GEORGES PEREC, UM PROUST DA SUCATA
Um livro de Perec é sempre uma surpresa. Os leitores brasileiros só conhecem dele “Um homem que dorme”, “W ou A Memória da Infância” e “Vida, modo de usar”, todos esgotados. Esta “Coleção Particular”, seguida do espantoso conto “Viagem de Inverno”, vem agora [Cosac Naify, 2004] resgatar seu nome da obscuridade editorial em que tem vivido entre nós. Mas resta muita coisa. Sem dúvida, sua contribuição mais importante para a literatura – uma espécie de síntese da arte de escrever – está em “Vida, modo de usar”, que Italo Calvino classifica de “hiper-romance”, sem estar sendo com isto exagerado, mas preciso. O livro tem como subtítulo sintomático a palavra “Romances”, no plural, como que para, logo de inicio, prevenir o leitor de que ele está prestes a abrir o Sésamo das Mil e Uma Noites do século XX. Espécie de suma teológica de todos os romances, representa uma tentativa de compendiar não só as várias técnicas da narrativa novelística, mas nelas insuflar igualmente uma variedade espantosa de formas de vida, de destinos humanos, de personagens, caracteres, traços, tipos e tramas, talvez no intuito — perfeitamente realizado aliás — de sintetizar num só volume uma outra Comédia Humana à qual se somaria um outro Em Busca do Tempo Perdido. O exergo inicial, “Regarde, de toutes tes yeux, regarde”, tirado do Miguel Strogoff , de Júlio Verne (uma das paixões literárias de Perec), surge como uma advertência ao leitor para que busque nas entrelinhas, observe para além da face superficial das coisas e dos fatos, as mil e uma salpicadas margaridas que o autor vai prodigamente distribuindo ao longo de sua obra: um trocadilho aqui, uma releitura ali, uma paráfrase mais além, trechos de várias obras criptografados ou transformados pelo espírito lúdicro/lúdico de Perec. Esses aperitivos dão à obra vários níveis de leitura, aliás perfeitamente desnecessários diante da prodigalidade de sua leitura linear, que, por sua vez, só é linear aparentemente, pois se forma e se desenvolve a partir de um emaranhado ou entrelaçado de fios condutores. Há um plano geral: descrever um edifício de apartamentos parisiense do princípio do século, ao qual se tivesse tirado a fachada e se pudesse ver – com uma visão deística, onipotente e onipresente (e mesmo “onipassada”) — todos os seus cômodos, aposentos, escadas e vãos (até os surrealísticos e os metafísicos); e, igualmente, seus moradores, atuais ou antigos, seguidos ou não de sua árvore genealógica. Mas a descrição, que, pela sua objetividade visual lembra as marcações de uma peça de teatro, começando pelo cenário – móveis, forração e ornato das paredes, assoalho, objetos de adorno, etc. – não é feita ao acaso nem em ordem numérica crescente ou decrescente – apartamento 01, 02, etc. – mas sim tomando o edifício como um tabuleiro de xadrez no qual o fio da narrativa se deslocasse com o movimento do cavalo (em L), de forma a passar por todas as casas do jogo, voltando a determinado personagem toda vez em que se der nova interposição. Além disso, Perec se impôs a obrigatoriedade de em cada capítulo, longo ou breve, introduzir vinte e uma vezes duas séries de dez elementos – essas quarenta e duas menções, alusões, collages, etc., podendo ser de ordem muito diversa: posições, atividades, bebidas, alimentos, pequenos móveis, jogos ou brinquedos, citações ou referências a livros e a quadros, etc. O leitor poderia, diante destes informes – absolutamente inindentificáveís numa leitura descompromissada, só pelo prazer de ler sem estar fuxicando ou exercendo uma atividade crítica – achar que o livro possa ter algo de monótono ou repetitivo por força dessas algemas ou mordaças com que o sádico autor se autoflagela. Ledo engano! a narrativa tem todos os tempos de marcha, subidas íngremes e descidas precipitosas, romances policiais e angustiosas elucubrações kafkianas, e até mesmo um capítulo surrealista de dar inveja ao melhor Lautréamont, o qual se passa no submundo ou no hades do subsolo do edifício com suas máquinas ciclópicas como as imaginárias prisões de Piranesi ou aqueles desenhos gestaltianos de van Escher. Não se esqueça o leitor que Perec foi um dos mais ativos elementos da OuLiPo (Oficina de Literatura Potencial), grupo que se formou em torno das ideias (e das pessoas) de Raymond Queneau (literato que amava a matemática) e François Le Lionnais (matemático apaixonado pelas letras), grupo esse que