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Archive for the ‘Estou Lendo’ Category

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Sou admirador convicto do trabalho humanitário dos Médicos sem Fronteira. Contribuo, modesta mas permanentemente para manter a continuidade dessa instituição, cuja eficácia profissional, desprendimento pessoal e ausência de vínculos políticos ou nacionalistas têm proporcionado ajuda médico-social a populações desamparadas ou escravizadas pelas guerras e a miséria. Esse bando de jovens idealistas, tratando de populações carentes nos cantos mais miseráveis do planeta, foi criado em 1971, na França, por jovens médicos e jornalistas, que atuaram como voluntários no final dos anos 60 em Biafra, na Nigéria. Enquanto a equipe médica socorria vítimas em uma brutal guerra civil, o grupo percebeu as limitações da ajuda humanitária internacional: a dificuldade de acesso ao local e os entraves burocráticos e políticos faziam com que muitos se calassem frente aos fatos testemunhados. Então o MSF surge como uma organização médico-humanitária que associa socorro médico e testemunho em favor das populações em risco. A organização trabalha em cima de determinados eixos de atuação: conflitos armados, epidemias, fome e desnutrição, desastres naturais e exclusão de cuidados médicos.

A organização é uma iniciativa independente de governos e sustentada, em grande parte, por contribuições privadas, fato que lhe confere liberdade e agilidade para oferecer ajuda humanitária onde for preciso.

Em 2012, os Médicos sem Fronteiras lançaram, pela Leya, de São Paulo, a edição brasileira dos depoimentos de personalidades internacionais que haviam visitado a organização, em várias partes do mundo.  O livro tem por título Dignidade, palavra-chave que define a atitude primordial do grupo. São relatos às vezes chocantes de experiências vividas pelos autores em pontos perdidos da África, sob as condições mais adversas. Mas é uma leitura que nos leva a meditar na carência absoluta dessas populações desoladas e oprimidas. Convidado a participar da edição, traduzi dois depoimentos: o de Mario Vargas Llosa e o de Paolo Giordano. Para incentivar a leitura do livro completo, transcrevemos aqui parte desse último depoimento, a cena precisamente que serve de ilustração da capa do livro.

***

“Os primeiros meses de missão foram um desastre. A casa da MSF era acolhedora, menos espartana do que Marije havia imaginado, mas a mi­galha de fascínio oriental que Dacca (talvez) possuía era sufocada pelo caos, pela imundície e pelo incessante barulho.

Um automóvel a despertava às 6 da manhã para levá-la com o resto do staff internacional à clínica de Kamrangirchar. A favela se equilibrava tremulante  sobre a areia trazida do leito do rio, que escorria negro  de sujeira ao redor. Um dia — pensava Marije — o rio Negro vai receber  de volta tudo aquilo que era seu. Esse pensamento a aterrorizava.

Amontoados altíssimos de imundície faziam as vezes de dique no curso da água, as crianças nuas corriam por cima deles, mergulhavam na podridão, enquanto os corvos se precipitavam sobre  os  resíduos para bicar fragmentos cintilantes. O fedor de plástico queimado não diminuía nem mesmo com o vento, os colegas lhe prometiam que  ela se habituaria, mas após duas semanas Marije o sentia ainda mais forte do que antes, grudando-lhe nos cabelos e nas mãos. Quando assoava o nariz, encontrava no lenço pequenos coágulos de pó e era perseguida agora pelo temor de vir a adoecer gravemente.

Só dentro da clínica encontrava um pouco de paz. As mães jovens, envoltas em suas vestes coloridas, tiravam as sandálias nas escadas e for­mavam uma fila silenciosa ao longo das paredes do corredor. Eis uma imagem que refletia as suas expectativas: mulheres em roupas folclóri­cas com os filhinhos magros nos braços, silenciosas e reconhecidas. Ficavam encantadas com seus cabelos louros e às vezes ousavam  tocá-los.

“You beautiful”  diziam, e Marije enrubescia.

