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Archive for março \25\-03:00 2017

A MULHER DE OUTRORA

Mulher com véu negro – Jozsef Ripp-Rónai (1861-1925) pintor húngaro

FEMME D´AUTREFOIS – Emile Lante

Femme! je ne te vis, jadis, que quelques heures,

Passante parmi les passantes… Je ne fus

Pour toi qu’un doux enfant dont nul trait ne demeure,

Un visage qui fuit aussitôt qu’apparu…

 

Je me souviens : tu mis ta main pâle à mes joues.

Frôlas négligemment mes cheveux de tes doigts,

Ignorant que ta grâce un peu triste, un peu floue

Sous le long voile noir, s’incarnait toute en moi.

 

Depuis, j’ai grandi; mais mon âme adolescente

Se rappelle toujours la bonté de tes yeux

Et, parfois, imprécise en ta robe flottante,

Je te vois apparaître au lointain des soirs bleus…

 

Eu vi pela primeira vez essa mulher de outrora, em 1944, nos “Poetas de França”, a suntuosa antologia de Guilherme de Almeida, em que ele “passeia” pela literatura francesa trazendo para a nossa língua desde a balada dos tempos idos de François Villon (1431-1463) até a exaltação de São Paulo, feita pelo modernista Luc Durtin ((1881-1959). Foi na página 241 dessa 2ª edição que dei com o poema por ele traduzido.

 

MULHER DE OUTRORA – Emile Lante

Tr. de Guilherme de Almeida

Mulher! Eu não te vi senão um breve instante,

Passando como as que passavam…  Eu não fui

Para os teus olhos mais que uma criança errante,

Um rosto vago que, como vem, se dilui…

 

Lembro-me: tu puseste a mão branca em meu rosto,

E em meus cabelos os teus dedos de marfim,

Ignorando que o teu encanto, triste e fosco,

Sob o véu longo e negro, encarnava-se em mim.

 

Fiquei moço: porém minha alma adolescente

Nunca esquece o que viu em teus olhos de luz

E, às vezes, indecisa em teu manto indolente,

Ressurges nos confins destas noites azuis…!

 

O poema deve ter exercido certo fascínio sobre mim, pois em 13-2-48, quatro anos depois, vou reencontrá-lo no “famoso caderno do escoteiro”, onde exibo a “minha” versão do soneto, acompanhada do original, certamente no intuito de mostrar algumas soluções que eu, então, certamente acreditava fossem melhores que as obtidas por Guilherme de Almeida.  Ei-la:

 

MULHER DE OUTRORA – Emile Lante

Tr. de Ivo Barroso

 

Mulher! Eu só te vi, outrora, um breve instante,

Quando passaste em meio à multidão…  Não fui

Ao teu olhar senão um doce e pobre infante,

Uma  feição que surge e logo se dilui…

 

Recordo: a tua mão que o rosto meu afaga,

no meu cabelo enfiaste os dedos de marfim

Sem saber que tua graça, um pouco triste e vaga,

Sob o longo véu negro incarnava-se em mim…

 

Depois, cresci. Porém minha alma adolescente

Lembra a bondade ideal que em teu olhar possuis

E em teu manto ondulante, às vezes, suavemente,

Te vejo aparecer nestas noites azuis.

 

13-2-48

 

Mas, se havia um ar de mistério naquela mulher desconhecida, o autor do poemeto não deixava igualmente de ser misterioso. Durante muitos anos nada encontrei sobre Émile Lante, nem sequer a menção de seu nome nas várias fontes consultadas. Eu tinha o célebre Manuel Illustré d’ Histoire de la Litterature Française – des origines à l’ époque contemporaine, esse clássico da Librairie Hachette dos anos ‘30, mas nele não há qualquer referência ao nosso poeta. Recorri à preciosidade mais recente (1988), a Anthologie de la Poésie Française, da Larousse, mas ali também nada consta sobre Émile Lante. Frequentes consultas ao onisciente Google resultaram igualmente inúteis, até que um dia consegui o retrato (acima), que o identificava como “poète lillelois”, ou seja natural de Lille, ao norte da França, cidade na fronteira com a Bélgica. Tudo indica que o poeta permaneceu fiel à sua província, onde dirigiu vários jornais e revistas e chegou a publicar dois volumes de poesia, “Paroles Fragiles” e “Les émotions modernes”, editados em 1904 pela H. Havard, de Paris. Graças a uma pequena antologia da poesia “lilleloise” conseguimos obter mais alguns dados, inclusive a data de nascimento (1881), mas não a de sua morte. O poeta ficou mais conhecido entre seus contemporâneos como compositor de canções, algumas das quais podem ser ainda hoje consultadas na Internet.

