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Archive for the ‘Grandes Traduções’ Category

 

 UM CONTO DE MARK TWAIN 

traduzido por Ivo Barroso

 

Quero dizer uma palavra a respeito de Miguel Ângelo Buonarotti. Sempre tive a maior reverência pelo gênio portentoso desse Artista — um homem que foi grande na poesia, na pintura, na escultura, na arquitetura — enfim, grande em tudo aquilo quanto empreendeu. Mas com isso não quero dizer que esteja disposto a tragar Miguel Ângelo no café da manhã, no almoço, no lanche, no jantar, na ceia e no intervalo das refeições. Gosto de variar, vez por outra. Em Gênova, não há nada que o homem não tenha desenhado; em Milão, ele ou seus discípulos projetaram tudo, até mesmo o Lago de Como; em Pádua, Verona, Veneza e Bolonha, de quem se ouve falar senão de Miguel Ângelo? Em Florença, pintou tudo, desenhou tudo, a bem dizer; e se há coisas ali que ele não tenha feito, há igualmente uma pedra favorita em que o mestre se sentava para admirar essas coisas, e não há dúvida que acabam nos mostrando a dita pedra. Em Pisa esboçou tudo, com exceção da velha torre inclinada, e decerto ter-lhe-iam atribuído a construção da mesma se ela não estivesse tão flagrantemente fora de prumo. Projetou o cais de Livorno e o regulamento da Alfândega de Cività Vecchia.  Mas,  aqui  em  Roma, aqui chega a ser espantoso. O homem construiu a  Igreja  de São Pedro; pintou o retrato do Papa; desenhou o Pantheon, os uniformes da guarda papal, o Tibre, o Vaticano, o Coliseu, o Capitólio, a Rocha Tarpéia, o Palácio Barberini, São João de Latrão, a Campanha, a Via Appia, as Sete Colinas, os Banhos  de Caracala,  o Aqueduto de Cláudio e a Cloaca Máxima — o eterno ranheta ergueu a Cidade Eterna,  e  a  menos  que  todas  as  pessoas e livros estejam faltando com a verdade, pintou também todos os  quadros  que   nela existem!

Numa dessas, Dan falou para o guia:

— Chega, chega, chega! Não precisa dizer mais nada!  Vamos resumir a coisa: diga que o Criador fez a Itália baseado em desenhos de Miguel Ângelo!

Nunca me senti tão fervorosamente agradecido, de ânimo tão apaziguado, tão tranquilo, tão repleto de uma paz abençoada, do que ao saber, outro dia, que Miguel estava morto.

Mas nós nos desforramos desse guia.

Ele nos havia conduzido através de quilômetros e mais quilômetros de quadros e esculturas pelos vastos corredores do Vaticano; e através de quilômetros e mais quilômetros de quadros e esculturas de mais vinte outros palácios de Roma; mostrou-nos a monumental decoração do teto da Capela Sistina; e afrescos em número suficiente para afrescar o próprio céu — a maioria esmagadora dos quais haviam sido pintados por Miguel Ângelo. Foi aí então que adotamos a tática que já havia derrotado um bom número de guias:  a imbecilidade conjugada com perguntas idiotas. O curioso é que eles nunca suspeitam da coisa — não têm a menor ideia do que seja o sarcasmo. O guia nos mostra   uma escultura e diz:

— Státua di brunzo. (Estátua de bronze.)

Olhamos para ela indiferentemente,  e o doutor pergunta:

— Esculpida   por   Miguel Ângelo?

— No.  No si sabe qui fu.

Em seguida, mostrou-nos o Antigo Forum Romano. O doutor pergunta:

— Miguel Ângelo?

O guia arregala os olhos.

— No. Mille anni prima antes de ser nascido.

Depois, um obelisco egípcio. De novo:

— Miguel Ângelo?

— Oh, mamma mia, signoril Questo dois mille anni prima antes de ser nascido.

Às vezes ele fica tão cansado dessa pergunta incessante que tem mesmo receio de nos mostrar seja o que for. O pobre coitado já tentou todos os meios de nos fazer compreender que Miguel Ângelo é o responsável pela criação de apenas uma parte do mundo, mas seja como for ainda não conseguiu nos convencer de todo.  De vez em quando é necessário um pouco de alívio para os olhos e o cérebro extenuados de tanto ver coisas e ouvir informações a respeito, senão há o risco de nos tornarmos autênticos idiotas. Contudo, este guia tem quer continuar sofrendo. Se não gostar da coisa, tanto pior para ele.   Nós estamos gostando muito.

Nesta altura, devo anotar rapidamente umas observações a propósito dessa calamidade necessária que são os guias europeus. Não raras são as pessoas que gostariam de passear sem os guias, mas sabendo que não o podem, gostariam pelo menos de obter deles alguma distração em recompensa pelo desgosto de sua companhia. Conseguimos realizar para nós esse segundo intento, e caso nossa experiência possa ser útil a alguém, convidamo-lo a que a ponha em prática oportunamente.

Os guias sabem a nossa língua de maneira suficiente para complicar todas as coisas, tornando as frases sem pé nem cabeça. Sabem todas as informações de cor — a história de cada estátua, de cada quadro, de cada catedral ou de quaisquer outras maravilhas que nos vão mostrar. Sabem-na e repetem-na à moda do papagaio; se interrompidos ou desviados do assunto, têm que voltar atrás para começar tudo de novo. Durante toda a sua vida, sua função é a de mostrar coisas curiosas aos turistas estrangeiros e ouvir os seus ohs! de arrebatada admiração. É da natureza humana encontrar satisfação no espanto alheio. É o mesmo sentimento que leva as crianças a dizerem coisas “inteligentes”, fazerem outras absurdas e pagarem o seu showzinho quando há vi­ sitas admirando. É o que leva um bisbilhoteiro a sair até embaixo de chuva só pelo prazer de contar meia-dúzia de assustadoras novidades. Pense, agora, na paixão em que esse sentimento se transforma num guia, cujo privilégio consiste em mostrar, diariamente, a estrangeiros, maravilhas que os fazem mergulhar em ver dadeiros êxtases de admiração! Tanto conseguem de seu ofício que já não lhes é mais possível viver numa atmosfera moderada. Depois que descobrimos isso, nunca mais nos deixamos surpreender em êxtases admirativos, nunca nos extasiamos ante coisa alguma, nunca mostramos algo  mais do que uma fisionomia impassível e uma estúpida indiferença frente  à mais sublime das maravilhas que um guia  nos  pudesse  revelar. Tínhamos encontrado o seu ponto fraco. Desde então, passamos a utilizar-nos disso com frequência. Conseguimos fazer com que alguns deles ficassem furiosos, vez por outra, mas nunca perdemos o esplendor de nossa impassividade.

É o doutor quem geralmente faz as perguntas porque consegue manter a fisionomia séria, dando assim como que a impressão de um idiota inspirado e emprestando a seu tom de voz um grau tamanho de imbecilidade que ninguém seria capaz de suplantá-lo. E o faz sem o menor constrangimento.

Os guias de Gênova mostram-se satisfeitíssimos quando conseguem agarrar um turista americano, porque os americanos geralmente se entusiasmam e se entregam facilmente à emoção e ao sentimentalismo diante de qualquer relíquia que haja pertencido a Cristóvão Colombo. Nosso guia de lá estava tão afobado em nos mostrar algumas que parecia haver engolido um colchão de molas. Estava estourando de admiração, de impaciência. Disse-nos:

—  Venham,  signori!  venham  con me! Vou mostrar ai signori una carta escrita por Cristóforo Colombo! Escrita per ele vero! Escrita con la sua própria   mano!   Venham  tutti!

Foi-nos levando pelo palácio municipal adentro. Após várias e comoventes  hesitações quanto  à escolha das chaves e o abrir das fechaduras, o descorado e antigo documento foi exposto à nossa  frente.  Os olhos do guia faiscavam.  Saiu bailando  à nossa volta e tocou  o  pergaminho  com o  dedo:

— Que hai ditto io ai signori, hein? É vero ou non é vero? Olhate! Manoscrito di Cristóforo Colombo feito própria mano sua!

Olhamos impassíveis, indiferentes. O doutor examinou o documento cuidadosamente, por todo um intervalo cruciante. E disse, em seguida, sem a menor  mostra de interesse:

— Como é mesmo, Ferguson, o nome do sujeito que escreveu esses rabiscos?

— Cristóforo Colombo! il grande Cristóforo  Colombo!

Seguiu-se um segundo exame cauteloso.

— Ah! e escreveu de próprio punho ou  como  foi mesmo?

— Da próprio punho! Cristóforo Colombo! Sua própria escritura, dele mesmo con la mano sua!

Aí então o doutor deixou cair o documento e exclamou:

— Grandes coisas!  Estou cansado de ver na América meninos de apenas quatorze anos que escrevem muito melhor do que isso.

—  Ma questo  é il  grande  Cristó . . .

—  Seja lá de quem for, que me importa! Essa é a pior caligrafia que já vi em toda a minha vida.  Não fique aí pensando que pode nos tapear só porque somos estrangeiros. Fique sabendo que não somos idiotas, está ouvindo. Se você tem algumas amostras de trabalhos caligráficos de real merecimento, traga   lá   para   a gente ver; mas se não tem, vá tocando em frente para  não perdermos  tempo.

Tocamos em frente. O guia estava consideravelmente perturbado, mas aventurou-se ainda a uma nova tentativa. Tinha algo que esperava fosse capaz de comover-nos.  Então falou:

— Ah sinhori,  venham  con  me, venham con me! Io  voi mostrae il  manhífico, il esplendoroso busto di Cristóforo Colombo.

O doutor calçou o seu monóculo, feito de encomenda para tais ocasiões:

— Ah, como é mesmo o nome desse cidadão que  você disse?

—  Cristóforo Colombo! il grandíssimo Cristóforo Colombo!

— Uhn! Cristóvão Colombo, o grandíssimo Cristóvão Colombo.   Mas … que foi mesmo que ele fez, hein?

— Ma-mma mi-ai Descoberto !’América!  Il descubrimento  dell’ América!

— Descobriu a América?! Não, não me venha com essa. Nós somos de lá, meu caro, e nunca ouvimos falar a respeito desse indivíduo. Cristóvão Colombo . . . Cristóvão Colombo . . . nome interessante – ele. . . ele . . . já morreu?

— Oh, corpo di Bacchol Trecenti anni  fá,  trecenti anos!

— E de que terá morrido o pobre coitado?

— Io  no so! lo no lo posso   dire!

— Teria sido varíola?

— No sei, signori! Como posso sabere di que  a  morto ele?

—  Quem  sabe  não   foi  de  sarampo ?

—  Po éssere – chi lo sá? Io  é qui no so nulla! Credo que a morto de qual cosa.

— Os pais dele ainda vivem?

—  Im-pos-síbile!

— Uhn ! Mas, por favor diga-nos, qual é o busto e qual o pedestal?

— Santa Maria! questo é il busto, questo is pedestale!

— Ah, muito bem, muito bem -uma combinação felicíssima, não é mesmo? Sim senhor, mas não é realmente um busto muito opulento par a ser o de um homem?

A piada não teve sentido para o cicerone – os guias não conhecem uma língua suficientemente para dominar-lhe as sutilezas.

Mas a coisa ainda foi melhor em relação ao nosso guia romano. Ontem passamos três ou quatro horas de novo no Vaticano, esse portentoso mundo de curiosidades. Chegamos mesmo a demonstrar algum interesse e, às vezes, até um pouco de admiração – já que seria quase impossível contê-la diante de tantas maravilhas. Mas, por fim, conseguimos.  Nunca ninguém o havia conseguido nos museus do Vaticano. O guia estava confuso, perplexo. Quase gastou as pernas à procura de coisas extraordinárias que nos pudessem assombrar, esbanjando conosco toda a sua inventividade, inutilmente: não demonstramos o menor interesse pelo que quer que fosse. Ele, entretanto, estava reservando aquilo que considerava a maior das maravilhas para a cartada final: uma imperial múmia egípcia, a mais bem conservada que havia em todo o mundo, talvez. Levou-nos até lá. Sentia-se tão seguro do sucesso dessa vez que chegou mesmo recobrar um pouco do   antigo entusiasmo:

— Vejam, signoril  Mômia! Mômia!

O monóculo foi assestado calma e deliberadamente como sempre.

— Ah, Ferguson, não ouvi bem o nome desse cavalheiro aí deitado; como foi mesmo que  você disse?

— Nome? Questo no ten nome, signori! Questo  é  mômia!  mômia gíptia!

— Ah, compreendi.  Nasceu aqui na Itália   mesmo, não?

—  Niente desso! mômia egíptia!

—   Ah, agora sim! Francês, suponho?

—  Non. No francese ni romano! Nascido nel Egipto!

— Nascido no Egipto?! Nunca ouvi falar nesse país. Fica longe daqui? Mômia … mômia. . . Que fisionomia calma, que   máscara imperturbável. E… será que ele está morto mesmo?

— Oh, Santo Dio! Está morto a tre mille anni!

O doutor volta-se para ele, abruptamente:

— É nisso que dá a gente contratar cicerones da sua marca! Está pensando que somos otários só porque viemos de outro país com vontade de aprender as coisas? Querendo nos impingir essa carcaça sem valor e de segunda mão! Raios que o partam! Aviso-lhe uma coisa: se por acaso você tem aí um cadaverzinho fresco, pode trazer para mostrar à gente, mas se não, fique sabendo que eu lhe partirei os miolos!

Divertimo-nos à larga com esse guia. Entretanto, ele nos levou à forra, em parte, é certo, e sem sabê-lo. Na manhã seguinte, apareceu no hotel para indagar se já havíamos acordado, e empreendia todos os esforços possíveis no sentido de nos descrever ao gerente para fazê-lo saber de que pessoas se tratavam. Acabou afirmando casualmente que se referia a uns maníacos que   estavam hospedados lá. A observação era tão inocente que chegava a ser até boa demais para ser dita por um guia.

Há ainda uma observação (aliás já mencionada) que não falha nunca para desencorajar os guias. Usamo-la de preferência quando não nos ocorre nada melhor para dizer. Após haverem perdido inteiramente o entusiasmo tentando interessar-nos em alguma estatueta de bronze de épocas remotas ou alguma estátua de mármore fragmentada, nós olhávamos para a peça com um ar estúpido e ficávamos em silêncio por cinco, dez, quinze minutos — tanto quanto pudéssemos mantê-lo, em   verdade — para  em seguida perguntar:

— Está…  está morta?

Isso consegue derrotar o mais imperturbável dos guias. Positivamente, não éramos o que ele estava procurando — principalmente se se trata de um guia novato. O nosso Ferguson, de Roma, era o mais paciente, o mais ingênuo, o mais persistente sujeito que já encontramos até hoje. Apreciamos demais a sua companhia. Resta-nos esperar que ele haja igualmente apreciado a nossa, embora nos sintamos arrasados pelas dúvidas.

                 Publicado originalmente na revista Senhor, nº 4 de junho 1959

 

 

 

 

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Stig Dagerman (1923-1954), um dos mais importantes escritores suecos do após-guerra é praticamente desconhecido no Brasil. Ao que me consta, seu único livro traduzido entre nós, “A ilha dos condenados” (no original: De dömdas ö), foi publicado pela Civilização Brasileira em 1978, nunca reeditado, hoje fora das livrarias e só com alguns exemplares à venda na Estante Virtual. Já os portugueses traduziram seus principais romances: “Vestido Vermelho” (cujo título original Bränt barn significa “a criança queimada”, em que relata a tentação de um jovem pela amante do próprio pai; “A Serpente” (Ormen), uma história antimilitarista tendo o medo como tema principal, simbolizando o fantasma da guerra; “As Sete Pragas do Casamento” (estranho título dado pelos portugueses a Bröllopsbesvär, literalmente “Aflições de um casamento” e que eu traduziria por “Nojo de Núpcias”) e “Outono Alemão” (Tysk Höst), livro em que conta suas impressões da Alemanha pós-guerra, sua preocupação com o destino cultural desse país que foi submetido (e submeteu-se) à loucura nazista. Essa simpatia pelo povo alemão, levou-o a casar-se em 1943 com uma refugiada de guerra, Annemarie Götze, de apenas 18 anos, com quem teve dois filhos. Mais tarde, já famoso como o mais representativo escritor sueco de sua geração, foi atraído pelo cinema e aproximou-se da atriz Anita Björk (estrela do filme “Senhorita Júlia”, baseado na obra de Strindberg e dirigido por Alf Sjöberg), com quem vai viver em 1953. Consta que Anita foi convidada por Hitchcock para fazer um filme em Hollywood, mas lá chegando em companhia de Dagerman e do filho de seu casamento anterior (Jonas Berström), foi impugnada pelo estúdio por não ser legalmente casada com seu acompanhante (Stig). O cinema exerceu grande influência sobre estilo de Dagerman: no conto que apresentamos a seguir, ele trabalha com uma série de cenas esparsas que vão se superpondo, aparentemente sem conexão entre si, para formar no fim uma espécie de painel homogêneo.

Apesar de todo o seu sucesso escandinavo, Dagerman sentia-se deprimido e isolado, acabando por suicidar-se em 1954: trancou-se na garagem, entrou no carro, ligou o motor e deixou-se asfixiar pelo gás carbônico da descarga.

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Att döda ett Barn (Matar uma Criança), o mais célebre dos escritos de Dagerman, foi traduzido para o português por JORGE CARDOSO, autor de “Mal pela Raiz” (2004) e “Um Cavalo no Cemitério de Deus” (2006), dois livros absolutamente alucinatórios. Jorge vive há 16 anos na Suécia, na úmida cidade de Umeå, expatriado por vontade própria, depois de passar por todas as peripécias com que sonharam os jovens aventureiros de sua geração.

 

MATAR UMA CRIANÇA (Att Döda ett Barn)       –           STIG DAGERMAN

É um dia leve e o sol cai a pino sobre a planície. Logo os sinos irão tocar, pois é domingo. Entre campos de centeio, dois jovens encontram um caminho nunca dantes percorrido e contemplam no fundo do vale as vidraças brilhantes de três vilarejos. O homem faz a barba diante do espelho sobre a mesa da cozinha e a mulher cantarola enquanto corta o pão; sentada no chão, a criança tenta abotoar o corpete. É a manhã idílica de um dia nefasto, pois neste mesmo dia uma criança será morta no terceiro vilarejo por um homem feliz. Enquanto isto, a criança sentada no chão ajusta os botões de seu corpete e o homem que se barbeia diz que hoje irão sair e farão um passeio de barco e a mulher cantarolando coloca as frescas fatias de pão num prato azul.

Não há sombras na cozinha, e enquanto isto homem que irá matar a criança está em frente a uma bomba de gasolina vermelha em um posto de abastecimento no primeiro vilarejo. Ainda é um homem feliz que olha o visor da câmera e vê na lente um carrinho azul e ao lado do carro uma garota que sorri. Enquanto a moça sorri e o homem faz a foto belíssima, o atendente do posto fecha a tampa do tanque e lhes deseja bom dia. A garota entra no carro e o homem que irá matar uma criança retira a carteira do bolso e diz que eles irão até o mar e quando lá chegarem vão alugar um bote e remarão para bem longe.

