messenger, de Richmond. Hoje são conhecidos 69 desses contos, alguns publicados posteriormente à sua morte em 1849. A primeira tentativa de apresentá-los em livro data de 1839 (ou 1840) com o título de Tales of the Grotesque and Arabesque, reunindo 25 dessas histórias, organizadas então em dois volumes. Em 1845, Poe finalmente firma seu nome de poeta com a publicação de “O Corvo”, cujo êxito lhe permite ascender na escala social e o faz redator-chefe e depois proprietário do Broadway Journal. Em 1856,

Charles Baudelaire publica pelo editor Michel Lévy, em Paris, as Histoires Extraordinaires, com a tradução de 13 contos de Poe, precedidos de um estudo sobre a sua vida e obra. O livro concorre definitivamente para firmar o nome de Poe no continente europeu, onde se tornou mais conhecido do que em sua própria terra.

No Brasil, a obra de Poe aparece pela primeira vez em 1903 sob o título de “Novelas Extraordinárias”, pela Garnier, provavelmente por via Baudelaire; vem a seguir, e traduzida do inglês, a de Afonso d´Escragnolle Taunay, pela Melhoramentos em 1927, com o título de “Histórias Exquisitas”. Segundo a pesquisadora Denise Bottmann (Alguns aspectos da presença de Edgar Allan Poe no Brasil, em Tradução em revista, 2010/1, p. 01-19) há cerca de 15 edições dos contos de Poe entre nós com o título “Histórias Extraordinárias”, ou pequenas variantes, nenhuma das quais corresponde em conteúdo seja à das traduções de Baudelaire seja à editada pelo próprio autor. A mais completa edição dos contos entre nós é sem dúvida a da Nova Aguilar, de 1997, organizada por Oscar Mendes e Milton Amado, que compreende 66 dos 69 relatos até agora conhecidos.

A partir de 1908, a edição original dos Tales of the Grotesque and Arabesque, de escolha do próprio autor, deu lugar a Tales of Mystery and Imagination, organizada pelo editor Padric Colum, com o objetivo de apresentar as narrativas mais características de Poe e incluir relatos então inéditos em livro. Em 1919, o editor londrino George Harrap, ainda com este título, publicou uma edição ilustrada por Harry Clake, então o artista gráfico mais famoso da época (embora visivelmente influenciado por Beardsley), que a partir de então tem sido modelo para as edições americanas e estrangeiras dos contos de Poe.

Pois é essa edição ilustrada de Harrap/Clarke que a Tordesilhas (da Alaúde Editorial Ltda.) nos apresenta agora, em capa dura e magnífica tradução de Cássio de Arantes Leite, contendo os 22 contos de Poe que se tornaram tradicionais (William Wilson, O poço e o pêndulo, Manuscrito encontrado numa garrafa, O gato preto, Os fatos do caso do sr. Valdemar, O coração denunciador, Uma descida no Maelström, O barril de amontillado, A máscara da Morte Vermelha, O enterro prematuro, O encontro marcado, Morella, Berenice, Ligeia, A queda da Casa de Usher, O colóquio de Monos e Uma, Silêncio – Uma fábula, O escaravelho de ouro, Os assassinatos da Rue Morgue, O mistério de Marie Roget, O Rei Peste e Leonizando). Dada a qualidade gráfica, as expressivas ilustrações e principalmente a tradução rigorosa, esta edição ficará certamente como referencial da obra contística de Poe em português.

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A CANÇÃO A CRISTO CRUCIFICADO

Na Páscoa de 2014, trouxemos aos nossos leitores a tradução da primeira estrofe desse sentido poema de Miguel Sanchez, sobre quem muito pouco se sabe. O The Oxford Book of Spanish Verse, reedição de 1969, que traz os versos no original nas páginas 169/172, consigna apenas que o autor teria provavelmente nascido em Valladoli e falecido em Placencia, sem contudo precisar as datas, e que tudo o que se sabe sobre ele é que era chamado de El Divino.

Havíamos prometido dar o poema todo, em espanhol, já que sua tradução não nos pareceu corresponder à emotividade contida no original, e  por isso aqui o transcrevemos na íntegra, juntamente com nossa canhestra tentativa de transladar-lhe as estrofes finais:

 

MIGUEL SANCHEZ

Canción a Cristo crucificado

 

Inocente Cordero,

En tu sangre bañado,

con que del mundo los pecados quitas,

del robusto madero

por los brazos colgado,

abiertos, que abrazaste a mi me incitas;

ya que humilde marchitas

en color y hermosura

dese rostro divino

a la muerte vecino

antes que el alma soberana y pura

parta para salvarme,

vuelve los mansos ojos a mirarme.

 

Ya que el amor inmenso,

con último regalo,

rompe de tu grandeza las cortinas,

y con dolor intenso,

arrimado a ese palo,

la cabeza clavada con espinas

hacia la Madre inclinas;

ya que la voz despides,

bien de entrafias reales,

y las culpas y males

a la grandeza de tu Padre pides

que sean perdonados,

acuérdate, Senior, de mis pecados.

