Testemunho de um fingidor (continuação)
No final de setembro, chega ás mãos da polícia portuguesa (talvez por intermédio do jornalista Ferreira Gomes) uma cigarreira e um misterioso bilhete encontrados no local denominado Boca do Inferno, uma escarpa que termina em gruta em pleno mar, na região balneária de Cascais. O bilhete dava a entender que o enigmático visitante inglês se havia suicidado, escolhendo um local que se tornara emblemático para essa espécie de desporto:
L.G.P.
Ano 14, Sol em Balança
Não posso viver sem ti.
A outra Boca do Inferno
Apanhar-me-á – não será
Tão quente como a tua.
Hisos.
Tu Li Yu
Chamado a depor na qualidade de amigo da suposta vítima, Fernando Pessoa, conforme se pode ler no “Notícias ilustrado”, de 5 de outubro, contribuiu largamente para a intensificação do mistério: “Em 18 de setembro – depõe – recebi uma carta de Crowley, escrita do Hotel Miramar, no Estoril. Dizía-me que miss Jaeger tivera, na noite de 16, um violentíssimo ataque histérico, que havia sobressaltado o Hotel Paris inteiro: que em virtude disso tinha vindo para o Hotel Miramar, mas que, na manhã de 17, miss Jaeger havia desaparecido, deixando apenas duas linhas a lápis, dizendo que voltaria em breve. No mesmo dia 18, Crowley apareceu em Lisboa, visivelmente preocupado com o desaparecimento de miss Jaeger. Disse-me que o que sobretudo o preocupava era a hereditariedade carregadíssima dela, a sua tendência proclamada para o suicídio e sua convicção de estar sendo perseguida por um mago negro chamado York. Achava, pois, urgentíssimo descobrir seu paradeiro”.
Tudo fazia crer que Crowley se suicidara por ter sido abandonado por miss (ou Fraulein?) Jaeger. Não só a polícia portuguesa envolveu-se na busca de ambos; também de Londres vieram dois agentes do “Intelligence Service”, talvez por Crowley ter feito parte dessa organização durante a I Guerra Mundial. Após intensa especulação jornalística em Lisboa, saborosamente transcrita na imprensa inglesa, descobre-se finalmente que a jovem deixara o país no dia 20 daquele mês a bordo do navio “Werra” com destino à Alemanha, e que era americana e não alemã, tendo até pedido auxílio monetário ao consulado dos Estados Unidos. Em posteriores declarações à imprensa, Pessoa insinua que Crowley na verdade se suicidara, mas seu fantasma continuava rondando pelas ruas de Lisboa: “Despediu-se de mim às 10:30 do dia 23, à porta do Café Arcada, no Terreiro do Paço – diz ele em outra. entrevista. Nunca mais lhe falei. Quero crer que ainda o vi. No dia 24, de manhã, vi Crowley ou o seu fantasma dobrar a esquina do Café La Gare para a Rua 1° de Dezembro. Nesse mesmo dia, ao atravessar a Praça Duque da Terceira, vi Crowley ou o seu fantasma, entrar com outro indivíduo na Tabacaria Inglesa”. A razão (?) que Pessoa alegava para acreditar no suicídio era a data exata da mensagem cabalística: “Ora – enfatizava – o que nenhum astrólogo, por motivos que não me é lícito revelar, ousaria fazer é falsear uma carta escrita em sinais de astros”. E explicava que a assinatura “Tu Li Yu” era o nome de um sábio chinês que viveu a uns três mil anos antes de Cristo “e de quem Crowley dizia ser a reencarnação”. Falando ao jornal lisboeta, “O Girassol”, dias depois, Pessoa, além de sustentar a sua história, acrescentava: que, em Londres, o médium Dr. A. V. Peters, entrara em transe e revelara “que o mágico desaparecido fora assassinado nos arredores de Lisboa, em rochas ao pé da água”. Mas a farsa – com ou sem a conivência de Pessoa, que certamente, pelo seu gosto acentuado pelo fingir, poderia a ela se prestar perfeitamente – foi, pouco depois, desfeita. A Polícia portuguesa descobriu que “na fronteira de Vilar Formoso fora registrada a passagem do famoso mago a caminho da França. terminadas suas férias em Portugal”.
Qual teria sido a finalidade da mistificação? Acrescentar “mistério” à figura do mago? Ou Crowley “armou” o “suicídio” simplesmente para poder sair à socapa sem pagar o hotel? Para os que defendem a lisura de Pessoa neste caso, há a hipótese de ter o jornalista Augusto Ferreira Gomes participado do golpe sensacionalista. Quanto a Pessoa, fingidamente ou não, nunca deixou de sustentar a “morte e ressurreição” de Crowley, tanto assim que, no ano seguinte, escreve a João Gaspar Simões, que dirigia a revista “Presença”: “O Crowley, que depois de se suicidar passou a residir na Alemanha, escreveu-me há dias e perguntou-me pela tradução – ou antes, pela publicação da tradução… veja lá agora; não me deixe mal com o Mago!” A tradução do poema foi finalmente publicada na revista Presença, editada em Coimbra e dirigida por João Gaspar Simões, José Régio e outros, em seu nº 33, de julho/outubro de 1933.
Aleister Crowley viveu mais 16 anos, falecendo depois da II Guerra Mundial; segundo seus biógrafos, se drogava com frequência e abusava do hipnotismo para manter uma pequena mas fiel clientela de fanáticos. Escreveu cerca de 80 livros, inclusive de poesia esotérica, e é personagem fartamente mencionado no romance O Pêndulo de Foucauld, de Umberto Eco. Além dessa referência literária mais recente, e ainda do tempo em que Crowley estava vivo, o escritor britânico Somerset Maugham escreveu em 1907 uma novela intitulada The Magician (“O Mágico”) em que traça um retrato de Crowley, compatriota que conhecera em Paris. Segundo o romancista, “Crowley fazia e publicava versos em edições luxuosas que ele próprio custeava, e andava metido com o satanismo, a magia e o ocultismo, o que era então uma espécie de moda em Paris, nascida, sem dúvida, do interesse que ainda despertava o livro de Huysmans, Là-Bas.” Embora Maugham declarasse que “Crowley tenha servido de modelo para Oliver Haddo [o personagem principal de O Mágico], este não é em absoluto um retrato dele. Crowley, no entanto, reconheceu-se na criatura de minha invenção – pois não era outra coisa – e escreveu uma crítica da novela que ocupou uma página inteira da revista Vanity Fair, assinando-se Oliver Haddo”.
(Artigo publicado na revista Dicta&Contradicta, junho, 2009, pags. 123/131)