Baixando o vidro da janela do carro, a moça no assento dianteiro escuta o que ele diz, fecha os olhos e ao fechá-los vê o mar e o homem ao seu lado no bote. Ele não é um homem mau, está alegre e satisfeito e, antes de entrar no carro, para um instante diante do radiador cintilante, desfrutando do reflexo, do cheiro de gasolina e das cerejas. Não há nenhuma sombra sobre o carro e o para-choque não está amassado nem manchado de sangue.

Mas, ao mesmo tempo em que o homem naquele primeiro vilarejo, outra vez bate a porta do carro à sua esquerda e dá partida, a mulher na terceira vila abre a porta do armário da cozinha e não encontra nenhum açúcar.  A criança que acabara de abotoar seu corpete e sozinha deu laços nos sapatos está de joelhos no sofá e vê o córrego que serpenteia entre amieiros e um barco velho com os remos jogados sobre a grama. O homem que irá perder sua criança está barbeado e acaba de guardar o espelho. Sobre a mesa os copos de café, pão, creme de leite e algumas moscas. Falta apenas o açúcar e a mãe diz para a criança correr até os Larssons e pedir alguns cubinhos emprestados.  E enquanto a criança abre a porta o homem grita da cozinha que é para ela se apressar, porque o bote está à espera na margem e eles irão remar para bem longe como não haviam remado antes.  E enquanto corre atravessando os quintais a criança pensa o tempo todo no riacho, no bote e nos peixes se batendo e ninguém conta para ela que tem apenas oito minutos de vida e que o bote continuará lá o dia inteiro e por muitos outros dias irá continuar.

Não é tão longe até os Larssons, é só atravessar a rua e enquanto a criança corre para atravessá-la, um pequeno carro azul percorre o outro vilarejo. É uma pequena vila com casinhas vermelhas e pessoas que acabaram de acordar diante da mesa da cozinha segurando copos de café, vendo o carro passar acelerado no outro lado da cerca levantando, enquanto passa, uma imensa nuvem de poeira. Vai muito rápido e o homem que dirige vê as macieiras e os postes com seus cabos telegráficos de relance como se fossem sombras muito escuras. A brisa do verão entra pela janela, eles saem da vila, e estão seguros no meio da estrada e estão sozinhos – ainda. É gostoso este viajar solitário por uma estrada tão ampla e com o campanário ao longe fica ainda mais bonita. O homem é feliz e forte e com o cotovelo direito sente o corpo de sua namorada. Não é um homem mau. Tem apenas pressa para chegar ao mar. Não mataria uma mosca, mas ainda assim irá matar uma criança. Enquanto aceleram de encontro à terceira vila a garota fecha os olhos e brinca que não irá abri-los enquanto não cheguem ao mar e imagina no ritmo do balanço oscilante do carro quão tranquilo o mar vai estar.

E porque a vida é construída sem nenhuma compaixão um minuto antes de um homem feliz matar uma criança ele será ainda feliz e antes de a garota gritar apavorada ela conseguirá fechar os olhos e sonhar com o mar, e o último minuto na vida de uma criança pode ser aquele em que os seus pais sentados na cozinha esperam pelo açúcar e conversam sobre os dentinhos brancos de seus filhos e sobre um passeio de domingo. Esta mesma criança fecha um portão e começa a atravessar a rua segurando na mão direita alguns cubinhos de açúcar enrolados num papel branco e este último minuto nada mais é do que um longo e tranquilo riacho com peixes grandes e um barco com remos silenciosos.

O depois é sempre tarde demais. O depois é um carro azul derrapando pela estrada e uma mulher que aos gritos tira a mão da boca e a mão está sangrando.  Depois um homem que abre a porta do carro tentando ficar de pé embora tendo um abismo de terror dentro de si.  O depois são alguns cubinhos de açúcar esparramados entre o sangue e o cascalho e uma criança deitada imóvel de bruços com o rosto pressionado contra a estrada. Depois aparecem duas pessoas pálidas, que ainda não beberam seu café correndo e passando a cerca e vêem naquela estrada o que nunca irão esquecer. Porque não é verdade que o tempo é o melhor remédio. O tempo não cura a dor de perder um filho e cicatriza muito mal a mesma dor de uma mãe que se esqueceu de comprar açúcar e mandou a criança atravessar a rua para pedir um pouco emprestado. E o tempo também não cura a angústia do homem feliz que a matou.

Porque aquele que matou uma criança não vai até o mar. Aquele que matou uma criança volta em silêncio para casa e ao seu lado uma mulher que não consegue falar e com as mãos enfaixadas. E por todas as vilas que passam eles não conseguem ver uma única pessoa feliz. Todas as sombras são ainda mais escuras e enquanto eles se distanciam o silêncio continua e o homem que matou a criança sabe que este silêncio é o seu inimigo e que ele irá precisar de todos os anos de sua vida para vencê-lo gritando que não foi sua culpa. Mas ele sabe que é uma mentira e que ao invés disso, em cada noite ao se deitar, ele irá desejar apenas um minuto de sua vida de volta para fazer deste único minuto algo diferente.

Mas a vida não tem piedade para aqueles que matam uma criança e, por isso, tudo que vier depois será sempre tarde demais.

***

A tradução deste conto foi publicada no Brasil inicialmente na revista Dicta & Contradicta, de dezembro de 2008, nr.  02, pgs. 149-51, com autorização da Norsteds Agentur, de Estocolmo.

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Este Filho Pródigo já foi citado aqui na Gaveta algumas vezes: as minhas visitas quase diárias à Biblioteca Municipal do Rio de Janeiro, nos anos 50, onde li a obra completa de André Gide numa bela edição suíça, copiando num caderninho esse “tratado” que me empolgou desde a primeira leitura; a determinação de traduzi-lo um dia; a consulta que fiz a Otto Maria Carpeaux sobre o significado de “au coin du tableau”; a laboriosa tradução completa dessa que foi a minha primeira tentativa de encarar um livro inteiro; e finalmente sua edição em volume, 30 anos depois, pela Nova Fronteira, em que se reuniam os cinco tratados originais: O Tratado de Narciso (Teoria do Símbolo), A Tentativa Amorosa ou O Tratado do Vão Desejo, Filoctetes ou O Tratado das Três Morais, Betsabé e, por fim,  A Volta do Filho Pródigo. Pois agora chegou a vez de apresentá-lo na íntegra aos leitores deste blog.

O texto original estava cheio de insinuações e recados: na época em que foi redigido (1907), os amigos católicos de Gide (com Paul Claudel à frente) se esforçavam por convertê-lo ao catolicismo, ele que era a bem dizer agnóstico, embora tivesse tido uma formação protestante. Preparavam uma verdadeira festa intelectual para acolhê-lo, contudo Gide recuou no último instante e escreveu este A Volta do Filho Pródigo em que simboliza no Pai o próprio Deus cristão, na Mãe compreensiva a Igreja Católica e no irmão mais velho a doutrina cristã. (Para ele, São Paulo é o ordenador da fé, o criador do pecado, o instituidor das proibições, antagônicas ao pensamento e às atitudes livres que sempre assumira.) O relato segue em princípio a Bíblia (Lucas, XV, 11-32), que descreve a chegada do pródigo, sua acolhida pelo pai que lhe prepara uma festa de boas-vindas, e a discordância do irmão mais velho que nunca saiu de casa nem dilapidou a herança paterna; Gide lhe acrescenta dois novos diálogos: com a mãe compreensiva e com o caçula rebelde, concentrando neste último toda a sua filosofia da ruptura com os laços convencionais, sempre exibida em todas as suas obras.

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O FILHO PRÓDIGO

Quando  após longa  ausência,  fatigado  de sua fantasia e como desprendido  de si mesmo,  o filho pródigo, do  fundo dessa  privação  que procurava, lembra-se do rosto de seu pai, do quarto bastante amplo onde a mãe sobre o seu leito se inclinava, do  jardim regado pela água corrente, mas cercado e de onde sempre desejou fugir, do irmão previdente a quem  jamais  amou, mas que guarda ainda à sua espera a parte de seus bens que ele, pródigo, não conseguiu dilapidar — o jovem  reconhece não ter encontrado a felicidade, nem mesmo conseguido prolongar por muito tempo aquela embriaguez que, à falta de felicidade, procurou. — Ah! pensa con­sigo, se meu pai, que a princípio, irritado contra mim, me dera como morto, pudesse talvez, apesar  de  meu pecado,  alegrar-se  de  me  ver;  ah!  se  acaso  voltando humildemente,  a  fronte  baixa e coberta de cinzas, e inclinando-me diante dele, lhe disser: “Meu pai, pequei contra  o céu e contra  vós” — que farei  se, erguendo­ me  com  a  mão,  me  responder:  “Entra  em  casa,  meu filho”? . . . E o filho contrito já  se põe a caminho.

Já cai a tarde quando, do alto da colina, vislumbra finalmente as chaminés fumegantes do solar; mas ele espera que as sombras da noite possam velar um pouco mais sua miséria. Ouve ao longe a voz do pai;  seus joe­lhos se curvam; cai por terra e cobre o  rosto  com as mãos, pois tem vergonha de sua própria vergonha, embora saiba que é o filho legítimo. Sente fome; não traz senão, numa dobra do manto esfarrapado, algumas bolotas de carvalho, com que se alimenta, igual aos porcos que outrora guardava. Percebe os preparativos do jantar. Distingue a mãe,  que aparece na varanda…e, não aguentando mais, desce a correr a colina e avança pelo pátio, onde seu próprio cão, que não o reconhece, ladra contra ele. Quer falar aos empregados, mas estes, desconfiados, se afastam e vão prevenir  o  dono; ei-lo que chega.

Sem dúvida esperava o filho pródigo, pois o reconhece em seguida. Abre-lhe os braços; o jovem diante dele se ajoelha e, tapando o rosto com um dos braços, exclama,  erguendo  a  mão  direita  ao perdão:

— Meu pai! meu pai! pequei gravemente contra o céu e contra vós; já não sou digno de ser chamado de filho; mas deixai pelo menos que eu, como um de vossos servidores, possa viver num canto qualquer de nossa casa . . .

O  pai,  erguendo-o, abraça-o:

— Meu  filho!  bendito  o  dia  em  que  voltaste  para mim!. — e chora na alegria  que lhe transborda  do cora­ção; ergue a cabeça que havia  inclinado  sobre  a fronte do filho para  beijá-lo  e volta-se  para  os servos:

— Trazei  a mais bela  das vestes; calçai de sandálias os  seus  pés  e  ponde-lhe   um  anel precioso  no  dedo. Buscai  em  nossos  estábulos  a  mais  gorda  das  reses  e matai-a; preparai  um  festim de júbilo,  pois  o filho que eu julgava  morto reviveu.

E vendo que a notícia já se espalha, corre; não quer que  seja  outro  a dizer:

— Mãe, o filho que chorávamos nos foi restituído.

A alegria de todos, que se ergue como um cântico torna o primogênito pesaroso. Se se sentou à mesa comum, foi porque o pai, ao convidá-lo, insistiu com ele e obrigou-o a isso. Entre todos os convivas, pois até o mais humilde  servidor foi convidado,  ele é o  único a mostrar o cenho franzido: Por que mais honrarias ao pecador que se arrepende do que a ele, que jamais, pecou? Prefere a boa ordem ao amor. Se consentiu em comparecer ao festim foi porque,  dando  crédito  ao irmão, pode lhe dispensar a alegria de uma noite,· e tam­bém  porque o pai e a mãe lhe prometeram morigerar o pródigo na manhã seguinte, além de ele próprio se preparar para repreendê-lo gravemente.

As tochas fumegam para o  céu.  O festim terminou. Os servidores levaram as travessas. Agora, na noite em que nem um sopro de brisa se  eleva,  a  casa fatigada, alma após alma, vai-se recolher. Contudo, no quarto ao lado do filho pródigo,  sei de um menino,  seu irmão  ca­çula, que a noite inteira até de madrugada em vão procurará  dormir.

 

A REPRIMENDA  DO PAI

Meu Deus, como um filho à vossa frente eu hoje me prosterno, o rosto de lágrimas coberto. Se rememoro e se transcrevo aqui vossa opressiva parábola, é por saber quem era o vosso filho pródigo; é que nele me reconheço; é que ouço em mim às vezes e repito em segredo aquelas palavras que, do fundo de sua grande miséria, vós o fizestes gritar:

— Quantos mercenários em casa de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui a perecer de fome!

Imagino o amplexo do Pai; no calor de um  tal afeto o coração me funde. Imagino até mesmo a penúria precedente;  ah!  imagino  tudo  o  que  quiserem. Eu  creio em tudo  isso; sou aquele  cujo  coração  palpita  quando, do alto da colina, revê os telhados  azuis  da  casa que deixou. Que aguardo então para me lançar rumo à morada; para entrar? — Esperam-me. Já posso ver o novilho gordo que preparam…Parai! Não prepareis tão depressa o festim! — Filho pródigo, penso em ti; dize­-me primeiro o  que te falou o Pai, no dia seguinte ao festim de teu regresso. Ah! Pai, embora o primogênito vos sussurre, possa eu ouvir às vezes vossa voz através de suas próprias palavras!      .

— Meu  filho, por  que me  abandonaste?

— Ter-vos-ei  de  fato  abandonado?  Pai!  não  estais em  toda  parte?  Jamais  vos  deixei  de amar.

— Não porfiemos. Eu tinha uma casa que te abrigava.­ Ela foi erguida para ti. Para que tua alma nela pudesse encontrar abrigo, um luxo digno dela, e confor­to, e um emprego, muitas gerações trabalharam. Tu, o her­deiro, o filho, por que te havias de evadir da Casa?

— Porque Ela me encerrava. A Casa não sois vós, meu Pai.

— Fui eu quem a construiu, e para ti.

— Ah! Vós não haveis dito isto, mas meu irmão. Vós, sim, haveis construído toda a terra, a Casa e tudo o que não é a Casa. A Casa, outros que não vós a construíram; em vosso nome, eu sei, mas outros que não vós.

— O homem tem necessidade de um teto sob o qual repousar a cabeça. Orgulhoso! Pensavas poder dormir ao relento?

— Será preciso tanto orgulho para isso? outros mais pobres do que eu o conseguiram.

— Mas isso são os pobres . Pobre tu não és. Nin­guém pode abdicar de sua riqueza. Eu te havia feito o mais rico de todos.

— Meu pai, bem sabeis que ao partir levei comigo o quanto pude de riquezas. Que me importam os bens que não se podem carregar?

— Toda essa fortuna que levaste foi dilapidada lou­camente.

— Mudei vosso ouro em prazer, vossos preceitos em fantasias, minha castidade em poesia, e minha aus­teridade em desejos.

— Seria para isso que teus pais previdentes porfiaram em destilar em ti tantas  virtudes?

— Para que eu ardesse de uma chama  mais  bela, um novo fervor me iluminava.

— Pensa nessa pura chama que Moisés viu sobre a sarça ardente: ela brilhava mas sem se consumir.

— Eu conheci o amor que nos consome.

— O amor que te quero ensinar reconforta. Ao cabo de algum tempo, que te restou, ó filho pródigo?

— A lembrança desses prazeres.

— E  a  privação  que vem depois.

— Nessa  privação,  eu me  sentia  perto  de  vós, meu Pai.

— Era  preciso  a  miséria  para  te  forçar  a  voltares a mim?

— Não sei; não sei. Foi na aridez do deserto que mais amei a minha sede.

— Tua miséria te fez sentir melhor o preço das ri­quezas.

— Não, isso não! Não me compreendeis, meu pai? Meu coração, vazio de tudo, encheu-se de amor. Ao preço de todos os meus bens, adquiri o fervor.

— Estavas então feliz longe de mim?

— Eu  não  me  sentia  longe  de vós.

— Então, que te fez voltar? Fala.

— Não  sei.  A  indolência, talvez.

— A indolência, meu filho! Então, não foi o amor?

— Pai,  já  vos  disse,  jamais  vos  amei  tanto quanto no deserto. Mas estava cansado, cada manhã, de prover minha subsistência. Em casa, pelo menos,  se come bem.

— Sim, os servidores provêm todo o necessário.

—  Com que então, o que te trouxe de volta foi a fome.

— É possível também que a enfermidade, a covar­dia…afinal,  essa  alimentação  fortuita me  enfraquecia: pois me alimentava de frutos silvestres, de gafa­nhotos e de mel. Cada vez suportava menos o descon­forto que, a princípio, me atiçava o fervor. De noite, quando tinha frio, pensava em minha  cama arrumada em casa de meu pai; quando estava em jejum, lembrava que, em casa de meu pai, a abundância dos pratos sempre excedia a minha fome. Cedi; já não me sentia com coragem bastante para lutar mais tempo, com a força suficiente, e no entanto…

— Então gostaste do gordo vitelo de ontem?

O filho  pródigo  arroja-se  soluçando  de  rosto contra a  terra:

— Meu pai! meu pai! O gosto selvagem das bolotas de carvalho perdura ainda assim em minha boca. Nada conseguirá apagar-lhes o sabor.

— Pobre filho! — retoma o pai, que o ergue pelo braço. —Talvez te tenha falado com dureza. Foi teu irmão que o quis; é ele quem dita a lei aqui. Foi ele quem me intimou a dizer-te: “Fora da Casa não há salvação para ti.” Mas escuta: Fui eu que te formei; sei o que há em ti. Sei o que te impulsionava para os caminhos; eu te esperava ao fim. Se me chamasses… eu estaria lá.

— Meu pai! teria podido então encontrar-vos sem voltar? . . .

— Se te sentiste fraco, fizeste bem em vir. Agora, vai; volta para o quarto que mandei preparar para ti. Chega por hoje; repousa; amanhã poderás falar com teu irmão.

A REPRIMENDA  DO IRMÃO MAIS VELHO

O filho pródigo trata a princípio de encará-lo com orgulho.

— Meu irmão mais  velho  — começa  por  dizer — , já  nem  nos parecemos. Não  nos  parecemos  mais.

O irmão mais velho:

— A culpa é  tua.

— Minha, por quê?

— Porque eu permaneci na ordem; tudo o que nos distingue é fruto ou semente do orgulho.

— Só posso ter de diferente os meus defeitos?

— Não tomes por qualidade  senão o que  te atém à ordem, e submete tudo o mais.

— Essa mutilação é que eu temia. Tudo isso que queres suprimir vem igualmente do Pai.

— Espera lá, não disse suprimir, mas submeter.

— Eu te compreendo bem. Foi exatamente assim que acabei subjugando as minhas virtudes.

— E é por isso que agora volto a encontrá-las em ti. Mas é preciso que as amplies. Compreende-me bem: não se trata de diminuição,  mas  de  uma  exaltação de teu ser o que proponho, na qual os elementos mais diversos e insubordinados de tua carne e de teu espírito devam sinfonicamente se integrar, na qual o pior de ti deva alimentar o melhor, e em que o melhor deva submeter-se a . . .

