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Archive for fevereiro \21\-03:00 2016

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DESPOJAMENTO

Eliminei o excesso de paisagem

simplifiquei toda a decoração

retirei quadros flores ornamentos

apaguei velas copos guardanapos

e a música

Bani a inutilidade do discurso

Na mesa de madeira

nua

apenas dois pratos brancos

sem talheres

O banquete será tua presença

***

 

Este poema foi originalmente publicado no “Ilustríssima”, do Estado de S. Paulo em 2012 com uma ilustração (no alto, acima) de JÁRED DOMÍCIO, que, traçando somente os pés da mesa e as bordas dos dois pratos, soube captar todo o espírito do poema.

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   Quando em 1982, o lexicógrafo José Augusto Fernandes lançou o seu “Dicionário de Rimas da Língua Portuguesa”, o poeta Carlos Drummond de Andrade saudou a obra como sendo “a salvação da lavoura poética”. A expressão “salvação da lavoura” era largamente conhecida do público rural, principalmente dos mineiros, por ter sido veiculada durante uma campanha que visava à extinção da formiga saúva,  uma praga então comum no interior.. Havia até a frase: “Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”, atribuída ora a Saint Hilaire, ora a Monteiro Lobato. E para combater a praga, logo apareceu um formicida oportunista que se anunciava como “a salvação da lavoura”. O termo passou logo a compreender qualquer panaceia, qualquer dispositivo ou estratagema que resolvesse dificuldades, efeito milagroso capaz de reverter situações penosas. De fato, o dicionário de rimas de José Augusto Fernandes veio a facilitar sobremodo, aos nossos vates e menestréis, essa busca, às vezes    laboriosa, e o poeta-mineiro Carlos Drummond, que não precisava de modo algum de tal dicionário, fez muito bem em divulgar a obra valendo-se da expressão interiorana.

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   Talvez pudéssemos plagiá-lo dizendo que o “VocabuLando”, de Isa Mara Lando é o livro a que deveríamos chamar de “a salvação da lavoura tradutória”. Diferentemente de outros vocabulários da língua inglesa, em que o consulente encontra apenas o significado imediato da palavra procurada, este aqui é feito para “quebrar os galhos” da tradução inglesa, dada a sua riqueza de sinônimos e a exemplificação da pertinência de cada um deles conforme o sentido da frase. O profissional que se dedica a esse muito elogiado, mas pouco rentável ofício de viajar de uma língua para outra, vai encontrar aqui, de fato, a “salvação” de seus problemas, pois a autora não apenas dá o significado ou significados da palavra, mas alerta para erros comuns de vocabulário, identificando os chamados ”falsos amigos”, além de corrigir velhos hábitos, alguns já enraizados na prática tradutória. Para tanto, a autora não se poupa de dizer um sonoro NÃO aos tradutores. Vejamos alguns exemplos:

EVENTUALLY, adv. Eventually NÃO  é “eventualmente” (OCCASIONALLY): He got very sick and eventually died = Ficou muito doente e por fim morreu,acabou morrendo. (NÃO “eventualmente     

PEOPLE s. Note o plural peoples no sentido de “povos”, NÃO “pessoas”.

ENHANCE v. Qual a diferença entre enhance e improve? Improve denota melhorar algo insatisfatório, ao passo que enhance significa aperfeiçoar, refinar algo que já é bom.

UNDERMINE v. Undermine conota 1) atacar os alicerces ou 2) sabotar, especialmente o poder, a autoridade ou as chances de sucesso de alguém.

AGAIN adv. Usar “voltar”: He never saw her again = Não voltou mais a vê-la ou usar o prefixo “re”: Let’ s start again = Vamos recomeçar

   Durante mais de trinta anos, a autora Isa Mara Lando vem coletando material para este livro com base nas mais de 100 traduções feitas por ela de livros de vário teor literário e das aulas de tradução que tem administrado. Ela passou por todos os percalços por que passam os tradutores de inglês, as dúvidas de como traduzir este ou aquele verbo alterado pela preposição, a frase que não fazia sentido porque certa palavra não correspondia à sua tradução imediata e era preciso encontrar a equivalência adequada, etc. Pacientemente foi anotando ao longo do tempo as armadilhas que surgiram no seu caminho e o modo de evitá-las, o uso arraigado de determinadas traduções que na verdade não correspondiam ao sentido do original e, principalmente, a adequação da linguagem traduzida em relação ao nível cultural ou social de seu elocutor (ex. uma simples palavra como shit pode ter vários equivalentes em português dependendo “daquele” que a pronuncia). Quem saiu ganhando foram os tradutores que agora podem dispor facilmente de sua experiência. Livro que em inglês se chamaria “compagnion” (companheiro, guia, guru) e que nós, sem-cerimoniosamente, chamamos de “quebra-galho”.

