
Acabo de ganhar de presente uma edição maravilhosa de “Les Fleurs du Mal”, de Charles Baudelaire (Diane de Selliers – éditeur), generosamente ilustrada com reproduções de pintores simbolistas e decadentes, e corro para a página 210 onde está o Spleen-LXXVII: Je suis comme le roi d’ un pays pluvieux, desde sempre um dos meus poemas preferidos. De imediato, recordo-me que em 1993 eu fazia parte do conselho editorial da revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, cujo primeiro número havia sido lançado em janeiro daquele ano. O Editor-chefe, de então, Antônio Carlos Secchin, solicitara em carta a todos os conselheiros uma apreciação por escrito sobre o que achavam da revista e a indicação de eventuais medidas que a pudessem aprimorar. Resolvi manifestar-me sobre a seção Verso e Versão, que apresentava várias traduções de um mesmo poema (no caso, precisamente o Spleen-LXXVII), sem qualquer análise crítica, mas apenas para proporcionar ao leitor “uma visão multifacetada quanto às possibilidades tradutórias de um só texto literário”.
As traduções escolhidas foram a de Guilherme de Almeida, de Jamil Almansur Haddad e a de Ivan Junqueira, publicadas em livro respectivamente em 1944, 1958 e 1985. Nessa altura, já havia pelo menos mais duas outras impressas, a de Ignacio de Souza Moitta (1971) e a de Cláudio Veiga (1991), mas ambas de qualidades “tradutórias” inferiores às citadas, já que se valiam com frequência do recurso à paráfrase ou à interpretação. Hoje poderíamos contar com bem mais de uma dezena delas, embora não nos conste alguma que possa alterar os valores de nossa avaliação.

Eis o original de Baudelaire:
LXXVII – SPLEEN
Je suis comme le roi d’un pays pluvieux,
Riche, mais impuissant, jeune et pourtant très-vieux,
Qui, de ses précepteurs méprisant les courbettes,
S’ ennuie avec ses chiens comme avec d’autres·bêtes. ·
Rien ne peut l’égayer, ni gibier,ni faucon,
Ni son peuple mourant en face du balcon.
Du bouffon favori la grotesque ballade
Ne distrait plus le front de ce cruel malade;
Son lit fleurdelisé se transforme en tombeau,
Et les dames d’atour, pour qui tout prince est beau,
Ne savent plus trouver d’impudique toilette
Pour tirer un souris de ce jeune squelette.
Le savant qui lui fait de l’or n’a jamais pu
De son être extirper l’élément corrompu,
Et dans ces bains de sang qui des Romains nous viennent,
Et dont sur leurs vieux jours les puissants se souviennent,
Il n’a su réchauffer ce cadavre hébété
Où coule au lieu de sang l’eau verte du Léthé.
Agora vamos às traduções:
Guilherme de Almeida (G)
Sou como o pobre rei de algum país chuvoso,
Rico, mas incapaz, moço, e no entanto idoso,
Que as lisonjas dos preceptores desprezando,
Vai com seus animais, com seus cães se enfadando.
Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão,
Nem seu povo morrendo em frente do balcão.
Do jogral favorito a grotesca balada
Não mais lhe desenruga a fronte acabrunhada;
Todo flores-de-lis, é um mausoléu seu leito,
E as aias, que acham todo príncipe perfeito,
Já não sabem que traje impudico vestir
Para fazer esse esqueleto moço rir.
O sábio, que fabrica o seu oiro, em vão luta
Por lhe extirpar do ser a matéria corrupta,
E nem nos tais banhos de sangue dos Romanos,
De que se lembram na velhice os soberanos,
Conseguiu aquecer essa carcaça insulsa
Onde, em lugar de sangue, a água do Letes pulsa.
Jamil Almansur Haddad (J)
Eu sou tal qual um rei de algum país chuvoso,
Rico, mas impotente, e moço, embora idoso,
Que do aio desprezando as mesuras rituais,
Se enfada com os cães e os outros animais.
Nada o diverte enfim nem caça nem falcão,
Nem o povo a morrer em frente do balcão.
A grosseira canção do jogral mais fiel
A fronte não distrai deste doente cruel;
Muda-se em tumba o seu leito flor-de-lisado,
E as damas para quem todo príncipe é amado,
Certo nunca irão pôr vestidos que comovem
Por seu sensual decote este esqueleto jovem.