— Era uma exaltação também que eu procurava, que eu encontrei lá no deserto — e talvez não muito diversa da que agora me propões.

— Na  verdade,  o que pretendo  é impô-la.

— Nosso pai não me falou com tal dureza.

— Bem sei o que te disse o Pai. É . Ele já não se explica muito claramente; de modo que é possível fazê-lo dizer o que se desejar. Mas eu conheço bem seu pensamento. Dentre os servidores sou seu único intér­prete e quem  quiser  compreender  o Pai  deve  escutar a mim.

— Eu o ouvia tão bem sem tua ajuda.

— É o que pensas; compreendias mal. Não há várias maneiras de se compreender o Pai; não há várias ma­neiras de ouvi-lo. Não há várias formas de  amá-lo;  a fim de estarmos unidos em seu amor.

— Em sua Casa.

— Este amor conduz a ela; aliás bem viste isto pois estás de retorno. Dize-me, agora: que te levou a partir?

— Sentia demais que a Casa não abarcava o uni­verso inteiro . Eu próprio não me continha no ser que queríeis que eu fosse. Apesar de mim mesmo, imaginava outras culturas, outras terras, e caminhos a per­correr para chegar a elas — caminhos não traçados; imaginava em mim o novo ser que sentia lançar-se em direção  a  eles. Por  isso me  evadi.

— Pensa no que teria acontecido se eu, como tu, abandonasse a Casa do Pai. Os servidores e os bandidos iriam pilhar todos os nossos bens.

— Pouco importava então, pois vislumbrava outros bens . . . .

— Quanto exagerava o teu orgulho. Irmão, a indisciplina passou. Se ainda não sabes, logo conhecerás o caos de que o homem saiu.  Ou  antes:  mal  saiu; com sua carga natural, ele volta a tombar nele se o Espírito não o mantiver erguido. Não aprendas  às tuas  custas: os elementos bem ordenados que te compõem esperam apenas uma aquiescência, uma fraqueza qualquer de tua parte para retornarem à anarquia… Mas o que não saberás nunca será o tempo que o homem levou para chegar ao Homem. Agora que o modelo está concluído, mantenhamo-nos fiéis a ele. “Guarda firmemente o que possuis”, diz o Espírito ao Anjo  da  Igreja,  e  acrescen­ta: “a fim de que ninguém usurpe a tua coroa .” O que possuis é a tua coroa, e essa realeza sobre os demais e sobre ti mesmo . Tua coroa, o usurpador a espreita; ele está em toda parte: ronda ao teu redor, em ti. Segura firme, meu  irmão!  Segura firme.

— Há muito tempo que a larguei de mão, já não posso agarrar-me aos bens.

— Podes, sim; eu te ajudarei. Cuidei de teus bens durante a tua ausência.

— E, além do mais, essa palavra do Espírito, eu a conheço; não a citaste por inteiro…

— Na verdade, ela continua assim: “O que vencer, farei dele uma coluna no templo de meu Deus, e  dali não sairá.”

— “E dali não sairá.” É isso precisamente que me assusta.

— Mas se é para a tua felicidade.

— Oh! compreendo bem. Mas nesse templo eu já estava…

— Fizeste  mal  em  sair,  já   que  quiseste  regressar.

— Bem sei, bem sei. Eis-me de volta, admito.

— Que bens poderás buscar lá fora que não  haja aqui em abundância? ou melhor: somente aqui encon trarás teus bens .

— Já sei que guardaste minhas posses.

— A parte de teus bens que não conseguiste dilapidar, ou seja, a parte que nos é comum:  os  bens  de raiz.

— Não possuo então nada de exclusivamente meu?

— Possuis; aquela parte especial de bens que o Pai consinta ainda em conceder-te.

— Isto  é  tudo  o  que  eu  quero;  aceito  não  querer mais  do que  isso.

— Orgulhoso! -Não serás consultado a propósito. Essa parte entre nós é muito incerta: aconselho-te antes a que renuncies a ela.    Esta  parte  de  bens  pessoais  já te  levou  à perdição;  seriam  outros  bens  que  dilapida rias em seguida.

— Os outros, eu  não  podia levar.

— Por isso irás encontrá-los intatos. Mas chega por hoje. Entra no repouso da Casa.

— Vem a propósito, pois me sinto fatigado.

— Bendita seja a tua fadiga, então! Agora, dorme. Amanhã  a mãe  te falará.

A MÃE

Pródigo filho, cujo espírito recalcitra ainda com os argumentos do irmão, deixa agora teu coração falar. Como te sentes bem, reclinado aos pés de tua mãe sentada, com o rosto apoiado nos joelhos dela, a sen­tir-lhe  a  mão  que  te  acaricia  a nuca rebelde!

— Por que ficaste tanto tempo longe  de mim?

E como respondes apenas com tuas lágrimas:

— Para  que chorar  agora, meu  filho?  Foste-me  de­volvido. À  tua espera verti todas  as minhas  lágrimas.

— Sempre estivestes à minha espera ?

— Jamais deixei de te esperar. Antes de dormir, pensava, a cada noite: se ele voltar ainda hoje, saberá como  abrir a porta ? e  levava  muito  tempo  a dormir. Cada manhã, antes mesmo de levantar-me, pensava: Será hoje que ele voltará? Depois rezava. Rezei tanto, que tinhas  certamente  de  vir.

— Vossas  preces  forçaram  meu retorno.

— Não te rias de mim, meu filho.

— Ó mãe! eu volto com humildade. Vede como ponho minha fronte abaixo de vosso coração! Não há nem  um só  de meus pensamentos  de  ontem  que  não se tenha  hoje tornado vão.  Só agora compreendo, perto de  vós,  por  que  abandonei  a  casa.

— Não partirás  mais?

— Não posso mais partir.

— Que então  te  atraía  lá  fora?

— Não quero mais pensar nisto: Nada . . . Eu mesmo.

— Achavas que podias ser feliz longe de nós?

— Não era a felicidade o que eu buscava .

— Que buscavas então? Buscava . . .  quem  eu  era.

— Oh! filho de teus pais  e  irmão  de  teus  irmãos.

— Eu  não me parecia  com meus  irmãos.  Não falemos mai disto: eis-me aqui de volta.

— Sim, falemos ainda: Achas teus irmãos assim tão diferentes de ti?

— Meu único anseio daqui por  diante  é parecer-me a vós todos.

— Dizes isto com uma espécie de resignação.

— Nada é mais fatigante que perceber nossa dessemelhança . Esta viagem ao fim de contas me cansou.

— É verdade que voltaste envelhecido.

— Sofri muito.

— Pobre filho! Sem dúvida não tinha cama feita todas as noites, nem tua comida posta à mesa?

— Comia o que encontrava pelo caminho e às vezes não era mais que frutos verdes ou podres com que alimentava a minha fome.

— Mas não sofreste, pelo menos, nada além da fome!?

— O sol do  meio-dia,  o  vento  frio  do  fundo  da noite,  a  areia  vacilante  do  deserto,  as  sarças  em  que meus  pés  se  ensanguentavam,  nada  disso  me  deteve, mas — não disse a meu  irmão — eu tive de servir…

— Por que não lhe contaste?

— A maus senhores que me maltrataram o corpo, exasperaram meu orgulho e me deram apenas de comer. Foi então que pensei: Ah! servir por  servir! . . . Revi em sonhos a casa; resolvi voltar.

O filho pródigo baixa de novo a fronte, que sua mãe ternamente acaricia.

— Que irás fazer agora?

— Já vos disse: farei por me parecer com meu irmão mais velho; administrarei meus bens; como ele, toma­rei esposa…

— Sem  dúvida  pensas  em  alguém,  quando   dizes isso.

— Oh! não importa qual seja a preferida, desde que vós a escolhais. Fazei como fizestes com meu  irmão.

— Gostaria de escolhê-la de acordo com teu co­ração.

— Que importa! Meu coração já escolheu. Abdico de um .orgulho que já me levou para longe de vós. Orientai a minha escolha. Submeto-me a ela, afirmo­-vos. Da mesma forma submeterei meus filhos; e minha tentativa assim não me parecerá tão vã.

— Ouve; há um menino aqui do qual já te podias ocupar.

— Que quereis dizer ?  De quem falais?

— De teu irmão caçula, que tinha  apenas dez anos, quando tu partiste, e que mal reconheceste ao voltar, mas que no entanto…

— Concluí, mãe; de que vos inquietais agora?

— E em quem no entanto tu te podias reconhecer, pois ele se parece em tudo com o que eras ao partir …

— Parece-se comigo?

— Com o que eras, já disse; ai, não  ainda com este em que agora  te tornaste.

— E em que ele se tornará em seguida.

— Em que é força evitar que se torne. Fala-lhe; ele sem dúvida te ouvirá, a ti, o pródigo. Dize-lhe do dis­sabor que encontraste no caminho; poupa-lhe…

— Mas por que vos alarmais assim por meu irmão? Talvez não passe de mera semelhança…

— Não a semelhança entre vós dois é mais profunda. Hoje inquieto-me com ele por não me ter a princípio inquietado o bastante por ti. Ele lê muito, e nem sempre prefere os bons  livros.

— Então é isto apenas?

— Está sempre trepado nas árvores mais altas do pomar, de onde se pode ver, como sabes, o campo aber­to, para além dos muros da casa.

— Eu me lembro bem. E isto é tudo?

— É mais fácil encontrá-lo rondando pelas terras do que ao nosso lado.

— E que faz por aí?

— Nada de mau. Acontece que em vez de buscar a companhia dos meeiros, ele prefere estar com os traba­lhadores mais broncos, principalmente com os vindos de outras regiões. Há um, em particular, que lhe conta casos.

— Ah! o tratador de porcos.

— Este. Também o conhecias?… Teu irmão segue-o até o chiqueiro todo dia, só pelo prazer  de ouvi­-lo; volta a casa à hora do jantar, sem apetite, com as roupas emporcalhadas. As repreensões de nada adian­taram; teima em ir apesar das ameaças. Às vezes, de madrugada, antes que algum de  nós  tenha  acordado, ele corre a acompanhar aos portões  esse  homem  que leva os porcos a pastar.

— Ele sabe que não deve ir além dos portões.

— Também tu o sabias! Um dia escapará , estou segura disto. Um dia, há de partir…

— Não, mãe; irei falar com ele. Não vos preo­cupeis.

— Sei que, vindo de ti, ele ouvirá bastante. Viste como te observava na primeira noite? Que prestígio havia para ele em teus farrapos! e em seguida, no man­to de púrpura com que o pai te recobriu. Temo que em seu espírito confunda uma coisa com a outra, e esteja mais atraído pelos farrapos do que mesmo pelo manto. Essa intuição, porém, agora me parece tola; pois, enfim, se tu, meu filho, pudesses prever tantas misérias, não te terias evadido, não é mesmo?

— Nem sei como pude deixar-vos, minha mãe.

— Pois  bem!  dize-lhe  tudo isto.

— Amanhã certamente eu lhe  direi. Dai-me  agora um beijo na fronte como o fazíeis quando eu  era  criança  e  vínheis  ver-me  dormir.  Estou  com sono.

— Vai, dorme bem, meu filho. Vou para o meu quarto rezar por todos vós.

 

DIALOGO COM O IRMÃO MAIS NOVO

Ao lado de seu quarto há outro, também amplo e de paredes nuas. O pródigo, uma candeia à mão, por ele entra até o leito onde repousa o irmão mais novo, rosto voltado em direção à parede. Começa a falar em voz baixa para, se é que ele dorme, não lhe perturbar o sono.

— Meu irmão, quero falar-lhe.

— Pois fale; quem o impede?

— Pensei que você estivesse dormindo.

— Não é preciso dormir para sonhar.

— Ah! estava sonhando; com quê?

— Não importa! Se eu próprio já não compreendo meus sonhos, não há de ser você agora quem me vai explicá-los.

— Serão tão sutis assim? Mas, me contando, tal­vez pudesse tentar.

— Você, por acaso, podia escolher seus sonhos? Olha  que os meus  são como  querem  ser, mais  livres do que eu . . . Que foi que veio fazer aqui? Por que per­turbou meu sono?

— Você não estava dormindo, e vim para falar-lhe com carinho.

— Que me  tem  a dizer?

— Nada, se o toma nesse tom.

— Então, adeus.

O pródigo sai em direção à porta,  mas  apóia  no chão a candeia que alumia debilmente o quarto, e, voltando, senta-se à beira da cama e afaga  longamente,  no escuro, a fronte do irmão,  que está  voltada  contra  ele.

— Você me responde com uma dureza com que eu jamais respondi a seu irmão. No entanto, eu também protestava contra ele.

O irmão rebelde ergueu-se de repente.

— Diga:  foi o irmão  quem  o mandou?

— Não, menino; não foi ele, foi nossa mãe.

— Ah! você não teria vindo por si mesmo.

— No  entanto,  eu  venho  como amigo.

Semi-erguido no leito, o menino encara fixamente o pródigo.

— Como um  dos meus  poderia  ser  meu amigo?

— Você se engana quanto a nosso irmão…

— Não  me fale dele!  Odeio-o!… Meu  coração  inteiro  se  impacienta  contra  ele.  Por  causa  dele  foi  que lhe respondi  asperamente .

— Como assim?

— Você não compreenderia.

— Fale, mesmo assim . . .

O pródigo aperta-o contra o peito e o irmão adoles­cente deixa  abrir  seu coração:

— Na noite em que você voltou, não consegui dormir. ­ Fiquei o tempo todo pensando: Tinha outro irmão, e não sabia… Foi por isso que meu coração bateu mais forte, quando o vi avançar pelo pátio  da casa, todo coberto de glória.

— Santo Deus! eu vinha então coberto de andrajos .

— Sim, eu o vi, e o achei glorioso. E vi também o que fez o pai: pôs em seu dedo um  anel,  um  anel que nem mesmo nosso irmão  tem igual. Eu não  quis pergun­tar nada a ninguém a seu  respeito:  sabia  apenas  que você vinha de muito longe, e seu olhar, à mesa . . .

— Então você estava no festim?

— Oh! bem sei que não me reparou; durante o tempo todo do banquete olhava para longe, sem ver nada. Que fosse, na segunda noite, falar com o pai, ainda compreendo, mas que na terceira…

— Termine.

— Ah! ao menos uma palavra de carinho bem me podia ter dito!

— Você me esperava então?

— E como! acha que eu odiaria  assim  nosso irmão se você não tivesse ido falar com ele e demorasse tanto aquela noite? Que poderiam dizer? Se você se parece comigo, bem sabe que nada tem em comum com ele.

— Cometi  graves  faltas  contra  nosso  irmão.

— Será possível?

— Pelo menos para com nosso pai e nossa mãe. Você  sabe que  eu fugi de  casa.

— Bem sei. Isto foi há muito tempo, não?

— Mais ou menos quando tinha a sua  idade.

— Ah!… Ê isso que você chama de erros?

–Sim, este foi meu erro, meu pecado.

— Quando você partiu, achou que procedia  mal?

— Não;  sentia-me  como  na  obrigação  de partir.

— Que aconteceu depois, para que sua verdade de então  se  transformasse  em erro?

— Sofri muito.

— E é isto que o faz dizer: estava errado?

— Não, não é bem isso: foi isto que me fez  refletir.

— Então não havia refletido antes?

— Havia, mas a debilidade de minha razão se deixava impor por meus desejos.

— Como mais tarde pelo sofrimento. De sorte que, hoje então, você volta … vencido?

— Não  é bem  assim:  resignado.

— Ou seja, renunciou a ser como queria.

— Que meu orgulho me persuadiu a ser.

O menino permanece um instante em  silêncio,  de­pois  de súbito soluça e  exclama:

— Irmão! eu sou igual a você quando partiu. Oh! diga-me: só encontrou decepções pelo caminho?  Tudo o que pressinto existir lá fora, diferente daqui, não passa de miragem? Tudo o que sinto em  mim  de novo não é mais que fantasia? Fale: que havia de desespera­dor em seu caminho? Oh! que foi que o fez regressar?

— Perdi a liberdade que buscava; cativo, fui obri­gado a servir.

— Aqui eu me sinto cativo.

— Sim, mas tive que servir a maus senhores; aqui, pelo menos, servimos nossos pais.

— Ah! servir por servir, não se tem pelo menos a liberdade de escolher a servidão?

— Eu achava que sim. Tão  longe  quanto  puderam ir meus  pés,  como  Saul  a buscar  suas jumentas,  andei a perseguir o meu desejo; mas, onde esperava um rei­no  só encontrei miséria . Contudo…

— Não se enganou de caminho?

— Fui caminhando sempre em frente.

— Tem certeza? Todavia, há outros reinos, ainda, e terras sem rei, a serem descobertas.

— Quem lhe disse?

— Eu sei. Pressinto. Parece até que já as conquistei.

— Orgulhoso!

— Ah! ah! foi isso o que nosso irmão lhe disse. Por que me vem agora repeti-lo? Por que você não conservou esse orgulho? Decerto não teria regressado.

— E assim não o teria conhecido.

— Teria, sim; lá, onde iria a seu  encontro, decerto me reconheceria como irmão; mesmo agora, parece-me que é para encontrá-lo que eu sigo.

— Segue?

— Não percebeu? Não me encoraja igualmente a partir?

— Quisera poupar-lhe o retorno, dissuadindo-o da partida.

— Não, não, não me diga isto; não é isto  que quer me dizer. Foi como um conquistador que  você  também partiu.

— E foi isso que me fez sentir ainda mais a ser­vidão.

— Então, para que submeter-se? Já  estava  assim tão fatigado?

— Não, ainda não; mas tive dúvidas.

— Que quer dizer?

— Duvidava de tudo, de mim mesmo: quis parar, fixar-me enfim em qualquer parte; o conforto que esse patrão me prometia acabou tentando-me… sim, sinto-o perfeitamente agora: fracassei.

O pródigo inclina a  cabeça  e  oculta  os  olhos  com as mãos.

— Mas, e a princípio?

— Caminhei por muito tempo pela imensa terra inóspita.

— O deserto?

— Nem sempre era o deserto.

— E que buscava?

— Eu próprio  não  sei bem.

— Levante-se da cama. Olhe o que está ali na mesa de cabeceira, junto a esse livro em frangalhos.

— Uma romã partida.

— Foi  o tratador  de porcos  que  a  trouxe  numa  tarde, depois  de passar  três dias fora.

— Sim, é uma  romã  silvestre.

— Bem sei; é de uma acidez quase insuportável; sinto, no entanto, que a morderia, se estivesse com bas­tante sede.

— Ah! agora eu lhe posso dizer: foi  essa  sede que eu buscava no deserto.

— Uma sede que só este fruto amargo consegue aplacar . . .

— Não:  mas  nos faz  amar  essa sede.

— Sabe onde colhê-lo?

