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Archive for maio \30\-03:00 2013

Já relatei em parte a história do poema romântico Enoch Arden, de Lord Alfred Tennyson (1809-1892) no post de 07/09/2010 (vide aqui), mas não custa agora completá-la.

ENOCH 1 (Alfred-Tennyson)

ENOCH 2 (livro)

O poema foi escrito quando Tennyson era o Poeta Laureado da Inglaterra e foi publicado pela primeira vez em 1864. Trata-se de uma narrativa em versos, muito ao gosto da época, com grandes exemplos de firmeza de caráter, nobres propósitos e extrema abnegação. Não resumo a história aqui, pois espero que vocês venham a ler o poema na íntegra.

Richard_Strauss_200possart-2

     Richard Strauss                                        Ernst von Possart

Em 1896, o compositor alemão Richard Strauss (1864-1949), para ajudar seu amigo o ator e diretor de teatro Ernst Von Possart (1841-1921), que estava em dificuldades financeiras, criou um melodrama para piano e declamação com base na tradução alemã do poema de Tennyson, feita pelo poeta Adolf Strodtmann (1829-1879). Era o que hoje se chamaria de música incidental, com partes características assinalando a presença de cada personagem (leitmotiven), seguidas de longos trechos apenas declamados. O espetáculo, classificado musicalmente como o opus 38 da criação straussiana, obteve enorme sucesso e foi a principal fonte de renda da dupla durante um bom período.

Inúmeras foram as traduções que se seguiram, principalmente italianas, e várias adaptações para o cinema, desde a clássica de D. W.Griffith (1875-1948), de 1911, ainda em filme mudo.

final2

Modernamente várias duplas (declamador+pianista) gravaram em CD o espetáculo criado por Strauss, sendo as mais famosas Claude Rains e Glenn Gould e Michael York e John Bell Young.

enoch arden

Traduzido por mim por encomenda da Interart, de São Paulo, o melodrama foi representado por Fernanda Montenegro e Jean-Louis Steuerman em duas ocasiões: em 2001, nos concertos BankBoston, e em 2006, no projeto Care Brasil, ambas naquela capital.

RECIFE 8

Mais recentemente, a pianista Ana Lúcia Altino e o declamador Germano Haiut apresentaram o espetáculo no Teatro Eva Herz, de Recife, na significativa data de 12/12/2012.

Mas vamos ao poema:

ENOCH ARDEN – I

ENOCH 3 (mar)

   

ENOCH ARDEN — Lord Alfred Tennyson

 

Tradução de Ivo Barroso

primeira parte

Prelúdio – Piano solo

 

(declamação)

A longa linha dos penhascos ao quebrar-se deixa um claro

E nesse claro vê-se a espuma que se espraia sobre areias amarelas;

Além, telhas vermelhas avançam para o estreito cais

Como um cardume; logo, uma igreja derruída; mais acima

Comprida a rua alonga-se até um moinho acastelado;

Erguendo-se no alto céu por trás dele uma encosta escura

Onde há escombros daneses; e um bosque de avelãs,

Freqüentado no outono pelos apanhadores de nozes,

Floresce verdejante numa concavidade da colina.

 

(pausa – piano solo)

Ali naquela praia há centenas de anos,

Três crianças de três famílias,

 

(partitura)

                                                Annie Lee,

a mais bela garotinha do porto

Phillip Ray, filho único do moleiro,

e Enoch Arden, cujo pai, marinheiro,

o deixou órfão num naufrágio,  brincam

em meio à escória e os gravetos da praia.

 

ENOCH 4 (os três)

(declamação}

Embaixo do rochedo havia uma caverna estreita:

Nela as crianças brincavam de casinha.

Um dia Enoch era o dono, no dia seguinte Philip,

Enquanto Annie era sempre a dona; vez por outra

Enoch tomava posse por uma semana inteira:

“Esta casa é minha e de minha mulherzinha.”

“Minha também”, dizia Philip, em todas essas vezes.