O sábio que lhe faz ouro é desvalimento,
De vez que não lhe extirpa o corrupto elemento,
E estes banhos de sangue e que o romano ensina
E que ocorrem aos reis quando a idade declina,
Jamais aquecerão este cadáver langue
Que a água do Letes tem fluindo em vez de sangue.
Ivan Junqueira (I)
Sou como o rei sombrio de um país chuvoso,
Rico, mas incapaz, moço e no entanto idoso,
Que, desprezando do vassalo a cortesia,
Entre seus cães e os outros bichos se entedia.
Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão,
Nem seu povo a morrer defronte do balcão.
Do jogral favorito a estrofe irreverente
Não mais desfranze o cenho deste cruel doente.
Em tumba se transforma o seu florido leito,
E as aias, que acham todo príncipe perfeito,
Não sabem mais que traje erótico vestir
Para fazer este esqueleto enfim sorrir.
O sábio que ouro lhe fabrica desconhece
Como extirpar-lhe ao ser a parte que apodrece,
E nem nos tais banhos de sangue dos romanos,
De que se lembram na velhice os soberanos,
Pôde dar vida a esta carcaça, onde, em filetes,
Em vez de sangue flui a verde água do Letes.
Nossos comentários em atenção à carta-circular de Secchin:
O primeiro verso encontrou em J. a tradução mais próxima da letra original; os outros dois (G. e I.) usaram cavilhas (adjetivos) para acerto da métrica: o “pobre” de G. é de fato muito pobre; já I. usou “sombrio” que se encaixa melhor no sentido da frase e fatura um verso mais “poético”, embora com sacrifício da métrica original (aboliu a cesura em favor de um esquema 4-6-10-12).
O segundo verso empata em G. e I. e varia em J. no uso de “impotente”, que contém as duas acepções do original (mas o resultado “poético” em português não é tão bom quanto nos outros dois).
O terceiro verso tem métricas diversas do original em G. (3-7-120 e I. (4-8-12); courbettes (reverências, mesuras, salamaleques) foi traduzido por “lisonjas” em G. e por “cortesia” em I. As “mesuras” de J. continuam mais próximas do original, mas só G. conservou “preceptores” (embora com sacrifício do ritmo do verso), enquanto I. optou por “vassalo” e J. afastou-se ainda mais em “aio”.
O quarto verso não encontrou nos três tradutores nenhum que reproduzisse o duplo significado de bêtes (animais/imbecis): G. usa “animais/cães” e I. “cães/e outros bichos”.
O quinto verso é coincidente em G. e I., variando em J., que lhe enxerta uma cavilha (“enfim”); os dois primeiros estão mais próximos do original.
No sexto verso há o problema sério de que “balcão”, para nós, é mais o móvel do bar do que a varanda suspensa do palácio: G. e J. escorregam: em frente do balcão é termo de armazém; I. evita o pejorativo com um “defronte do balcão”, que enobrece o dito; mas há soluções melhores.
No sétimo verso, G. e I. traduziram bouffon por jogral, palavra mais consentânea para designar quem canta uma balada; Baudelaire certamente sabia disso, mas preferiu bouffon a jongleur para obter o efeito aliterativo bouffon favori – essa magnífica profusão de ffs quase reproduzindo a cara do histrião que vai cantar não uma balada medieval mas sua grotesca (palavra fundamental) paródia. I. percebe o jogo dos ffs e consegue um belo “jogral favorito a estrofe”, mas perde força com o “irreverente”, pois aqui não há como fugir a “grotesca balada”. J. embola o campo com uma “grosseira canção do jogral mais fiel”, desta vez se afastando mais do original que os outros tradutores.
O oitavo verso está magistralmente traduzido por I. A opção de G. no entanto produz um verso – digamos – mais “bonito”, ao passo que J. consegue apenas um verso meramente correto.