 

Aquí,  donde  das muestras,

de maniroto y largo,

con las manos abiertas con los clavos,

y que las culpas nuestras

has tomado a tu cargo;

 

aqui, donde redimes los esclavos:

donde por todos cabos

misericordia brotas,

y el generoso pecho

no queda satisfecho

hasta que ef cuerpo de la sangre agotas;

aquí, Redentor, quiero

llegar a tu  juicio  yo el  primero.

 

Aqui quiero qÚe mires

a un pecador  metido

en la ciega prision de sus errores;

que no temo te aíres

en mirarte ofendido,

pues abogando  estás por pecadores,

y las culpas mayores

son las que mas declaran

tu noble pecho santo,

de que te precias tanto;

pues cuando las mas graves se reparan,

en mas tu  sangre empleas

y mas con tu clemencia te recreas.

 

Por mas que el peso grave

de mi culpa presente

cargue sobre mi flaco y corvo cuello,

que tu  yugo suave

aacude inobediente,

quedando en dura sujecion  por ello

y aunque la  tierra huello

con pasos tan cansados,

alcanzarte confio;

que, pues por el bien mio

tienes los soberanos pies clavados

en un madero firme,

seguro voy  que no podras  huirme

 

Seguro voy, Dios mio,

que, pues yo lo deseo,

he de llegar de tu clemencia al puerto;

que tu corazon frio,

a quien ya claro veo

por las ventanas dese cuerpo abierto,

está tan descubierto,

que un ladrou maniatado,

que lo ha contigo a solas,

con dos palabras solas

te lo tiene, piadoso Dios, robado ;

y si aguardamos, luego,

porque te acierta, das la vida a un ciego.

 

A buen tiempo he llegado,

pues es cuando tus bienes

repartes en el Nuevo Testamento;

si a todos has mandado

cuantos presentes tienes,

tambien yo ante tus ojos me presento;

aquí, en solo un momento,

a la Madre hijo mandas,

al discípulo Madre,

el espíritu al Padre,

gloria al ladron.   Pues entre tantas  mandas

ser  mi  desgracia  puede

tanta,  que solo yo vacío  quede!

 

Mirame, que soy hijo,

aunque mi inobediencia

justamente podrá desheredarme

pues tu palabra dijo

que hallara clemencia

siempre que a Ti viniese a presentarme.

 

Aquí quiero abrazarme

a los pies desta cama,

donde morir te veo ;

que si, como deseo,

oyes la voz piadosa que te llama,

en tu clemencia espero

que,  siendo  hijo,  quedaré heredero.

 

Por  testimonio pido

a cuantos te estan viendo

como a este punto hajas la cabeza:

señal que has concedido

lo que te  estoy pidiendo,

como siempre esperé de tu grandeza.

Oh inefable  largueza !

caridad verdadera!

pues como sea cierto

que, el testador no muerto,

no tiene el testamento fuerza entera,

tan magnánimo eres,

que porque todo se confirme mueres.

 

Cancion, de aquí no paso;

las lágrimas sucedan

en vez de las palabras que me quedan

cual lo requiere el lastimoso caso :

no canta mas agora

pues  que la  tierra,  mar  y cielo llora.

 

Tentativa de tradução das últimas estrofes:

 

Olha-me, teu filho sou;

Embora a minha desobediência

Possa justamente deserdar-me,

Eis que teu verbo anunciou

Que eu acharia clemência

Sempre que a Ti viesse a apresentar-me.

 

Aqui quero, pois, abraçar-me

Aos pés dessa cama

Em que morrer te vejo;

Que se, como desejo,

Ouves a voz piedosa que Te chama

Tua clemência requeiro

Pois, sendo filho, ficarei herdeiro.

…….

Canção, daqui não passo

Que as lágrimas me venham

Em vez das palavras que ainda tenha

Como requer o lastimoso caso;

Não cantes mais agora

Pois é a terra – o mar e o céu –  que chora.

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Que os leitores desculpem estes nossos comerciais e o fato de estarmos advogando em causa própria. Mas é que dois ou três itens desta entrevista podem ser de algum préstimo para os coleguinhas tradutores. Sempre me perguntam o que é necessário para traduzir poesia e sempre respondo de maneira convencional. Desta vez, resolvi rasgar o verbo e afirmar que é preciso ter paixão, dedicação integral. Podem acreditar que é verdade.

A entrevista está rolando no jornal internético GGN – o jornal de todos os Brasis, publicado sob a égide de Luís Nacif, aos quais, mais uma  vez agradeço pela homenagem, bem como ao Gilberto Cruvinel e ao Emmanuel Santiago pela elaboração das perguntas. A transcrição é feita na íntegra, inclusive com um glossário dos termos poéticos.

A tradução integral de Ivo Barroso

“Faço da tradução um programa de vida, amor fiel, constante e desesperado”, diz o tradutor dos sonetos de Shakespeare.

A tradução integral de Ivo Barroso

por Gilberto Cruvinel e Emmanuel Santiago

  

Agradecimento à Denise Bottmann pela colaboração imprescindível

Quando a hora dobra em triste e tardo toque

E em noite horrenda vejo escoar-se o dia,

Quando vejo esvair-se a violeta, ou que

A prata a preta têmpora assedia;

Quando vejo sem folha o tronco antigo

Que ao rebanho estendia a sombra franca

E em feixe atado agora o verde trigo

Seguir o carro, a barba hirsuta e branca;

Sobre tua beleza então questiono

Que há de sofrer do Tempo a dura prova,

Pois as graças do mundo em abandono

Morrem ao ver nascendo a graça nova.