Se acaso brigavam, Enoch mais robusto

É quem vencia; então Philip, com seus olhos azuis,

Afogado no impotente enfurecer das lágrimas,

Gritava: “ Eu te odeio, Enoch”.

 

 (partitura)

                                    Annie então

chorava por faltar-lhe companhia,

que não fossem brigar por sua causa

pois seria a mulher de todos dois.            

 

(piano solo)

(declamação)

Mas quando se esvaiu a rósea aurora da infância,

E o novo ardor do ascendente sol da vida foi

(partitura)

 

por ambos sentido, ambos se apaixonaram

pela moça. 

 

(declamação)

Enoch declarou-lhe amor,

Enquanto Philip amava em silêncio; mas a moça

Parecia gostar mais de Philip que dele;

No entanto amava Enoch, embora o não soubesse,

E se lhe perguntassem negaria. Enoch firmou

Consigo mesmo um propósito de vida

Que era o de poupar o quanto que pudesse

Para comprar seu barco, e construir um lar

Para Annie; e de tal forma prosperou que enfim,

Nenhum mais feliz nem audaz pescador,

Mais cauteloso no perigo, mourejou

Pelas longas léguas daquela costa vergastada

Do que Enoch.

E quando completou seus vinte-e-um janeiros

Comprou seu próprio barco, e construiu um lar

Para Annie, simples como um ninho, a meio da subida

Da estreita ruela que galgava em direção do moinho.

 

(entra piano – quatro compassos)

(partitura)             

Então, na tarde de um dourado outono,

festejando o feriado, os jovens foram

com sacas, cestas, grandes e pequenas,

colher as avelãs. Phillip ficou

(para cuidar do pai que estava doente)

uma hora para trás; subindo a encosta,

lá onde o íngreme bosque começava

a afundar na planura, viu os dois,

 

Annie e Enoch, sentados de mãos dadas,

os grandes olhos dela e a face dele

ardendo com a sagrada e quieta flama,

que brilha num altar. Philip olhou,

e nos olhos e faces leu seu fim;

e quando as faces se encontraram, e ai!

deitaram juntas, qual ferida fera

ele embrenhou no coração do bosque;

e, enquanto os outros davam-se aos folguedos,

teve sua hora amarga; ergueu-se e foi,

levando infinda angústia no seu peito.

 

(declamação)

Então enfim se casaram, felizes os sinos tangeram

E felizes os anos passaram, sete anos bem felizes,

Sete felizes anos de saúde e de abastança,

De sentimento mútuo e de labor honrado,

Com filhos; primeiro uma menina. E despertou-se nele,

Com o primeiro gemido do primeiro filho, o nobre anseio

De guardar até a mínima parcela de seus ganhos

Para dar à criança uma formação mais adequada

Do que a sua, ou a dela; desejo renovado

Quando dois anos depois um menino chegou,

O ídolo rosado das solidões da esposa,

Quando Enoch navegava em mares tormentosos

Ou quando retornava para terra.

 

 Então algo mudou, como as coisas humanas todas mudam.

Dez milhas ao norte daquele estreito porto

Abriu-se um novo ancoradouro; a ele às vezes

Enoch costumava ir por mar ou pela terra;

E uma vez, lá estando, ao escalar um mastro

Na enseada, por desgraça despencou por terra;

Tinha partido um membro quando o levantaram;

E enquanto esteve um tempo a recompor-se, a esposa

Lhe deu um outro filho, que nasceu doente:

Outra mão teve que ampará-lo em seu ofício

Para ganhar o pão, o dela e das crianças; e sobre ele,

Embora homem de fé, temente a Deus,

Porque se achava inválido, a dúvida tombou.

Parecia-lhe,  num pesadelo de alta noite,

Ver os filhos caminhando doravante

Para uma vida miserável, de penúria,

Com a mãe, a quem amava, a mendigar: então rezou

“Que se salvem, não importa o que me ocorra”.