A MULHER QUE PASSA

Eu havia prometido que “Barquinhos de Papel” e “Papagaio de Papel” seriam os últimos poemas da série “Versos Tristes e Sentimentais”, mas, vasculhando o fundo da gaveta, ainda encontrei estes, certamente desdobramentos do fascínio que os versos de Emile Lante me causaram e que comentei acima. É verdade que os de agora têm algo a ver igualmente com a leitura de Une Passante, de Baudelaire, que também me fascinaram e tentei sem êxito traduzir. Pois aí vai a despedida final dos versos antigos e sentimentais, última velharia que ainda restava no fundo da gaveta:

 

A MULHER QUE PASSA                                                                                                                                                           

Há sempre uma mulher que passa em nossa vida…

Não se sabe dizer de onde ela veio,

ou mesmo quando veio e até porque se foi.

A gente sabe apenas, vagamente,

que ela veio e chegou perto da gente,

que nos olhou… e que seguiu depois.

Mas se alguém nos pergunta por acaso

a cor dos olhos dela, a forma de seu rosto,

se o sol nascia ou demandava o ocaso,

se era tarde de abril, se era manhã de agosto –

Inútil… não se sabe!… Em nossa mente

perdura, mesmo assim, confusamente

a impressão de que o tempo inexistia

quando ela veio e nos olhou naquele dia

— que nos olhou… e que seguiu depois.

 

Decerto essa mulher possui um nome,

veio de algum lugar e segue algum destino.

No entanto, procuramos esquecê-la

dizendo que ela foi um sonho de menino,

uma ilusão qualquer, o rastro de uma estrela…

 

Mas a verdade é que ela veio!

A verdade é que uma graça infinita,

um misto de tristeza e de doçura,

que ainda hoje nos dói,

nos diz que era verdade essa mulher bonita

que veio e nos olhou e que seguiu depois!

 

E pensar que talvez uma palavra apenas

fizesse com que a sombra indefinida,

no dia em que  chegou, ficasse em nossa vida!

No entanto, se ela viesse novamente,

tivesse o mesmo olhar, aquela mesma graça,

de novo a nossa boca ia ficar silente,

pois que a gente recorda essa mulher ausente

só porque vem, porque nos olha… e porque passa!

 

 

 

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msf

Sou admirador convicto do trabalho humanitário dos Médicos sem Fronteira. Contribuo, modesta mas permanentemente para manter a continuidade dessa instituição, cuja eficácia profissional, desprendimento pessoal e ausência de vínculos políticos ou nacionalistas têm proporcionado ajuda médico-social a populações desamparadas ou escravizadas pelas guerras e a miséria. Esse bando de jovens idealistas, tratando de populações carentes nos cantos mais miseráveis do planeta, foi criado em 1971, na França, por jovens médicos e jornalistas, que atuaram como voluntários no final dos anos 60 em Biafra, na Nigéria. Enquanto a equipe médica socorria vítimas em uma brutal guerra civil, o grupo percebeu as limitações da ajuda humanitária internacional: a dificuldade de acesso ao local e os entraves burocráticos e políticos faziam com que muitos se calassem frente aos fatos testemunhados. Então o MSF surge como uma organização médico-humanitária que associa socorro médico e testemunho em favor das populações em risco. A organização trabalha em cima de determinados eixos de atuação: conflitos armados, epidemias, fome e desnutrição, desastres naturais e exclusão de cuidados médicos.

A organização é uma iniciativa independente de governos e sustentada, em grande parte, por contribuições privadas, fato que lhe confere liberdade e agilidade para oferecer ajuda humanitária onde for preciso.

Em 2012, os Médicos sem Fronteiras lançaram, pela Leya, de São Paulo, a edição brasileira dos depoimentos de personalidades internacionais que haviam visitado a organização, em várias partes do mundo.  O livro tem por título Dignidade, palavra-chave que define a atitude primordial do grupo. São relatos às vezes chocantes de experiências vividas pelos autores em pontos perdidos da África, sob as condições mais adversas. Mas é uma leitura que nos leva a meditar na carência absoluta dessas populações desoladas e oprimidas. Convidado a participar da edição, traduzi dois depoimentos: o de Mario Vargas Llosa e o de Paolo Giordano. Para incentivar a leitura do livro completo, transcrevemos aqui parte desse último depoimento, a cena precisamente que serve de ilustração da capa do livro.