— Num pequeno pomar abandonado, aonde se chega quase ao anoitecer. Já nenhum muro o separa do deserto. Ali corria um regato; alguns frutos, quase ma­duros, pendiam das ramagens.

— Que frutos?

— Os mesmos de nosso pomar, porém silvestres. Fizera calor o dia inteiro.

— Ouça; sabe por que o esperava esta noite? É que partirei esta noite. Hoje, de madrugada, ao clarear . . . Estou disposto a tudo e já tenho as sandálias calçadas.

— Como!  pensa  fazer  o que eu não  consegui? . . .

— Você me abriu o caminho, e me sustentarei de pensar em você.

— E eu em admirá-lo; mas trate  de  esquecer-me, em vez disso. Que vai levar daqui?

— Bem sabe que, sendo o último, não tenho direito à partilha.  Vou  sem levar nada.

— É melhor.

— Que está o1hando pela janela ?

— O horto onde repousam nossos mortos.

— Irmão . . . (e o menino, erguendo-se do leito, passa o braço em torno ao pescoço do pródigo, num gesto que se faz tão doce  quanto  a  sua voz)  — Venha comigo.

— Deixe-me! deixe-me! ficarei para consolar nossa mãe. Sem mim, você será mais corajoso. A hora está chegando. O céu empalidece. Parta sem ruído. Vamos! Abrace-me, meu caro irmão: você leva todas as minhas esperanças. Tenha força: esqueça-nos: esqueça-me. Que você possa nunca mais voltar… Saia, sem ruído. Eu seguro a candeia…

— Ah!  dê-me  a mão  até a porta.

— Cuidado com os degraus do patamar …

                                                                                          *

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foto-fim

Eu já contei a história em Minhas Incursões Teatrais (07/09/2010), mas vou repeti-la aqui:

Em 2001, para a grande Exposição Surrealista montada no CCBB do Rio, traduzi, a pedido do prof. Guilherme Castelo Branco, a peça AS QUATRO MENINAS, de Picasso. Desde criança, apaixonado pelo célebre quadro de Velásquez (“A Família de Felipe IV”, mais conhecido como “As Quatro Meninas”), Picasso em 1947/1948 pintou uma série de 58 “releituras” da obra, que se encontram hoje reunidas, em sua integralidade, no Museu Picasso em Barcelona. Não satisfeito com essas “reinterpretações”, escreve em Cannes, em 1957, uma peça teatral surrealista (umas das poucas existentes na literatura mundial),  esta que no Brasil foi interpretada pelas atrizes Suzana Kruger, Ângela Noal, Ludmila Breitman e Maura Baiochhi, e tendo como narrador Sérgio Mambertti. Conforme o programa, tratava-se de uma “leitura nos moldes estritamente surrealistas, respeitando as convicções mais marcantes do movimento quanto ao teatro: indiferença com a verossimilhança e com os aspectos formais, desprezo pelas regras de interpretação convencional, preferência pelo humor e/ou inesperado”. As atrizes ora sentavam-se estáticas ora arrastavam as cadeiras pelo palco, voltando a sentar-se às vezes até de costas para os espectadores, que, um tanto estupefatos, se deixavam levar pelas fortes imagens cenográficas picassianas que em nada ficavam a dever àquelas suas visões de olhos, narizes e artelhos destorcidos.  Um verdadeiro painel pintado com palavras que o público carioca só pôde contemplar no dia 13 de setembro de 2001. Convívio inesquecível do tradutor com aquelas quatro meninas francesas que não falavam coisa com coisa, mas que tudo o que diziam soava genial. Eta Picasso!

foto2AS QUATRO MENINAS

Pablo Picasso

Tradução:

Ivo Barroso

 

Golfe Juan 24.11.47

Cena: um quintal com um poço quase ao meio

QUATRO MENINAS cantando – não iremos mais ao bosque derrubaram os loureiros a bela que está lá vai recolhê-los entra na dança vai veja só como se dança dançai cantai beijai aquele que desejais.

MENINA I – abramos todas as rosas com nossas unhas e façamos sangrar seus perfumes sobre as rugas do fogo dos jogos de nossas canções e de nossos aventais amarelo azul e púrpura. Brinquemos até morrer e beijemo-nos com fúria a dar gritos horríveis.

MENINA II – mamãe mamãe vem ver Yvette destroçar o quintal e incendiar as borboletas vem mamãe.

MENINA III – façam o que bem quiserem para iluminar as chamas das plumas do galo com vela em torno dos cueiros pendurados nos ramos da cerejeira – atentem para o que lhes digo nas asas arrancadas dos pássaros mortos nas gaiolas cantando em voo rápido  sobre  o chamalote  das  mangas  do  vestido plissado  o céu de tão alto tombado do azul.

MENINA I – cantando – não iremos mais ao bosque derrubaram os loureiros a bela que está cá (grita) lá está lá está lá está o gato que pegou um dos pássaros do ninho na goela e o estrangula com seus grandes dedos e o leva para trás da nuvem limão roubado em manteiga derretida do pano do muro derrubado por terra pelo sol coberto de cinza.

MENINA III –  que tolice.

MENINA IV – arranjem-se vocês com as flores o fio de tricô arrasta pelo jardim suas patas e agarra-se a cada ramo seu rosário de olhares e as taças cheias de vinho no cristal dos órgãos que se ouvem batendo com toda a força no algodão do céu escondido atrás das grandes folhas de ruibarbo.

MENINA I – arranjem-se arranjem-se a vida me envolve o giz de minhas invejas do casaco rasgado e cheio de manchas de tinta preta escorrendo a garganta aberta das mãos cegas que buscam a boca da chaga.

MENINA III (escondendo-se por trás do poço) – e isto é isto é isto.

MENINAS I – II – IV – boba boba – você é boba – está duplamente visível – nós a vemos – completamente nua coberta de arco-íris. Ajeite os cabelos eles flamejam e vão deitar fogo à cadeia de reverências raspado à cabeleira emaranhada dos sinos lambidos pelo mistral.

MENINA III – é isto – é isto – é isto vocês não me terão viva e nem vão me ver – estou morta.

MENINA IV- não seja idiota.

MENINA I – se você não vem iremos todas nos enforcar nos pés de limoeiro e viver em flor nossos dramas e nossas danças fio do punhal de nossas lágrimas.

MENINA II- vamos lhe dar uma escada (buscam uma comprida escada e trazem-na com grande dificuldade equilibrando-a de pé).

MENINA l – não está atrás do poço -não ela está no teto da casa.

MENINA IV – está sobre o ramo florido no alto à esquerda da pereira.

MENINA II – vejo-lhe a mão que morde a ponta da asa de uma folha que sangra.

MENINA IV – não não ela está em frente à mancha furta-cor que faz o sopro do clarim sobre a janela do quarto do primeiro [andar] fervendo a socos o ângulo quebrado pelo cego sol que busca seu caminho nas trevas.

MENINA I – ela escorrega parece buscar entre as folhas úmidas e entre as ervas sua merenda descrevendo arabescos em curvas e cores e em fios da virgem.

MENINA IV – quer vir aqui ou não Paulette você está nos chateando vou dizer à mamãe que você não quer mais brincar e está procurando chamar a atenção transformando-se de mil maneiras em buquê de flores japonesas.

MENINA II – seja o que quiserem colho as toranjas e as como cuspo as sementes limpo com o dorso da mão os lábios e acendo os pavios das lanternas com meus risos os incomparáveis queijos que lhes peço aceitar sinceramente a vossos pés me assino.

MENINA I – é muito difícil passar uma tarde agradável das férias de verão em companhia de vocês e além do mais ademais quando se sabe que vocês não querem brincar de nada que toque cronologicamente nas lições nos mostraram na ponta da orelha durante as aulas do inverno.

MENINA II – é melhor deixá-la e não lhe dar atenção ela voltará para melhor simplificar sua astúcia e nos fazer rir com seus falsos livros de contas e seus arranjos geniais tão artísticos que são.

MENINAS I – II – IV (aqui um longo silêncio – três minutos – elas continuam segurando a escada com bastante dificuldade em silêncio de um extremo ao outro da cena aproximando-a das árvores – da parede da casa e tentando trazê-la para junto do poço) durante esse  tempo  ouve-se  a voz da

MENINA III –  é isto é isto é isto começa a chover.

MENINA II – chove chuva miudinha e a festa da sapinha chove chuva.

MENINA IV – chove chuva miudinha a festa da sapinha…

MENINA III – é isto…

MENINA II- não se deve acreditar que o gato tenha ido comer sua águia sem medo nem remorso por trás das cenouras. Os azuis de suas queixas o verde­malva de seus saltos os violentos violetas de suas garras arrancando o amarelo­enxofre de sua fúria os farrapos verdes veroneses retirados do sangue fundente da fonte cheia de vermelho o ocre do muro lilás e as franjas cobalto tão agudas de suas queixas o pobre pássaro empinado sobre os cascos de suas plumas macaqueia em acrobacias as bandeiras estalando as línguas sobre o aço o punhal plantado já o gato acumula e retrai a cada estágio suas sombras e suas espadas confusas e confundidas na queda das verticais se esmagando gota a gota na cortina verde oliva.

MENINA I – chove  chuva  miudinha  é a  festa  da  sapinha  chove  chuva miudinha é a festa da sapinha chove neva tudo molha é a festa da piolha.

MENINA II – queria que ela voltasse está faltando sol agora chove. 0 riso das flores rasga o vestido branco de xadrez e verde-gris e funde em acrobacias e saltos de humor o fundo da tela crucificada ás minhas sandálias chame-a Jeannette solte grandes gritos para que ela retome seu lugar ao sol e tire o fio a prumo pela parte grossa da luneta.

MENINA I – deixe-a fazer sem dizer nada o silêncio  deve  pôr seu  ovo  no canteiro de seu destino feito em pedaços pelo jogo das grandes curvas atiradas a grande custo e múltiplas manigâncias por cima dos moinhos asas cortadas  de todos os loureiros  e bem felizes de ser retirados  do comércio com preço tão em conta.

MENINA II – você não me fará crer e se digo crer estou exagerando que sua partida e a sintética projeção de sua imagem seja de fato diluída no caldo imaginário desta tarde sujeito em seguida a ruidosas revelações a audaciosas discussões cursivas.

MENINA I – a chuva  que  aumenta  pouco  a  pouco  já  dura dez  séculos  e compõe meticulosamente a página pintada tão minuciosamente com pequenos signos e linhas torvas desfazendo nós  górdios e fichas  antropométricas todas responsabilidades e consequências de um jogo imposto  do outro lado. Lá ela nos causou muita alegria.

MENINA IV – ela nos fez sucumbir  e não se dá conta de que chove para nós que gera que o sol se achatou por terra que caminhamos  por  cima  que nos queimamos

MENINA II – os pássaros  têm chifres  as flores roem  as unhas  e as nuvens servem para limpar as vidraças faz um calor sufocante no paraíso e os pássaros já acendem fogo sobre as nuvens.

MENINA I – as flores cheiram a sopa que ontem à noite para o jantar minha pôs ao fogo a  partir  das  cinco  horas  e  que às dez  para  as  sete  de olhos esbugalhados a  porta aberta do nosso pranto transporta corpos e bens  ao paroxismo  sim-não-sim-eu  não sei – mas retoma o tempo bom a seu cargo e afaga a paleta cheia até a borda da carga de seus porta-copos bebidos até a borra.

MENINA  IV –  parou a chuva já podemos  brincar vamos correr  em volta do poço vamo-nos  divertir  bancar  as loucas o  ramo  da pereira  deu  um tapa  no grande monte de nuvens e a ponta do pé do sapato da palmeira ronca acocorado na toalha de mesa rato que se cata vamos correr feito loucas – como as loucas e levemos conosco todas as flores as louras e as morenas as doces e as amargas as tenras e as duras de pedra e de algodão de óleo e de vinagre de tinta nanquim e de tinta simpática sem um erro de ortografia  e  com  as  quarenta e  cinco mil  vírgulas  vamos correr  brincar bancar as louças (dançando)  – loucas – loucas – loucas loucas louca loucas loucas loucas.

MENINA  I – as folhas negras  do quintal  vão escrever  sua  vida com toda a rapidez  os ramos sonharão com os arcos  do futuro e serão doces  e cordatos como as imagens votivas e tão berrantes quanto parecem tão domesticadas é seu hálito sentadas diante do fogo lendo o jornal apontarão os golpes do destino sobre a ardósia.  Carga de lembrança de braços cruzados a ronda desdobra suas músicas no ácido o grande carneiro alado soa o sino ao longe.

MENINA ll – como estamos bem aqui e como estamos bem no campo ao sol derretidas no meio de sua pança brincando brincando e  gracejando  ao  sol repleto de amoras o sol cheio de fitas cheio de pedras cheio de casquinhas de sorvete vamos todas rir e cantar e fazer comidinha traga seus cacos de copos de cor e procure os ossos de sépia que servirão  de prato  as  plumas furta-cores  dos  ramos  secos  dos  caroços de azeitona  e as conchas de meu colar com a cinza do muro dos grandes plátanos untarão a fatia de pão misto da taça de frutas presa na armadilha da fonte vai buscar a vela de seda negra com que nos cobriremos  todas  para  fazer a noite  de núpcias que iremos passar no fundo  do poço  cheio de estrelas fritas a mãe de Jeannette na noite do casamento de sua irmã tinha um vestido cosido de lâmpadas elétricas de cor vão ver se as árvores já foram se deitar e dormem é preciso fazer tanto barulho quanto pudermos e iremos gritar com todos os nossos pulos de cabrito a alegria de estarmos  sozinhas  e loucas  iremos  amarrar  a escada  à árvore  e vamos subir nela para acender o fogo da cozinha em cada folha que cerziremos ao  algodão  dos  ramos espinhos  de  açúcar do  mel  amargo das  agulhas dos espinhos das flores dos duplos  eucaliptos  (apanham a escada e a engancham nos ramos altos da árvore, deitam-se no chão de barriga para baixo e adormecem) e ouve-se a voz da

MENINA III – é isto é isto é isto…

MENINAS I – II – IV se levantam e começam a brincar  de roda saltando e cantando – é isto é isto é isto é isto vamos à guerra guerra de casa anjos de malvaísco ratos e ratazanas noite de caramelo manhã de guiso a vida que passa fez nos meus lençóis – é isto é isto é isto a vida se empaca para ordenhar as vacas a vida é bela ocultemo-nos dela os novilhos morreram e têm asas a roda que gira desfaz seu vestido e mostra os seios sob as ervas a noite esconde seus peixinhos a bela pimpinela ama o seu pimpilim diz-nos rosa malva-rosa a aurora desta noite nos conta e nos faz rir levanta a tua golilha desembucha os teus rosários  aponta-nos  tua  garrucha  sobre  o  buquê de  rosas murchas miserável miserere – estamos contentes contentes em atar amanhã depois de amanhã com o hoje e com o ontem.

(elas rodam saltam e gritam cada vez mais rápido cada vez mais forte e caem no chão umas por cima das outras s sorrindo)

MENINA IV – nós bem que nos divertimos eu divirto tu divertes ela diverte feliz feliz feliz feliz feliz feliz.

MENINA II – feliz.

MENINA I – eu sou feliz eu sou feliz elas começam a gritar– é isto é isto é isto e ouve-se cantar inúmeros pássaros e uma chuva de olhos começa a cair sobre elas colando-se em seus cabelos e vestidos.

MENINA II- estamos cobertas de luz.

MENINA IV – estamos sujas de luz.

MENINA II- ou queimada.

MENINA I – estou gelada de luz.

MENINA II – olhem olhem no alto da escada um pássaro que se rasga estamos vendo seu coração gritar e com as garras ele arranca os olhos.

MENINA IV – as  folhas  em  redor  dele  mostram  os  dentes-de-lobo  e  o ameaçam com suas mãos docemente fechadas.

MENINA I – é preciso ajudá-lo.

MENINA II – não toques nele queima está em chamas uma tocha.

MENINA I – vamos arrancar todos esses olhos de nossos vestidos ou esconder nas mãos esses olhares.

MENINA N – vamos nos envolver no véu fazer-nos medo e à nossa volta façamos uma cerca em círculo de punhais plantados na terra pelo cabo MENINA I – vamos atirar-lhe todas as flores do jardim para que ele morra de rir.

MENINA II- representemos um drama vamos montar a cena diante do poço e disfarçar as árvores em vagas você aí será o náufrago você o raio e eu a lua você aí dirá às vagas que levantem suas redes e apanhem todas as estrelas e as conchas em suas presilhas e as atirem para nós em  colares de  perolas e montadas em vacas desfilarem a mesa azul e as cadeiras fazendo-nos caretas.

Você a mais nova lhe oferecerá as cenouras as couves e os tomates que iremos colher cantando de joelhos segurando pelos quatro cantos a vela e  você enquanto isso acenderá uma fogueira de alegria e jogará dentro dela todos os nossos vestidos ficaremos nuas e você também se despirá ao mesmo tempo e iremos nos esconder embaixo da mesa mas preste bem atenção para não se queimar na fogueira não aproxime dela suas ânforas cheias de vinho e as grandes folhas de ruibarbo que teremos trano em tomo farão a cortina mais negra para a corrida que a tempestade desencadeará quando as vagas vierem nos agarrar na garganta e nos envolver com seus musaranhos o mais  ávido silêncio enchera sua ânfora de fogo e as asas quebradas do cavalo que arrasta as tripas sobre a cinza abrirão suas romãs ao espelho repleto de luas quando por sinais vocês farão sinal de morder nós todas  nos  levantaremos e unharemos o rosto até sangrar então o mel do transbordará todas as suas abelhas e fingindo-nos  de mortas de  medo riremos  e cantaremos juntas  e a  plenos pulmões o barco com as velas todas desfraldadas  reentrará em cena será carregado de leite e de sangue e em fogo iluminado por mil lanternas

MENINA IV – diga-me diga-me o raio rirá rirá será infeliz ela terá medo no mar sob a mesa será ela loura e ruiva e longa com longos cabelos negros e amaranto terá um amante não me diga a verdade mas enormes mentiras quero ver com minhas mãos fuxicar o grosso colchão de estrelas cravado não importa como sobre o dorso do céu que passeia à beira do teto tão granjeador.

MENINA  II – grande  desilusão  afinal  de contas  espontaneamente desenhada em complicados arabescos e circunvoluções matemáticas mas a grande questão é saber se sou absolutamente branca de mármore de penugem de cisne de papel branco de fio puro fio e coberta inteiramente  de neve e sozinha de pé à beira do telhado e imóvel

MENINA II – cale-se você nos chateia.

MENINA IV – não você fará aquela que vê e com seu pedaço de giz com os olhos fechados irá desenhando em tudo grandes olhares de homem.

MENINA  I – esconda as mãos atrás dos olhos leia o futuro verde primavera de folhas e de flores que regarão seus cabelos de músicas.

MENINA II – canto canto noite e manhã e não gosto de fazer comédia só gosto do ruidoso refúgio do silêncio sobre a minha barca  em perdição e engodo é a bela estação.

MENINA IV – ora veja.