E enquanto assim rezava, o capitão do barco

Em que Enoch serviu, conhecendo-lhe o infortúnio,

Veio, pois sabia que homem era e o seu valor,

Dizer-lhe que aprestava um navio para a China,

E que ainda não tinha imediato. Quem sabe ele viria?

Muitas semanas ainda faltavam para o embarque,

Para fazerem vela. Enoch aceitaria?

E Enoch sem titubear aquiesceu,

Jubiloso por ver sua prece atendida. 

 

Agora então a sombra do infortúnio já não parecia

Mais grave do que quando uma pequena nuvem

Se interfere no glorioso caminhar do Sol,

E se torna uma ilha no mar largo: contudo a esposa…

Se ele zarpar…as crianças… que fazer?

Então Enoch quedou-se longamente a ponderar seus planos;

Vender o barco… mas, se o amava tanto!…

Quantos mares bravios enfrentou em seu bojo!

Conhecia-o bem, como um cavaleiro conhece seu cavalo…

Mas devia vendê-lo… e com o dinheiro da venda

Comprar comida e roupa … mandar Annie vender de tudo

Quanto os marinheiros e as esposas lhes quisessem comprar…

Poderia assim manter a casa em sua ausência.

 

Dessa forma Enoch no coração dispôs de tudo:

Mas voltando a casa foi encontrar Annie pálida,

Ninando o filho doente, seu último rebento.

De um salto o recebeu com um grito de alegria

E depôs o frágil infante nos seus braços;

Enoch tomou-o, apalpou-lhe os pobres membros,

Aquilatou-lhe o peso e o tratou paternalmente,

Mas não teve coragem de revelar seus propósitos

A Annie, senão pela manhã, quando lhe disse.

 

Pela primeira vez desde que o anel de ouro de Enoch

Cingiu-lhe o dedo, Annie contrariou sua vontade:

Não com uma oposição alvoroçada,

Mas com reiteradas súplicas, muita lágrima,

Muitos beijos amargos dia e noite renovados

(Certo que alguma desgraça adviria disso)

Implorou-lhe, suplicante, caso se preocupasse

Com ela ou com seus filhos, que não fosse.

Ele sem se preocupar consigo mas com ela,

Ela e os filhinhos, deixou-a ali rogando em vão;

E contristado levou a cabo a decisão.

 DESPEDIDA 11

 

Enoch enfrentou a manhã da despedida

Com bravura e brio. Todos os temores de sua Annie,

Exceto a sua própria Annie, eram sorrisos para ele.

Contudo Enoch como homem bom temente a Deus

Se prosternou, e naquele mistério

Em que o Deus-no-homem é o mesmo que o homem-em-Deus,

Rogou por uma graça para a mulher e os filhos,

Acontecesse o que lhe acontecesse; então falou: “Annie, esta viagem pela graça de Deus

Há-de nos trazer bonança para todos.

Vamos Annie, vamos, anima-te com a partida.”

                                   Mas quando dirigiu

A corrente de sua fala para coisas mais sérias

À maneira dos marinheiros rudemente sermonando

Sobre a providência divina e a fé em Deus, ela ouviu,

Ouviu e não ouviu; como a jovem da aldeia,

Que depõe o cântaro sob o jorro da fonte

Sonhando com aquele que o enchia por ela,

Ouve e não ouve, e o deixa derramar.

 

Com pouco ela falou:

 

(partitura)

                                   “Ó Enoch, és sensato,

mas sinto que, apesar da sensatez,

a tua face nunca mais verei.”

 

(declamação)

“Pois bem”, disse-lhe Enoch, “verei a tua.

Annie, o navio em que velejo há-de passar aqui

(disse-lhe o dia); arranja uma luneta,       

foca na minha face que eu rirei de teus temores.”

 

Mas chegado o último dos últimos momentos:

“Annie, querida, anima-te, fica conformada,

Cuida das crianças, e até a minha volta,

Mantém tudo em boa ordem, pois eu tenho que ir.

E não temas por mim, ou se temeres

Confia a Deus os teus cuidados; é a âncora segura.

