DOIS GRANDES POETAS
WJ SOLHA é um grande poeta, autor de um grande poema. Mas chamá-lo de grande poeta, apenas, seria omitir muitas de suas outras (múltiplas) qualidades: grande romancista, grande contista, grande ensaísta, grande pintor e grande ator e por isso consumado artista da tela (nos dois sentidos), grande roteirista, grande libretista, grande crítico de cinema, artes e livros – além de muitos outros grandes grande Falando apenas do Poeta, seu mais recente livro, Esse é o Homem (2013), completa uma trilogia de poemas longos iniciada com Trigal com Corvos (2004) e seguida de Marco do Mundo (2012). Em todos esses livros e marcantemente neste último a poesia flui em catadupas (desculpem o gongorismo mas é o único termo que se aplica devidamente ao fluxo turbilhonário de suas frases) que trazem em si os detritos (ou os diamantes) de sua erudição cósmica e os épaves de rimas flutuantes que ajudam o leitor a se manter à tona no avassalador redemoinho das idéias, conceitos, invenções, descobertas, ilações, comparações, parâmetros e mais mil e uma palavras que facilmente brotariam do vocabulário enciclopédico de Solha.
O leitor acostumado a poemas sentimentais, ou mesmo aquele que já tenha trafegado pelos poetas metafísicos, sentirá sem dúvida um impacto ao navegar nesta poesia feita ao mesmo tempo de sentimentos e idéias, teses e gritos de alerta, loas e paradoxos, hipotenusas e colcheias, semifusas e quiálteras, e todo tipo de aportes líricos ou científicos ou filosóficos ou histórico-geográficos ou mitológico-litúrgicos.. Claro que há um fio de Ariadne, uma lógica discursiva que se desenvolve à procura da conclusão, mas em sua viagem (diria na voragem) esse tsunami literário vai arrancando e agregando e desenvolvendo pensamentos em série, palavras que puxam palavras, mudanças bruscas de sentido e de tonalidade, registros familiares ou hermeticistas, teses que são suas próprias antíteses – enfim um caos, um mundo, uma utopia, uma babel que não raro arranha aquele céu contra o qual se volta.
E não bastasse tudo isto, o autor é um ser afável e bem-portante, de sorriso lhano, que se dispõe a lhes mandar gratuitamente seu livro por sabê-los interessados em poesia. Pedidos pelo e-mail wjsolha@superig.com.br.
*** ***
Quando saiu, em 1999, a 1ª edição de Muitas Vozes pela José Olympio, Ferreira Gullar pediu à editora que encomendasse a mim a orelha do livro.
Sai agora pela mesma editora sua 11ª edição, passando o texto inicial a Apresentação do livro. Aqui vai:
MUITAS VOZES
Ferreira Gullar começou por onde a maioria dos poetas acaba: pelo impasse linguístico. O poema “Roçzeiral”, constante de seu livro de estreia, A lutacorporal, é uma espécie de aviso de “trânsito impedido” num final de estrada em construção. O poeta, depois de passar por todos os processos poéticos formais – do soneto camoniano ao poema em prosa, do verso livre ao poema pré-concreto – verifica, de repente, que esgotou suas possibilidades de compor e que dali por diante só seria possível repetir-se, o que estava definitivamente contrário à sua índole criativa. Pareceu-lhe então que o concretismo seria a lateral de escape do impasse, mas logo, verificando um sinal de stop na boca de um túnel sem saída, resolve dar a volta por dentro, cria o neoconcretismo, o livro-poema, o poema-espacial e o poema-enterrado, todos na vã tentativa de reencontrar a linguagem perdida.
Julgando esgotada sua atividade poética, fica algum tempo sem escrever poesia, até que a busca de uma linguagem não conceitual o leva a encontrar nas raízes populares do verso repentino e cantado, na chamada poesia de cordel, a possibilidade de exprimir o seu ideário que, no contexto político dos anos 1960, sinalizava uma participação integrada no desenvolvimento da cultura popular. O movimento militar de 1964 veio pôr fim a este comprometimento espontâneo de Gullar e ao sonho de que uma linguagem popular – a antítese de sua arte poética adquirida ao longo de uma estratificação cultural – pudesse efetivamente mudar o mundo, corrigir os desníveis sociais pelo simples fato de denunciá-los. O poeta conhece então os caminhos constrangedores do degredo, e longe da pátria se sente cada vez mais ligado a ela, cada vez mais empenhado na busca de sua identidade.
E quando brota de seu interior esse urro de brasilidade que é o Poemasujo, esse homólogo poético de O grito, do pintor norueguês Edvard Munch, que bem poderia lhe servir de capa. Nele, o poeta extravasou toda sua angústia, o desespero do só, do perseguido, do expatriado, do terceiro-mundista humilhado e ofendido, mas que bota para fora as vísceras em forma de poesia. Ao despejar uma linguagem que era a sedimentação de um aprendizado cultural, contaminada pelo prosaísmo rude da arte popular, o poeta conseguiu como que o milagre da ressurreição poética. Apesar de sujo, de conter todos os detritos, as enxúndias e os dejetos de sua experiência vital, o poema se torna, ao mesmo tempo, a água lustral de uma nova linguagem, aquela que o poeta buscava desde o princípio e da qual o afastavam os descaminhos da arte.
Gullar readquiriu uma linguagem viva como quem chega de novo ao mundo, linguagem destituída de artifícios, mas tensa de emoção. É a descoberta de que a poesia está nas palavras simples e diuturnas, aquelas que constituem nosso vocabulário de troca e comunicação, o código da espécie. Agora sabe que elas são todas prosaicas em seu estado de palavra e que depende da alquimia do poeta, de sua conjugação, de sua dosagem, de sua articulação para que se transformem num poema capaz de comover. Pois não há poema sem emoção, não há poema sem que uma corda íntima e insuspeitada do leitor vibre de repente percutida pela colocação estratégica de um verso, uma parada súbita que tanto pode ser uma dúvida quanto um abismo de significâncias. Esses momentos de milagre alquímico, no entanto, transcendem o poeta. Ele daria tudo para ser receptivo o tempo todo, mas esse estado larval da criação – seja lá que nome tenha – é imprevisível e só acontece nos momentos de grande espanto e perplexidade.
Em seus últimos trabalhos, Gullar começou a demonstrar uma preocupação com a morte, com os amigos que se foram, mas ao mesmo tempo conseguiu equacionar-lhe o sentido profundo sem fazer dela uma angústia existencial. Com este Muitas vozes, depois de um silêncio de doze anos, Gullar volta a nos oferecer a melhor poesia do Brasil, num estilo transparente e despido de qualquer pedantismo universitário, fruto da cristalização de suas experiências e linguagens.
Receber tal comentário de alguém como você, Ivo, é tudo que todo poeta quer. É dessas medalhas que um põe no peito pelo significado, outro pela grande beleza.
Solha
acho que o título faz jus aos dois
e espero que os dois se igualem em nome