Na fronte dos recém-nascidos havia uma mancha negra de hena, o terceiro olho, que os protegeria do Maligno, outra coisa comovente. Ma­rije se lembrava de uma discussão acesa com Eloise a esse propósito: “Você só se interessa pelos projetos em que haja crianças no meio”, a amiga lhe reprovava, “e os massacres dos rohingya? As mutilações ge­nitais? A política lobista e homicida das indústrias farmacêuticas? Com isso você não se importa, não é mesmo?”

“As crianças são os seres mais expostos.”

“Não, são simplesmente os que mais lhe dão pena. Você é uma hi­pócrita, Marije.”

Eloise precisava  vê-la  agora. Não  havia hipocrisia alguma na amabi­lidade, no profissionalismo que dedicava a cada criança. Media a cir­cunferência do braço para avaliar o nível de nutrição e, caso suspeitasse de qualquer doença ou infecção, encaminhava a mãe e o filho ao dr. Mohammed, na sala ao lado.

A atividade ambulatorial revigorava as suas motivações, por algumas horas Marije se esquecia do inferno fora da clínica e experimentava o prazer de ser útil a alguém, o que havia perseguido em vão nos 28 anos de vida na Antuérpia, onde se sentia útil somente para  si mesma.

Mas às 5h30, quando os caules de bambu das palafitas projetavam sombras longuíssimas e filiformes sobre as montanhas de detritos, o horror voltava. O automóvel da MSF permanecia encaixado entre mi­lhares de outros, entre os ônibus e os riquixás atrevidos. A cidade ficava paralisada, e a viagem chegava a levar três horas.

Marije não queria olhar para fora. As crianças que brincavam de se esconder entre os veículos, os homens que bebiam chá preparado com água envenenada de arsênico e depois cuspiam no chão golfadas rubras — mas por que cuspiam sem parar? e o que era aquele sangue? —, os cães estropiados, os ratos e ainda os corvos, grandes e ameaçadores.

Não se sentia em segurança nem sequer nos bairros residenciais de Gulshan. À noite encerrava-se em seu quarto. A fartura de desgraças humanas da jornada lhe havia tirado o apetite, de modo que colocava para cozinhar um punhado de arroz branco numa panelinha, temperava-o com molho de soja e comia encolhida embaixo do  cortinado.

Em 20 dias consumiu os capítulos de Lie to me e iniciou os de Dexter, que não lhe agradava muito. Assistiu-os igualmente com voracidade, para co­meçar tudo de novo, a fim de não se entregar à sensação do vazio. Desligava o computador só muito tarde da noite, estonteada, e não dormia bem.

Quando Ian, seu colega neozelandês, não se apropriava do único canal de ethernet da casa, telefonava para Otto, mas lhe acontecia  sem­pre de chorar e então desligava logo. Se houvesse confessado como se sentia, ele haveria de lhe dizer para voltar para casa, e isso ela não po­dia suportar. Não trocava confidências nem mesmo com Eloise, que de modo geral se interessava por ela apenas nas últimas linhas do e-mail, de maneira vaga e apressada, e no mais só falava da gravidez. Marije respondia com mensagens lacônicas e de propósito lhe contava sobre o recém-nascido que visitara aquela manhã: tinha caído no chão logo após o parto, passara por uma crise respiratória aguda, mas agora estava em condições estáveis; no entanto, com toda probabilidade, iria perder um olho, e as consequências da queda sobre o cérebro só viriam a apa­recer alguns anos mais tarde. Depois, sentia-se duplamente mesquinha, em relação a Eloise e à criança machucada.

“Não vá bancar a heroína; se não se sentir bem, sempre se pode de­sistir.” As palavras da amiga a atormentavam, mas no fim prevalecia o medo do fracasso que haveria de enfrentar se voltasse à Antuérpia antes do previsto. De que parte poderia recomeçar a sua vida? De que aspira­ção, se não possuía outras?