Não está Ele além nas mais longínquas

Partes da manhã? se eu fugir para elas

Eu O estarei deixando? o mar é d’Ele, 

É d’Ele. Foi Ele quem o fez.”

 Enoch ergueu-se,

Lançou os fortes braços em redor da esmorecida esposa,

E beijou as espantadas criancinhas;

Mas quanto ao terceiro, o doentinho, que dormia

Depois de uma noite de febril vigília,

Quando Annie ia acordá-lo, Enoch disse

“Não o levantes, deixa-o dormir; como esse pobre

Iria depois lembrar-se disto?” e no berço beijou-o.

Mas Annie cortou da testa da criança

Um pequenino cacho, e deu-lhe: que ele guardaria

Por todo o seu futuro, mas que agora na pressa

Botou na trouxa, acenou-lhes com a mão e foi-se embora.

(PIANO SOLO)

(partitura)

ENOCH luneta

No dia mencionado por Enoch

arranjou a luneta mas em vão

talvez por não sabê-la manejar,

talvez seu olho úmido, a mão trêmula,

mas não o viu, e enquanto ele acenava

no deque, o barco… o momento passou.

 

O último topo da distante vela

sumiu-se ao longe, e ela chorou por ele.

 

(declamação)

Após um longo espaço — embora ela estivesse atenta —

Como o pássaro cativo que escapa de repente.

A alminha do inocente adejou para o além.

(PIANO SOLO)

Na mesma semana em que Annie o enterrara,

O nobre coração de Philip, que ansiava pela paz da moça

(Desde a partida de Enoch que nunca mais a vira),

Reprovou-o por estar tanto tempo afastado.

“É verdade”, disse Philip, “devo agora visitá-la,

Talvez lhe dê algum conforto”; e assim foi,

Chegou defronte à solitária casa,

Duas vezes bateu, e, como não abrissem,

Entrou; mas Annie, ainda imersa em seu pesar,

Mal refeita do enterro do menino,

Não se dispunha olhar nenhuma face humana,

Mas voltou contra a parede a sua própria, e soluçou.

Então Philip, ali de pé, começou hesitante:

“ Annie, vim te pedir um favor,

Vim te falar sobre coisas que ele próprio queria,

Ele, Enoch, seu marido;

Eu te suplico pelo amor que tu dedicas

A ele e a seus filhos, que não me digas não…

Pois, se aceitares, quando Enoch regressar

Aí então pode pagar-me… se aceitares, Annie,

Pois sou rico e vivo na prosperidade.

Então deixa-me pôr os meninos na escola:

Este é o favor que aqui te vim pedir.”

 

Então Annie, tendo a fronte apoiada na parede,

Respondeu: “Não te posso olhar de frente;

Sinto-me tão tola e tão acabrunhada.

Quando entraste minha dor me acabrunhava 

Agora foi que tua bondade que me acabrunhou.

Mas Enoch está vivo; sinto isto dentro de mim:

Ele irá pagar-te: dinheiro sempre se pode pagar,

Mas não uma bondade como a tua”.

 

                              E Philip perguntou:

“Então, vais me deixar que o faça?”

 

Philip pôs as crianças na escola,

Comprou os livros, e, em todos os sentidos,

Agiu como quem cumpre o seu dever consigo mesmo,

Fazendo-o pelos outros.

Correndo vinham desde longe pela rua

Para alegres responder à sua alegre saudação;

Eram os senhores de sua casa e do moinho;

Atormentavam-lhe o paciente ouvido com suas queixas

Ou alegrias, agarravam-se a ele, com ele brincavam

E o chamavam Pai Philip. Philip ganhava à proporção

Que Enoch perdia; pois Enoch lhes parecia agora

Distante e incerto como uma visão ou um sonho,

Vago como um vulto visto ao despertar do dia

No mais remoto fim da última avenida,

Indo para não se sabe onde.

 

(partitura)

                                               Então dez anos

se passaram desde que deixou Enoch

o lar e o chão natal, sem dar notícias.