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No dia 3 de janeiro de 1973, quando o táxi chegou à porta do Hotel Tivoli, em Lisboa, saltei ansioso do carro para ajudar minha mulher a descer. E, antes de entrarmos no hotel, puxei-a para mim num abraço e lhe disse eufórico: Conseguimos, Silvia! Estamos de volta! O milagre aconteceu.

Essa volta era de fato milagrosa. Nos anos 1968 a 1970 tínhamos vivido na Holanda, na capital Haia, onde exerci as funções de adido comercial junto à Embaixada do Brasil. Oportunidade de ampliarmos nossa visão de mundo, nossos conhecimentos artísticos principalmente quanto à música e as artes plásticas. A temporada foi tão marcante em nossas vidas que, mal regressamos ao Brasil, já alimentávamos o desejo de viver outra experiência no Exterior. Durante dois anos, de volta ao Banco do Brasil e trabalhando na Cacex, inscrevi-me em todas as bolsas de estudo que surgiam por lá, principalmente as do IRI (Istituto per la Riconstruzione Industriale), que propiciava a permanência do bolsista, por até seis meses na Itália, para o estudo de técnicas de promoção comercial. Certa vez, com vários colegas se candidatando, achei que a minha chance havia chegado, pois o IRI exigia sólidos conhecimentos da língua italiana, o que não era evidentemente o caso dos demais participantes. Para minha surpresa, o escolhido foi um colega que, dotado de qualidades profissionais, não tinha o menor conhecimento da língua. Fui então ao consulado para retirar meus papéis de inscrição e vi que eles permaneciam na mesma gaveta e na mesma posição em que foram deixados naquela época. Ao ficar ciente de que a escolha se dera exclusivamente por indicação da Gerência da Carteira, concluí que eu não tinha nem teria a menor chance. A volta não seria por aí…

Então deu-se o milagre. Vejo um dia, no Jornal do Brasil, que a firma Seleções do Reader’ s Digest estava procurando um candidato para exercer as funções de diretor da revista em Portugal, onde era então editada. Alain de Lyrot, um dos principais executivos da firma em Pleasantville, viajaria ao Brasil logo depois do Natal para entrevistar os candidatos e escolher o editor. Corri a fazer minha inscrição e soube que já havia vários “candidatos de peso”.

Em casa, meu tom não era muito animador: um desses candidatos tinha vínculos familiares com a cúpula do poder; outro era conceituado artista plástico que dirigia então uma revista de arte e, um terceiro, velho jornalista conhecido por suas demissões de todos os jornais em que atuou. Sem quaisquer apoios, somente um milagre poderia nos ajudar…

Depois de uma semana, ou mais, de silêncio, comunicaram-me por fim que o senhor de Lyrot me receberia para um almoço no Hotel Ouro Verde, em Copacabana. Mr. de Lyrot provinha de família nobre francesa (soube depois que era conde), usava anel blasonado e era apreciador da boa mesa e dos bons vinhos. O Ouro Verde, famoso por ser um dos melhores representantes da gastronomia carioca de então, fora escolhido pessoalmente por ele para se hospedar durante sua curta permanência no Rio. Eu intuí que o almoço tinha não só a finalidade de entrevistar um candidato quanto às suas habilitações profissionais, mas igualmente a de avaliar seu desempenho social. De Lyrot fora informado de minha atividade de tradutor e jornalista free-lancer, mas  desconhecia minha atuação no setor de enciclopédias, ficando bem impressionado quando lhe falei a respeito e de minha anterior experiência fora do Brasil. O almoço foi rápido mas não corrido, e nos despedimos após o café com sua advertência de que estava entrevistando várias pessoas, sem ter ainda uma escolha definitiva. Novo silêncio seguido de um segundo convite, desta vez para um café, no Ouro Verde. Depois de algumas frases protocolares, de Lyrot me disse que eu era um de seus candidatos, mas que ele teria grande dificuldade de convencer a Sede em Pleasantville de que ele estava contratando um bancário e não um experiente profissional da área. Expliquei-lhe que no Brasil de então, com uma inflação desregrada, praticamente todo mundo tinha um segundo emprego, no meu caso vários, todos eles ligados a livros e editoração, e que meu ideal de emprego único sempre fora o de dirigir uma edição de livro ou de revista. Já prevendo uma pergunta dessa natureza, eu vira no dicionário que o equivalente em inglês do nosso “ter um bico” era o incrível verbo “moonlight”, já que essas atividades suplementares eram em geral exercidas à noite. Mas na hora, parti mesmo para o mais expressivo “sideline job” e detalhei a série de atividades correlatas ao jornalismo que eu exercera ou vinha até então exercendo. Saí de lá meio desesperançado, mas ao mesmo tempo satisfeito em saber que a minha candidatura tinha sido, desta vez, levada em consideração.