Uma manhã perdeu o controle. Uma mulher grávida apresentou-se na clínica com o avental e as coxas ensopadas de sangue, depois de ha­ver praticado em si mesma um aborto tão cruento que Marije tapara os ouvidos enquanto o intérprete traduzia. O médico da favela achou que devia tratá-la imediatamente com medicamentos psicotrópicos; apesar das dores, a mulher parecia alheia, drogada, respondendo às perguntas como se tudo aquilo não lhe dissesse respeito.

Marije tinha saído da sala e corrido para o andar superior. Encontrou o estúdio de Corinne aberto e trancou-se lá dentro. Começou a chorar, histericamente, sem conseguir parar”.

(Paolo Giordano – Phool gobi quer dizer couve-flor)

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quinze-poemas

Apresentação

Quando, em 2003, saiu pela Nova Fronteira a Correspondência de João Guimarães Rosa com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason, minha admiração pelo trabalho desse gênio de Munique adquiriu o status de deferência máxima. Acostumado, havia muito, a lidar com a exaustiva arte de transpor um texto estrangeiro para a nossa língua, ficava imaginando o quanto de sabedoria e esforço eram necessários para enfrentar o cipoal da escritura roseana, tão árduo de se ler e entender mesmo no idioma original. Eu, que nem sequer conseguira encarar todo o Grande Sertão pelas dificuldades do estilo de Rosa, de uma novidade gritante — em que abusava de neologismos, palavras inventadas, coloquialismos tirados da manga do colete — assumia por instantes a posição do mago teutônico tentando decifrar aquele lio para finalmente encontrar os vocábulos e frases correspondentes em sua língua, mantendo as peculiaridades do estilo original…

 Como gostaria de manifestar ao Mestre a minha insignificante mas sincera admiração! A oportunidade surgiu com a leitura da correspondência, onde, na epígrafe das cartas de Clason aparecia de maneira clara seu endereço postal. Rompi a timidez e escrevi ao Mestre, juntando meu livro de poemas A Caça Virtual como tributo de minha admiração. Minha alegria não teve limites quando, algum tempo depois, recebi uma carta-resposta de CM-C e, pouco mais tarde, a “glória” de ter alguns de meus poemas traduzidos por ele. Mais tarde, chegou ele mesmo a traduzir um longo conto meu “Roteiro Turístico” e publicá-lo numa revista alemã. Guardei os poemas e as cartas com veneração numa caixinha especial e, agora que o Mestre já se foi, vi-me na obrigação de preservar os tesouros que tão benignamente me concedeu.

[Ivo Barroso]

      2016

Este seria mais um post da série VIENT DE PARAÎTRE se se tratasse de livro prestes a ser lançado nas livrarias. Mas, na verdade, vem a ser uma edição fora do comércio, produzida pelo prestimoso e prestigiado editor paulista, Cláudio Giordano, que transformou em belo volume o que se pretendia apenas mais uma das plaquetes feitas para presentear os amigos. A preciosidade do material aqui reunido justifica plenamente a edição mesmo particular.

Sobre a genialidade do tradutor alemão Kurt-Meyer Clason, falecido em 2012 aos 101 anos, o leitor desta Gaveta poderá encontrar aqui uma notícia e duas de suas versões de meus poemas aqui e aqui, além do conto “Roteiro Turístico”, que ele também traduziu aqui. Vertendo para o alemão  vários livros de autores brasileiros e portugueses, inclusive as obras de Guimarães Rosa, Kurt Clason tornou-se a verdadeira ponte linguística capaz de  transportar  nossa literatura para o reino precioso de Goethe e de Rilke.

Como se trata de uma edição particular, fora do comércio, não encontrável nas livrarias, se o leitor estiver realmente interessado (principalmente na correspondência trocada), pode deixar aqui seu endereço postal que terei o prazer de lhe mandar um exemplar.

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            MAIS UM LIVRO DE GEORGES PEREC

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“A Vida, modo de usar” — a obra fundamental de Georges Perec – foi traduzida por mim e publicada em 1991 pela Companhia de Letras, de S. Paulo. O livro esgotou-se em pouco tempo, mas levou dezoito anos para ser reeditado, o que só ocorreu em 2009, pela mesma Companhia das Letras, mas dessa vez em formato de bolso.