MENINA I – ah.

MENINA IV – dó ré mi fá sol lá si dó.

MENINA  I – dó si lá sol fá mi ré dó eis que um grande  sol rola  lentamente sobre a cena até aos nossos  pés onde se estende  de todo comprimento e nos lambe as mãos — como é bonzinho.

MENINA II – a flauta ao longe desmonta peça por peça o jogo de paciência irrigando a cor e pacientemente inventa o jogo de cena do grande barco vogando amorosamente nos véus da noiva do naufrágio coçando suas pulgas nos azuis acidulados do celeste com ambas as mãos agarradas ao arreio da égua e catastroficamente tomado de chances inutilmente fugazes.

MENINA I –  o azul dirige  a  ponta  de seu  casaco  azulidão  azul-real    anil cobalto  azul celeste ameixa  sobre o braço estendido do amarelo  limão verde amêndoa e pistache contornando o malva lilás batido os dois punhos pelo verde da laranja e a toalha de riscas azul-rei e azul-pervinca estridente confundidos aos seus joelhos e todo o acidulado arco-íris  do branco enfaixado com o arco  dos pés molhados no  verde-esmeralda funambulescas  batidas de gongo feridas de morte entre as meadas de cravos e de rosas tão  malva-rosas

MENINA IV- o azul o azul o celeste o azul o azul do branco o azul do rosa o azul do lilás o azul do amarelo o azul do vermelho o azul limão o azul laranja o azul que transuda azul e o azul branco e o azul vermelho e o azul das palmas do azul limão das pombas brancas aos jasmins em campos de aveia em grandes cantos verde amêndoa esmeralda.

MENINA II – as espirais dos limões os grandes quadrados brancos das laranjas os losangos em limão dos ovais perfeitos   dos círculos exasperados das rosas lilás dos  tomates  cantados  cochichados  pela oliva  do  roxo  escondido  no xarope de amoras

MENINA I – branca a rosa vermelha o cravo e azul o branco amarelo do muro.

jorrando em ondas a baba de veniz do fogo encadeado às barras de aço do longo véu arrastado por imensas asas da pequena agulha espetada na face do círculo que arrebenta em vestido de lantejoulas de sarças luminosas.

MENINA II-doce entardecer doce doce uma tarde de doçuras doce entardecer doce.

MENINA IV-relógio cheio de abelhas ilhota de mel.

MENINA  II – barca cheia de abelhas amamentando  os voos das pombas com as asa arrancadas levadas a grandes gritos de ramo jogo e cabriolas de riso em riso imaculadas e em embriaguez.

MENINA  IV – os doze cavalos brancos alados que puxam a carroça feita de um grilo de arroz inundam com seus grandes jarros azul amarelo e vermelho a imensidão do prato cheio de pastilhas de ouro dos feixes e das folhas de acanto trançadas em torno e os jatos de mercúrio da fonte irisam com seus vapores e suas melodias as espadas nuas de seus cantos.

MENINA  II – melancia de azul picada de pregos tesouras  cortando os fios trançados do rio que arrasta os cabelos na areia seu vestido rasgado ilegível  à orelha do encanto rompido saltitante coxeando sobre a longa pata.

MENINA I – um grande  oval amarelo luta em silêncio contra os dois pontos azuis com todas as suas garras retorcidas  na queda  de Ícaro  do  labirinto das linhas  da armadilha  do  losango  verde  oliva  estrangulado com  as duas mãos pelo violeta tão terno  do quadrado  do arco vermelho Iançado tão Ionge pela tempestade.

MENINA  IV – o azul o rosa  o lilás o amarelo limão o verde pistache  o verde da laranja e o azul e o violeta o malva e o lilás e o vermelho.

MENINA  II – tenho a mão cheia de vozes meus cabelos são cobras de fitas de todas as cores ao penteá-los  eles escorregam entre os meus dedos e acendem os fogos  de Bengala  a cada  folha das árvores  arrancadas  pelos  lábios a cada ataque de rins

MENINA I – a poeira dourada que se ade.re a cada suspiro os saltos de cabrito da faixa branca que levanta a barca a janela  isola  os degraus  do anfiteatro  a charrua e sulco que solenemente imolam a cabra acorrentada  sobre  o papel imaculado da grande página escrita.

MENINA  II – deixe  a cabra  pastar dê-lhe folhas de couve você é tola  como você é tola mas você é tola de verdade tola tola tola

MENINA I – um colchão de sarças para eu dormir esta noite sobre o xarope de amoras de gentil cotovia você almoçou direitinho as meninas I- II- IV em silêncio põem-se a correr para todos os lados e a se engalfinharem e sobem sempre correndo os degraus que levam ao primeiro andar do casa.

MENINA III –  sai do poço e pula no chãocorre atrás das outras sobe os degraus e entra gritando – é isso é isso é isso é isso é isso é isso é isso é isso.

Fim do 1° ato.

foto3

2° ATO

O mesmo quintal mas tendo ao meio uma grande barca – amarrada à barca uma cabra – a cena está vazia

MENINA  III – descendo os degraus da casa carregando uma boneca maior que ela atada por correntes de guirlandas de flores e – avental amarelo – pássaro branco de xadrez azul amaranto e azul limão linha perpendicular do celeste azul-real médio irritante branco espalhado em  grandes  colheradas sobre  a  mancha   lilás  do   imenso   amarelo   limão espalhado  corpos e bens sobre a ogiva fechada do centro estridente do grande quadrado fechado a dupla volta das lacas esmeralda do silêncio escondido entre as dobras do ovo posto pela cabra.

(ela ajeita a boneca envolvida pelas guirlandas de flores na barca e amarra-a ao mastro deita-se de dorso no chão e mama na cabra acariciando-a)

Belo jovem  belo namorado  meu amante  meu sol minha  cólera meu  centurião meu  cavalo  furioso  minha  mentira  minhas  mãos de  manteiga  em  espiral  a deliciosa  subida e a descida amarrada  as cadeias  do picadeiro  em festa limão espremido na goela fechada do ácido nítrico da tenra pombinha que se abre em leque no centro da fornalha da tina de piche que fumega .

(levanta-se desamarra a cabra e a estrangula segura-a nos braços e dança)

As meninas I – IV estão na janela da casa e olham vão um instante ao interior e tornam a voltar com grandes bigodes pintados sobre os lábios e libertam grandes quantidades de pombos que saem voando.

As  meninas I II e IV pulam pela janela para o quintal tinham amarrado ao ombros grandes asas abertas contornam e prendem no meio de sua roda a menina III que traz nos braços a cabra morta.

MENINA  II – faça-nos ver a claridade  cega de seu canto  de gelo e a aurora boreal de seu olhar remexendo na fuligem que ela arrebente em buquê de víboras sobre nós e suas auréolas de jasmins e as mãos cheias de signos.

MENINA  IV – deixe correr seu  sangue  sobre  a minha  face que  eu sinta  o frescor dos alísios de sua vida que alça voo ao longe.

MENINA  II – a folha de mármore de seu olhar  decompõe  em paletas  o fogo gelado que ferve na indolente crispação das curvas em cristalização

MENINA    IV   – vamos   buscar   vinho   em   grandes   jarras    em   ânforas transportemos todo o vinho que ela se embebede em sua morte que cante e ria e daremos de beber também à boneca vamos embriagá-la para que ela cante e ria e dance conosco e nos adore

MENINA  I – a barca  balança incha-se e ergue-se  ela se ilumina  de todos os lados  e mil braços remam os campos  de azul  cobalto  limão verde  esmeralda lilás rosa e papoula púrpura  lia do vinho branco rosa azul-real  furta-cor e suco de limão de tangerina de toranja e verde laranja amarga.

MENINA II – (que enfia o bracinho inteiramente na ferida da cabra degolada e lhe arranca o coração que mostra às outras meninas) – está vivo – vivo – ele pula – ai que dor ele me morde – tirem-no de mim – ele salta ao meu pescoço – me rasga – me estrangula – matem-no – matem-no – ele está vivo.

MENINA I – (arranca o coração com as mãos envolvidas na fralda do vestido e como se segurasse um carvão incandescente o introduz na boca da boneca) –  o coração vai pôr seu ovo e a colmeia cantará suas litanias a matinas de mel de fel colados às cordoalhas e às velas da barca encalhada a baba dos bodes do sol.

MENINA IV – aqui a página está branca vazia  extinta o silêncio  envolve de cinzas seus passos uma grande poça branca mole depõe seus dedos pálidos seu escarro sobre a franja da bandeira estendida sobre o cadáver

MENINA II – a cabra curte seu porre morta na laguna do leite espalhado sobre a poça de sangue enfiada na lama até os tornozelos da flor aberta.

MENINA  I – vou arrumar  um pouco a casa vou  ver toda essa poeira de estrelas que esmagamos  com os nossos saltos  e regar com um pouco de lágrimas a grande  sede  de  riso  da  grande  boca cheia  de  terra  do quintal – vocês  duas consertem  cada uma com sua faca e com toda a delicadeza exigida e querida os grandes  frascos de azul inflados de sabedoria  e que não reste um só talo para juncar com seus traços de arcabuz o alto da torre abarrotada  de amores  urrando agitando as asas através das grades.

MENINA  II – ali ali olhe a serpente  sua espada  que  penetra  tão  de leve na chaga sem tremer a mão.

MENINA  I – morreu  o riso  viva  o riso  o riso  pôs seu  vestido  de  noiva  e enfeitou  de anêmonas  os cabelos mas o longo véu de   chumbo  o imobiliza e o esmaga  e  sua  cauda  se  engancha  e rasga  e  quebra  as  taças de cristal tão delicadamente colocadas cheias de flores no chão à sua passagem

MENINA II – olhe só enchi esta taça de água retirei o copo e a água continuou em seu lugar sem que uma só gota molhasse minhas  mãos – agora quebrei o copo e não sei onde por toda essa água.

MENINA IV (aproxima os lábios da água e bebe como se na fonte) – como é doce e fresca

MENINA II – e clara

MENINA I – é a árvore do saber e do bem e do mal ou a dorme em pé

MENINA II – só o olho do touro que morre na arena vê

MENINA I – ele se vê

MENINA IV – o espelho deformante vê

MENINA II – a morte esta água clara

MENINA I- e muito pesada

MENINA IV – contornam de folhas verdes o leito  de  ardósia  e  cubram  de mirtilos  a  renda  de caranguejos  fazendo  quarto  a parte  e branca alcova em segredo quero lhes dizer meu caderno de despesas e moinho  de pedra plissada acordeom tão doce ao fundo dos bosques.

A primeira das notas escritas e cantadas radiante e penteada a contrapelo goteja suas rosas e pervincas sobre a teia de aranha fazendo suas contas sobre a borda da pia – acrescento, primeiro – um  saquinho  de pralinas  malvas  rosas  e verdes  uma  máscara  de carnaval  máscara  de cinza suando  a pez  dos anos  e picada por uma chuva de grãos de arroz iluminando a face cheia de riso de um céu de verão às 7 h torcido no pau de sebo aspirado pela tempestade e segundo aderindo com  todo  o  peso  à  teia  estraçalhada  que  abana   a  guipura   do açougueiro as tripas desfeitas balançando os dedos no mar a face do vaso cheio de jasmins – e após  os regimentos  do tédio  o açougueiro 50  o quitandeiro 3000 – o carvão o óleo as ervilhas as cenouras o açúcar os cravos-da-índia as batatas cebolas sal pimenta 38 e 11 e 200 três mil oitenta  seis centos cinquenta o arroz o alho as ervilhas grãos-de–bico a laranja voos de pombas  negras  por trás do leque desfeito atirado ao chão longa carta a responder  e não ler olhos fechados às músicas cruzando suas espadas ponta a ponta e o Iongo desfile dos rebanhos de águias roendo  unhas e bicos no negro do estandarte que cobre a mesa do festim e as tochas.

MENlNA I – o aço dos fogos de alegria acocorados em círculo e as acrobáticas fábulas  desfraldadas  herborizando  o celeste  azul-real azul tão terno  e meigo vestido de azul com toda a parcimônia de sua angústia posta em dia.

MENlNA II – boa festa  feliz ano  verão  tão suave  ar  de  metal  línguas  de abelhas cheiro de pio grelhado e de manteiga e melancia

MENlNA  IV – à noite  eu  canto  e  choro  minha  cabeça batendo  contra  o carneiro  de  minha  cama  os  arabescos  das  meadas de  lã de  minha paleta

recheada de pássaros e minhas mãos de gaze descosem a dentadas o buquê de anêmonas

MENlNA II – a alegre canção do verão – bela e tão grávida e encantadora jovem peça única e muito rara o largo traço de giz branco apagará timidamente a conta

MENINA I – o cinzel cor de anil rendado de esmeralda corta em dois o arco da ponte do canteiro da carta de jogar arriscando  a sua sorte – a sombra rompe suas amarras

MENINA II – árvore jóia  cheia de palavras colar de esperança corrente de mel ária de flauta máscara de argila sino de prata rosa de cristal sono de relógio

MENINA I – vejam como o sol que nos deseja chega a nós através das folhas e lepra nossos rostos mãos e roupas e o quintal. Seus dedos cheiram a figos seco a pus a sangue a nardo e o azul de sua roupa se decompõe em mil lantejoulas e cantos gregorianos e alcalinos relentos (riem) – o sol nos disfarça de morta o sol nos ama

(Cena dos coveiros carnaval)

Um grupo de coveiros chega carregando um caixão – estão fantasiados de sátiros centauros e bacantes – chegam dançando  bêbedos – depositam  o caixão  sobre  estrados  que  recobriram   de  palmas  abrem-no  e  tiram  dele grandes ânforas e taças que enchem de vinho e enquanto bebem brincam de roda em volta das ânforas postas em pé sobre o caixão

MENINA II – dança a noite em volta das luzes canta o íris em volta dos jogos de cartas e rasga em cadência as cordas da ânfora seus fogos e o silêncio do côncavo das mãos

MENINA I – flocos de estrelas colocados sobre o fogo vivo das camadas de sol sofrendo de suas algas a arquitetura toda em caminhos de atalhos o ovo posto a baixo custo a bandeira azul queimando nas quatro pontas

MENINA II- a cinza atirada ao pasto das águias do galinheiro funde o bronze das asas do cavalo arrastando a charrua no campo de diamante e atrela às lanternas as melodias da ponta do buril grifando o mel do cobre

MENINA IV- órgãos ébrios do louco amor âncoras atiradas ao fundo dos céus linhas puxadas das barcas molhadas  de chamas

MENINA II – a grande torta de cerejas está cheia de moscas – se vocês não querem prová-la vou comê-la inteira inteirinha e podem depois chorar chorar chorar e me bater

MENINA I- a torta e tão minha quanto sua quanto todas

MENINA IV- a torta não é de ninguém ou antes ela é das moscas

Os coveiros voltam a apanhar o caixão com  todo  o cerimonial da chegada  e partem dançando as meninas os seguem e ouve-se  a MENINA  III gritando – é isso é isso é isso

 Cortina- Fim do 2° ato

foto4

3° ATO

O mesmo quintal  mas  no  interior  de uma  gaiola  dentro  da  qual  as  quatro meninas estilo nuas

MENINA II -na amarelinha as árvores são sinos do fio de prumo que a cada sopa a ária do violino traz a cada passo e fia a trama dos violinos cosidos à franja lilás dos corpos de caça estendidos rochedos de cobalto e colares de ouriços transbordam no Ianço de muro do relógio amarrado a cada folha as incompatíveis feridas e as chicotadas dos aromáticos saltos de carpa de tanto azul misturado às guipuras da carnificina e a vergonha e rascantes remorsos das flores desmaiadas sobre o lago de amêndoas.

A cada cordeiro sua carga de asas e todo o peso das auroras postas em dia sobre o mármore gravado com garras e dentes a melancólica inocência dos linhos limpando o suor da face do azul do céu atado ao pote por cordas o arco-íris estendido ao máximo descobre aos transes do buquê seu caminho e parte para o festim posto em jogo.

MENINA I – a catastrófica  ausência  de  quaisquer  andaimes  e  o  temor impreciso do grande salto ao alto da escada plantam um estandarte no cimo desfraldar seus fastos e aniversários.

No meio da cena aparece a bolha de um grande aquário em que nadam em círculo peixes coloridos um vermelho outro azul outro amarelo outro verde outro violeta outro laranja

Do aquário sai o buquê de um fogo de artifício  

A tinta da fonte rasga os joelhos sobre a manteiga derretida desta tarde jogada à cara ou coroa no cristal do prisma do acre persistente perfume das volutas dos cantos das sombras recolhidas nas mãos estendidas aos suplícios e convulsa delicadamente  gota  a  gota  a  rota  desenfreada dos  carros  róseos  dos  íbis arrastando seus farrapos na lama da cal remexida dos remos batendo em desordem suas palmas sobre o chamalote das arcadas pique corpos e bens sobre o leque e fio de Ariadne enredado nas sarda moreia o festim todo posto à parte

MENINA IV – a sombra da aurora marca com a unha no canto da página seu buque de anêmonas

MENINA II- rato camundongo arganaz musaranho morcego flor de piretro unguento cinza ácido cítrico posto a cavalo sobre o ramo de lilás adormecido graciosamente deposto aos pés fendidos do contrato em chuva de rosas e tortas de creme.

MENINA I – rotunda em espiral jogada ao vento pasta de tocaia sobre o alva arrancado da árvore plantada de raízes para cima sobre o lago esmeralda. MENINA II- garatuja garatujas garatujas passando a esponja molhada de giz sobre a ária e a canção espetando o xale de luas na paisagem gritando em altos brados  delicadas  atenções e suas melancólicas e angustiantes cantorções rato camundongo arganaz musaranho morcego unguento ácido lilás cinza nítrico e chuva longínqua de passo de asas batendo duro como ferro sabre os barrotes do céu através da gaiola

MENlNA  I – serpentes trançadas em longas esteiras cada abelha portando seu vestido de flores a taça repleta de Ieite salta de pés juntos suas manigâncias e melodias em cascatas arabescos e mordidas a cada caule mãos estendidas

MENINA II- a pequena joaninha rasteja suas lanternas  penduradas  com uma corda ao pescoço do patíbulo e range o óleo de sua oliva nas pedras de fogo untando a poça de azul pervinca limpando os vidros de seu linho mergulhado no ovo batido em omelete de perder o fôlego

MENINA I – a joninha morreu ora pro nobis a joaninha se acaba ela acabou

MENINA lV – pão um copo de vinho e a sopa a mesa recoberta com a toalha xadrez azul escuro e azul claro o garfo a faca a colher a mesa a colher o guardanapo  dobrado sobre o prato o murro no lado direito da mesa o balde o amarelo derramado ligeiramente  rosa vomitado  pelo sol limpando a cor acobreada  erguidas sabre seus esporões fazendo-lhe face

MENINA II – contem  digam  um  dois  três  quatro  dez  onze  vinte  dois  três quatro quatro quatro

MENlNA  I – contem contem contem

NINA IV – laranja tangerina  limão azeitonas peixinhos grelhados  o tique­taque do despertador a hora da tarde o dia a manhã a aurora

Fim do 3° ato

foto5

4° ato

O mesmo pomar (à luz da lua)

MENINA IV – sentada numa cadeira sozinha – a manhã mergulha suas alusões e seus carros louros de acres aciduladas rampantes estrelas de patas negras de eixos pontos e vírgulas fixados a vidraça destacada uivante de tantos ocres e pálidos festões desfeitos em fendas de poeira e raias oleando o degrau do poço atirado ao  fogo aprestando  o  cinza  ruidoso  provendo  a  abóbora  colhida na armadilha   suas  enlameadas   ilusões e  suas  alusões  mentirosas de  cortinas cerradas falando à parte  estremecendo  suas  melodias  e seus  gritos  aos  cem pontos   cardeais   e  suas  salsichas   ardentes   ao  arco  intervindo   nos   jogos descobrindo o nu vestido de viga de amendoeiras em flor arrebatando o leito de todos  os  seus  enfeites  e  unguentos  soltos  em  voo  de  pombas  de  goela escancarada  de sol esmagado sobre o tecido bordado  de amêndoa  no prato de arroz  silêncio  posto  as claras  de tocaia  inchado  de  músicas  hilariando  suas hortênsias em ondas de remorsos e circunstância atenuantes.