O desfecho foi rápido, na véspera de seu regresso a Nova York, o “chief-editor” me disse pelo telefone que a TAP me forneceria duas passagens de primeira classe para Lisboa, e que eu teria de estar lá nos primeiros dias de janeiro – isto a apenas uma semana do final do ano. O milagre havia acontecido.

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Na manhã seguinte, fui à redação da revista que ficava bem próxima do hotel. Fiquei conhecendo o então redator-chefe, Tito Leite, que estava de regresso ao Brasil. Tito, figura simpaticíssima: cordial e tranquilo, era adorado por toda a “equipa” da revista (quatro mulheres e três homens). Disse-me que estava deixando o cargo por várias razões, inclusive pela idade: “Beware the sixties!”, advertiu-me. O Digest nos tratava com tapete vermelho, cartão de crédito, bônus anual enquanto estávamos na ativa, mas nos demitia inexoravelmente ao chegarmos aos sessenta. Evidentemente não era o meu caso, acrescentou, e disse que, na verdade, estava com sérios problemas de saúde: fumante inveterado, não raro durante a conversa tinha assustadores ataques de tosse, mas se recuperava com galhardia e voltava à conversação fluente e colorida. Inteirou-me das funções que eu iria exercer: a leitura dos originais de artigos enviados pela Sede, a seleção do material que comporia o próximo exemplar em língua portuguesa, a elaboração da chamada “table of contents” a ser submetida a Pleastville e a revisão das traduções de artigos feitas no Brasil e em Lisboa.

Uma das tarefas a que logo nos entregamos, juntos, foi a da seleção de “fillers”. Quando os artigos impressos não cobriam toda a página final, o espaço resultante devia ser preenchido por frases filosóficas ou humorísticas adequadas. Esses enchimentos vinham em grandes folhas impressas que líamos, recortávamos e mandávamos traduzir os que achávamos adequados à nossa edição. Da primeira vez em que tomei uma dessas páginas para recortar, dei com o seguinte pensamento que me surpreendeu:

 To most men only the cessation of the miracle would be miraculous, and the perpetual exercise of God’s power seems less wonderful then its withdrawal would be.

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que tentei logo traduzir: Para a maioria dos homens, apenas a cessação do milagre seria milagrosa, e o perpétuo exercício do poder de Deus parece menos maravilhoso de que seria a sua retirada. Uma primeira versão literal que requeria aprimoramento. Mas o que me chamara atenção fora precisamente aquela “permanência do milagre”: eu e minha mulher havíamos vivido num milagre permanente e, de súbito, ei-lo que se interrompe e ficamos mais surpresos com a sua cessação do que com o fato de que vínhamos vivendo permanentemente nele.  Agora, de súbito, o milagre voltara a acontecer, a cadeia se reestabelecera, era preciso louvar “o perpétuo exercício do poder de Deus”.

Henry Wordsworth Longfellow (1807-1882), poeta e pensador norte-americano, autor de uma infinidade de “wittcisms” e de uma epopeia exaltando os primitivos habitantes da América (Song of Hiawatha), foi um dos primeiros tradutores da Divina Comédia  e – sim, senhor! – amigo de D. Pedro II. Pedi ao nosso calígrafo que escrevesse a frase em letra de forma e mandei emoldurar o pergaminho. Esse quadro, nossa perene lembrança do milagre, nos acompanhou durante os mais de 20 anos que vivemos fora do Brasil e ainda hoje está ali, bem visível, no alto de minha estante.

Frase 1

P.S. A história mais detalhada de minha atuação na revista Seleções do Reader’ s Digest pode ser lida aqui na Gaveta nos artigos  Minha carreira jornalística-I (17.09.2010)  e II (18.09.2010).

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