Em 2005, traduzi para a Cosac & Naify duas curtas novelas de Perec, “A Coleção Particular” e “Viagem de Inverno”, obras que, escritas no final da vida do autor, oferecem excelente abertura para o seu labirinto literário, pois nelas se observa a inventiva transbordante de Perec, que povoa os relatos de incontáveis seres e coisas. Além disso, há que destacar sua escrita minudente e ardilosa, que solicita a cumplicidade do leitor ao mesmo tempo que desnorteia sua bússola.

Surge agora pela Gustavo Gili, uma editora de Barcelona com filial no Brasil, essa “Tentativa de esgotamento de um local parisiense”, claro exemplar da fase oulipiana do autor, que em outubro de 1974 se instalou por três dias seguidos na praça Saint-Suplice, em Paris, com o fim de observar os seus detalhes. Em diversos momentos desses dias anotou tudo o que via: os acontecimento cotidianos da rua, as pessoas, os veículos, os animais, as nuvens, o passar do tempo. Fez listas de tudo o que ocorria, mesmo dos fatos mais insignificantes da vida cotidiana, mas nada ou quase nada de conclusivo. Entretanto, sua visão de uma percepção humana única, vibrante, impressionista e variável, recolheu os mil detalhes imperceptíveis que compõem a vida de um bairro determinado de uma grande cidade: as incontáveis e sutis variações do clima atmosférico, da luz, dos cenários, de tudo o que está vivo: “tudo aquilo que acontece quando não acontece nada”.

Leia mais sobre Perec:

Georges Perec, um Proust da sucata, aqui.

                                                   ***

CHAMO A ATENÇÃO DOS LEITORES PARA A POSTAGEM ANTERIOR EM QUE FORAM PRESTADAS  HOMENAGENS  A SHAKESPEARE E A CERVANTES PELO QUARTO CENTENÁRIO DE SUAS MORTES, OCORRIDAS AMBAS EM 23 DE ABRIL DE 1616.

NÃO DEIXEM DE LER O MONÓLOGO DE HAMLET – O FAMOSO TO BE OR NOT TO BE – SER OU NÃO SER — QUE CONSIDERO UMA DAS MINHAS MELHORES TRADUÇÕES.  INB

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   Quando em 1982, o lexicógrafo José Augusto Fernandes lançou o seu “Dicionário de Rimas da Língua Portuguesa”, o poeta Carlos Drummond de Andrade saudou a obra como sendo “a salvação da lavoura poética”. A expressão “salvação da lavoura” era largamente conhecida do público rural, principalmente dos mineiros, por ter sido veiculada durante uma campanha que visava à extinção da formiga saúva,  uma praga então comum no interior.. Havia até a frase: “Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”, atribuída ora a Saint Hilaire, ora a Monteiro Lobato. E para combater a praga, logo apareceu um formicida oportunista que se anunciava como “a salvação da lavoura”. O termo passou logo a compreender qualquer panaceia, qualquer dispositivo ou estratagema que resolvesse dificuldades, efeito milagroso capaz de reverter situações penosas. De fato, o dicionário de rimas de José Augusto Fernandes veio a facilitar sobremodo, aos nossos vates e menestréis, essa busca, às vezes    laboriosa, e o poeta-mineiro Carlos Drummond, que não precisava de modo algum de tal dicionário, fez muito bem em divulgar a obra valendo-se da expressão interiorana.