Contra a foice do Tempo é vão combate,

Salvo a prole, que o enfrenta se te abate.

 

William Shakespeare, Soneto 12

 

O mineiro Ivo Barroso é um dos nossos maiores tradutores de prosa e poesia para a língua portuguesa. É o responsável por traduções definitivas para o português de poetas como Arthur Rimbaud, Eugenio Montale, T.S.Eliot, Charles Baudelaire e William Shakespeare.

Em sua longa trajetória, participou de publicações que foram marcos na imprensa brasileira como o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil e a Revista Senhor de que foi um dos fundadores.  Foi ainda assistente na edição de grandes enciclopédias como a Delta-Larousse, a Mirador e a Enciclopédia do Século XX. Em Portugal, foi redator-chefe da revista Seleções do Reader’s Digest. Trabalhou ao lado de figuras inesquecíveis das letras e do jornalismo como Mario Faustino, Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar, Paulo Francis, Ivan Lessa, Luís Lobo, Carlos Lacerda e Ênio Silveira. Como tradutor, trabalhou e conviveu com figuras fundamentais da atividade como Antônio Houaiss, Manuel Bandeira e Paulo Rónai.

Sua obra inclui realizações notáveis como a tradução da obra completa do poeta francês Arthur Rimbaud, o teatro completo de T. S. Eliot, a organização da edição da poesia e prosa de Charles Baudelaire (o mais completo repositório da produção baudelairiana em português) e a edição de um volume que analisa todas as inúmeras traduções em português e uma em francês (de Didier Lamaison) do poema “O Corvo” de Edgar Alan Poe. Neste trabalho, Ivo revelou ao público brasileiro o trabalho de um tradutor e jornalista mineiro pouco conhecido, Milton Amado, que fez a melhor tradução para o português do poema clássico de Poe em 1943.

O programa que norteia a atividade de tradução de Ivo é o que se pode chamar de tradução integral, ou seja, aquela que se empenha em manter na outra língua todos os aspectos semânticos do poema: o significado, a métrica, o esquema de rimas, os efeitos sonoros, o estilo e o efeito ou a qualidade poética. E um dos trabalhos de tradução que talvez mais lhe tenha trazido popularidade foi a versão para o português de 50 dos 154 sonetos de Shakespeare, trabalho notável de décadas, que mereceu do consagrado filólogo e tradutor do Ulysses de James Joyce, Antônio Houaiss, o prefácio ao livro William Shakespeare – 50 Sonetos, do qual destacamos:

“Mas houve e há traduções: as que, infiéis, são fiéis ao dito traduttore traditore, e as que, fiéis, são obras de amor. Que é, nas condições modernas, vale dizer, com a repetibilidade tipográfica, tradução de amor? A que se paga das penas do ato amoroso, mas não se paga venal, mercantil, monetariamente — em sociedades como as que vivemos, em que tudo tem seu preço, seja caráter, honra, dignidade, saber, pudor, generosidade, amor (pois que há amor comprável e pagável, e continua a havê-lo sem preço, para alguns, impagável). As traduções de amor aqui estão.

Quando se vê a solução de Ivo Barroso — numa lição da dialética do senhor e do escravo, que impõe, sendo imposto, que subordina, subordinando-se, que escraviza, escravizando-se —, vê-se que ela atingiu o cerne da expressão shakespeariana

Pois, de fato, foi isso, é isso que nos dá Ivo Barroso com os seus sonetos shakespearianos, aceitando o mais desigual dos desafios, que é o do tradutor por amor — já que ele sabe que a um só original podem corresponder mil soluções e que a sua deve ser, por amor, a mais pertinente.

Quando a vida ameaça ser embrutecida por urgências desumanizadoras, é um bem dedicar algumas horas, ao longo de alguns meses, na comungação de arte-artifício-artesania tão belos como os que nos oferece Ivo Barroso com seus sonetos reinventados sobre a mais pura matéria-prima da poética universal”

Nesta entrevista, concedida por email com exclusividade ao Jornal GGN, Ivo nos conta passagens marcantes de sua trajetória e analisa alguns aspectos curiosos do ofício de traduzir, como por exemplo, é preciso ser poeta para traduzir poesia?

 

Jornal GGN: O senhor nasceu na cidade de Ervália, região da Zona da Mata mineira. O acesso ao livro na sua cidade, por não ser tão fácil na época como é hoje, tornava-o um objeto de desejo na sua infância?