***

“Os primeiros meses de missão foram um desastre. A casa da MSF era acolhedora, menos espartana do que Marije havia imaginado, mas a mi­galha de fascínio oriental que Dacca (talvez) possuía era sufocada pelo caos, pela imundície e pelo incessante barulho.

Um automóvel a despertava às 6 da manhã para levá-la com o resto do staff internacional à clínica de Kamrangirchar. A favela se equilibrava tremulante  sobre a areia trazida do leito do rio, que escorria negro  de sujeira ao redor. Um dia — pensava Marije — o rio Negro vai receber  de volta tudo aquilo que era seu. Esse pensamento a aterrorizava.

Amontoados altíssimos de imundície faziam as vezes de dique no curso da água, as crianças nuas corriam por cima deles, mergulhavam na podridão, enquanto os corvos se precipitavam sobre  os  resíduos para bicar fragmentos cintilantes. O fedor de plástico queimado não diminuía nem mesmo com o vento, os colegas lhe prometiam que  ela se habituaria, mas após duas semanas Marije o sentia ainda mais forte do que antes, grudando-lhe nos cabelos e nas mãos. Quando assoava o nariz, encontrava no lenço pequenos coágulos de pó e era perseguida agora pelo temor de vir a adoecer gravemente.

Só dentro da clínica encontrava um pouco de paz. As mães jovens, envoltas em suas vestes coloridas, tiravam as sandálias nas escadas e for­mavam uma fila silenciosa ao longo das paredes do corredor. Eis uma imagem que refletia as suas expectativas: mulheres em roupas folclóri­cas com os filhinhos magros nos braços, silenciosas e reconhecidas. Ficavam encantadas com seus cabelos louros e às vezes ousavam  tocá-los.

“You beautiful”  diziam, e Marije enrubescia.

Na fronte dos recém-nascidos havia uma mancha negra de hena, o terceiro olho, que os protegeria do Maligno, outra coisa comovente. Ma­rije se lembrava de uma discussão acesa com Eloise a esse propósito: “Você só se interessa pelos projetos em que haja crianças no meio”, a amiga lhe reprovava, “e os massacres dos rohingya? As mutilações ge­nitais? A política lobista e homicida das indústrias farmacêuticas? Com isso você não se importa, não é mesmo?”

“As crianças são os seres mais expostos.”

“Não, são simplesmente os que mais lhe dão pena. Você é uma hi­pócrita, Marije.”

Eloise precisava  vê-la  agora. Não  havia hipocrisia alguma na amabi­lidade, no profissionalismo que dedicava a cada criança. Media a cir­cunferência do braço para avaliar o nível de nutrição e, caso suspeitasse de qualquer doença ou infecção, encaminhava a mãe e o filho ao dr. Mohammed, na sala ao lado.

A atividade ambulatorial revigorava as suas motivações, por algumas horas Marije se esquecia do inferno fora da clínica e experimentava o prazer de ser útil a alguém, o que havia perseguido em vão nos 28 anos de vida na Antuérpia, onde se sentia útil somente para  si mesma.

Mas às 5h30, quando os caules de bambu das palafitas projetavam sombras longuíssimas e filiformes sobre as montanhas de detritos, o horror voltava. O automóvel da MSF permanecia encaixado entre mi­lhares de outros, entre os ônibus e os riquixás atrevidos. A cidade ficava paralisada, e a viagem chegava a levar três horas.

Marije não queria olhar para fora. As crianças que brincavam de se esconder entre os veículos, os homens que bebiam chá preparado com água envenenada de arsênico e depois cuspiam no chão golfadas rubras — mas por que cuspiam sem parar? e o que era aquele sangue? —, os cães estropiados, os ratos e ainda os corvos, grandes e ameaçadores.

Não se sentia em segurança nem sequer nos bairros residenciais de Gulshan. À noite encerrava-se em seu quarto. A fartura de desgraças humanas da jornada lhe havia tirado o apetite, de modo que colocava para cozinhar um punhado de arroz branco numa panelinha, temperava-o com molho de soja e comia encolhida embaixo do  cortinado.