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   Talvez pudéssemos plagiá-lo dizendo que o “VocabuLando”, de Isa Mara Lando é o livro a que deveríamos chamar de “a salvação da lavoura tradutória”. Diferentemente de outros vocabulários da língua inglesa, em que o consulente encontra apenas o significado imediato da palavra procurada, este aqui é feito para “quebrar os galhos” da tradução inglesa, dada a sua riqueza de sinônimos e a exemplificação da pertinência de cada um deles conforme o sentido da frase. O profissional que se dedica a esse muito elogiado, mas pouco rentável ofício de viajar de uma língua para outra, vai encontrar aqui, de fato, a “salvação” de seus problemas, pois a autora não apenas dá o significado ou significados da palavra, mas alerta para erros comuns de vocabulário, identificando os chamados ”falsos amigos”, além de corrigir velhos hábitos, alguns já enraizados na prática tradutória. Para tanto, a autora não se poupa de dizer um sonoro NÃO aos tradutores. Vejamos alguns exemplos:

EVENTUALLY, adv. Eventually NÃO  é “eventualmente” (OCCASIONALLY): He got very sick and eventually died = Ficou muito doente e por fim morreu,acabou morrendo. (NÃO “eventualmente     

PEOPLE s. Note o plural peoples no sentido de “povos”, NÃO “pessoas”.

ENHANCE v. Qual a diferença entre enhance e improve? Improve denota melhorar algo insatisfatório, ao passo que enhance significa aperfeiçoar, refinar algo que já é bom.

UNDERMINE v. Undermine conota 1) atacar os alicerces ou 2) sabotar, especialmente o poder, a autoridade ou as chances de sucesso de alguém.

AGAIN adv. Usar “voltar”: He never saw her again = Não voltou mais a vê-la ou usar o prefixo “re”: Let’ s start again = Vamos recomeçar

   Durante mais de trinta anos, a autora Isa Mara Lando vem coletando material para este livro com base nas mais de 100 traduções feitas por ela de livros de vário teor literário e das aulas de tradução que tem administrado. Ela passou por todos os percalços por que passam os tradutores de inglês, as dúvidas de como traduzir este ou aquele verbo alterado pela preposição, a frase que não fazia sentido porque certa palavra não correspondia à sua tradução imediata e era preciso encontrar a equivalência adequada, etc. Pacientemente foi anotando ao longo do tempo as armadilhas que surgiram no seu caminho e o modo de evitá-las, o uso arraigado de determinadas traduções que na verdade não correspondiam ao sentido do original e, principalmente, a adequação da linguagem traduzida em relação ao nível cultural ou social de seu elocutor (ex. uma simples palavra como shit pode ter vários equivalentes em português dependendo “daquele” que a pronuncia). Quem saiu ganhando foram os tradutores que agora podem dispor facilmente de sua experiência. Livro que em inglês se chamaria “compagnion” (companheiro, guia, guru) e que nós, sem-cerimoniosamente, chamamos de “quebra-galho”.

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Giovanni Boccaccio – DECAMERON

Aqui está o mais belo livro do ano! A Cosac & Naify conseguiu produzir uma edição “para guardar” com estes dez contos do Decameron, selecionados e anotados por Maurício Santana Dias, seguramente o mais perfeito tradutor do italiano em nossos dias. Maurício conseguiu fazer uma escolha que contempla os mais variados aspectos da narrativa, dando ao leitor a certeza de ter saboreado o volume inteiro.

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Iacyr Anderson Freitas – AR DE ARESTAS

Outra beleza gráfica que nos traz a Escrituras, de S. Paulo, com poemas de um rigorismo formal condizente com a espiritualidade dos temas envolvidos. Mais um momento estelar do poeta Iacyr, nosso caro amigo de Juiz de Fora, desta vez acolitado pelas fotos meio impressionistas de Ozias Filho, de Lisboa.

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Rodrigo Lacerda – A REPÚBLICA DAS ABELHAS

Pseudo autobiografia de Carlos Lacerda, escrita por seu neto Rodrigo, autor dos mais premiados pela sua obra de ficção. A história de várias gerações de Lacerdas escorre por estas páginas informativas e criativas. Os momentos mais significativos do político e escritor estão ai consignados, bem como os seus divergentes estados de espírito.