Ivo Barroso: Em Ervália não havia livrarias nem bancas de jornal, mas desde crianças recebíamos pelo correio o Suplemento Juvenil e o Gibi. Depois meu pai nos deu os 15 volumes do Tesouro da Juventude e fiz do Livro da Poesia a minha leitura predileta. O primeiro verso que aprendi de cor foi aquele “Deus”, de Casimiro, que me deslumbrava, não tanto pela lição religiosa explícita, mas pelo verso “Erguendo o dorso altivo sacudia /a branca espuma para o céu sereno”, que até hoje considero um dos mais belos da língua. Vieram depois as coleções Jackson, com Machado e Humberto de Campos, dos quais li algumas obras sem muito entusiasmo. Mas Humberto de Campos me ensinou um macete de que me vali depois para uma série de sonetos: ele começava o verso descrevendo uma personagem histórica ou mitológica e, ao se aproximar da chave de ouro, entrava com um “Assim como fulano, também eu andei etc.” Comparei-me a beduínos, a Ícaros, a judeus errantes por causa de alguns amores não correspondidos que só haviam na minha imaginação…

Jornal GGN: Que influência tiveram no seu gosto pelas letras e pela poesia os livros que marcaram sua infância e os primeiros poetas com os quais teve contato (Machado de Assis, Humberto de Campos)? Augusto dos Anjos foi especialmente importante para o desenvolvimento do seu gosto pela poesia?

IB: Sobre Machado e Humberto de Campos já falei en passant; já a descoberta de Augusto dos Anjos se deu mais tarde, quando já morava no Rio (na década de 50), após encontrar por acaso, na estante de um vizinho, um exemplar do Eu. O dono do livro ficou tão desconcertado com meu entusiasmo pela leitura que acabou me dando de presente o volume. Era fatal que, como no caso de H. de Campos, eu passasse a fazer versos “científicos”, um dos quais começava “A vida é o resultante grau da orgânica / evolução da célula”, para perplexidade de meus professores de ciências no Colégio Vera Cruz.

Jornal GGN: O curso de línguas e literaturas neolatinas na Faculdade Nacional de Filosofia foi determinante na sua formação literária e no seu interesse pela tradução?  Que mestres foram importantes nesse período? Qual foi seu primeiro trabalho profissional como tradutor?

IB: Na Faculdade foi que fiz intimidade com a poesia, graças ao entusiasmo de professores como José Carlos Lisboa, Élcio Martins, Marcella Mortara e Luce Ciancio. Eu já me interessara antes pelo estudo de línguas e, num caderno com data de 1945, recolhi várias traduções de poetas espanhóis, franceses e ingleses. Mas foi na Faculdade que recebi os verdadeiros estímulos para com minhas pendências tradutórias. A professora de italiano distribuía em aula um poema mimeografado e nos pedia para traduzi-lo. Verti, em versos rimados e metrificados, um soneto de Miguelângelo, que foi lido em classe e comentado entre os demais colegas. Luce Ciancio foi quem mais me incentivou a continuar traduzindo e chegou mesmo, ela própria, a passar para o italiano alguns de meus poemas. Do ponto de vista profissional, traduzir por dinheiro, minha primeira experiência foi um livro de economia (o editor a quem fui pedir trabalho soube que eu era funcionário do Banco do Brasil).

Jornal GGN: Quais qualidades são necessárias para exercer com sucesso a atividade de tradutor de poesia? Para traduzir poesia é necessário ser poeta?

IB: A tradução de poesia exige um conhecimento fundamental da arte poética (métrica, rima, escolas, estilos, etc.), já que não se trata de reproduzir apenas o que está dito, mas igualmente a maneira, a forma pela qual foi dito. Embora haja casos esporádicos de tradutores de poesia não-poetas, eu diria que é necessário ser poeta, sim, e em tempo integral, ou seja, exercer ou ter exercido a função ao escrever seus próprios versos. Se o tradutor não sabe, por exemplo, o que é uma aliteração1 (ou qualquer outro recurso poético) não irá tentar reproduzi-la no texto traduzido, falseando ou pelo menos empobrecendo o resultado final de seu trabalho. Mas há – ou havia, no passado – casos contrários, ou seja, grandes poetas-tradutores que procederam diante do texto poético original como se ele estivesse em prosa, ignorando todos os recursos formais que o habilitavam como poesia. É o caso típico da tradução de “O Corvo”, de Poe, por Baudelaire e Mallarmé.

Jornal GGN: Entre os grandes tradutores quando o senhor começou na atividade, algum o ajudou especialmente no início? Com quem aprendeu as técnicas do oficio? Que importância teve Manuel Bandeira no início de sua atividade como tradutor?

IB: Desde o início, sempre fui grande leitor de poesia traduzida, em especial a de Guilherme de Almeida e Onestaldo de Pennafort. Porém, meu deus-tradutor, por essa época, era mesmo o Carlos Potocarreiro, com sua genial versão do Cyrano de Bergerac, que me dava lições de inventividade e talento na resolução dos problemas linguísticos e no uso requintado de um vocabulário castiço. Mais tarde, encontrei em Bandeira o mestre exemplar e foi ele quem me incentivou a levar avante as minhas tentativas iniciais de traduzir os sonetos de Shakespeare. Também Mário Faustino e alguns outros escritores muito concorreram para que eu me dedicasse à tradução de poesia.

Jornal GGN: Como era o prestígio da atividade de tradução quando começou e como é hoje?

IB: Quando comecei a traduzir a atividade não passava de um “bico”: traduzia-se para ganhar um dinheirinho a mais. A atividade era mal remunerada (e essa pecha parece ter perdurado por muito tempo…). O nome do tradutor era quase sempre omisso e só raramente aparecia embaixo do título do livro. Considerei-me um vitorioso o dia em que, pela primeira vez, meu nome saiu na capa de um livro.