O novo verso tem a dificuldade do fleurdelisé (palavra específica para designar o ornamento heráldico em forma de lírio estilizado, distintivo da realeza na França): G. usa “todo flores-de-lis” e J. “flor-de-lisado”, de muito mau gosto; I. leva a palma (ou o lírio) com um “florido leito”, mais pobre que o original e nada heráldico — mais digno da Ofélia shakespeariana do que do esplínico Baudelaire — mas que nos dá, do ponto de vista “poético”, um verso capaz de empolgar mesmo aqueles que preferem a fidelidade à criatividade. Tombeau é “tumba” em I. e J., mas G. consegue um belo efeito aliterativo com o “mausoléu seu leito”.
No décimo verso há coincidência em G. e I. no desprezo à cesura; beau (belo, bonito, bom) é “perfeito” nos dois primeiros, e “amado” (mudança de sentido) em J.
O décimo primeiro verso tem um toillete (que pode ser traduzido por “traje ou vestido, ou mesmo toalete, no sentido mais moderno) que vem antecedido do adjetivo impudique: G. traduz por “ traje impudico”, I. por “traje erótico” e J. por um extenso “vestidos que comovem/por seu sensual decote” (ah! esses voyeurs!). Se o acento tônico fosse proparoxítono em português, teríamos com I. a tradução perfeita: “Não sabem mais que traje impúdico [sic] vestir”; não sendo, a melhor solução é mesmo carregar na tinta e partir para o “erótico” na obtenção de mais um belo verso;
No décimo segundo verso, “arrancar um sorriso a esse esqueleto jovem” seria uma solução pobre mas quase literal: G. prefere “Para fazer esse esqueleto moço rir”, I. “Para fazer esses esqueleto enfim sorrir” (menos acurado, pois foge ao adjetivo, necessário) e J. “Por seu sensual decote esse esqueleto jovem”, que extravasou o verso por causa do decote (ainda que mantivesse o adjetivo). Fugindo ao alexandrino clássico, talvez tivéssemos uma solução aceitável com o esquema 4-8-10-12: Para fazer esse esqueleto jovem rir. Mas é mera especulação, já que temos insistido na manutenção do alexandrino clássico.
Daqui em diante a tarefa se torna mais difícil: já em prosa teríamos algumas dubiedades do tipo: “O sábio [ou o alquimista, que era também o médico na Idade média] que faz ouro para o príncipe, jamais conseguiu extirpar de seu ser o elemento corrupto [outra opção: o elemento espúrio, em oposição ao ouro, o elemento nobre], e nem com esses banhos de sangue que nos vêm dos romanos – e dos quais se lembram os poderosos na idade provecta — não soube (no sentido de conseguir) reaquecer (ou fazer pulsar) esse cadáver estupidificado, no qual em vez de sangue circula a água verde do Letes. Soluções dos tradutores: G. trocou o elemento por matéria, troca aparentemente sem importância, mas que altera o jogo de elemento nobre (ouro) e elemento espúrio (spleen); I. foi mais genérico: “a parte que apodrece”; J. mantém o adjetivo e o substantivo, mas, invertendo-lhes a ordem, obtém como resultado um verso duro. “E nem nos tais banhos de sangue dos romanos / De que se lembram na velhice os soberanos” é coincidente em G. e I., que não fizeram qualquer esforço para evitar os tais “tais” que vulgariza o verso, nem deram ao leitor a acepção de déspota, de potentado cruel para os “tais” soberanos, que só assim se lembrariam dos “banhos de sangue” (expressão aqui usada, no primeiro verso, em sentido literal, e, no segundo, em sentido figurado); a solução de J. é ainda mais fraca, com muitos quês e uma diluição que não reproduz de modo algum o duplo sentido do original.
Reta de chegada: G. consegue o melhor dístico final se analisado em termos de verso em português; I., atento aos valores formais, sabe que a palavra-chave é Letes e finaliza com ela, como no original, recorrendo a um “filetes” (pena que a segunda vogal é fechada, lê), em que consegue manter o adjetivo verde (cromatismo expressivo por sua oposição à cor do sangue [azul] e encaixar a única rima opulenta que aparece nas três versões [há nove pares delas no original, como veremos]). Quanto a J., seu langue é langue, e o “tem fluindo” parece até erro de revisão, tanto esforço requer para ser entendido.

Conclusão: a melhor tradução, a nosso ver (crítico) é a de Ivan Junqueira, motivo aliás de o termos escolhido para integrar o volume da obra completa (poesia e prosa) de Charles Baudelaire, que organizamos em 1995 para a Nova Aguilar.