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Nauro Machado – PERCURSO DE SOMBRAS

Nauro Machado é a grande voz poética do Maranhão, a mais alta expressão da “poesia metafísica” entre nós. Dono de vasta obra poética iniciada em 1982, detentor de vários prêmios inclusive o da Academia Brasileira de Letras de 1999, Mauro surpreende pela variedades de seus temas e pelo uso revolucionários das rimas.

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DOIS GRANDES POETAS

SOLHAWJ SOLHA é um grande poeta, autor de um grande poema. Mas chamá-lo de grande poeta, apenas, seria omitir muitas de suas outras (múltiplas) qualidades: grande romancista, grande contista, grande ensaísta, grande pintor e grande ator e por isso consumado artista da tela (nos dois sentidos), grande roteirista, grande libretista, grande crítico de cinema, artes e livros – além de muitos outros grandes grande Falando apenas do Poeta, seu mais recente livro, Esse é o Homem (2013), completa uma trilogia de poemas longos iniciada com Trigal com Corvos (2004) e seguida de Marco do Mundo (2012). Em todos esses livros e marcantemente neste último a poesia flui em catadupas (desculpem o gongorismo mas é o único termo que se aplica devidamente ao fluxo turbilhonário de suas frases) que trazem em si os detritos (ou os diamantes) de sua erudição cósmica e os épaves de rimas flutuantes que ajudam o leitor a se manter à tona no avassalador redemoinho das idéias, conceitos, invenções, descobertas, ilações, comparações, parâmetros e mais mil e uma palavras que facilmente brotariam do vocabulário enciclopédico de Solha.

O leitor acostumado a poemas sentimentais, ou mesmo aquele que já tenha trafegado pelos poetas metafísicos, sentirá sem dúvida um impacto ao navegar nesta poesia feita ao mesmo tempo de sentimentos e idéias, teses e gritos de alerta, loas e paradoxos, hipotenusas e colcheias, semifusas e quiálteras, e todo tipo de aportes líricos ou científicos ou filosóficos ou histórico-geográficos ou mitológico-litúrgicos.. Claro que há um fio de Ariadne, uma lógica discursiva que se desenvolve à procura da conclusão, mas em sua viagem (diria na voragem) esse tsunami literário vai arrancando e agregando e desenvolvendo pensamentos em série, palavras que puxam palavras, mudanças bruscas de sentido e de tonalidade, registros familiares ou hermeticistas, teses que são suas próprias antíteses – enfim um caos, um mundo, uma utopia, uma babel que não raro arranha aquele céu contra o qual se volta.

E não bastasse tudo isto, o autor é um ser afável e bem-portante, de sorriso lhano, que se dispõe a lhes mandar gratuitamente seu livro por sabê-los interessados em poesia. Pedidos pelo e-mail wjsolha@superig.com.br.

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Quando saiu, em 1999, a 1ª edição de Muitas Vozes pela José Olympio, Ferreira Gullar pediu à editora que encomendasse a mim a orelha do livro.

Sai agora pela mesma editora sua 11ª edição, passando o texto inicial a Apresentação do livro. Aqui vai:

Nova ImagemApresentação

MUITAS VOZES

Ferreira Gullar começou por onde a maioria dos poetas acaba: pelo impasse linguístico. O poema “Roçzeiral”, constante de seu livro de estreia, A lutacorporal, é uma espécie de aviso de “trânsito impedido” num final de estrada em construção. O poeta, depois de passar por todos os processos poéticos formais – do soneto camoniano ao poema em prosa, do verso livre ao poema pré-concreto – verifica, de repente, que esgotou suas possibilidades de compor e que dali por diante só seria possível repetir-se, o que estava definitivamente contrário à sua índole criativa. Pareceu-lhe então que o concretismo seria a lateral de escape do impasse, mas logo, verificando um sinal de stop na boca de um túnel sem saída, resolve dar a volta por dentro, cria o neoconcretismo, o livro-poema, o poema-espacial e o poema-enterrado, todos na vã tentativa de reencontrar a linguagem perdida.