Atualmente já começa a haver uma distinção entre os leitores, que procuram ver quem traduziu o livro que vai comprar, pois alguns nomes já lhe asseguram um selo de qualidade. Temos hoje uma verdadeira equipe de grandes e consagrados tradutores que são disputados pelas editoras quando insistem na qualidade de seus produtos.

Jornal GGN: Qual a grande dificuldade do trabalho de tradução? E o grande segredo? E o que é imprescindível?

IB: Traduzir, em geral, é um ato cansativo: enfrentar dezenas e mesmo centenas de páginas, uma após outra, linha por linha, palavra por palavra… Hoje, mesmo com o computador, que permite a justaposição de um dicionário ao texto que se está traduzindo, a tarefa exige um esforço considerável, e os tradutores mais rápidos conseguem no máximo vencer uma página a cada 20 minutos. Já no caso de traduzir poesia, tal cálculo não pode ser feito e qualquer tipo de avaliação será sempre precária. Não há grandes nem pequenos segredos para traduzir: conhecimento da língua, principalmente da língua pátria, bons vocabulários auxiliares, sendo imprescindível a honestidade em relação ao que se traduz.

Jornal GGN: O trabalho de tradução de um poema deve, segundo o senhor já disse, levar em conta o sentido do poema, os efeitos sonoros, a métrica, as rimas, o jogo de palavras, os trocadilhos, os duplos sentidos, as polissemias2 e ainda procurando obter o efeito poético equivalente na outra língua. Podemos comparar isso a uma atividade de malabarista ou de andar na corda bamba, como o senhor já afirmou em artigo. A imagem de um brinquedo de armar ou de encaixe, onde se vai por tentativa e erro até que se obtenha a solução que contemple todos os aspectos montados no verso é adequada para esse desafio?

IB: De um modo geral, o tradutor começa fazendo uma transposição literal do verso, ao mesmo tempo em que procura ajustá-la à métrica adotada (no meu caso, decassílabo). Dessas tentativas vai surgir o primeiro verso traduzido aceitável, isto se a palavra final ensejar a possibilidade de rima e, neste caso, consulta-se imediatamente o 3º verso para ver quais são as chances de acerto. Assim por diante, de modo que vamos tendo uma espécie de colcha de retalhos que precisa ser ajustada (métrica e rimicamente). Depois disso, a “colcha” deve ser reelaborada à procura de versos melhores, mais bem feitos, mais sonoros, mais significativos em português. O resultado final será uma colcha que perece feita sem as emendas dos retalhos, como um painel completo em si mesmo.

Jornal GGN: Se o tradutor não tem pleno domínio fonético na língua da qual traduz, não tem fluência oral, mesmo assim ele consegue imaginar como o verso todo, em conjunto, deveria soar, consegue perceber detalhes como, por exemplo, as aliterações em um verso?

IB: O ideal seria o tradutor conhecer o trabalho também do ponto de vista fonético, para avaliar sua fluência, seu andante ou seus tropeços. Não tendo esse domínio, resta-lhe a imaginação e a perícia para encontrar as equivalências requeridas.

Jornal GGN: A atividade de tradução muda sua perspectiva como leitor? E como escritor?

IB: No meu caso pessoal, a tradução de grandes poetas (Shakespeare, Rimbaud, Montale, etc) aguçou minha capacidade crítica, impondo-me uma rigorosa fiscalização da qualidade de meus próprios trabalhos. Ao mesmo tempo que me serviu de escola e incentivo.

Jornal GGN: Quem deu estímulo e apoio decisivos para sua primeira edição dos sonetos de Shakespeare traduzidos? Nas pesquisas que fiz, vi que pelos menos dois nomes aparecem ligados à edição das suas traduções dos sonetos: Antônio Houaiss e Carlos Lacerda. Pode nos contar qual foi a participação de cada um para a edição do livro?

IB: Devo inicialmente a Mário Faustino o incentivo para que eu me dedicasse à tradução de poesia. A Antônio Houaiss por analisar a qualidade literária dessas traduções e finalmente a Carlos Lacerda por tê-las editado.

Jornal GGN: Se, como o senhor já afirmou em relação ao professor e crítico francês Henri Meschonnic, nem sempre o conhecimento teórico assegura a realização poética, o que é preciso para poder enfrentar uma tradução como essa dos sonetos do Shakespeare?

IB: Dedicação integral. Fazer disso um programa de vida. Convívio permanente com a obra. Muito trabalho manual, dezenas e dezenas de tentativas para acertar um verso. Leituras infinitas de comentários, de outras traduções (até mesmo as péssimas), na sua e em outras línguas. Enfim, amor fiel, constante, desesperado, não correspondido pois que o resultado final será sempre aquém do que se espera.

Jornal GGN: Como foi a repercussão da sua tradução dos sonetos do Shakespeare? Gostaria de traduzi-los todos ou, ao menos publicar mais alguns (como os sonetos CXXIX e LXXXVII) quando alcançarem o padrão esperado, como o senhor afirma, ou já considera encerrado esse trabalho?