Em 20 dias consumiu os capítulos de Lie to me e iniciou os de Dexter, que não lhe agradava muito. Assistiu-os igualmente com voracidade, para co­meçar tudo de novo, a fim de não se entregar à sensação do vazio. Desligava o computador só muito tarde da noite, estonteada, e não dormia bem.

Quando Ian, seu colega neozelandês, não se apropriava do único canal de ethernet da casa, telefonava para Otto, mas lhe acontecia  sem­pre de chorar e então desligava logo. Se houvesse confessado como se sentia, ele haveria de lhe dizer para voltar para casa, e isso ela não po­dia suportar. Não trocava confidências nem mesmo com Eloise, que de modo geral se interessava por ela apenas nas últimas linhas do e-mail, de maneira vaga e apressada, e no mais só falava da gravidez. Marije respondia com mensagens lacônicas e de propósito lhe contava sobre o recém-nascido que visitara aquela manhã: tinha caído no chão logo após o parto, passara por uma crise respiratória aguda, mas agora estava em condições estáveis; no entanto, com toda probabilidade, iria perder um olho, e as consequências da queda sobre o cérebro só viriam a apa­recer alguns anos mais tarde. Depois, sentia-se duplamente mesquinha, em relação a Eloise e à criança machucada.

“Não vá bancar a heroína; se não se sentir bem, sempre se pode de­sistir.” As palavras da amiga a atormentavam, mas no fim prevalecia o medo do fracasso que haveria de enfrentar se voltasse à Antuérpia antes do previsto. De que parte poderia recomeçar a sua vida? De que aspira­ção, se não possuía outras?

Uma manhã perdeu o controle. Uma mulher grávida apresentou-se na clínica com o avental e as coxas ensopadas de sangue, depois de ha­ver praticado em si mesma um aborto tão cruento que Marije tapara os ouvidos enquanto o intérprete traduzia. O médico da favela achou que devia tratá-la imediatamente com medicamentos psicotrópicos; apesar das dores, a mulher parecia alheia, drogada, respondendo às perguntas como se tudo aquilo não lhe dissesse respeito.

Marije tinha saído da sala e corrido para o andar superior. Encontrou o estúdio de Corinne aberto e trancou-se lá dentro. Começou a chorar, histericamente, sem conseguir parar”.

(Paolo Giordano – Phool gobi quer dizer couve-flor)

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imagem1

Na página de rosto de um livro que comecei a traduzir havia a seguinte citação de Shakespeare:

 

Thou com’st in such a questionable shape

That I will speak to thee.

Hamlet, Act I Sc IV 43/44

 

que fui logo traduzindo por

 

Surges sob uma forma tão suspeita

Que irei falar contigo.

 

Mas logo embatuquei no questionable. Seria “supeita” a tradução exata, a mais adequada para o caso? Shakespeare é sempre preciso no uso das palavras, mormente no emprego de adjetivos, e logo me ocorreu que eu tinha na estante pelo menos umas 6 traduções brasileiras da peça e que seria interessante verificar como os colegas se saíram desta:

 

A mais antiga:

 

Vens em forma tão suspeitosa

Que te quero falar

(Tristão da Cunha- Schmidt Editor, 1933)

 

Surges sob uma forma tão apta a provocar a minha indagação

que quero te falar

(Péricles Eugênio da Silva Ramos – José Olympio, 1955)

 

Surges num costume tão questionável

que eu falarei contigo

(Geraldo de Carvalho Silos – Editora JB, 1984)

 

Tu te apresentas de forma tão estranha

Que eu vou te falar.

(Millor Fernandes -L&PM, 2003)

 

E as três  mais recentes:

 

Tu vens sob forma tão surpreendente

Que eu desejo falar contigo.

(Rodrigo Lacerda – Zahar, 2015)

 

Vens com forma tão cara e tão estranha

Que eu desejo falar contigo

(Bárbara Heliodora, Nova Fronteira, 2015)

 

Surges para nós numa forma tão ambígua

Que só quero é falar

(Lawrence Flores Pereira – Penguim, 2015)

[Prêmio Jabuti de Tradução de 2016]

 

De lambujem  uma ainda, em espanhol:

 

Te presetas em forma tan dudosa

Que quiero hablarte

(Luiz Astrana Marín – Espasa-Calpe, 1946)

 

Além dessas acepções, o “Dicionário Inglês-Português” , de Leonel Vallandro, consigna as seguintes possibilidades : duvidoso, incerto, discutível, contestável, suspeito, equívoco.