(piano solo)

 

(declamação)

Aconteceu um dia que as crianças desejaram

Ir com as outras colher as avelãs do bosque;

Annie iria com elas; então foram pedir

Ao pai Philip (como o chamavam) que também viesse.

Foram achá-lo, qual abelha-operária no pólen de uma flor,

No moinho, coberto de farinha; e ali ao lhe pedirem

“Pai Philip, venha conosco” ele negou;

Mas quando as crianças insistiram para que viesse,

Ele sorriu e aquiesceu bem rápido ao pedido:

Pois Annie não virá também? — e lá se foram.

 

 

Mas a meio escalar da íngreme colina,

Logo ali onde a orla do bosque começava

A pender para o côncavo, Annie sentiu as forças

Lhe falharem; ofegante pediu: “Queria descansar”.

 

Mas Philip sentando-se a seu lado esqueceu

Sua presença e se lembrou daquela hora amarga

Que um dia passou naquele bosque, um animal ferido

Rastejando nas sombras. Por fim falou,

Erguendo o nobre cenho: “Olha só, Annie,

Como estão alegres as crianças no bosque.

Exausta, Annie?”

 

(partitura)

Ela nada falou.

“Exausta?”

 

mas o rosto caíra-lhe

nas mãos.

(piano solo)

 

(declamação)

Então Philip aproximando-se um pouco mais lhe disse:

“ Annie, tenho algo que guardo na cabeça

E há tanto tempo que trago isso na mente,

Que embora não saiba como começou

Sei que por fim vai acabar agora. Ó Annie,

Está além da esperança, acima de qualquer possibilidade

Que esse alguém que a deixou nesses dez longos anos

Ainda esteja vivo; pois então… deixa-me falar…

Sofro por ver-te tão pobre a precisar de ajuda;

Não posso ajudar-te da maneira que eu queria

A menos que… dizem que as mulheres são argutas…

Talvez já saibas o que eu queria que soubesses…

Quero casar contigo.

 

Então Annie falou, ternamente respondendo:

“Tens sido como um anjo bom de Deus em nossa casa,

Deus te abençoe por isso, que Deus te recompense,

Philip, com alguém que seja mais alegre do que eu.

Podemos viver duas vezes? poderás ser amado

Como Enoch o foi? O que me estás pedindo?”

“Ficarei contente”, respondeu, “em ser amado

Um pouco depois dele.” “Ó”, exclamou ela

Assustada como estava, “caro Philip, espera um pouco.

Se Enoch voltar… mas ele não vai voltar…

Porém espera um ano, um ano passa rápido:

Sem dúvida estarei mais segura em um ano.

Ó espera um pouco”. Philip disse tristemente:

“Annie, já que esperei a minha vida inteira

Posso esperar mais um pouco.” “Não”, exclamou,

“Eu me comprometo, te dou minha palavra… em um ano.

Não podes esperar teu momento como esperei o meu?”

E Philip respondeu: “ Vou esperar um ano.”

 

ENOCH Phillip

E como se fosse num momento,

Aquele outono noutro outono outra vez reluziu,

E lá estava ele de novo à sua frente,

Cobrando-lhe a promessa. “Já tem um ano?”, ela indaga.

“Acho que sim! As amêndoas de novo estão maduras.

Vem aqui para ver”. Mas ela o descartou:

Tinha tanto que fazer… Tal mudança…Um mês

Lhe desse mais um mês… sabia que fizera uma promessa…

Mais um mês… só um. Então Philip com os olhos cheios

Daquele anseio de uma vida inteira, e com a voz

Tremendo um pouco como a mão de um bêbedo,

“O tempo que quiseres, Annie, o tempo que quiseres”.

 

A essa altura, as manhosas intrigas do porto,

Inconformadas com a prudência obstrutiva,

Começaram a irromper qual se tivessem fundamento.