IB: A edição original saiu num coffee-table book (30X40 cm), encadernado, profusamente ilustrado, em edição fora do comércio destinada a bibliófilos. Pouco tempo depois, a Nova Fronteira lançou uma edição comercial com os 24 sonetos, recebendo críticas favoráveis. Edições sucessivas englobaram 30 sonetos e depois 42, finalizando com a dos 50 sonetos, que considero definitiva. Essas edições sequenciais e seus respectivos acréscimos atestam a ampla aceitação do público. Desde o princípio havia definido 50 sonetos (ou cerca de 1/3 do total) como sendo a minha meta, pois não estava disposto a passar boa parte de meu resto de vida envolvido com o Vate. Com essas duas últimas edições diferentes dos 50 sonetos considero encerrada a minha lida.

Jornal GGN: Em relação à tradução de poesia, o senhor considera, no geral, mais difícil o verso metrificado ou o verso livre? Embora no verso metrificado haja mais limitações, como o número de sílabas, os ictos3 e as rimas (quando as há), parece que existem, também, critérios mais “objetivos” quanto ao sucesso da tradução, ao passo que, no verso livre, o ritmo e a musicalidade tendem a ser mais intangíveis e mais plásticos. O que o senhor pensa a respeito?

IB: Acho que a tradução de versos livres permite uma participação maior do tradutor ao transladar o sentido do poema pois deve manter principalmente o “clima” em que ele é expresso mediante uma escolha e posicionamento especial dos termos. Já traduzi uns dois ou três poemas em versos livres que me deram mais trabalho (indecisões, alternância de escolhas, etc.) do que os de forma fixa. O importante é manter a plasticidade do original, verso livre está mais próximo do pictórico do que do lírico.

Jornal GGN: Na tradução do poema “Mémoire”, de Rimbaud, o senhor optou por substituir os alexandrinos e as rimas do original pelo verso livre e branco. Em quais condições o senhor considera justificável a adaptação do esquema formal do texto fonte às especificidades de nossa língua?

IB: Aconteceu aqui precisamente o que procurei dizer na resposta anterior: as tentativas de manter métrica e rima desfiguravam totalmente o fluxo não cadenciado dos versos. Acabei me convencendo de que se tratava de um poema “plástico” e que era necessário manter suas – digamos – circunvoluções. A solução foi uma sequência musical de equivalências, se é que isto faz sentido.  Tal técnica não funcionaria no “Bateau Ivre”, que requer um equilíbrio especial entre ritmo e rimas, obtido pelo emprego virtuoso dos enjambements4 de alexandrinos5, e a sua não-manutenção desequilibraria totalmente o andamento do poema.

Jornal GGN: Nos anos 50, o senhor trabalhou na Revista Senhor desde o primeiro número, onde teve contato com grandes nomes do jornalismo como Nahum Sirotsky, Ivan Lessa, Luiz Lobo e Paulo Francis. Pode nos contar o quanto essa experiência foi desafiadora no que se refere aos trabalhos de tradução?

IB: Entre outros colaboradores de peso, havia o Paulo Francis, que já me conhecia do Suplemento Dominical [Jornal do Brasil]. Foi ele quem me entregou a tradução das novelas que saíam em cada número, todas de grandes qualidades literárias (Hemingway, Mary McCarthy, Mark Twain, etc.), além dos contos. A qualidade dos trabalhos permitiu-me a condição de colaborador e escrevi várias matérias além de publicar poemas meus e traduzidos. O espírito de equipe da Senhor me permitia manter a qualidade dos trabalhos traduzidos sem que a urgência de entrega nela interferisse.

Jornal GGN: A tradução da obra completa de Rimbaud foi um trabalho de toda uma vida. Além disso, a correspondência do escritor foi publicada de forma bastante original. Pode nos contar um pouco quais aspectos considera mais importantes nesse trabalho? Qual foi a importância de Ênio Silveira e Alceu Amoroso Lima nesse trabalho?

IB: A obra completa foi publicada em três volumes: Poesia, Prosa Poética e Correspondência. Para as cartas que Rimbaud trocou com a família durante sua permanência na África adotei o expediente de não só traduzi-las mas comentar as circunstâncias em que foram escritas. Disso resultou uma biografia completa de Rimbaud lastreada em documentos. Dr. Alceu me elevou às alturas ao considerar extraordinária a minha tradução da “Saison”, conforme grifou na dedicatória do livro que me ofereceu já em nossa primeira leitura em conjunto. Ênio foi o editor corajoso que enfrentou a ditadura para manter o prefácio de Alceu na tradução.

Jornal GGN: O senhor escreveu uma série de artigos sobre o período que trabalhou com Antônio Houaiss nas Enciclopédias Delta-Larousse, em 1972, e Mirador, em 1976, e sobre o que aprendeu com o grande filólogo e consagrado tradutor. Conte-nos um pouco sobre sua grande amizade com Houaiss.