 

Qual delas, amigo leitor-tradutor, você usaria? Por favor, não deixem de responder.

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charles

Acabo de ganhar de presente uma edição maravilhosa de “Les Fleurs du Mal”, de Charles Baudelaire (Diane de Selliers – éditeur), generosamente ilustrada com reproduções de pintores simbolistas e decadentes, e corro para a página 210 onde está o Spleen-LXXVII: Je suis comme le roi d’ un pays pluvieux, desde sempre um dos meus poemas preferidos. De imediato, recordo-me que em 1993 eu fazia parte do conselho editorial da revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, cujo primeiro número havia sido lançado em janeiro daquele ano. O Editor-chefe, de então, Antônio Carlos Secchin, solicitara em carta a todos os conselheiros uma apreciação por escrito sobre o que achavam da revista e a indicação de eventuais medidas que a pudessem aprimorar. Resolvi manifestar-me sobre a seção Verso e Versão, que apresentava várias traduções de um mesmo poema (no caso, precisamente o Spleen-LXXVII), sem qualquer análise crítica, mas apenas para proporcionar ao leitor “uma visão multifacetada quanto às possibilidades tradutórias de um só texto literário”.

As traduções escolhidas foram a de Guilherme de Almeida, de Jamil Almansur Haddad e a de Ivan Junqueira, publicadas em livro respectivamente em 1944, 1958 e 1985. Nessa altura, já havia pelo menos mais duas outras impressas, a de Ignacio de Souza Moitta (1971) e a de Cláudio Veiga (1991), mas ambas de qualidades “tradutórias” inferiores às citadas, já que se valiam com frequência do recurso à paráfrase ou à interpretação. Hoje poderíamos contar com bem mais de uma dezena delas, embora não nos conste alguma que possa alterar os valores de nossa avaliação.

baudelaire

 

Eis o original de Baudelaire:

LXXVII – SPLEEN

Je suis comme le roi d’un pays pluvieux,

Riche, mais impuissant, jeune et pourtant très-vieux,

Qui, de ses précepteurs méprisant les courbettes,

S’ ennuie avec ses chiens comme avec d’autres·bêtes. ·

Rien ne peut l’égayer, ni gibier,ni faucon,

Ni  son  peuple mourant en face du balcon.

Du bouffon favori la grotesque ballade

Ne distrait plus le front de ce cruel malade;

Son lit fleurdelisé se transforme en tombeau,

Et les dames d’atour, pour qui tout prince est beau,

Ne savent plus trouver d’impudique toilette

Pour tirer un souris de ce jeune squelette.

Le savant qui lui fait de l’or n’a jamais pu

De son être extirper l’élément corrompu,

Et dans ces bains de sang qui des Romains nous viennent,

Et dont sur leurs vieux jours les puissants se souviennent,

Il n’a su réchauffer ce cadavre hébété

Où coule au lieu de sang l’eau verte du Léthé.

 

Agora vamos às traduções:

 

Guilherme de Almeida (G)

Sou como o pobre rei de algum país chuvoso,

Rico, mas incapaz, moço, e no entanto idoso,

Que as lisonjas dos preceptores desprezando,

Vai com seus animais, com seus cães se enfadando.

Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão,

Nem seu povo morrendo em frente do balcão.

Do jogral favorito a grotesca balada

Não mais lhe desenruga a fronte acabrunhada;

Todo flores-de-lis, é um mausoléu seu leito,

E as aias, que acham todo príncipe perfeito,

Já não sabem que traje impudico vestir

Para fazer esse esqueleto moço rir.

O sábio, que fabrica o seu oiro, em vão luta

Por lhe extirpar do ser a matéria corrupta,

E nem nos tais banhos de sangue dos Romanos,

De que se lembram na velhice os soberanos,

Conseguiu aquecer essa carcaça insulsa

Onde, em lugar de sangue, a água do Letes pulsa.

 

Jamil Almansur Haddad (J)

Eu sou tal qual um rei de algum país chuvoso,

Rico, mas impotente, e moço, embora idoso,

Que do aio desprezando as mesuras rituais,

Se enfada com os cães e os outros animais.

Nada o diverte enfim nem caça nem falcão,

Nem o povo a morrer em frente do balcão.