produzia – esse é bem o termo – novas formas de literatura a partir de imposições (ou “contraintes”, como as chamavam). Não se descure o fato de que Perec é um homem praticamente sem biografia, para quem escrever era o sentido máximo da vida. Não se deixe de lado o seu amor pelo enigma em todos os seus níveis, a partir das palavras cruzadas, de que foi grande cultor, a ponto de manter uma seção semanal no Le Poínt por muitos anos, e os palíndromos, chegando a fazer um com mais de 5 mil sílabas. Alie-se a tudo isso o seu talento multifacetado (cinema, pesquisa científica e bibliográfica, etc.) e teremos o somatório ideal do autor dessa obra sumática que é La vie mode d’emploi. Mas um aspecto dos mais importantes desse livro é a sua exatidão terminológica: Perec domina soberano o vocabulário concreto de todas as atividades, ofícios e misteres, ciências e artes; sabe o nome de todas as coisas, conhece todos os estilos arquitetônicos; ninguém mais imune que ele – acentua Calvino – “à pior praga da escrita de hoje: a generalidade”. E é com verdadeira paixão que se põe às vezes a evocar o nome, o funcionamento ou a utilidade de um objeto caído em desuso, como por exemplo as botijas de água quente para aquecer os pés ou aqueles descansos de travessas articulados do tempo dos nossos avós, que se abriam em quadrados e se fechavam em losangos… Num dos capítulos em que descreve os quartos de guardados do prédio, essa evocação adquire tamanha força pela simples enumeração de objetos dessuetos, que nos faz pensar na madeleine de Proust. Aliás Proust (ao lado de Kafka, Flaubert, Melville e Lowry) é sua paixão literária suprema, representando para ele a figura perfeita do artífice que escreve por castigo máximo e máximo prazer.
Se para o leitor francês o texto de Perec já é um calidoscópio que adquire variadas formas à medida em que é manuseado, que dizer de sua transposição para outra língua, principalmente para o português do Brasil, em que o vocabulário concreto peca pela imprecisão. Quanta vez o tradutor irá encontrar nos dicionários uma definição genérica ou perifrástica para o nome de objetos ou instrumentos que o autor usou especialmente pela sua especificidade, cuja preservação se torna absolutamente necessária! Cheio de armadilhas para alguém não familiarizado com as sutilezas sibilinas de Perec, ele se verá diante de frases onde domina a ambiguidade léxica, que terá de reproduzir ou recriar em nome da fidelidade estilística; passará pelo terreno escorregadio dos trocadilhos e das polissemias; pela infinita variação estilística e de assuntos, que abrangem desde citações (falsas ou verdadeiras) de textos medievais a enigmas figurados de almanaques; enfrentará os tropeços das citações ou composições em versos, das alusões e das mil brincadeiras que o autor faz às escondidas, só para si, para se distrair. Verá que os títulos dos livros (principalmente os policiais) citados ao longo da narrativa são na verdade trocadilhos (“Les Ecossais sont en colère”, cuja tradução imediata seria “Os Escoceses estão coléricos”, oculta na verdade um “Les Echos ce sont encore l’air” = Os ecos também são ar!…) Depois de vencer todo esse cipoal, após penar dias e noites sem descanso para varar a compacidade insustentável desse monumento, como o caruncho de um dos mais belos capítulos do livro, esse pobre trabalhador das letras – quase sempre ignorado do público – pensa enfim descansar, terminada a sua tarefa. Mas eis que de repente se dará conta de que o “Repertório” dos 179 casos contados no livro e relacionados no Capítulo LI não é o simples enunciado dessas narrativas sob a forma de manchetes de jornal. Perec não se contentaria com tão pouco! O listão é na verdade um poema; contudo não um poema convencional, comme les autres. Sua métrica, muito mais sutil, consiste em compor todas as linhas (ou versos) com 60 toques de máquina, valendo cada espaço por um toque! E toque a refazer todo o elenco, a submeter-se como o autor a essa “contrainte” que se torna asfixiante como um colete de aço para tratamento da espinha ou incômoda como as fundas herniais hoje esquecidas nos sótãos da memória; a lutar com uma letra que sobra ou outra que falta, nesse misto de quebra-cabeças e palavras cruzadas. E quando termina – definitivamente – e devia esquecer a travessia ulissiana, ei-lo que começa a sofrer da nostalgia do suplício. E ainda escreve a respeito… Ah! esses tremendos masoquistas!