IB: Com Houaiss aprendi tudo, desde editoração até arte culinária. Fui seu assistente, seu colaborador, seu amigo e dele recebi vários prefácios e apreciações por escrito. Dediquei-lhe o primeiro volume da obra completa de Rimbaud e escrevi sobre sua obra tradutória (Ulysses) no livro congratulatório de seus 80 anos, que seus amigos patrocinaram. Em meu blog Gaveta do Ivo falo longamente sobre esse convívio e esse aprendizado.

Jornal GGN: O senhor publicou o livro O Corvo e suas traduções, onde resgata o trabalho do mineiro Milton Amado, um tradutor praticamente desconhecido, e demonstra de forma exemplar que a tradução dele para o poema “O Corvo” de Edgar Allan Poe é genial e superior até às traduções de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Conte-nos um pouco sobre essa história.

IB: Eu via com tristeza, na época em que me iniciei no jornalismo, que o nome dos tradutores era quase sempre escamoteado das folhas de rosto das traduções, geralmente assinadas por figuras de destaque de nossas letras que apenas lhes haviam emprestado o nome. O caso mais gritante era o de Milton Amado, modesto escriba da província, que fizera uma tradução genial de “O Corvo”, de Allan Poe, e cujo nome nem sequer aparecia no livro. Tive oportunidade de escrever um artigo para a revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, de que eu era um dos conselheiros, demonstrando criticamente que a tradução de Milton era superior às de Machado de Assis e Fernando Pessoa. Creio haver contribuído um pouco para que o nome dos tradutores hoje apareça sempre nas folhas de rosto dos livros e, em alguns casos, até mesmo na própria capa.

 

A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,

Arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.

De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia

E a sossegá-lo eu repetia: “É um visitante e pede abrigo.

Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.

É apenas isso e nada mais.”

 

Edgar Alan Poe, “O Corvo”, tradução de Milton Amado

 

Jornal GGN: Há algum autor fundamental da literatura universal que, na opinião do senhor, ainda não foi devidamente traduzido ao português?

IB: Certamente que há, mas tudo depende de critérios e gostos. Tenho insistido com os editores para que lancem no Brasil os livros do escritor sueco Stig Dagerman, até agora sem êxito. É pena, os editores portugueses já publicaram todos os seus livros. Em matéria de poesia, acho que até hoje não tivemos uma edição condigna do importantíssimo César Vallejo, que revolucionou a poesia hispano-americana. Eu gostaria de ter traduzido Pedro Salinas, que tanto encantou meus dias de faculdade…

Jornal GGN: No momento, passamos por um intenso debate sobre a reforma do Ensino Médio, no qual o papel da literatura na formação intelectual e afetiva dos alunos praticamente não tem sido discutido. Na opinião do senhor, qual é a importância do ensino de literatura nas escolas? Considera que a poesia dos grandes poetas ainda é capaz de atingir o leitor jovem, de ainda o emocionar?

IB: Acho o ensino de literatura imprescindível, mormente agora que o livro está ameaçado de desaparecer. Os jovens são susceptíveis à boa poesia, o problema é que os meios de que ora dispõem (celular, TV e Internet) só lhes servem o que há de pior. A escola tem a obrigação de ensinar os valores perenes, pois só eles têm a capacidade de emocionar.

 

Por que meu verso é nu de novas galas,

Alheio a variações, bruscas mudanças;

Por que com o tempo não pude enxergá-las,

Novas modas, e métodos, e nuanças?

Porque eu escrevo sempre igual, e dou-me

De expressar sempre o velho galanteio,

Que cada verso quase diz meu nome,

Revelando seu berço e donde veio?

Ó doce amor, é sobre ti que escrevo,

Tu e o amor meu repertório vasto;

A velhas frases dou novo relevo

Para gastar de novo o que foi gasto:

Pois como o sol é sempre novo e antigo

Meu amor te rediz o que eu te digo.

 

William Shakespeare, Soneto 76

 

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Blog de Ivo Barroso: Gaveta do Ivo

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Notas

 

  1. Aliteração:  repetição de fonemas (unidade sonora) idênticos ou parecidos no início de várias palavras na mesma frase ou verso, visando obter efeito estilístico ou sonoro na prosa poética e na poesia.

 

Veja, por exemplo, o verso de Caetano Veloso:

“Acho que a chuva ajuda a gente se ver”.

 

Observe estes versos que compõe a coletânea “Ou isto ou aquilo”, de Cecília Meireles:

 

“Olha a bolha d’água

no galho!

Olha o orvalho!”

 

  1. Polissemia: os muitos significados que uma mesma palavra é capaz de assumir. No dia a dia, restringimos o uso da polissemia para evitar a ambiguidade, mas na literatura, e principalmente na poesia, ela é utilizada de maneira mais livre.
  2. Icto: em versificação, sílaba tônica que, de um verso a outro, deve aparecer sempre na mesma posição. Por exemplo, nos famosos versos de Camões “Alma minha gentil, que te partiste/ Tão cedo desta vida descontente,/ Repousa lá no Céu eternamente/ E viva eu cá na terra sempre triste”:
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Al/ ma/ mi/ nha/ gen/ til/ que/ te/ par/ tis/ te
Tão/ ce/ do/ des/ ta/ vi/ da/ des/ con/ ten/ te
Re/ pou/ sa/ lá/ no/ Céu/ e/ ter/ na/ men/ te
E/ vi/ v’eu/ cá/ na/ ter/ ra/ sem/ pre/ tris/ te

 

Verifica-se que, obrigatoriamente, as sextas e as décimas sílabas poéticas são tônicas (ictos).