Focinho careteiro torcendo seus pregos nos punhos  fechados distribuindo  suas ogivas mantendo  em dia a dia suas contas  dobrando  em bola seus salpicos  e suas ardósias sob a asa.

A pilha de-aromas toando seus cânticos e suas mordidas a cada porta todas as velas desfraldadas e todo o  encantamento  permitido a  gaiola   aberta desenrola seu leque e rói o mármore  da corrente  a cifra inscrita  procura suas pulgas sob a pia a pequena  caçarola azul  dorme apoiada  a sombra  rosa feita gratuitamente de pés juntos de joelhos deitada  no chão a falsa violeta corta o pescoço da janela arrastada  pelos cabelos sobre os ladrilhos da cozinha a mesa molhando  suas  patas no  sangue  a boca  aberta  mostrando  o  ciículo  de  seus dentes azuis votos inúteis engancham  suas asas aos pregos entortados pelo ferrugem  – a gravidade da bora  corrompe  sua  carne  à claridade  emitida  em evidência  e o fluxo do relógio autoriza a cada passo sua autoritária aversão

(Entra um enorme cavalo branco alado arrastando suas tripas rodeado de águias – um mocho está pousado em sua cabeça – fica um breve lapso diante da menina e desaparece do outro lado da cena.)

Fonte  luminosa de pêlos eriçados do arco-íris  enganchado  em  cada dedo  dos colares  de  plumas  do  ácido  ferindo  de  morte   o  animal  – o  montão  de reverências  e genuflexões e o alerta dado infligindo suas carícias as estridências do azul desenrolado  diluída em todo

O Ieite derramado  sobre o ramo de mimomas  agitado  obscurecendo  a peça encantamentos esbranquiçados e estouros    bizarros    contorcionando   aos diminutivos adquiridos borboleteantes  imagens concêntricas.

O vestido azul do corpete liIás do verde tão tenra de sua saia das mãos rosas do amarelo  a cadência  do  ocre  vermelho  revelado   em  sobressalto   do  sonho adormecido  gradualmente esparso gota a gota imobilizado  no giz suspenso em ondas dosando a mistura em signos convencionados traçando o caminho aberto ao aroma desprendido  sobre a borda de sentinela  (uma gatinha tendo na boca um canário salta de um galho a outro e a neve começa a cair) lençol dobrado em diagonal festonado de cravos e de íris cabana do Pai Tomás coberta de luas e talhadas de melancia pássaro de algas Tristão e Isolda de gesso cadeia de rosas e palmeira cheia de figos e de ratos grandes concha relógio de ouro e livro aberto de rasuras roída por enxames de abelhas árvore do berne do mal posta no fogo das licitações.

Entram as meninas I e II nuas trazendo grandes círios acesos numa das mãos e puxando com a outra uma charrete vazia – a menina IV rompe em lágrimas e dança como uma louca até cair no chão rindo e fazendo suas roupas em farrapos

MENINA IV -gordura fervente caída das estrelas inundando com seus caroços de cereja os lençóis róseos dos campos de violeta grelhando suas plumas nos gelos do sol dormindo a sesta  asas despregadas sobre a cortina de plumas estendidas ajur mordendo de pés juntos a isca

Bom  prato  de  tripas  bem  quentes  risos  em  todos  os  andares  vinho transbordando das ânforas grande pão branco buquê de abelhas cheio de rosas enxame de mãos mordiscando a echarpe de seda bordada de carícias e à ponta da agua a gota de sangue torcendo sua chama vestido com grandes poás limão verde amêndoa negra e amaranto alegria atirada aos gansos e fio a  prumo torcido em sarças  orlas da palmeira dobrada cuidadosamente aos golpes do machado tão duramente batidas pelos lábios das bandeiroIas dependuradas nas lanças atravessando as gazes mais o azul derramado em ondas tão mesquinhamente mostrando bico e dentes à chaga rosa e  festão  dourado  glória   aos  diminutivos perfumes  verde quadriculado a resposta voltando as costas ao sol serrado em suas garras a imensidade da mágoa derramada escondendo a janela com suas mãos de lama

MENINA I – dentes serrados em tomo do punho do pescoço da águia o chicote de sua plumagem engancha-se a cada pétala as carícias mais inesperadas e as violentas reflexões inconciliáveis  com os arcos da ponte derretendo-se em lágrimas suas cavalgadas procissões e imprevisíveis sugestões aos inumeráveis atributos tão obscuramente postos em evidência – eis aqui a nota três pacotes de linha branca de costura e de cerzir em ponto morto a catastrófica imagem revelada pelo ácido a cada marcha o joelho iluminando o caminho de esfoladuras

MENINA ll – a bela fritada de cadoz o prato de nhoque doce pissaladeira voz clara do linho estendido batendo os dentes postos em oferenda ao sol poente à sombra sob o plátano

MENINA I – a talhada de melão grelha sua fome polar ao clarão da lua

MENINA ll – Ieite de amêndoas doces passas figos alface ouro fundido azeitos pretas cachos de risos as mãos e verde suco de estrelas nascentes trombetas de prata empapando os pés abeira do lago.

Vaso de  argila transbordando milagres  batido  por  enxames de  abelhas inabordável escada destacada da casa em fogo semeando o prado com grandes punhados de sal

MENINA IV – gostaria de ter um vestido de seda de ouro violeta bordado de prata costurado de pérolas de jasmins de filhos da Virgem bordada de ramos de mimosas  de heliotrópios  de narcisos  de cravos de espigas  de milho e minha cabeça rodeada de chamas ver entre as sarças grandes papoulas e os mares de sargaços dos pregos de cravos densos plantados sobre as algas rosas exsudando as vagas de baba das rosas azul celeste sobre as palavras pirogravadas  sobre o ouro  dos  mármores  cobrindo  as asas do  alambrado envolvendo  o ninho  da serpentes

MENINA II – negro  festim linho fino estendido  a secar ensopado de lágrima sobre o leito desfeito riscado a cada suspiro pelas persianas

MENINA IV – mentira posta  às  claras  em  plena  ebulição sobre  a  mão arrancada  ao  destino  bordada  de  signos  arquitetura   líquida  do  palácio de maravilhas  postas a boiar  sobre  a nuvem  cristalizada  raspando  o campo  de violetas lambendo a chama

MENINA II- violenta  tempestade  figurada  pelo  buquê  posto  ao abrigo  das chuvas   de compotas  por trás do engradado  posto sobre a pia cobrindo o ouro das  bordas com a dobras  rasgadas  de seu casaco  violeta  mãos  estendidas  às doçuras dos signos convencionados

MENINA IV – fossa comum aberta aos festins dos  jogos de endereços dos grafitis  desfolhando  precipitadamente  o  lago  adormecido  em  sobressalto  de Ofélias

MENINA I – parto negro da ondas de orquídeas apontando seus jogos de azar para as telha fixadasnos linhos rasgados jogando os cotovelos  grande besteira feita o número que ganha aureola de serpentinas a cabeça

golpeando a fronte contra as lajes do templo subitamente refletido no olho cego do lago estendido de negro agarrando com as unhas minuciosamente a cifra MENINA IV -silêncio posto a ferros camisa de foça ângulo torcido restos de comida coagulados de esmeraldas da garganta aberta da pomba

(*Ouve-se a voz da menina III gritando – é isto é isto é isto é isto…)

o unguento das asas abertas do cavalo arrastando a charrua rói a chaga a vivo e raspa a mordida  feita no vestido por gotas de sol cantando seus broncos sapos na sombra oferecida

MENINA III ao Ionge– é isto…

Lança vibrante pregada no meio do céu estendido de veludos verde maça rosa do babado de orla rasgada as franjas nos picantes das amoras

MENINA II –  grande canteiro  branco em bolas de algodão  sedas asas malvas talos de grama azul-reais dos idílicos picantes de creme batido azul das rendas achamaloteadas cor de cera do braço pendido sobre  o vazio à  janela  cortada sobre  o céu espalhado  em campo  de aveia  sobre a mantilha  negra  dos fios a prumo cruzando  suas ripas  de madeira  pintadas  de verde de cromo rangendo seus  ávidos  e  faustosos  desejos  nas  jarras  dormentes   abafadas   pela  goma arábica dos cantos alcalinos  do concreto  encadeado  apanhado  na armadilha das luas arrastadas do assalto pelos tratos de terra arrancados aos cantos tardios dos rouxinóis

MENINA IV –  a carga das asas trazendo a aba do pichel suspenso  ao horário do dedo mínimo

MENINA II- baile de máscaras mordiscando em silêncio sobre a ardósia

MENINA IV – cavalo furioso cheio de ameixas trançado de pássaros a flauta ao Ionge fazendo das suas sobre a fatia de melão aclarando a rampa do buquê de jasmins batendo duro como o ferro a grandes golpes de chicote de braço comprido encurtado a doce e terna imagem

MENINA IV – hoje dezessete de maio de mil novecentos e quarenta e oito nosso pai tomou seu primeiro banho e ontem belo Domingo foi ver em Nîmes uma  corrida  de  touros com  alguns  amigos  comeu  um  prato  de  arroz  à espanhola e bebeu provadores de vinho na enologia

MENINA ll – o amor estende suas lavas sobre os  fogos despertados nos quadrantes solares o arco flutua sobre as rodas de chamas o óleo que corre em ondas sobre a tempestade a barca bate asas sobre o tambor enegrecido pelas lágrimas uma tromba de cinzas acumula alga em torno de picantes arrancados aos azuis chamuscados das trombetas infestando a rendas atiradas sobre as moitas descobertas as respostas e correm a cada esmola as ruborizadas esperança dos caules partidos em longas folhas aos mastros torcidos grunhindo seus sorrisos levantados do desenho pintado no vestido e as mãos juntas coladas aos galhos quebradas da barca fogo perdido mordendo a página branca pregada verde amêndoa doce do limoeiro lavando a borda da fita transbordando da mesa de madeira branca pintada de ocre a cada degrau chicoteada pelo grão de arroz do sol nascente a pata contra o muro calcinado cheio de revelações.

MENINA IV – oráculo enganchado às infelicidades exsudando suas tropas de camaleões nos barrotes da tempestade torcendo as asas sobre o chão enfeitado de lanças afundando sobre a presa

MENINA II- azul rosa e malva e limão da grande tigela de leite agitada de manhã à janela

MENINA IV – a boca abrindo os cílios a escada de corda abrindo caminho às cotoveladas sobre a pedra do tanque da cozinha saltos de cabra árias da música adquirida as liras do metal dos rebanhos dos aromáticos arabescos fixados ganchos e unhas sobre o tecido de pó branco lambendo a jarra pesada constelação de respostas todas as cortinas erguidas aos refrãos dissolvida no creme derramado nas urtigas atirada em grandes punhados de sal da cabeleira emaranhada de grande plantio de favas pintado em grandes azeitonas pretas sobre a ardósia

MENINA ll – espelho

MENINA IV – silêncio desvestido das multidões de lâmpadas de prata ardentes iluminando-o qual dia de seus golpes de leque a dança que cai sobre a flor que se afoga retalha seus risos no côncavo da mão desatando a fivela de sua sandália.

MENINA ll – o riso faz seu ninho a grama canta a terra grita suas olhadelas e arrasta suas barcarolas para as habilidosas festividades votivas untando as vagas com suas palmas.

O pano cai por uns instantes – mudança de cenário – a cena esta pintada de branco cortina de fundo bastidores gambiarras estilo cobertos com todas as letras do alfabeto e números em grandes caracteres pintados de todas as cores  também o chão do palco esta pintado da mesma maneira – ao centro uma cama em que as três meninas I-II-IV estão deitadas – enormes cães alados vagueiam na cena em volta da cama

AS MENINAS na cama cantando ­

ah ah ah ah ah o amor

ah ah ah ah ah a morte

ah ah ah ah ah a vida

ah ah ah ah ah rir riremos nós rir rirei vós a morte o amor a vida rirei vós o amor rirei vós a vida  rirei vós a morte ride que eu ria  que a vida a morte o amor e vós e a morte a vida e o amor riam ride conosco riamos convosco o amor a morte a morte a vida a vida ao amor a vida a morte a vida a morte o amor toda a vida

Saltam as meninas da cama nua estendem no chão um grande lago azul

rodeado de flores e nele se banham – do meio do lago sai a menina III nua também os cabelos cobertos de flores e envolta de flores no pescoço nos punhos nos tornozelos na cintura dança no meio segurando a boneca num braço e puxando a cabra pela trela – os cães alados voam ­ repórteres fotógrafos entram em tropel e fotografam a cena de todos os lados

Cai o pano – Fim do 4°ato

foto6

5°ATO

Cena – o mesmo pomar – as quatro meninas com vestidinhos de cores vivas – a bola de fogo de um sol enorme ao explodindo rola sobre a cena o grande lago que as meninas estenderam no fim do 4°ato em cujas águas enormes íbis mergulham as palas e pescam peixinhos e rãs as meninas cantam brincando de roda – não iremos mais ao bosque

derrubaram os loureiros…

gritando

MENINA I- Jeannette venha cá

MENINA II – Jeannette

MENINA III – Jeannette

MENINA IV – Jeannette

MENINA II- Jeannette

MENINA III – Jeannette

MENINA IV – Jeannette aqui está lá está a carta

Põem-se a ler a carta em voz alta

– Minhas delicias minhas couves meus nabos minhas couves-nabos minhas ervilhas minhas cotovias eu lhes escrevo daqui a mil léguas de qualquer sinal percebido e de todo e equívoco esclarecimento varrendo as vaga das velas batendo com força nas persianas

A filha do funileiro deu à luz esta noite no albergue a alegria resplandecente de ser mãe de um gordo neném rechonchudo revelado pela placa  grande revelação incrível aparência jubilosa descoberta que os ângulos abertos das asas brancas das pombas arrastaram de uma boa sopa a outra em tornos dos arco-íris quebradas sobre o mármore.

O pai e a mãe estão passando bem e os anjos só chegarão bem mais tarde.

Esperamos também seu tio com a pequena cadela e as grandes despesas virão depois quando as rosas terão feito seus buquês e a partida indecente será pregada sem tambores nem trombetas e todos os fogos acesos sob a grelha do fomo posto a nu por tantos buques oferecidos as ninfas que são vocês em holocausto e se lhes faço rir tanto pior esta noite fará mais claro e amanhã o ranger de dentes de seu gordo gato poderá cantar matinas e vésperas sobre as costas todas suas velhas e corteses civilidades e suas oferendas à Virgem – e seu tio souber que lhes escrevi ficarei coberto de chagas feridas desde a nuca aos tornozelos e creio que será tudo como aperitivo boa noite beijos eu lhes desejo minhas pequenas lentilhas seu humilde servidor e seu muito temo e devotada serva não tendo o ar de esquecer as escondidas todo meu velho mofo em toda parte grande pacote de excrementos do prato cheio até as bordas incarnadas de minha reverência

MENINA I – grande vagabunda imenso cagalhão porcaria bem traçada.

