Além do já consagrado MILTON REZENDE, com vários livros de versos publicados, alguns dos quais resenhamos aqui na GAVETA, surge-nos agora, para nossa grata surpresa, o nome de CRISTIANO DURÃES EVANGELISTA, igualmente nascido na promissora terra de ERVÁLIA-MG, nosso berço natal. CRISTIANO é um verdadeiro fenômeno literário: mal saiu de Ervália (fez um ou dois cursos em Viçosa-MG), nunca veio ao Rio e ainda não viu o mar. Apesar disso e de sua pouca idade (creio que tem uns vinte e pouco anos — ainda não cheguei a verificar), ele domina a arte do verso e se mostrou um crítico literário de alta envergadura pelo conhecimento das técnicas, dos alcances e dos extremos da arte de criar. Dele os nossos leitores já conhecem ou podem apreciar aqui agora o excelente (e para mim surpreendente) ensaio que fez sobre o meu poema PAPEL & CHÃO, um momento literário que sem falsa modéstia encerra alguns ápices da técnica do verso e dos arroubos da imaginação. Suspeitei que ele também, além de arguto crítico, escrevesse versos e acertei na suspeita. Cristiano mandou-me a amostra de sua criação literária autônoma, que me apresso em compartilhar com os leitores da GAVETA. Vejam só!
P O E U T I C A
Cristiano Durães
Paz Decidida
Sento-me e encontro na dureza dos meus ossos o desejo de amolecer-me. Respiro consciente e procuro dar-me às coisas, deixar o vento falar e ouvi-lo entre os motores e a fala engrenada do homem. Em mim ainda assopra algum rastro de serenidade. É preciso encontrá-lo, deixar as palavras dizerem-se sem vergonha e sem pressa. É preciso diminuir o fluxo indomável da minha vontade de mim mesmo.
Escrevo saboreando o gosto amargo das folhas revoltadas das árvores sem nome, flores ou frutos. Estão rígidas e firmes em ser o que são, essencialmente. Eu ainda não sei ao certo o que deu voo a esses pensamentos, o que me fartou de sensações meteóricas, eclodindo em baques graves de reflexões vazias… Mas, não posso… agora não posso deixar o estrondo me fazer tremer. Agora o vento me disse outros capítulos da mesma história. Então, por agora passarei do ponto. Vou deixar-me andar, ouvir também o que o mundo tem a dizer.
Descobri que há motivos para fingir uma nova esperança. Nisso, seria nítida a moleza do corpo e da alma. Contemplar-se é só manter-se basicamente agradável, e tudo isso pode se parecer com liberdade. Existem desafios. Prisões me petrificam. Sonhos mal sonhados, amores não amados, poemas não escritos, livros não publicados, iniciativas não acabadas, , tempos verbais confusos e parágrafos inúteis.
Mas deixa lá. Eu sou essas árvores de quintal abandonado. O tempo faz a poda dos galhos podres. Se dissolverão em matéria base para outro galho que emergirá no chão e brotará no mundo. As folhas olharão altas e então toda a inércia finalmente se tornará descanso.
Juiz de Fora, 09 de agosto de 2018
V o z e s
I
Deixei morrer em mim
aquela ânsia por um grito,
afogado no atrito e na paz
dos mortos e feridos,
dos doentes e famintos,
dos nossos dias estáticos.
Tenho sido por inteiro
um pedaço do quis ser
e tenho deixado os adiamentos
adiantarem o meu dia a dia
em dias escuros, noites fugidias.
Pago em dia o meu medo do que faço.
Mesmo assim estou prostrado à lama,
e escorrego na aspereza do cansaço
e na inércia sem descanso.
Deixei viver ainda
as palavras mal ditas,
os malditos ditames da poesia
e tenho estado entregue ao nocaute
como quem reconhece no desmaio
a última oportunidade de um sono tranquilo.
Ainda assim,
o encontro com o espelho,
o farejar dos meus olhos que se entreolham;
as olheiras mudas,
a boca funda,
enfim, tudo;
É miudeza me fazendo crer
na razão envolvendo meu rosto.