  1. Enjambement: também conhecido como “cavalgamento” ou “encadeamento”, é a interrupção de uma unidade sintática ao final de um verso e sua continuidade no verso seguinte. Exemplo de Olavo Bilac:

 

E paramos de súbito na estrada

Da vida: longos anos, presa à minha

A tua mão, a vista deslumbrada

Tive da luz que teu olhar continha.

 

Temos três casos de enjambements nesta estrofe: “(…) na estrada/ Da vida (…)”, “(…) presa à minha/ A tua mão (…)”, “(…) a vista deslumbrada/ Tive (…)”.

Alexandrino: Verso de doze sílabas poéticas, como uma cesura (pausa) na sexta sílaba poética, dividindo o verso em dois hemistíquios.

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PRIMEIRO DE ABRIL

Andei pensando em preparar um primeiro de abril para os leitores: algo que os levasse a crer que eu estivesse falando sério quando, na verdade, estaria apenas blefando. Mas de repente me lembrei de um fato que me ocorreu quando era editor da revista Seleções em Portugal. Certo dia, ao chegar ao escritório, nossa pequena equipa (sic, é assim que dizem em Portugal) me apresentou um telegrama (não havia e-mails nessa época) em que a nossa sede, em Pleasantville (USA), me convidava a passar uma semana em Nova York, a título de bônus por nossa atuação exitosa na direção da revista (começávamos a dar lucro, saindo de um buraco que fora gerado nas más administrações no Brasil). Exultei. Era de fato a grande oportunidade de ver certas óperas que eu sabia estarem rolando no Metropolitan Opera House naquela temporada. Telefonei correndo e alegríssimo para casa, a fim de comunicar a boa nova à Silvia. De repente, vi que as fisionomias em torno se fechavam; constrangidos me disseram que era um primeiro de abril e não imaginavam que a notícia me seria tão significativa a ponto de envolver a família. Mostrei cara feia, desfiz o convite em casa, e fiquei uma semana ou mais sem falar socialmente com a equipa. Agora que me lembrei do caso, volto a me perguntar: mas, qual mesmo  o significado de primeiro de abril?

A denominação está ligada obviamente a calendário e parece universal: na França é chamada de Poisson d’Avril, nos países de língua inglesa April fool, na Polônia mantêm o nome latino de Prima Aprilis e na Escócia a chamam de gowk, equivalente a cuco. Os estudiosos informam que até 1564 o ano começava a 21 de março, com uma oitava de festividades que terminavam e tinham seu ponto culminante no dia 1º de abril, seguindo a tradição tanto da antiga Cereália, festa romana que se realizava no princípio de abril, quanto do costume judaico, segundo o qual a Páscoa, festa da primavera, dava início ao Ano Novo. Em 1564, quando o rei Carlos IX da França adotou a contagem do Ano Novo a partir do dia da circuncisão de Jesus (1º de janeiro), a data inicial – 1º de abril – transformou-se no dia do Ano Falso, passando a simbolizar trapaça, dia de presentes fingidos.   Minha ideia (imbecil) de início era anunciar aos leitores o encerramento definitivo da Gaveta, para no dia seguinte desmenti-la e assegurar aos leitores o prosseguimento das matérias. Mas, lembrando do que me aconteceu nas Seleções, fiquei com receio de que os leitores se agastassem comigo e passassem muito tempo sem voltar ao blog. Por isso, em vez da brincadeira de mau gosto resolvi lhes oferecer estes dois poemas de Abril:

OFERENDA

Te ofereço Abril —

Abril subindo as escadas noturnas

onde o silêncio acumulou as heras do longínquo

Abril fitando um céu fluorescente

debruçado em sacadas e colunas.

Te ofereço a minha paz —

Este modo tranquilo de ser

como um pôr-do-sol na minha terra.

Te ofereço o antiquíssimo crepúsculo,

a tradição dos relógios antigos

e a doce alegoria dos cartões-postais.

Te ofereço esta árvore, tão provinciana,

que ainda sabe amadurar seus frutos

entre sombras e pássaros.

Tudo o que a tua infância não provou

e que a tarde como um canto rememora.

Mas não aceites nada —

que isso são coisas tristes do passado

e eu prefiro o teu sorriso

em que os dias eternos se renovam.

 

***

 

SONETO XCVIII (98) DE WILLIAM SHAKESPEARE

Ausente andei de ti na primavera,

Quando o festivo Abril mais se atavia,

E em tudo um’ alma juvenil pusera

Que até Saturno saltitava e ria.

Mas nem gorgeio d’ aves, nem fragrância

De flores várias em matiz e odores,

Moveram-me a compor alegre estância

Ou a colher, do seio altivo, as flores.

Nem me tocou a palidez do lírio,

Nem celebrei o vermelhão da rosa;

Eram não mais que imagens de um empíreo

Calcado em ti, padrão de toda cousa.

Inverno pareceu-me aquela alfombra,

E me pus a brincar com tua sombra.

(tr. Ivo Barroso)

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