Julgando esgotada sua atividade poética, fica algum tempo sem escrever poesia, até que a busca de uma linguagem não conceitual o leva a encontrar nas raízes populares do verso repentino e cantado, na chamada poesia de cordel, a possibilidade de exprimir o seu ideário que, no contexto político dos anos 1960, sinalizava uma participação integrada no desenvolvimento da cultura popular. O movimento militar de 1964 veio pôr fim a este comprometimento espontâneo de Gullar e ao sonho de que uma linguagem popular – a antítese de sua arte poética adquirida ao longo de uma estratificação cultural – pudesse efetivamente mudar o mundo, corrigir os desníveis sociais pelo simples fato de denunciá-los. O poeta conhece então os caminhos constrangedores do degredo, e longe da pátria se sente cada vez mais ligado a ela, cada vez mais empenhado na busca de sua identidade.

E quando brota de seu interior esse urro de brasilidade que é o Poemasujo, esse homólogo poético de O grito, do pintor norueguês Edvard Munch, que bem poderia lhe servir de capa. Nele, o poeta extravasou toda sua angústia, o desespero do só, do perseguido, do expatriado, do terceiro-mundista humilhado e ofendido, mas que bota para fora as vísceras em forma de poesia. Ao despejar uma linguagem que era a sedimentação de um aprendizado cultural, contaminada pelo prosaísmo rude da arte popular, o poeta conseguiu como que o milagre da ressurreição poética. Apesar de sujo, de conter todos os detritos, as enxúndias e os dejetos de sua experiência vital, o poema se torna, ao mesmo tempo, a água lustral de uma nova linguagem, aquela que o poeta buscava desde o princípio e da qual o afastavam os descaminhos da arte.

Gullar readquiriu uma linguagem viva como quem chega de novo ao mundo, linguagem destituída de artifícios, mas tensa de emoção. É a descoberta de que a poesia está nas palavras simples e diuturnas, aquelas que constituem nosso vocabulário de troca e comunicação, o código da espécie. Agora sabe que elas são todas prosaicas em seu estado de palavra e que depende da alquimia do poeta, de sua conjugação, de sua dosagem, de sua articulação para que se transformem num poema capaz de comover. Pois não há poema sem emoção, não há poema sem que uma corda íntima e insuspeitada do leitor vibre de repente percutida pela colocação estratégica de um verso, uma parada súbita que tanto pode ser uma dúvida quanto um abismo de significâncias. Esses momentos de milagre alquímico, no entanto, transcendem o poeta. Ele daria tudo para ser receptivo o tempo todo, mas esse estado larval da criação – seja lá que nome tenha – é imprevisível e só acontece nos momentos de grande espanto e perplexidade.

Em seus últimos trabalhos, Gullar começou a demonstrar uma preocupação com a morte, com os amigos que se foram, mas ao mesmo tempo conseguiu equacionar-lhe o sentido profundo sem fazer dela uma angústia existencial. Com este Muitas vozes, depois de um silêncio de doze anos, Gullar volta a nos oferecer a melhor poesia do Brasil, num estilo transparente e despido de qualquer pedantismo universitário, fruto da cristalização de suas experiências e linguagens.

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Sempre fui péssimo aluno de matemática. Na escola pública, embatucava na tabuada de sete e até hoje fico meio em dúvida nas multiplicações desse número. Nos concursos que fiz em busca de emprego ou profissão sempre tirava boa nota em português e me afundava nos cálculos. A palavra Álgebra, com sua origem árabe, tinha para mim conotações de alfanje, deserto, simum, camelos e miragens, e a busca de uma incógnita me parecia peripécia das Mil e Uma Noites. A invenção da máquina calculadora foi como uma vingança, uma alforria, uma desforra da minha incapacidade aritmética. Fiquei livre da tabuada, nunca mais fiz cálculos mentais, contando nos dedos.

Mas houve um momento em que abençoei a ciência dos números. Foi quando, ainda muito moço, descobri o livro O Homem que Calculava, de Malba Tahan.