E a contemplação dessa forma de eu,
dessa profusão de termos idos e vindos,
é como o resultado que tenho de mim
para contrapor o que estou
do que finalmente sou.
Ervália, 12.03.2019
II
O que não finda é agora.
Agora é tudo aquilo que não se recorta,
é toda tradição cravada e esquecida
que finge não ser.
Todo conceito vivo é insuficiente.
Vive cheio de sentidos demais
e o homem precisa de tempo
pra alimentar sentimentos sem fome.
Viçosa, 04.05.2019
III
A voz é a vontade de existir
que quando incapaz transforma o nada
e ecoa a presença de uma ausência.
Se me foge às mãos
tudo que os olhos fotografam,
conjuro desejos em nuances de concretude.
Juro a tactilidade do sopro vivo
e rompo-me no silêncio de poemas
muitas vezes malditos.
A voz não está na boca
e divide o vazio com o papel
ciente de que o eco retoma
outros sentidos reverberados
que o papel julgou contrariar.
Viçosa, 03.07.2019
IV
O artista simbólico,
o corpo também.
A obra agora é nossa
e a realidade tem estado
sempre em nossas mãos.
Tuas mãos e as minhas
são nossas, e o que é nosso
se desenvolve exterior
ao que por essência é
o teu e o meu.
Diluído o gênero,
tudo agora se desmascara.
O aspecto figurativo
some no espaço
e transfaz-se em viver
sem interrupção;
em constante ruptura.
Viçosa, 13.07.2019
V
Cá estou,
fazendo literatura nua
numa aula de literatura,
como se os nomes dos poetas
em suas veleidades estético-sentimentais
fossem dar infinitude às minhas bobagens.
Existe entre as coisas um certo ponto
não mensurável, que não se constata,
mas que as fazem poesia:
Cabral cata feijão em delongas poéticas
e mastiga as pedras como se gostasse.
Milton revira a terra da sepultura
e garimpa da existência suas mais incertas exatidões.
Eu demoro na vida,
adio os poemas
e durmo com fome.
Eu sigo velho sem idade,
preso nos arrolhos de mim.
Estou sentado,
esquecido do tempo
e daquela caneta que ficou em casa.
Um poema perdido talvez fosse a obra perfeita…
A companheira de classe detém a única cópia.
Um dia, quando em mim toda vida resolver-se morte,
talvez entre as páginas ignoradas,
esquecidas no caderno ou na janela do chat,
na linha do tempo do Facebook;
a obra prima única e inédita
esteja a se desentranhar do útero.
Cultivando os primeiros olhares
para ser palavra de fundo pra outro poeta escrever,
durante a aula,
o quanto nada lhe cabe
enquanto não cabe em nada.
Viçosa, 13.07.2019
Nau & Nós
Desliguei o computador.
Adiadas, as ideias ficaram
Escanteadas para o amanhã.
Teria meu encontro com a dor? Lamberia seus pés?
Sorveria seus abismos?
Talvez não. As manhãs tem chegado
Em todos os dias que anoitecem.
Iluminados?
Estamos demais.
Por tanta luz não somos aptos a ler nossas sombras.
Eu e eu.
Relação pintada em poemas
Pretos e brancos, barcos
Que não estão à deriva,
Seguem incógnitos cursos.
Não vemos a nos guiar o céu:
Antes papel e fleuma
Nos levarão a tal distância,
Tal destino a comer léguas no mar.
Por muito tempo…
Já faz mais de ano que buscamos
E nada distinguimos nas distâncias,
perdemos os ventos que nos levariam.
Sabíamos do risco, era a rota natural:
Espatifar na pedra os desejos
Essencialmente náufragos.
Foi então que a chuva chegou.
Chamava nossos nomes
Zunia no zinco das coberturas
Cobria o azul do céu com cinza
Zombava das nossas cores
Com raios repentes
Restritos a olhos atentos.
Estávamos todos a guardar varais
Quando trovejaram sobre nós
Ventos de aventuras literárias.
Prevíamos perigos;
E ainda assim, era o medo
Que rangia nossos cascos
Estufava e apagava nossas velas.
Antes, daqui, nossos olhos viam.
Abraçavam pastos e nelores,
Motos, bicicletas e pedestres.