MENINA II – quarto de peidar

MENINA III – velha marmelada de esgotos monte de excrementos

MENINA IV – torta dourada de merda

MENINA III – o machado furta-cor das flores do buquê do feixe de anêmonas diluído no azul das chamas e a delicada atenção prestada à máscara careteira da cesta de laranjas amarram na forca a corda da lira batendo as asas na gaiola

MENINA IV – boca a boca o relógio grita suas babas sobre o aço contido na taça das mãos voantes que batem nos vidros das janelas a vela de alteia enfeixando o vestido lança ao granito as flores sangrentas com feridas evidentes

MENINA III – seu vestido lantejoulado de gritos tocando o clarim no centro da

laguna em fogo cortando em dois o espelho da arena enterrada sob as rendas

MENINA III – o vácuo solta suas garras e morde a todo pano diante da imagem

MENINA I -o silêncio se estira sobre a bola de sabão do sonho enterrado nas acrobacias despejadas das palmas açoitadas duramente até o sangue

MENINA II- a luz move no centro da echarpe os jogos suas orações suas coroas de espinhos

MENINA I – em grandes colheradas a paisagem repintada sobre a ardósia chacoalha suas pulgas a cada ponto do equinócio com frias doura aninhadas em arvoredos de mármores das sereias o pouco de azul queimado em feixe de aveia em chuva de encantações e risos rasgados e jogos de graças

MENINA Ill – boca negra do sol repleta de cinza

MENINA I- odor apavorante de uma cheia pratada de estrelas fritas na panela MENINA II – grandes sapos engolidores de bois tabula do Pai Tomás e da Virgem Maria domadora de pulgas o arquiteto que fez suas necessidades tirando a escada com ambas as mãos

MENINA I – janela aberta para o branco imaculado da página marcada ao centro com o mel de abelhas da palavra riso

MENINA IV – leite de jasmins

MENlNA II- unguento de nardos

MENINA I -licor de cravos

MENINA III – grossa risca de giz barrando a estrada

MENINA I – a sopa vazia se abre em guirlandas de umbigos e a festa recomeça algas festões e jatos de alcova doces traços tirados à noite do cora o do lago de pé sobre pernas de pau batendo asas a colcha da cama grifando com grossos traços de tinta a folhagem de leite morno

MENINA II – a sombra do limoeiro cava seu ninho na ponta do punhal enfiado até o coração no ácido escondido sob o campo de medusas do acordar

MENINA  I – sombra morna pendida da bora bebida na fonte

MENINA II- salga de anchovas das largas estradas da lembrança cortada em picadinho sobre o mármore coberto de grafites de tantas auroras abandonadas ao telefone das tacheias de cegos rouxinóis

MENINA IV-dedos leves da noite cantando gota a gota seus colares de orvalho

MENINA I- e cravada em cada estrela a harpa de cada folha tirada do vestido nadando nas dobras dos carrosséis iluminados por fogos extintos como de dia

MENINA II – esmeralda cheia de pimenta-negra gota de cera fervente caída no olho espantado da noite

MENINA IV- grande pérola do oriente apanhada pela tarântula

MENINA I- circunferência aberta ao riso

MENINA II- alegria  louca dos leques erguendo voo de pombas sobre o azul da bochecha

MENlNA I – abrindo o silencio da talhada de melancia gelando a hora arrancada moribunda das unhas bicos e garras do azul acidulado riscando os traços de pena do balcão de caniços fixado em bandeirolas  à música saltando de pés juntos sobre a cama posta nos bastidores

MENINA II  (mergulhando no lago e cantando) – silêncio de rosa silêncio de melão silêncio de alteia silêncio de carvão rosa de silêncio rosa de melão rosa de silêncio de carvão de rosa de rosa de rosa de rosa e branca papoula  e a casa a mosca sobre a manga verde de seu vestido malva de grandes bolas  limão chapéu de andorinha sapatos de sapo cinturão de cobra belo amarílis peras figos e pêssegos laranjas limões ar fresco das montanhas e grande monte de velhos babacas e ora pro nobis que lhes dizem alo e lhes mostram o rabo grandes porcos e porcas e seus porquinhos todos alados  enchem o lago – as meninas dançam e cantam em coro a canção que a menina II cantou a princípio sozinha – dois ou três vezes

imobilidade – grande silêncio

Pano – Fim do 5° ato.

foto7

6° ATO

Na horta

Sob uma grande mesa as quatro meninas sobre a mesa um enorme buquê de

Flores e frutas num prato – alguns copos e uma jarra – pão  e uma faca uma enorme serpente se enrola numa das pernas da mesa e sobe para comer as frutas morde as flores o pão e bebe na jarra

AS QUATRO MENINAS lendo um livro -”a vida de vida à vida de vida tão vida a vida pela vida de vida tão vida de vida a vida a morte à morte tão morte à morte de vida a morte tão vida tão morte a vida a morte para a vida de vida aromática escada fincada nas ondas do azul em quadrados luminosos em corbelhas aveia louca colorário opalino acidulado em chamalotes e guirlandas aos suaves impasses dos festões luminosos e pontilhados olhares músicos revistos tão atualmente revelados aos rasgões – orgasmos de asas metodicamente dissolvidas em bailes e procissões unguentos e cavalgadas – a porta aberta do esquecimento batendo contra o céu seus charcos fétidos – a barra do vestido rasgado limpando os vidros besuntando o monte de revela contidas na taça quebrada rompendo o aroma em frágil castelo de cartas os punhos fechados arranhando o vidro do espelho – simulacro justificado pela enorme soma a pagar da qual eis aqui um detalhe o vestido todo de desejos festonados de ouro e de jasmins todo de pérolas cintura de amarílis costurada com fios de diamantes branca aIface gota a gota regada de estrelas grande buquê de fogos no Pont-Neuf à noite pelas 11 horas do dia 14 de julho mandíbula serrada  com os ferrolhos do lagarto preso pela doçura das asas balbuciantes da borboleta noturna convulsionando os braços no creme da noite diluída no mármore fervente cantando de todo comprimento sua litania à passagem da isca grande monte de cebolas de berinjelas de pimentas de melões e de figos timo rosmaninho robalo rascassos enguias alho vestido de lua com grandes pés de esmeralda vestido branco de nuvens vestido de azul vestido feito de grandes troncos de árvores nogueiras carvalho mogno pau-de-ferro ébano tocador de castanholas pau-rosa e limoeiro pé de alcaçuz e pé de panamá limpo para lavar”

MENINA II:- a rosa do cravo ri com todos os dentes da história ela escuta e já refletiu sobre as consequências finais dos fios trançados tão finamente para fazer a tela e tábua rasa de toda ira contida nas tão longamente esperadas auroras

MENINA I- tudo se acende meu vestido de fogos de São Joao rabisca em minhas mãos seus horóscopos e dá de beber suas espadas aos rebanhos de cabras que parem na grama molhada

(um verdadeiro balé de formigas aladas enche de alto a baixo a cena disputando a rainha em fantásticos torneios)

MENINA IV- carvão ardente alga em flor de lis ondas de sangue músico de pesados riachos pendidos dos fios elétricos em escamas

MENINA IV- mão arrancada da face caindo a pique em flor de acanto ao Iongo do braço mergulhando por inteiro seu lote de sarças de Ianças de alabastro as caricaturais harmônicas quebraduras da aparente ferida feita de improviso pelo branco lilás untando na ponta do caule a singular aparição bebida até a lia no coração do mármore escondido atrás da máscara pintada cor da carne

As quatro meninas apanham  a serpente e servindo-se dela como se fosse uma grande foice dão grandes golpes no ar sobre as formigas volantes e as abatem por trás da horta passam alguns rapazes tocando acordeon e cantando  “o vinhozinho branco que se toma sob a pérgola” entre grandes risalhadas a noite cai – estrelas – a lua – todos os astros – grilos – rãs – sapos ­ algumas cigarras –rouxinóis – vaga-lumes – um intenso perfume de jasmim enche a sala e ouve-se ao Ionge o latido de um cão – depois – toda a horta se aclara cada folha é uma chama de vela – cada flor um lampião de sua cor cada fruta uma tocha e as fitas dos ramos das árvores são de luzes de diferentes chamas – as estrelas cadentes tombam do céu em arpões e fincam suas pontas no chão que se abrem em rosáceas e em taças de fogo – as quatro meninas brincam de pular carniça e riem riem e cantam

Purê de batatas purê de lentilhas purê feijão purê de favas e purê de cebola

Viva o creme o creme de castanhas o molho de vinagre a maça agridoce a couve ao creme éclair de chocolate torta de mirabela gengibre bananas melão figos e pêssegos damascos e passas

(deitam-se no chão e adormecem) árvores flores frutos por toda a parte o sangue corre de fazer poças e inunda a cena empurrando a terra e formando um canteiro quatro grandes folha brancas envolvem as quatro meninas por transparência e ao virarem aparecerão sucessivamente escritas em cada uma das folhas MENINA I-MENINA II-MENINA Ill-MENINA IV

escuridão completa

em seguida a luza cena – (enchendo-a totalmente)  interior de um cubo inteiramente pintado de branco no meio ao chão um copo cheio de vinho tinto

 

Pano – Fim do 6°ato.

FIM.

Sexta-feira, 13 de agosto de 1948 em Vallauris

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condicao

Publicado precisamente há oitenta e três anos (1933), que impressão poderá causar no leitor de hoje este livro que tanto impacto provocou nos leitores de seu tempo? Com a vulgarização da epopeia através do cinema e da televisão, que força espantosa poderá revestir esta ficção para despertar ainda, nos dias atuais, um sentimento de grandiosidade, de sublime heroís­mo, de desprendimento humano — enfim, de épico — que fez desta novela a ruidosa ganhadora do prêmio Goncourt daquele ano?

       A garantia maior de que este livro representa um dos gran­des romances de nossa época é precisamente a sua total capa­cidade de permanecer legível e empolgante até hoje, de ter en­frentado todas as grandes transformações político-sociais deste fim de século e milênio sem perder a vitalidade de sua narrati­va, transformando-se por isso mesmo no que chamamos de um clássico. Romance engajado, sem ser embora um romance de tese, procurando apresentar sob ângulo favorável uma ideolo­gia hoje esvaziada, nem por isso viu perder ou diluir-se sua qualidade literária, sustentada por um estilo novo à época mas que ainda se revela válido e atuante nos dias atuais.

       O olhar crítico, não raro sardônico, que poderia ter o leitor de agora em relação à figura de Malraux, analisado dentro de uma perspectiva que abrange toda a sua vida (com suas tran­sições de herói e aventureiro para o político e o burocrata) — e não apenas o momento glorioso em que compôs o livro — não consegue, nem mesmo assim, embaciar os reflexos lumi­nosos de sua obra. É certo que nela podemos achar, diante das evoluções sofridas durante todos estes anos pelo tema princi­pal — a revolução chinesa de 1927 — que muito da “ideolo­gia” explicitada no romance há de soar pelo menos ingênua, para não dizer meramente romântica. Malraux escreve seu li­vro quando a revolução estava em processo e ameaçada, mas, apesar de depois traída e desfigurada, ela hoje aparece como triunfante e estabelecida, malgrado todas as contorções de crueldade e prepotência que em geral as revoluções trazem no seu bojo. Terá esse comunismo do plano real da China de hoje algo a ver com a idealização que dele fazem os persona­gens de A Condição Humana? O próprio Malraux, numa en­trevista de 1973, declarou que “o ideário e a ação do livro es­capam forçosamente a seu autor”, sabendo que seu romance, com o passar do tempo, não poderia ser sentido da mesma maneira que o fora por ocasião de seu aparecimento. É certo que a história, em seu desenvolvimento, ensejou novas pers­pectivas, que o ponto de vista dos leitores mudou. Como bem assinala Alain Meyer em seu comentário ao livro, o romance foi escrito “em cima de uma situação”, que evoluiu, mas a vida de A Condição Humana prossegue. Isso, em vez de tornar o livro perempto, o enriquece. Daí a necessidade de lê-lo ao mesmo tempo no passado e no presente.

      André Malraux é um desses raros autores à maneira de Rimbaud que conseguiram realizar uma obra-vida, passando para o campo da realidade — ou vice-versa — o seu ideário ar­tístico. Sua posição política será necessariamente a de um ho­mem de esquerda, embora não radicalizada a ponto de assumir um comprometimento cego com o partido comunista. Seu es­pírito, sempre lúcido, permanece livre para discordar, para se opor ao banimento de Trótski, para se rebelar contra o regime de ferro de Stálin. Antifacista convicto, parte para a Espanha, onde forma e dirige uma esquadrilha de aviadores estrangeiros junto às forças republicanas contrárias a Franco. Durante a in­vasão alemã da França, na II Guerra Mundial, atua como maqui, comandando a brigada Alsácia-Lorena. Mais tarde, une-se ao general De Gaulle, de quem será um companheiro fiel até o fim. Eis aí, muito esquematicamente, em flashes distintos, como retratos de épocas diversas num álbum aberto ao acaso, alguns dos momentos culminantes desse que foi uma das maiores per­sonalidades — para não dizer personagens — de nosso século. Nos anos 30, era a imagem perfeita do intelectual dublê de ho­mem de ação; o aventureiro dotado de extraordinário senso crí­tico, profundo conhecedor de arte e de literatura. Chegou mes­mo a criar um “tipo” físico, cuja aparência era imitada pelos jovens, como os de hoje imitam os superstars do esporte ou da música pop – – mecha de cabelo rebelde, cigarro nervoso nos lábios, olhar febril e inspirado; e, a partir da Guerra de Espanha, o blusão ou o macacão de aviador. Mais tarde, imitaram-lhe o estilo literário, à exaustão, podendo-se dizer que Albert Camus foi o resultado vitorioso na suplantação do modelo. Facilmente constatamos que tudo isso mudou, que o artista de nossos dias de desconstrutivismo está mais propenso à inação, cultor do álcool, das drogas e da promiscuidade, com tendência a produ­zir necessariamente uma literatura de anti-heroísmo, de. anti­sublimidade, de antiépico enfim, mergulhado que está nas par­tes mais lodosas e individualizantes desse ser que é o homem moderno, condenado ao niilismo e à autodestruição. Dentro dessa ótica é muito difícil encontrar um lugar para este livro que é a exaltação da “amizade viril”, da ação social, da tentativa de restabelecimento da dignidade para o ser humano. A menos que o vejamos como essa luz que sempre se espera nas situações desesperadas.

       Em 1931, Malraux, em companhia de sua mulher Clara, foi comissionado (e financiado) pela editora Gallimard para fazer uma viagem de volta ao mundo com a finalidade de reunir ele­mentos para uma exposição destinada a mostrar o relaciona­mento do mundo grego com o budismo. O itinerário incluía a Pérsia, o Afeganistão, a índia, Cingapura, Cantão, Xangai, a Mandchúria, o Japão e Nova York, etapa final onde os Malraux tiveram que esperar dez dias pelo envio de fundos por parte dos mandatários, que afinal lhes mandaram um bilhete azul, desti­tuindo-os da missão. Em agosto-setembro daquele ano, o casal se encontra em Xangai, donde segue em visita à China central, antes de partir para a Coréia e o Japão. Da China, até aquela data, Malraux só havia conhecido Hong-Kong, e apenas no âmbito da concessão britânica, numa breve visita em abril de 1925. Nessa segunda passagem por lá, conta sua mulher, Clara Malraux (Voici qui vient l’été, Bernard Grasset, 1973) que “nesse ano da graça de 1931, antes de seguir para o Japão, depois de haver passado pelas índias frutuosas, penetramos na China, pela primeira vez Xangai, depois Cantão. Em Xangai sentamo-nos diante do mais comprido balcão de bar do mundo (Morand dixit), eu para beber um rosé e descobrir que não há nada me­Ihor, depois de passarmos um mês sem engolir sequer um frag­mento de verdura, do que mastigar talos de aipo cru, André para beber não sei o quê e sem dúvida comer batatas fritas. No cais fervilhavam riquixás, autos e bondes, fumaça de carvão, de pe­tróleo, excrementos, suores de brancos e amarelos se casavam. De tempos em tempos, um homem se esgueirava, rápido, en­tre os veículos em disparada, na esperança de que alguma roda passasse em cima do corpo invisível do mau espírito que o ator­mentava. Cantão, onde transcorre a ação de Les Conquérants, Cantão, semelhante e diversa do quadro que `ele’ dela fez. For­ça do mito embalador do irreal, tremendamente maior que a da realidade. Eu, só via a realidade, uma pequena realidade fervi­lhante, mais parecida a um fogo-fátuo que a uma pítia; brinca­lhona, um tanto maliciosa, admirativa também, saltitava em tor­no a `ele’. `Foi mesmo aqui que você teve tal gesto, aqui que você disse isso ou aquilo, que sua iniciativa lhe permitiu…?’ Ele se irritava um pouco. Outros, sem dúvida teriam se irritado bem mais. Um ou dois dias mais tarde, fez-me saber que seu próxi­mo romance se transcorreria ali naqueles lugares e me pergun­tou o que eu achava de A Condição Humana como título.”

       O livro começa no dia 21 de março de 1927, ou seja, relata “acontecimentos” ocorridos havia quatro anos. Malraux conse­gue, no entanto, dar-lhes um tom de reportagem “ao vivo”, como se participando fisicamente da ação. Fantasista até a sofreguidão, apesar da realidade quase ficcional em que vivia, ele sempre ali­mentara uma “biografia paralela”, uma espécie de vida “em cai­xa dois”, onde se atribuía desempenhos e ações que só se passa­vam em seu wishful thinking. antes de A Condição Humana, André Malraux havia conquistado seu espaço literário com as narrativas de La Tentation de l’Occident (1926), Les Conquérants (1928) e La Voie Royale (1930), mas em todas elas o escritor ainda se mostra monocórdio, a ação centrada sempre sobre persona­gens quase intercambiáveis, que pouco se diferenciam uns dos outros. Embora nos dois últimos já se encaminhe para o roman­ce de ação, as idéias e reflexões ainda sufocam o desenrolar da trama. Com A Condição Humana, Malraux atinge finalmente seu momento “polifônico”, ou no dizer de Pierre de Boisdeffre (em seu estudo André Malraux, testemunha do século XX, in Mé­tamorphose de Ia littérature, 1963), “por fim seus personagens — e nisto reside a verdadeira conquista literária — vão indivi­dualizar-se: Clappique, Ferral, Gisors são seres plenos, vivos, au­tônomos, que nossa memória não pode confundir.”

       A narrativa reveste-se de um tratamento tão “cinematográfi­co” que quase pode ser lida como um script. Não seria absurdo afirmar que Malraux tivesse, desde o início, a intenção de trans­formar seu romance em filme, ou a de escrever um romance para ser filmado, como procede a maioria dos autores de best sellers modernos. Em todo caso, a técnica era novidade à época, o que assegurou o caráter de ineditismo da obra. A “tomada” inicial do livro mostra o terrorista Tchen no ato de assassinar um trafican­te de armas num quarto de hotel. A cena transcorre a princípio em completo silêncio. O homem está dormindo num somiê sob um cortinado pendente do teto e Tchen hesita entre atingi-lo com sua arma através do cortinado ou erguer o cortinado para atingi­lo. O olho do autor (ou da câmera cinematográfica) faz um close do pé da vítima que parece mais vivo que todo o corpo adormeci­do. Mas não é só o efeito câmera que domina a cena – o autor provê igualmente a iluminação (“A única luz provinha do edifício ao lado: um grande retângulo de eletricidade pálida, cortado pe­las grades da janela, umas das quais riscava a cama precisamente por cima do pé como para acentuar-lhe o volume e a vida” ) e a sonoplastia do momento (“Quatro ou cinco buzinas soaram a um só tempo”). Segue-se a descrição do assassínio cota o mesmo realismo gritante dos filmes noirs atuais, a lâmina que atravessa o corpo, o corpo rechaçado pelas molas do colchão, a mão parali­sada empunhando a arma. E não falta nem mesmo a presença do imprevisto surreal dos filmes impressionistas alemães com o apa­recimento súbito das orelhas de um gato projetadas contra a pa­rede do quarto. Gato que Tchen persegue até a varanda e de re­pente-.grande angular- as luzes da cidade lá embaixo, a volta ao mundo das pessoas vivas. Impossível não se ouvir a música incidental irrompendo com toda a força…

       Há outra cena que se tornou um verdadeiro clichê cinema­tográfico: Tchen, após assassinar (`Assassinar não é só matar”, diz ele para si mesmo) o traficante de armas, vai à sua célula comunicar o resultado aos companheiros que o esperam: “Uma loja cheia de discos. cuidadosamente arrumados, com um vago aspecto de biblioteca municipal; depois os fundos, um quarto espaçoso e nu, e quatro camaradas, em mangas de camisa. Ao se fechar a porta, a lâmpada oscilou: os rostos desapareceram, reapareceram: à esquerda, rechonchudo, Lu-Yu-Dhuen; a ca­beça de boxeador arrebentado de Hemmelrich, cabelo raspa­do, nariz partido, ombros caídos. Ao fundo, na sombra, Katov. A direita, Kyo Gisors; ao lhe passar por cima da cabeça, a lâmpa­da marcava fortemente os cantos caídos de sua boca de estam­pa japonesa; ao se afastar, deslocava as sombras e aquele rosto mestiço parecia quase europeu. As oscilações da lâmpada tor­naram-se cada vez mais curtas: as duas faces de Kyo reapare­ciam a cada vez menos e menos diferentes uma da outra “. Ou ainda esta, repetida até hoje: “A rua deserta. Um riquixá, ao longe, atravessou-a. Um outro. Dois homens saíram. Um cão. Uma bicicleta. Os homens viraram à direita; o riquixá atraves­sou. Rua deserta de novo; só, o cão…” E que pode ser mais cine­matográfico do que a fuga de Clappique, disfarçado de mari­nheiro e empunhando uma vassoura a subir pela escada do navio? Um momento inesquecivelmente chapliniano!