Alguns achavam que Philip se aproveitava dela;

Outros, que ela resistia para melhor atraí-lo;

Outros zombavam de Annie e  Philip igualmente,

Que eram gente simplória que não sabe o que faz;

E um, que reunia em si todas as maldosas cismas

Como ovos de serpente no ninho, escarnecendo

Via em cada um deles o pior. Seu próprio filho

Em silêncio ficava, deixando transparecer às vezes;

Mas a filha cada vez mais insistia com ela 

Para que se casasse com aquele a quem todos queriam

Salvando assim a casa da pobreza extrema.

A rosada face de Philip, agora contraída, se tornava

Preocupada e pálida; e tudo isto sobre Annie recaía

Como censura aguda.

 

Por fim, numa noite aconteceu

Que Annie, sem conseguir dormir, rogava veemente

Por um sinal de Enoch: “ Será que ele morreu?”

Então rodeada pelo cego paredão da noite

Não suportou o expectante terror do coração,

Saltou da cama, correu para acender um lume

E desesperada agarrou a santa Bíblia,

Abrindo-a de par em par em busca de um sinal.

De repente botou o dedo sobre um texto 

“Sob a palmeira”. Isto nada lhe dizia;

Não fazia sentido: fechou o livro e foi dormir.

 

(partitura)

Mas ei-lo,  ali sentado numa encosta

sob a palmeira tendo ao alto o sol:

“Lá se foi”, pensa, “está feliz e canta

hosana nas alturas; além brilha

o Sol da Retidão, e são as palmas

que os eleitos espalham proclamando

“Hosana nas alturas!” Ela acorda

e resoluta o chama e diz-lhe abrupta: “Não há razão para não nos casarmos”.

“Pois pelo amor de Deus,” diz ele, “e de ambos,

Se nos vamos casar que seja agora.”

(PIANO SOLO)

E se casaram, repicaram sinos,

alegres sinos quando se casaram.

Mas nunca o coração bateu-lhe alegre:

Um passo a perseguia no caminho,

mas de onde vinha? uma voz no ouvido,

mas a de quem? não ficava sozinha

em casa nem queria andar sozinha.

O que a afligia, pois, se quando entrava

sua mão hesitante na tramela

temia abrir?

                         Philip julgou saber:

são dúvidas comuns ao seu estado,

espera um filho; e ao lhe nascer o filho,

foi como se ela própria renovasse,

novo instinto de mãe pulsou-lhe o peito.

Philip tornou-se tudo para ela

E o instinto misterioso se esvaiu.

(PIANO SOLO – FIM DA 1ª PARTE)

A SEGUNDA PARTE SERÁ APRESENTADA

NA PRÓXIMA SEMANA. NÃO PERCAM.

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tabuada (1)menino burro

Sempre fui péssimo aluno de matemática. Na escola pública, embatucava na tabuada de sete e até hoje fico meio em dúvida nas multiplicações desse número. Nos concursos que fiz em busca de emprego ou profissão sempre tirava boa nota em português e me afundava nos cálculos. A palavra Álgebra, com sua origem árabe, tinha para mim conotações de alfanje, deserto, simum, camelos e miragens, e a busca de uma incógnita me parecia peripécia das Mil e Uma Noites. A invenção da máquina calculadora foi como uma vingança, uma alforria, uma desforra da minha incapacidade aritmética. Fiquei livre da tabuada, nunca mais fiz cálculos mentais, contando nos dedos.

Mas houve um momento em que abençoei a ciência dos números. Foi quando, ainda muito moço, descobri o livro O Homem que Calculava, de Malba Tahan.

O homem que calculva 3

O autor do livro (com este pseudônimo) encontra em suas andanças pelo Oriente um peregrino parado à beira de uma estrada. Ao cumprimentá-lo, conforme as regras de cortesia daqueles povos, ouve o desconhecido pronunciar um número fabuloso: “Dois milhões, trezentos e vinte um mil, oitocentos e sessenta e seis”. Sua curiosidade é satisfeita quando o desconhecido informa chamar-se Beremís Samir e estar acostumado, desde a infância, a calcular visualmente, digamos, um bando de pássaros ou o número de ramos de uma árvore. Admirado de tais habilidades, o viajante decide arranjar um posto de trabalho adequado para o calculista na grande cidade para onde vai. E o solícito Malba Tahan o transporta para Bagdá na garupa de seu próprio camelo, já que o andarilho não tinha montaria.