Berravam a vida, usavam todas as tintas
E pintavam o dia visto da janela.
Agora, pouco depois daquele prédio,
O véu ziguezagueante das águas
Espanta os transeuntes de chinelo,
Encapa de couro os motoboys
E fecha os vidros dos carros.
Agora, cada gota de novembro
É um espelho, uma oportunidade
De contemplar da janela não bois
Não prédios, não vidas,
Mas nós: centelhas livres
Encarceradas na janela,
A olhar pra dentro de casa.
Encontramos a sujeira dos cantos
E ignoramos, a chuva pede paz.
Detectamos na falta de energia
Provocada pela energia dos raios
Objetos inúteis que reinventaremos:
Os violões e flautas esquecidos
Terão física racional e humanidade.
Quando caiu a noite
Caiu em nós o mesmo caos
Da chuva que ainda caía.
Já são poucos os prédios daqui
e eles mesmos já não subiam.
Apenas postes de LED novíssimos,
os velhos piscas dos natais
rasgam a lógica da cegueira
da chuva muita que descia.
Perderemos estradas, pontes,
cavalos e plantações despreparadas.
Em alguns bares,
bêbados bicarão mais uma pinga do alambique,
Cientes que a chuva
é sempre bom pretexto
Para uma estrada mal gerida
E o gesto a denunciar o gosto,
A gastura do beber a pinga.
Mais uma…
Digestos estamos enfim
Presos em nossos temporais diversos
e nossos dejetos foram levados
pelo desejo sem viés do velho Turvão.
Já fazemos muito caso da luz que faltou
Que o violão não consegue iluminar,
Visto que a mão cega, trasteja os acordes,
Acode o olho a tatear
O mundo e seus trejeitos não palpáveis.
Mas quando o mais ridículo dos gestos
Ganha atos e ares de vergonha
O zunir das chuvas no zinco
Se esvai.
Ficam os olhos
Bobos de fato.
Rimos sem saber
Se a sombra do vazio em breu
Não era melhor que o farol dos nossos tetos
a revelar os nossos textos.
E mesmo que a chuva volte a zunir
Somos agora uma tripulação em choque.
Nossas velas estão frouxas de vendaval
Cessaremos os rumos, clamando
Às nuvens censuradas
Que galguem seus caminhos.
Ficaram os trastes da chuva
Empoçados no asfalto.
Neblina igual à do dia
em que visitamos o cemitério,
compramos pão na padaria
e partimos para o luto no lar.
Já estamos cansados demais
para voltarmos à janela.
Ficaremos aqui.
Dormiremos.
Estaremos enfim,
Nós,
Eu e eu,
Atados,
Esquecidos
Se caía, se corria…
Esquecidos da direção.
Ervália 24.01.2020
Caro Ivo, muito bom o seu post de hoje na Gaveta, referente ao Cristiano Durães.realmente ele é uma grata surpresa vinda de nossa terrinha. assim que o conheci, reconheci seu potencial e encaminhei-o à sua apreciação. não o conheço pessoalmente. só o vi um vez cruzando sobre a ponte do rio Turvão, quando eu ainda andava pelas ruas de Ervália e de outros lugares. agora, depois do derrame cerebral, convivo com dores e sequelas e desde 2016 levo uma vida reclusa.eu sabia que ele era músico e tocava nos bares. não sei se já me conhecia, seja como for, não me viu passando com minha esposa na margem oposta da ponte e indo em direção contrária à que ele vinha.tempos depois fizemos contato via redes sociais e começamos uma troca de mensagens e de e-mails. como você, apenas uma amizade virtual.ele desenvolve alguns projetos culturais e, numa ocasião e numa conversa, ele sugeriu-me escrever sobre a literatura em Ervália como abertura para algum desses projetos.em anexo, envio para você, o texto em questão, para seu conhecimento. um abraço do conterrâneo, Milton
http://www.miltoncarlosrezende.com.br
Uma nossa velha conversa, em espaço novo: https://www.carlosromero.com.br/2021/06/comentarios-traducao-de-lamant-de-m.html?showComment=1624124862098#c7823024191202766070
[…] POETAS DE ERVÁLIA […]