A grosseira canção do jogral mais fiel

A fronte não distrai deste doente cruel;

Muda-se em tumba o seu leito flor-de-lisado,

E as damas para quem todo príncipe é amado,

Certo nunca irão pôr vestidos que comovem

Por seu sensual decote este esqueleto jovem.

O sábio que lhe faz ouro é desvalimento,

De vez que não lhe extirpa o corrupto elemento,

E estes banhos de sangue e que o romano ensina

E que ocorrem aos reis quando a idade declina,

Jamais aquecerão este cadáver langue

Que a água do Letes tem fluindo em vez de sangue.

 

Ivan Junqueira (I)

Sou como o rei sombrio de um país chuvoso,

Rico, mas incapaz, moço e no entanto idoso,

Que, desprezando do vassalo a cortesia,

Entre seus cães e os outros bichos se entedia.

Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão,

Nem seu povo a morrer defronte do balcão.

Do jogral favorito a estrofe irreverente

Não mais desfranze o cenho deste cruel doente.

Em tumba se transforma o seu florido leito,

E as aias, que acham todo príncipe perfeito,

Não sabem  mais que traje erótico vestir

Para  fazer este esqueleto enfim sorrir.

O sábio que ouro lhe fabrica desconhece

Como extirpar-lhe ao ser a parte que apodrece,

E nem nos tais banhos de sangue dos romanos,

De que se lembram na velhice os soberanos,

Pôde dar vida a esta carcaça, onde, em filetes,

Em vez de sangue flui a verde água do Letes.

 

Nossos comentários em atenção à carta-circular de Secchin:

 

O primeiro verso encontrou em J. a tradução mais próxima da letra original; os outros dois (G. e I.) usaram cavilhas (adjetivos) para acerto da métrica: o “pobre” de G. é de fato muito pobre; já I. usou “sombrio” que se encaixa melhor no sentido da frase e fatura um verso mais “poético”, embora com sacrifício da métrica original (aboliu a cesura em favor de um esquema 4-6-10-12).

O segundo verso empata em G. e I. e varia em J. no uso de “impotente”, que contém as duas acepções do original (mas o resultado “poético” em português não é tão bom quanto nos outros dois).

O terceiro verso tem métricas diversas do original em G. (3-7-120 e I. (4-8-12); courbettes (reverências, mesuras, salamaleques) foi traduzido por “lisonjas” em G. e por “cortesia” em I. As “mesuras” de J. continuam mais próximas do original, mas só G. conservou “preceptores” (embora com sacrifício do ritmo do verso), enquanto I. optou por “vassalo” e J. afastou-se ainda mais em “aio”.

O quarto verso não encontrou nos três tradutores nenhum que reproduzisse o duplo significado de bêtes (animais/imbecis): G. usa “animais/cães” e I. “cães/e outros bichos”.

O quinto verso é coincidente em G. e I., variando em J., que lhe enxerta uma cavilha (“enfim”); os dois primeiros estão mais próximos do original.

No sexto verso há o problema sério de que “balcão”, para nós, é mais o móvel do bar do que a varanda suspensa do palácio: G. e J. escorregam: em frente do balcão é termo de armazém; I. evita o pejorativo com um “defronte do balcão”, que enobrece o dito; mas há soluções melhores.

No sétimo verso, G. e I. traduziram bouffon por jogral, palavra mais consentânea para designar quem canta uma balada; Baudelaire certamente sabia disso, mas preferiu bouffon a jongleur para obter o efeito aliterativo bouffon favori – essa magnífica profusão de ffs quase reproduzindo a cara do histrião que vai cantar não uma balada medieval mas sua grotesca (palavra fundamental) paródia. I. percebe o jogo dos ffs e consegue um belo “jogral favorito a estrofe”, mas perde força com o “irreverente”, pois aqui não há como fugir a “grotesca balada”. J. embola o campo com uma “grosseira canção do jogral mais fiel”, desta vez se afastando mais do original que os outros tradutores.

O oitavo verso está magistralmente traduzido por I. A opção de G. no entanto produz um verso – digamos – mais “bonito”, ao passo que J. consegue apenas um verso meramente correto.

