Sou admirador convicto do trabalho humanitário dos Médicos sem Fronteira. Contribuo, modesta mas permanentemente para manter a continuidade dessa instituição, cuja eficácia profissional, desprendimento pessoal e ausência de vínculos políticos ou nacionalistas têm proporcionado ajuda médico-social a populações desamparadas ou escravizadas pelas guerras e a miséria. Esse bando de jovens idealistas, tratando de populações carentes nos cantos mais miseráveis do planeta, foi criado em 1971, na França, por jovens médicos e jornalistas, que atuaram como voluntários no final dos anos 60 em Biafra, na Nigéria. Enquanto a equipe médica socorria vítimas em uma brutal guerra civil, o grupo percebeu as limitações da ajuda humanitária internacional: a dificuldade de acesso ao local e os entraves burocráticos e políticos faziam com que muitos se calassem frente aos fatos testemunhados. Então o MSF surge como uma organização médico-humanitária que associa socorro médico e testemunho em favor das populações em risco. A organização trabalha em cima de determinados eixos de atuação: conflitos armados, epidemias, fome e desnutrição, desastres naturais e exclusão de cuidados médicos.
A organização é uma iniciativa independente de governos e sustentada, em grande parte, por contribuições privadas, fato que lhe confere liberdade e agilidade para oferecer ajuda humanitária onde for preciso.
Em 2012, os Médicos sem Fronteiras lançaram, pela Leya, de São Paulo, a edição brasileira dos depoimentos de personalidades internacionais que haviam visitado a organização, em várias partes do mundo. O livro tem por título Dignidade, palavra-chave que define a atitude primordial do grupo. São relatos às vezes chocantes de experiências vividas pelos autores em pontos perdidos da África, sob as condições mais adversas. Mas é uma leitura que nos leva a meditar na carência absoluta dessas populações desoladas e oprimidas. Convidado a participar da edição, traduzi dois depoimentos: o de Mario Vargas Llosa e o de Paolo Giordano. Para incentivar a leitura do livro completo, transcrevemos aqui parte desse último depoimento, a cena precisamente que serve de ilustração da capa do livro.
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“Os primeiros meses de missão foram um desastre. A casa da MSF era acolhedora, menos espartana do que Marije havia imaginado, mas a migalha de fascínio oriental que Dacca (talvez) possuía era sufocada pelo caos, pela imundície e pelo incessante barulho.
Um automóvel a despertava às 6 da manhã para levá-la com o resto do staff internacional à clínica de Kamrangirchar. A favela se equilibrava tremulante sobre a areia trazida do leito do rio, que escorria negro de sujeira ao redor. Um dia — pensava Marije — o rio Negro vai receber de volta tudo aquilo que era seu. Esse pensamento a aterrorizava.
Amontoados altíssimos de imundície faziam as vezes de dique no curso da água, as crianças nuas corriam por cima deles, mergulhavam na podridão, enquanto os corvos se precipitavam sobre os resíduos para bicar fragmentos cintilantes. O fedor de plástico queimado não diminuía nem mesmo com o vento, os colegas lhe prometiam que ela se habituaria, mas após duas semanas Marije o sentia ainda mais forte do que antes, grudando-lhe nos cabelos e nas mãos. Quando assoava o nariz, encontrava no lenço pequenos coágulos de pó e era perseguida agora pelo temor de vir a adoecer gravemente.
Só dentro da clínica encontrava um pouco de paz. As mães jovens, envoltas em suas vestes coloridas, tiravam as sandálias nas escadas e formavam uma fila silenciosa ao longo das paredes do corredor. Eis uma imagem que refletia as suas expectativas: mulheres em roupas folclóricas com os filhinhos magros nos braços, silenciosas e reconhecidas. Ficavam encantadas com seus cabelos louros e às vezes ousavam tocá-los.
“You beautiful” diziam, e Marije enrubescia.
Na fronte dos recém-nascidos havia uma mancha negra de hena, o terceiro olho, que os protegeria do Maligno, outra coisa comovente. Marije se lembrava de uma discussão acesa com Eloise a esse propósito: “Você só se interessa pelos projetos em que haja crianças no meio”, a amiga lhe reprovava, “e os massacres dos rohingya? As mutilações genitais? A política lobista e homicida das indústrias farmacêuticas? Com isso você não se importa, não é mesmo?”