       Era natural que, após o êxito do romance, Malraux buscas­se sua transposição cinematográfica. Em 1934, quando foi a Moscou participar de um congresso de escritores, teve oportu­nidade de visitar a Mezrabpoumfilm, onde lhe prometeram es­tudar uma versão cinematográfica do livro. A adaptação seria feita por Joris Ivens, o metteur en scène e documentarista holandês, ou pelo cineasta soviético Alexandr Dovchenko, e o diretor nada mais nada menos que Sergei Eisenstein, com música de Dimitri Chostakóvitch. Mas o projeto não avançou: houve interferência da censura stalinista, severos cortes foram impostos ao argu­mento. Eisenstein confidenciou a Malraux: “Quando fiz o Potemkin, deixavam-me em paz porque eu era desconhecido e me davam seis semanas para fazer o filme, e se a coisa não des­se certo, pior para mim. Eu tinha 27 anos. Mas agora não vou pedir uma audiência a Stalin, porque, se ele não compreender meu ponto de vista, só me restará o suicídio.”

       O desejo de transformar A Condição Humana em filme po­rém não se arrefeceu com esse primeiro insucesso. (Trinta e cinco anos mais tarde, outra tentativa: a MGM interessou-se pelo pro­jeto, que teria Carlo Ponti como produtor, com Fred Zimmermann na direção. Mas fracassa de novo.) Porém, Malraux teve que se contentar com a proposta de Meyerhold para uma adaptação tea­tral do romance, com música incidental de Prokofiev. Mas nem mesmo essa chance ocorreu. A peça só foi estreada vinte anos de­pois, em dezembro de 1954, no Théâtre Hébertot, numa adapta­ção de Thierry Maulnier, com encenação de Marcelle Tassen­court, que representou igualmente o papel de May. Evidente que um argumento em que a ação predomina sobre a palavra não poderia resultar numa peça de sucesso. As digressões filosóficas de Gisors, as perorações proselitistas de Tchen, as falas amargas de Kyo tornaram-se mero palavrório sem o sustentáculo da in­tensa ação em que elas se integram. Malraux, que chegou a rodar cenas de um filme na Espanha, com roteiro tirado de seu livro L’Espoir (1938-39), morreu (1976) sem ver sua obra-prima trans­posta para o cinema. Parece fatalidade que o mais cinematográfi­co dos livros não tenha encontrado até hoje o seu realizador.

      Mas a grandeza da narrativa não se fundamenta apenas em sua estrutura cinematográfica. Malraux aliou a ela um estilo tenso, de imagens fortes e percucientes, com frases extrema­mente trabalhadas às vezes no intuito de levar o leitor a um misunderstanding, que só se esclarece após uma releitura aten­ta. Utiliza uma pontuação muito pessoal e um sistema de no­tação dialogal que mistura aspas e travessões nem sempre de maneira canônica. Na tradução, esforçamo-nos por manter essas características. Contudo, o que ressalta eloqüente é to­mar como enredo o instante mais drámatico da História de seus dias, trabalhá-lo como um depoimento pessoal, uma ex­periência vivida, dar-lhe um tom de reportagem fragmentária e transfigurá-lo à força da inteligência e profundidade dos diá­logos. Malraux, testemunha do mundo moderno.

       Mais tarde, em seu livro Les Voix du Silence, de 1951, irá dizer: “A arte não tem que copiar o mundo, mas recriá-lo.” Assim entendido, temos que A Condição Humana, nascida de uma tentativa de transformar a História em ficção, acaba por transcender a própria História, o que nos permite hoje ler o livro abstraindo a existência real e passada de uma revolução chinesa em 1927 para senti-lo como uma narrativa atemporal em que predominam comportamentos arquetípicos talvez oriundos das tragédias gregas.

O Malraux que havia mitificado a arte é hoje uma teste­munha do futuro.

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PEQUENA INTRODUÇÃO DO AUTOR

Este meu conto (primeiro e único) foi escrito em 1972, quando trabalhava em casa de Carlos Lacerda revisando verbetes de uma enciclopédia.  Achei-o um tanto artificioso e resolvi submetê-lo à leitura de Antônio Carlos Villaça, que era meu colega de pesquisas. Depois da leitura , com ar meio enigmático, ele acabou dizendo: “Não foi você quem escreveu este conto, foi seu demônio”. Recordo-me que, em vez de “demônio”, ele disse “seu daimon”, numa alusão aos Sonetos de Abraxas, que eu tinha escrito e que também lhe dera para ler. Guardei o conto sem mostrá-lo a outros, receoso de que, conhecendo meu temperamento afável, viessem imaginar que o fizera apenas para épater. Somente muitos anos depois, a bem dizer vinte, convidado a falar sobre o ‘‘conto no Brasil’’, numa tertúlia do centro cultural das Casas de Fronteira e Alorna, em Lisboa, resolvi botar à prova a narrativa, e li-o sem mencionar o nome do autor. O espanto seguiu-se, a plateia manifestou sua preferência pelos nossos contistas regionais, e o Roteiro voltou à escuridão da gaveta. De volta ao Brasil, depois de longa permanência no exterior, comecei a fazer contato com os meios de comunicação e, entre poemas e resenhas, acabei cedendo o conto a uma revista do Paraná (Rascunho), que o publicou sem maiores comentários e sem que tivesse a menor repercussão. Até que um dia tive a sorte de corresponder-me com o arquifamoso tradutor alemão de Guimarães Rosa, Curt Meyer-Clason, que se interessou pelos meus escritos e verteu para o alemão mais de uma dezena de poemas e… o famigerado conto. Clason manifestou especial simpatia por ele e pediu-me autorização para publicá-lo numa revista alemã. Não só (satisfeitíssimo) permiti como lhe outorguei os possíveis direitos autorais que pudessem advir da publicação. Confesso que ao lê-la (ou decifrá-la) em alemão, a narrativa me pareceu ainda mais bizarra e macabra do que a sentia em português. Eis que, quase logo em seguida, o grande tradutor de Drummond para o francês, Didier Lamaison, me faz a surpresa de publicar na conceituadíssima revista literária francesa Caravanes  (2003) sua versão do Roteiro, que me chegou como um verdadeiro presente de Natal. Já era o bastante para considerá-lo editado e não pensar jamais em escrever outro, fosse agindo por mim próprio ou atuado por forças alheias ao meu temperamento. Se o republico hoje na Gaveta é para preservar do limbo estas duas excepcionais traduções. Os conhecedores de línguas e os que se comprazem em estudar os meandros da arte tradutória terão aqui exemplos estelares de recriação literária.

ROTEIRO TURÍSTICO

Ivo Barroso

Em Bangkok (ou Nova York, não sei) há uma rua chamada Sarkanda, que significa Esgoto. Quando um mendigo é apanhado esmolando pela cidade ou um bêbedo caído nas ruas centrais, a polícia o carrega para lá. Um guarda, junto ao portão de arame farpado à entrada da rua, impede os párias de fugir. O confinamento dura em geral até a morte por inanição ou extermínio.

Se os segregados gritam durante o dia, os moradores dos sobrados que dão para a viela atiram sobre eles garrafas vazias ou baldes de água quente. À noite, os mais recalcitrantes são calados a pauladas, pois a população obreira do bairro precisa de repouso para o trabalho da manhã.

Por alguns dólares os turistas podem se divertir com esse curioso espetáculo: montes de lixo humano que se movem e uivam. É cobrada uma taxa especial a quem quiser fotografar. Se durante a visita os mendigos ficam parados e a cena se torna monótona, o guarda do portão permite aos meninos das vizinhanças entrarem em bando pelo beco desferindo pontapés nos corpos caídos. As vítimas já quase não ligam aos chutes nem reagem ao mijo quente que as crianças lhes acertam nos ouvidos. Alguns sangram e cantam quando os meninos os golpeiam com latas vazias de leite em pó amarradas a um fio de barbante, gritando: Canta! Canta! Os turistas sorriem ao guarda e dão pequenas gorjetas às crianças. Os que vêm do interior ou de outros países para conhecer a cidade e podem ficar por mais tempo preferem almoçar num dos restaurantes que funcionam nos sobrados com varandas abertas para o beco. A princípio, costumava-se jogar comida lá de cima para ver como os mendigos reagiam. O garçom explicava que não se devia jogar muita quantidade, pois o objetivo não era alimentar os pobres, mas vê-los disputar as migalhas. Nessas disputas, na ferocidade dos avanços e dos repelões, não raro morria algum. Na manhã seguinte, o lixeiro levava o cadáver para jogar no rio. Nas poucas noites frias, era possível cremá-los em fogueiras feitas de cavacos, restos de caixas, jornais e outras matérias combustíveis que os vizinhos piedosos jogavam das janelas.

Os dois restaurantes, situados um de cada lado da ruela, sempre empenhados em animar a vida do bairro, buscam atrair novas levas de turistas para comer e desfrutar o espetáculo. Mas há problemas a contornar. Como a tendência dos mendigos é a de se aglomerarem a um canto, ocorre às vezes que os clientes do restaurante à direita se divertem mais que os do lado esquerdo. Além disso, a preguiça e a debilidade tornam os miseráveis quase imóveis. Com poucas migalhas se satisfazem; comem e se acocoram para dormir, ou, o que é pior, refugiam-se embaixo de folhas de jornal para evitar a luz dos fortes holofotes que ambos os restaurantes despejam sobre eles. Daí o acordo tácito entre as duas casas: os clientes não podem mais atirar diretamente à rua os restos de seus pratos. A comida que passou a ser lançada consistia de pequenas almôndegas que continham ou não fortes doses purgativas ou veneno. Os mendigos apanhavam as bolas e as cheiravam antes de comê-las; mas nem pelo odor nem pelo gosto era possível distinguir as que tinham das que não tinham veneno. Com a mortandade diária os restaurantes prosperaram. Mas um pequeno grupo conseguiu sobreviver fazendo a seleção alimentar por um critério extra-sensorial. Os espertalhões perceberam que o restaurante mais afastado de onde estavam tendia a atirar uma quantidade maior de almôndegas puras para atraí-los em sua direção. O que gerou uma espécie de dança, para cá e para lá, pouco interessante para os clientes de ambos os restaurantes, que preferiam como dantes ver os mendigos se estrebuchando ou se esvaindo em fezes quando tentavam comer.  Surgiu assim um novo problema para os pobres proprietários dos restaurantes: como os mendigos comem pouco, estava se tornando impossível abrir a casa para as duas refeições diárias. Os mendigos, quando conseguiam engolir algumas bolas inócuas na hora do almoço, não tinham fome por ocasião do jantar e ficavam rindo-se do esforço dos garçons para atraí-los. Claro, os clientes se retraíam: não haviam ido ali para ver mendigos sorridentes. Alguns fregueses saíam contrafeitos ou frustrados, prometiam vir para o jantar ou o almoço do dia seguinte, mas não voltavam mais. Daí terem os donos recorrido experimentalmente ao regime do jejum absoluto: nenhuma comida em hora alguma, com ou sem purgantes e venenos. Mas com a fome, o grupo tendeu a se encolher ainda mais, a permanecer abúlico, e a cada manhã os lixeiros tinham mais trabalho – só que o trabalho dos lixeiros não interessava a ninguém. Além disso, arriscava-se a uma dizimação improdutiva da mão-de-obra integrante do espetáculo.

Surgiu a ideia brilhante de se pendurar os alimentos em longas varas de pescar, sobre a rua, fora do alcance das mãos. Iscavam-nas com algumas almôndegas puras e boas, a recender ainda fumegantes e tiradas diretamente dos pratos dos clientes para afastar qualquer dúvida por parte dos mendigos. A princípio deu certo. O espetáculo voltou à animação dos primeiros dias: a massa informe movia-se, quase ficava em pé. Os recém-recolhidos, novatos com algumas semanas ainda de vida, conseguiam mesmo pular na tentativa de alcançar as iscas. Alguns se aproveitavam dos corpos dos companheiros caídos para subir-lhes por cima.

Mas a alegria do público foi logo esmorecendo. Quando um deles, no extremo do sacrifício de arrimar à almôndega, chegava próximo da isca, os gritos de advertência dos espectadores faziam com que os garçons levantassem as varas, criando a sensação de uma pescaria às avessas, que consistia em evitar que o peixe ferrasse o anzol. Enquanto isto, os garçons do lado oposto baixavam seus caniços para atrair os peixes famintos, e como a distância entre uma varanda e outra era muito reduzida, os oponentes passaram a esgrimir-se com as varas numa tentativa de evitar que o adversário facilitasse a pesca dos mendigos. A prática foi abolida no dia em que, entre urros, ameaças e impropérios, as iscas de carne tombaram no beco em razão da contenda. Os miseráveis apossaram-se delas e foram comê-las tranquilos em seus cantos, divertindo-se com a disputa dos garçons. Houve protestos gerais, alguns clientes saíram reclamando, outros chegaram a falar em devolução do dinheiro.

A solução do impasse pendia dos mais antigos habitantes do bairro: os ratos. Mas não se mostrou evidente no primeiro instante. Aconteceu por acaso. Eles apareciam apenas à noite, rondavam por baixo das varandas quando as luzes dos restaurantes se apagavam; era-lhes fácil farejar as últimas migalhas que os mendigos enjeitavam; quando até mesmo essas rações começaram a rarear, os animais subiam ao longo das paredes de palha, alcançavam as varandas, raspavam do chão das salas suspensas os salpicos de sopa. Depois, saciados, desciam, voltando céleres aos esgotos.

Quando se instituiu o uso das bolas purgativas, com pouco os ratões proliferaram, grande era a sobra que os mendigos deixavam receando a escolha. Os ratos devoravam todas as almôndegas aparentemente sem sofrer efeitos secundários. Mas quando os garçons começaram a carregar nas doses para ver os mendigos gemendo e defecando em público, revolvendo-se sobre o fel de suas próprias entranhas, os ratos também sofreram com isso. Os de pêlo gasto e curtido, que agora já vinham acompanhados de outros mais espertos e claros, a correr sem temor pelo centro da rua – os ratos passaram a guinchar em plena caça e a morrer às dezenas, à entrada dos esgotos, sob o efeito do tóxico. Os que restaram esconderam-se em galerias mais profundas, passaram tempos sem aparecer. Quando voltaram à superfície, estava em plena moda a prática do jejum absoluto e, logo depois, a das iscas suspensas por varas. As ratazanas vasculhavam os cantos, riscavam os muros, roíam as varandas e fugiam famintas. Depois que os andrajosos exauriram o que lhes restava de engenho nas grotescas tentativas de alcançar os caniços, e a prática das varas foi abolida, os ratos voltaram ao desespero da fome, em declarada guerra. Começaram a farejar as sombras, o fétido dos corpos caídos que tresandavam a excremento, e corriam por entre os molambos molhados, roendo os restos de merda das roupas. Uma noite, alguém, insone, que veio com um pau aplacar os gemidos dos mendigos, viu a faina dos ratos, e, como as idéias nascem de acasos, a solução se fez.

Os restaurantes mandaram armar grandes gaiolas de tela de arame para as quais atraem os ratos com torresmo e raspas. Com pouco, fazem várias criações em seu interior e, defronte às varandas, ali onde antes pendiam as varas, vêem-se agora gaiolas suspensas. Há um cuidadoso revezamento delas, e a que pende a cada dia encerra ratos que estão com três dias de regime.

Quando se aproxima a hora do espetáculo, a fome dos bichos é tamanha que seus guinchos vão se ritmando, cada vez  mais agudos, e os focinhos sangram de gana esgueirando-se entre as grades.

Tudo o que os garçons têm a fazer agora é atirar sobre o grupo um bocado de molho e puxar o cordel que abre a ratoeira em cima. Os ratos caem das jaulas aos saltos e avançam atraídos pelo cheiro do molho. O grupo, atacado, se acovarda e esperneia, e o espetáculo atinge seu auge quando os bichos arrancam primeiro os lábios e os lóbulos. E depois, quando as crianças entram armadas de porretes e começam a matar sobre os corpos dos mortos os ratos já fartos.

Por uma questão de ordem, ajustou-se que um dos restaurantes só funciona para o almoço e o outro para o jantar.

 ***

REISEFÜHER

Curt Meyer-Clason

Curt Meyer-Clason

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 ÉTAPE TOURISTIQUE

Didier Lamaison

Didier Lamaison

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poe

Esta é uma homenagem especial ao Dia das Mães. O grande poeta norte-americano, EDGAR ALLAN POE (1809-1849), dedicou este soneto a Maria Clemm (1790-1871), mãe de sua esposa, Virginia. Além de sogra do poeta, Maria Clemm era também sua tia, sendo pois Virginia sua prima. Maria Poe era irmã do pai do poeta, David Poe Jr. e passou a chamar-se Clemm após seu casamento com William Clemm Jr. em 1817, de quem teve três filhos, sendo Virginia Eliza a última. Maria tratava Poe como a um filho, e este a chamava de “Muddy”. Depois da morte de Virginia em 1847, aos 25 anos, foi Maria Clemm quem assistiu o poeta em seus momentos de desespero, embriaguez e miséria. Após a morte deste em 1849, a Sra. Clemm ficou sem qualquer fonte de renda, tendo daí para  frente, até sua morte num asilo de caridade em 1871, vivido de doações que lhe eram feitas pelos escritores Henry Longfellow (1807-1882), americano, e Charles Dickens (1812-1870), inglês. Apresentamos aqui o belo soneto de Poe no original e na criativa tradução de Milton Amado, autor também da melhor tradução de “O Corvo”, de Poe, em português.

virginia-maria

TO MY MOTHER

Because I feel that, in the Heavens above,
The angels, whispering to one another,
Can find, among their burning terms of love,
None so devotional as that of “Mother,”
Therefore by that dear name I long have called you-
You who are more than mother unto me,
And fill my heart of hearts, where Death installed you
In setting my Virginia’s spirit free.
My mother- my own mother, who died early,
Was but the mother of myself; but you
Are mother to the one I loved so dearly,
And thus are dearer than the mother I knew
By that infinity with which my wife
Was dearer to my soul than its soul-life.

***

Porque os anjos (bem sei!) na celestial altura,

Quando falam de amor entre si, meigamente,

Não podem encontrar uma expressão mais pura

Que a de “Mãe”, nem mais linda, ungida e comovente,

Eu, de há muito, te dou este nome perfeito,

Pois tu és, para mim, mais do que mãe, por certo,

Desde que a morte veio instalar-se em meu peito,

Ao tornar, de Virgínia, o espírito liberto.

A minha própria mãe, morta no albor da vida,

Foi minha mãe, tão só; mas tu és mãe daquela

Que tanto amei; por isso, és muito mais querida,

Infinitamente és mais querida do que ela,

Assim como minha alma achava mais preciosa

Que a própria salvação – minha adorada esposa.

Tradução de Mílton Amado

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