O HOMEM q calculava 4

Eis que a meio caminho encontram três irmãos em acirrada disputa. O pai lhes deixara 35 camelos para serem por eles divididos nas seguintes proporções: o filho mais velho devia receber a metade (ou seja 35/2), o irmão do meio a terça parte (isto é 35/3) e o caçula a nona parte (35/9). A divisão era impossível, pois daria 17 camelos e meio (17,5) para o primeiro, 11 camelos e 66 décimos para o segundo e 3 camelos e 88 décimos de camelo para o terceiro. Nenhuma outra divisão satisfazia o desejo dos jovens pois sempre estava em desacordo com o estabelecido pelo pai. É aí que entra a mágica do Homem que Calculava: Beremis pede ao seu protetor o camelo emprestado, assegurando-lhe que sabe o que está fazendo. Em seguida agrega esse camelo aos 35 outros da herança e diz ao mais velho: “Devias receber a metade de 35, isto é, 17 e meio. Agora receberás a metade de 36, e portanto, 18. Nada tens a reclamar, pois é claro que saíste lucrando com a divisão, que além disso atende perfeitamente os desígnios de seu pai. Tu, irmão do meio, devias receber um terço de 35, isto é, 11 e pouco. Vais receber um terço de 36, ou seja, 12. Não podes protestar pois também sais com visível lucro da transação. E por fim, ó caçula, segundo a vontade de teu pai devias receber uma nona parte de 35, isto é, 3 e tanto. Vais receber uma nona parte de 36, ou seja, 4. O teu lucro foi igualmente notável. Só tens a agradecer-me pelo resultado”.

 camelos

ANTES                                                                               DEPOIS

35/2 = 17,5                                                                         36/2 = 18

35/3 = 11,6                                                                          36/3 = 12

35/9 = 3,8                                                                            36/9 = 4

                               36-34=2 (camelos restantes)

Nota-se que, tendo feito a divisão segundo a vontade do falecido pai dos jovens, Beremis os beneficiou com partes supletivas a fim de conseguir um número inteiro. Dos 36 iniciais, acabou distribuindo 34 camelos (18+12+4) e sobraram dois (36-34), um dos quais foi devolvido ao seu protetor por ser o animal em que tinham viajando, cabendo-lhe (como recompensa) o camelo que restou. E o calculista termina dizendo: “Poderás agora, meu amigo, continuar a viagem no teu camelo manso e seguro! Tenho já um outro, especialmente para mim!”

Malbaimages

Malba Tahan foi o pseudônimo escolhido pelo matemático e professor brasileiro Júlio César de Mello e Souza (1895-1974) para divulgar de maneira divertida e curiosa alguns famosos problemas de matemática. Em suas aulas na Escola Normal conseguia cativar os alunos ensinando as intrincadas fórmulas matemáticas e algébricas mediante jogos e passatempos capazes de tornar atraentes as arestas difíceis daquelas matérias. Escreveu mais de 100 obras sobre lendas árabes ou maneiras de descomplicar a matemática, entre elas “Amor de beduíno” e “O homem que calculava” , livro este que recomendo a todos os que amam as ciências numéricas e principalmente àqueles que, como eu, tinham verdadeira ojeriza por cálculos matemáticos, teoremas e equações.