Os poetas franceses, mormente os românticos e naturalistas como Baudelaire, adotavam a rígida observância de dois preceitos da métrica francesa: a alternância das rimas agudas (palavras oxítonas) com as graves (paroxítonas). [ No poema que estamos analisando essa alternância se observa aos pares: pluvieux/vieux (agudas), courbettes/bêtes (graves), etc. Por outro lado, e diversamente da métrica portuguesa, a alternância dos gêneros gramaticais nas rimas não é quase nunca observada pelos franceses]. O outro preceito: os bons poetas franceses em geral não abrem mão de empregar rimas com consoante de apoio, ou seja, rimam não apenas a sílaba tônica, mas incluem nesta a consoante que a antecede: ex. coubettes, bêtes. Além disso, os mais dogmáticos (e Baudelaire mais que todos) não dispensavam as rimas chamadas opulentas, ou seja, aquelas em que a totalidade de uma palavra se embebe inteiramente na outra, ex. pluvieux/vieux, tombeau/beau, corompu/pu/, souviennent /viennent. Tal virtuosismo é difícil de se manter em tradução e mesmo esse tipo de rima não goza de bom conceito entre nós, que consideramos pobres as rimas de palavras da mesma derivação. Quanto à consoante de apoio, houve tentativas nacionais (ex. Goulart de Andrade) de utilizá-la, mas que se frustraram por não ter nossa língua os mesmos recursos da francesa, em que são muito numerosas as palavras com terminação sonora semelhante.
A versão que em seguida apresentamos – sem intenção de concorrer com as belas performances dos tradutores citados – leva em conta as considerações acima, conjugadas à tentativa de manutenção do esquema rímico original (opulentas), salvo em duas ocasiões: chuvoso /idoso; faceto/esqueleto, embora neste último caso conseguíssemos pelo menos manter o tom fechado do vocábulo: êto. Não se trata de uma tradução elogiável: falta-lhe a naturalidade do fraseio baudelairiano, embora procurássemos reter ao máximo o seu vocabulário. Será, quando muito, um exercício de estilo com o qual queremos quebrar a prática fácil da crítica sem a contrapartida da exemplificação.
Sou assim como o rei de algum país chuvoso
— Rico, mas incapaz; jovem, no entanto idoso —
Que de seu preceptor despreza as curvaturas
E enfara-se com os cães e as outras criaturas.
Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão,
Nem o povo que morre aos pés de seu balcão.
Do bufão favorito a grotesca balada
Já não distrai do enfermo essa expressão calada.
Seu leito em flor-de-lis transforma-se em sepulcro,
E as damas, para as quais todo príncipe é pulcro,
Não logram encontrar um traje mais faceto
Que arranque um frouxo riso ao jovem esqueleto.
O sábio, que faz ouro, esmoreceu no apuro
De lhe extirpar do ser esse elemento impuro;
Nem nos banhos de sangue, herdados dos romanos,
Que o poderoso invoca ao declinar dos anos,
Conseguiu lhe aquecer a carcaça que escorre
E, em vez de sangue, a verde água do Letes corre.
***
Adendo:
Apreciaremos quaisquer comentários e principalmente críticas dos leitores e os convocamos a tentar também suas versões.
***
Quadro sinótico da classificação das rimas usadas no original e na tradução:
ca = consoante de apoio/ra= rima abundante/ rr=rima rica/rp=rima pobre
Pluvieux chuvoso
très-vieux (ra) idoso (rima pobre – adjetivo x adjetivo)
courbettes curvaturas
bêttes (ra) Criaturas (ca)
faucon falcão
balcon (ca) balcão (ca dupla)
ballade balada
malade (ca dupla) calada (ca dupla)
tombeau sepulcro
est beau (ra) é pulcro (ra)
toilette faceto
esquelette (ca) esqueleto (rima rica – adjetivo x substantivo)
/jamais pu apuro
Corrompu (ra) impuro (ca)
Viennent romanos
Souviennent (ra) anos (ra)
Hébété escorre
Léthé (ca) Letes corre (ra)
Ilustrações: La Femme au Chapeau Noir – Georges de Feure – capa do livro; portrait de Charles Baudelaire – Émile Deroy, pág. 36; portrait de Charles Baudelaire, Gustave Courbet, pág. 192
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