(Fonte: Cultura – O Estado de São Paulo – 30.01.2005 – mesmo título)
Caro Ivo,
GEORGES PEREC! Obá esse é da minha fámilia da prosa.
eric
é impressionante! realmente perec deveria ser reeditado com toda a urgência. e que belo depoimento sobre o heroico feito de traduzir o modo de usar.
Perec é absolutamente sensacional, um dos meus autores de cabeceira. Faço apenas um reparo: Vida Modo de Usar foi relançado, salvo engano, no ano passado, naquela coleção de livros “de bolso” (porque de bolso não são, mas sim de papel mais barato e tamanho um pouquinho menor) da Cia das Letras. Pensando bem, não a tenho visto ultimamente – é possível que esta também tenha esgotado.
Caríssima,
obrigado por suas palavras sempre estimulantes.
Na verdade, esse livro foi reeditado em 2009 (18 anos depois de esgotado) pela mesma Cia. das Letras, só que em formato de bolso (confesso que prefiro a edição anterior).
Ivo Barroso
Caro Ivo Barroso,
Eu pesquisei nos sites das livrarias e, desde de 2009,temos a edição de bolso da Cia das Letras de “A vida: modo de usar”.
O seu texto é uma ótima introdução para o mundo de Perec. Senti-me motivado para lê-lo na sua respeitosa tradução.
Parabéns e grato pela publicação de seu texto.
Jander de Melo – Niterói-RJ.
Caros,
“A vida – modo de usar” foi reeditado em 2009 no formato de bolso pela Companhia de Bolso e acredito que esta edição nao esteja esgotada; consta como disponível, por exemplo, nos sites da Fnac e da Livraria Cultura.
Ivo, fica difícil esquecer você, mesmo com sua ausência. Pois aí está você lembrando Perec, quando, depois de participar dos longas de Kleber Mendonça Filho e Marcelo Gomes no Recife, no final do ano passado, fui um dos atores de um episódio piloto para (im)provável série televisiva inspirada na Arte e a Maneira de Abordar seu Chefe para Pedir um Aumento… de Perec.
Não sei, na verdade, quem é mais genial e/ou doido: ele ou o Carlos Dowling, que escreveu e dirigiu essa proposta.
Abra mais a gaveta, homem.
[…] GEORGES PEREC, UM PROUST DA SUCATA (via Gaveta do Ivo) GEORGES PEREC, UM PROUST DA SUCATA Ivo Barroso Um livro de Perec é sempre uma surpresa. Os leitores brasileiros só conhecem dele “Um homem que dorme”, “W ou A Memória da Infância” e “Vida, modo de usar”, todos esgotados. Esta “Coleção Particular”, seguida do espantoso conto “Viagem de Inverno”, vem agora [Cosac Naify, 2004] resgatar seu nome da obscuridade editorial em que tem vivido entre nós. Mas resta muita coisa. Read More […]
Estou exatamento lendo este livro (viajando, seria mais verdadeiro) e cheguei aqui pesquisando o autor. Tudo de primeira…que bom!
Acabei de cair no seu blog de pára quedas porque eu, diferente de muitos leitores por aí, (como vc disse no texto) não ignoro o trabalho do tradutor: o “trabalhador das letras”. Por isso vim te conhecer, pois estou babando de vontade de ler Vida Modo de Usar,
já vi que sua tradução deve estar a altura do texto original, e, lendo esse belo texto aí em cima, mergulharei nela com prazer.
Obrigada, sou muito grata a vocês: trabalhadores das letras, por trazerem o prazer dos grandes autores a nós, que ainda não falamos todas as línguas do mundo para deliciarmo-nos nos originais.
Roberta,
você pode ler o Vida, modo de usar na edição de bolso lançada pela Companhia das Letras. Mas há outro livro do Perec, que também traduzi, que me parece igualmente sensacional: A Coleção Particular + A Viagem de Inverno, que saiu pela Cosac & Naify. Aproveite.
Ivo Barroso
Muito obrigada!
:)