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vampiro 001vampiro 003

RETRATO DE UM VAMPIRO

Em 2010, o editor paulista Bruno Berlendis convidou-me a participar como tradutor de uma antologia que estava organizando e que iria chamar-se CANINOS – ANTOLOGIA DO VAMPIRO LITERÁRIO. Como o tema Vampiro estava ficando cada vez mais popular, graças à serie cinematográfica Crepúsculo, Bruno queria enfatizar que essa figura literária já era cultuada bem antes da publicação do romance Drácula, do irlandês Bram Stoker em 1897. e recolheu textos selecionados de grandes escritores e poetas internacionais.  Esses trechos foram transladados por alguns dos mais conceituados tradutores brasileiros, e tive a alegria de estar entre eles. Coube-me trechos de um livro de Prosper Mérimée intitulado A Guzla [um instrumento musical popular,  espécie de rabeca dos Bálcãs]. O curioso é que o livro, datado de 1827, já encerra uma espécie de mistificação. Mérimée anuncia-o como sendo uma tradução de baladas e poemas folclóricos da Ilíria [região ao norte do mar Adriático, grosso modo a antiga Iugoslávia e atuais Eslovênia, Croácia, Bósnia, Sérvia e Montenegro]. A contrafação visava a atrair o interesse crescente dos leitores da época pelos povos e culturas “exóticas”. Antes, ele já havia publicado, em 1825, outra obra apócrifica, que fora recebida com grande sucesso. Mas dessa vez, um leitor atento como Goethe não se deixou enganar e logo reconheceu um autor francês por trás das aludidas traduções do ilírico. Seja como for, a linguagem empregada e o ambiente surreal concorreram para fazer do livro um fetiche para os leitores do gênero. Dos trechos de Mérimée por nós traduzidos, selecionamos este que poderia intitular-se Retrato de um Vampiro.

vampiro morto

                                   O vampiro

1.

Nos alagadiços do Stavilla, junto a uma fonte, está um cadáver deitado de costas. É o maldito veneziano que enganou Maria, o mesmo que incendiou nossas casas. Uma bala atravessou-lhe a garganta, um iatagã (1) foi cravado em seu coração; mas, mesmo após os três dias em que ele jaz sobre a terra, o sangue ainda lhe escorre vermelho e quente.

 2.

Seus olhos azuis estão baços, mas olham para o céu: maldito daquele que passar perto do cadáver! Quem poderia evitar o fascínio do seu olhar. Cresceu-lhe a barba, as unhas aumentaram; os corvos se afastam dele com temor, ao passo que se aferram aos bravos heiduques (2) que juncam a terra a seu redor.

3.

A boca está sangrando e sorri como a de um homem adormecido e atormentado por um amor hediondo. Aproxima-te, Maria, vem contemplar aquele por quem traíste a família e a pátria! Ousa beijar esses lábios pálidos e sangrentos que sabiam mentir tão bem. Vivo, causou muitas lágrimas; morto, provocará ainda mais.

Este fragmento de balada só tem valor por sua bela descrição de um vampiro. Parece reportar-se a alguma guerrilha dos heiduques contra os podestades (3) venezianos [N.A.]
(1) Tipo de punhal recurvo usado nos Bálcãs e no Oriente Médio [N.T]
(2) Heiduques: inicialmente, certos povos dos Bálcãs e adjacências; depois, mais especificamente, membros de milícias que combatiam os turcos [N.T.] (3)Podestade: Na Idade Média, funcionário encarregado da polícia em certas cidades da Itália. [N.T.]

P.S. Se você for um desses leitores que não se satisfazem com as fantasias coloridas dos Crepúsculos hollywoodianos e quer saber algo de substancial sobre o tema do Vampiro na literatura – então não deixe de ler este livro!!!

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PÃO NOSSO

Amanhã nosso pão terá pedra — e o comeremos.

Ao parti-lo, amanhã, nosso pão será de pedra

e o comeremos.

Ao se partir em dois, o pão que a nossa fome espera,

será pedra,

e o comeremos.

 

Pois aceitar é o que estamos

fazendo neste dia, pois aceitar

é o que viemos fazendo nos dias

que antecederam mais um, que é este dia;

pois aceitar é o que vamos fazendo sem sentir

como quem come a pedra em vez do pão

pensando o pão.

 

Partindo-o, partiremos um seixo apenas,

um seixo, afinal, que em vez de atirá-lo

— comeremos.

 

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