O novo verso tem a dificuldade do fleurdelisé (palavra específica para designar o ornamento heráldico em forma de lírio estilizado, distintivo da realeza na França): G. usa “todo flores-de-lis” e J. “flor-de-lisado”, de muito mau gosto; I. leva a palma (ou o lírio) com um “florido leito”, mais pobre que o original e nada heráldico — mais digno da Ofélia shakespeariana do que do esplínico Baudelaire — mas que nos dá, do ponto de vista “poético”, um verso capaz de empolgar mesmo aqueles que preferem a fidelidade à criatividade. Tombeau é “tumba” em I. e J., mas G. consegue um belo efeito aliterativo com o “mausoléu seu leito”.

No décimo verso há coincidência em G. e I. no desprezo à cesura; beau (belo, bonito, bom) é “perfeito” nos dois primeiros, e “amado” (mudança de sentido) em J.

O décimo primeiro verso tem um toillete (que pode ser traduzido por “traje ou vestido, ou mesmo toalete, no sentido mais moderno) que vem antecedido do adjetivo impudique: G. traduz por “ traje impudico”, I. por “traje erótico” e J. por um extenso “vestidos que comovem/por seu sensual decote” (ah! esses voyeurs!). Se o acento tônico fosse proparoxítono em português, teríamos com I. a tradução perfeita: “Não sabem mais que traje impúdico [sic] vestir”; não sendo, a melhor solução é mesmo carregar na tinta e partir para o “erótico” na obtenção de mais um belo verso;

No décimo segundo verso, “arrancar um sorriso a esse esqueleto jovem” seria uma solução pobre mas quase literal: G. prefere “Para fazer esse esqueleto moço rir”, I. “Para fazer esses esqueleto enfim sorrir” (menos acurado, pois foge ao adjetivo, necessário) e J. “Por seu sensual  decote esse esqueleto jovem”, que extravasou o verso por causa do decote (ainda que mantivesse o adjetivo). Fugindo ao alexandrino clássico, talvez tivéssemos uma solução aceitável com o esquema 4-8-10-12: Para fazer esse esqueleto jovem rir. Mas é mera especulação, já que temos insistido na manutenção do alexandrino clássico.

Daqui em diante a tarefa se torna mais difícil: já em prosa teríamos algumas dubiedades do tipo: “O sábio [ou o alquimista, que era também o médico na Idade média] que faz ouro para o príncipe, jamais conseguiu extirpar de seu ser o elemento corrupto [outra opção: o elemento espúrio, em oposição ao ouro, o elemento nobre], e nem com esses banhos de sangue que nos vêm dos romanos – e dos quais se lembram os poderosos na idade provecta — não soube (no sentido de conseguir) reaquecer (ou fazer pulsar) esse cadáver estupidificado, no qual em vez de sangue circula a água verde do Letes. Soluções dos tradutores: G. trocou o elemento por matéria, troca aparentemente sem importância, mas que altera o jogo de elemento nobre (ouro) e elemento espúrio (spleen); I. foi mais genérico: “a parte que apodrece”; J. mantém o adjetivo e o substantivo, mas, invertendo-lhes a ordem, obtém como resultado um verso duro.  “E nem nos tais banhos de sangue dos romanos / De que se lembram na velhice os soberanos” é coincidente em G. e I., que não fizeram qualquer esforço para evitar os tais “tais” que vulgariza o verso, nem deram ao leitor a acepção de déspota, de potentado cruel para os “tais” soberanos, que só assim se lembrariam dos “banhos de sangue” (expressão aqui usada, no primeiro verso, em sentido literal, e, no segundo, em sentido figurado); a solução de J. é ainda mais fraca, com muitos quês e uma diluição que não reproduz de modo algum o duplo sentido do original.

Reta de chegada: G. consegue o melhor dístico final se analisado em termos de verso em português; I., atento aos valores formais, sabe que a palavra-chave é Letes e finaliza com ela, como no original, recorrendo a um “filetes” (pena que a segunda vogal é fechada, lê), em que consegue manter o adjetivo verde (cromatismo expressivo por sua oposição à cor do sangue [azul] e encaixar a única rima opulenta que aparece nas três versões [há nove pares delas no original, como veremos]). Quanto a J., seu langue é langue, e o “tem fluindo” parece até erro de revisão, tanto esforço requer para ser entendido.

sem-nome

Conclusão: a melhor tradução, a nosso ver (crítico) é a de Ivan Junqueira, motivo aliás de o termos escolhido para integrar o volume da obra completa (poesia e prosa) de Charles Baudelaire, que organizamos em 1995 para a Nova Aguilar.