O homem que calculva 3

O autor do livro (com este pseudônimo) encontra em suas andanças pelo Oriente um peregrino parado à beira de uma estrada. Ao cumprimentá-lo, conforme as regras de cortesia daqueles povos, ouve o desconhecido pronunciar um número fabuloso: “Dois milhões, trezentos e vinte um mil, oitocentos e sessenta e seis”. Sua curiosidade é satisfeita quando o desconhecido informa chamar-se Beremís Samir e estar acostumado, desde a infância, a calcular visualmente, digamos, um bando de pássaros ou o número de ramos de uma árvore. Admirado de tais habilidades, o viajante decide arranjar um posto de trabalho adequado para o calculista na grande cidade para onde vai. E o solícito Malba Tahan o transporta para Bagdá na garupa de seu próprio camelo, já que o andarilho não tinha montaria.

O HOMEM q calculava 4

Eis que a meio caminho encontram três irmãos em acirrada disputa. O pai lhes deixara 35 camelos para serem por eles divididos nas seguintes proporções: o filho mais velho devia receber a metade (ou seja 35/2), o irmão do meio a terça parte (isto é 35/3) e o caçula a nona parte (35/9). A divisão era impossível, pois daria 17 camelos e meio (17,5) para o primeiro, 11 camelos e 66 décimos para o segundo e 3 camelos e 88 décimos de camelo para o terceiro. Nenhuma outra divisão satisfazia o desejo dos jovens pois sempre estava em desacordo com o estabelecido pelo pai. É aí que entra a mágica do Homem que Calculava: Beremis pede ao seu protetor o camelo emprestado, assegurando-lhe que sabe o que está fazendo. Em seguida agrega esse camelo aos 35 outros da herança e diz ao mais velho: “Devias receber a metade de 35, isto é, 17 e meio. Agora receberás a metade de 36, e portanto, 18. Nada tens a reclamar, pois é claro que saíste lucrando com a divisão, que além disso atende perfeitamente os desígnios de seu pai. Tu, irmão do meio, devias receber um terço de 35, isto é, 11 e pouco. Vais receber um terço de 36, ou seja, 12. Não podes protestar pois também sais com visível lucro da transação. E por fim, ó caçula, segundo a vontade de teu pai devias receber uma nona parte de 35, isto é, 3 e tanto. Vais receber uma nona parte de 36, ou seja, 4. O teu lucro foi igualmente notável. Só tens a agradecer-me pelo resultado”.

 camelos

ANTES                                                                               DEPOIS

35/2 = 17,5                                                                         36/2 = 18

35/3 = 11,6                                                                          36/3 = 12

35/9 = 3,8                                                                            36/9 = 4

                               36-34=2 (camelos restantes)

Nota-se que, tendo feito a divisão segundo a vontade do falecido pai dos jovens, Beremis os beneficiou com partes supletivas a fim de conseguir um número inteiro. Dos 36 iniciais, acabou distribuindo 34 camelos (18+12+4) e sobraram dois (36-34), um dos quais foi devolvido ao seu protetor por ser o animal em que tinham viajando, cabendo-lhe (como recompensa) o camelo que restou. E o calculista termina dizendo: “Poderás agora, meu amigo, continuar a viagem no teu camelo manso e seguro! Tenho já um outro, especialmente para mim!”

Malbaimages

Malba Tahan foi o pseudônimo escolhido pelo matemático e professor brasileiro Júlio César de Mello e Souza (1895-1974) para divulgar de maneira divertida e curiosa alguns famosos problemas de matemática. Em suas aulas na Escola Normal conseguia cativar os alunos ensinando as intrincadas fórmulas matemáticas e algébricas mediante jogos e passatempos capazes de tornar atraentes as arestas difíceis daquelas matérias. Escreveu mais de 100 obras sobre lendas árabes ou maneiras de descomplicar a matemática, entre elas “Amor de beduíno” e “O homem que calculava” , livro este que recomendo a todos os que amam as ciências numéricas e principalmente àqueles que, como eu, tinham verdadeira ojeriza por cálculos matemáticos, teoremas e equações.

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