“As crianças são os seres mais expostos.”
“Não, são simplesmente os que mais lhe dão pena. Você é uma hipócrita, Marije.”
Eloise precisava vê-la agora. Não havia hipocrisia alguma na amabilidade, no profissionalismo que dedicava a cada criança. Media a circunferência do braço para avaliar o nível de nutrição e, caso suspeitasse de qualquer doença ou infecção, encaminhava a mãe e o filho ao dr. Mohammed, na sala ao lado.
A atividade ambulatorial revigorava as suas motivações, por algumas horas Marije se esquecia do inferno fora da clínica e experimentava o prazer de ser útil a alguém, o que havia perseguido em vão nos 28 anos de vida na Antuérpia, onde se sentia útil somente para si mesma.
Mas às 5h30, quando os caules de bambu das palafitas projetavam sombras longuíssimas e filiformes sobre as montanhas de detritos, o horror voltava. O automóvel da MSF permanecia encaixado entre milhares de outros, entre os ônibus e os riquixás atrevidos. A cidade ficava paralisada, e a viagem chegava a levar três horas.
Marije não queria olhar para fora. As crianças que brincavam de se esconder entre os veículos, os homens que bebiam chá preparado com água envenenada de arsênico e depois cuspiam no chão golfadas rubras — mas por que cuspiam sem parar? e o que era aquele sangue? —, os cães estropiados, os ratos e ainda os corvos, grandes e ameaçadores.
Não se sentia em segurança nem sequer nos bairros residenciais de Gulshan. À noite encerrava-se em seu quarto. A fartura de desgraças humanas da jornada lhe havia tirado o apetite, de modo que colocava para cozinhar um punhado de arroz branco numa panelinha, temperava-o com molho de soja e comia encolhida embaixo do cortinado.
Em 20 dias consumiu os capítulos de Lie to me e iniciou os de Dexter, que não lhe agradava muito. Assistiu-os igualmente com voracidade, para começar tudo de novo, a fim de não se entregar à sensação do vazio. Desligava o computador só muito tarde da noite, estonteada, e não dormia bem.
Quando Ian, seu colega neozelandês, não se apropriava do único canal de ethernet da casa, telefonava para Otto, mas lhe acontecia sempre de chorar e então desligava logo. Se houvesse confessado como se sentia, ele haveria de lhe dizer para voltar para casa, e isso ela não podia suportar. Não trocava confidências nem mesmo com Eloise, que de modo geral se interessava por ela apenas nas últimas linhas do e-mail, de maneira vaga e apressada, e no mais só falava da gravidez. Marije respondia com mensagens lacônicas e de propósito lhe contava sobre o recém-nascido que visitara aquela manhã: tinha caído no chão logo após o parto, passara por uma crise respiratória aguda, mas agora estava em condições estáveis; no entanto, com toda probabilidade, iria perder um olho, e as consequências da queda sobre o cérebro só viriam a aparecer alguns anos mais tarde. Depois, sentia-se duplamente mesquinha, em relação a Eloise e à criança machucada.
“Não vá bancar a heroína; se não se sentir bem, sempre se pode desistir.” As palavras da amiga a atormentavam, mas no fim prevalecia o medo do fracasso que haveria de enfrentar se voltasse à Antuérpia antes do previsto. De que parte poderia recomeçar a sua vida? De que aspiração, se não possuía outras?
Uma manhã perdeu o controle. Uma mulher grávida apresentou-se na clínica com o avental e as coxas ensopadas de sangue, depois de haver praticado em si mesma um aborto tão cruento que Marije tapara os ouvidos enquanto o intérprete traduzia. O médico da favela achou que devia tratá-la imediatamente com medicamentos psicotrópicos; apesar das dores, a mulher parecia alheia, drogada, respondendo às perguntas como se tudo aquilo não lhe dissesse respeito.
Marije tinha saído da sala e corrido para o andar superior. Encontrou o estúdio de Corinne aberto e trancou-se lá dentro. Começou a chorar, histericamente, sem conseguir parar”.
(Paolo Giordano – Phool gobi quer dizer couve-flor)
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