Os poetas franceses, mormente os românticos e naturalistas como Baudelaire, adotavam a rígida observância de dois preceitos da métrica francesa: a alternância das rimas agudas (palavras oxítonas) com as graves (paroxítonas). [ No poema que estamos analisando essa alternância se observa aos pares: pluvieux/vieux (agudas), courbettes/bêtes (graves), etc. Por outro lado, e diversamente da métrica portuguesa, a alternância dos gêneros gramaticais nas rimas não é quase nunca observada pelos franceses]. O outro preceito: os bons poetas franceses em geral não abrem mão de empregar rimas com consoante de apoio, ou seja, rimam não apenas a sílaba tônica, mas incluem nesta a consoante que a antecede: ex. coubettes, bêtes. Além disso, os mais dogmáticos (e Baudelaire mais que todos) não dispensavam as rimas chamadas opulentas, ou seja, aquelas em que a totalidade de uma palavra se embebe inteiramente na outra, ex. pluvieux/vieux, tombeau/beau, corompu/pu/, souviennent /viennent. Tal virtuosismo é difícil de se manter em tradução e mesmo esse tipo de rima não goza de bom conceito entre nós, que consideramos pobres as rimas de palavras da mesma derivação. Quanto à consoante de apoio, houve tentativas nacionais (ex. Goulart de Andrade) de utilizá-la, mas que se frustraram por não ter nossa língua os mesmos recursos da francesa, em que são muito numerosas as palavras com terminação sonora semelhante.

 A versão que em seguida apresentamos – sem intenção de concorrer com as belas performances dos tradutores citados – leva em conta as considerações acima, conjugadas à tentativa de manutenção do esquema rímico original (opulentas), salvo em duas ocasiões: chuvoso /idoso; faceto/esqueleto, embora neste último caso conseguíssemos pelo menos manter o tom fechado do vocábulo: êto. Não se trata de uma tradução elogiável: falta-lhe a naturalidade do fraseio baudelairiano, embora procurássemos reter ao máximo o seu vocabulário. Será, quando muito, um exercício de estilo com o qual queremos quebrar a prática fácil da crítica sem a contrapartida da exemplificação.

Sou assim como o rei de algum país chuvoso

— Rico, mas incapaz; jovem, no entanto idoso —

Que de seu preceptor despreza as curvaturas

E enfara-se com os cães e as outras criaturas.

Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão,

Nem o povo que morre aos pés de seu balcão.

Do bufão favorito a grotesca balada

Já não distrai do enfermo essa expressão calada.

Seu leito em flor-de-lis transforma-se em sepulcro,

E as damas, para as quais todo príncipe é pulcro,

Não logram encontrar um traje mais faceto

Que arranque um frouxo riso ao jovem esqueleto.

O sábio, que faz ouro, esmoreceu no apuro

De lhe extirpar do ser esse elemento impuro;

Nem nos banhos de sangue, herdados dos romanos,

Que o poderoso invoca ao declinar dos anos,

Conseguiu lhe aquecer a carcaça que escorre

E, em vez de sangue, a verde água do Letes corre.

 

 

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Adendo:

Apreciaremos quaisquer comentários e principalmente críticas dos leitores e os convocamos a tentar também suas versões.

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Quadro sinótico da classificação das rimas usadas no original e na tradução:

ca = consoante de apoio/ra= rima abundante/ rr=rima rica/rp=rima pobre

Pluvieux               chuvoso

très-vieux (ra)    idoso (rima pobre – adjetivo x adjetivo)

courbettes            curvaturas

bêttes   (ra)         Criaturas (ca)

faucon                   falcão

balcon  (ca)         balcão (ca dupla)

ballade                 balada

malade (ca dupla)      calada   (ca dupla)

tombeau                sepulcro

est beau (ra)       é pulcro (ra)

toilette                  faceto

esquelette (ca)    esqueleto (rima rica – adjetivo x substantivo)

/jamais pu            apuro

Corrompu (ra)    impuro (ca)

Viennent             romanos

Souviennent (ra)        anos (ra)

Hébété                   escorre

Léthé (ca)           Letes corre (ra) 

 

Ilustrações: La Femme au Chapeau Noir – Georges de Feure – capa do livro; portrait de Charles Baudelaire – Émile Deroy, pág. 36;  portrait de Charles Baudelaire,  Gustave Courbet,  pág. 192

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