CURT MEYER-CLASON (1910-2012)
Faleceu no dia 13 de janeiro deste ano, aos 101 anos de idade, o escritor e tradutor alemão Curt Meyer-Clason, em Munique, na Alemanha, onde residia. Foi o responsável, pela divulgação em língua alemã, de importantes obras literárias brasileiras, entre as quais a de João Guimarães Rosa, com quem manteve relevante correspondência, na qual são discutidos pontos nevrálgicos da tradução do texto (Rosa conhecia bem o alemão). Essas cartas foram recolhidas no livro “João Guimarães Rosa – Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason,“ editado pela Nova Fronteira em 2003, verdadeiro prato para os estudiosos da língua..
Inicialmente dedicado ao comércio, estabeleceu-se no Brasil e na Argentina como prospector independente, mas com a eclosão da II guerra teve suas atividades sob suspeita do regime Vargas que o considerou um espião, encarcerando-o por 5 anos na ilha Grande, onde também esteve preso Graciliano Ramos, autor de “Memórias do Cárcere”, em que relata essa experiência. Na espantosa entrevista que concedeu em 2001 à profª Ligia Chiappini, da Universidade Livre de Berlin, e que pode ser lida na Internet, no site www.ich.pucminas.br/cespuc/Revistas_Scripta/Scripta10/Conteudo/N10_Parte02_art01.pdf, Clason afirma que a reclusão na ilha serviu para transformar o homem materialista que era num amante das letras, permitindo-lhe inclusive um convívio íntimo com o idioma do Brasil. Uma lista das inúmeras traduções feitas por ele pode ser igualmente encontrada na internet (pt.wikipedia.org/wiki/Curt_Meyer-Clason – 69k ).
Tive a sorte de me corresponder com ele, que se interessou pelo meu livro “A Caça Virtual e outros poemas” e me mandou várias traduções magníficas que fez dos meus poemas (vide algumas neste blog pondo o nome dele em PESQUISAR). Chegou mesmo a traduzir e a publicar numa revista alemã meu conto “Roteiro Turístico” a que deu o título de Reiseführer. Foi uma honra ser traduzido por ele e guardo com devoção suas cartas amistosas.
PAULO RÓNAI (1907-1992)
Conheci o Prof. Rónai nos anos ´60 na Editora Delta, então na travessa do Ouvidor, 66; eu já trabalhava lá, fazendo parte da editoria de uma enciclopédia infanto-juvenial (Nosso Mundo Maravilhoso), sem qualquer vínculo empregatício com a empresa (como era a maioria dos casos, suponho que até mesmo o dele), quando um dos donos da firma (Pedro Lorch) com quem eu trabalhava diretamente, disse-me que havia indicado meu nome ao Rónai para traduzir um dos livros da Coleção Nobel, que o professor estava preparando para a Delta. Eu sabia que Rónai convocara os maiores medalhões literários da época para essas traduções (como por ex. Carlos Drummond de Andrade) e grandes tradutores de nome (como por ex. Jamil Almansur Haddad) e foi com grande desconfiança que fui até seu gabinete, em outro andar. Rónai certamente não tinha ficado satisfeito com a indicação feita por um dos chefões, o que lhe poderia ter parecido uma espécie de imposição. Nossa conversa foi curta: falou-me que o Pedro Lorch lhe tinha pedido que me desse um dos livros da Coleção para traduzir, mas que no momento ele já havia escolhido praticamente todos os tradutores das cerca de 40 obras; contudo, restava na prateleira um livro que já fora recusado por alguns por se tratar de um romance semibiográfico, escrito em prosa meio rimada num francês do século XIX: o Colas Breugnon, de Romain Rolland. Pediu-me que, à guisa de avaliação, eu traduzisse o capítulo VIII, A morte da velha. Isto foi no princípio de uma semana e me deu todo um mês de prazo para o teste. Fiquei abismado quando, em casa, li o texto: havia trocadilhos, refrões, xingamentos, tudo em prosa rítmica e quase sempre rimada; além de tudo, como se tratava de um carpinteiro, o vocabulário concreto (substantivos) estava eivado de termos que não tinham correspondentes diretos no Brasil ou que eram totalmente desconhecidos para mim: vale dizer, requeriam horas de pesquisa, numa época em que não havia o computador. Suei e sofri em cima do capítulo a semana inteira e levei-o datilografado ao Rónai na sexta. Ele estava subindo para seu sítio “Pois é” em Friburgo e ia levar minha tradução para ler com calma. Senti-me desde o momento reprovado; achei mesmo que ele tinha escolhido o livro de propósito para se livrar de mim. Seria fácil, diante do meu fracasso tradutório, dizer ao patrão que eu, ainda muito jovem, não estava à altura dos demais tradutores. Mas Rónai foi muito legal comigo; na segunda mandou chamar-me e me cumprimentou pela tradução, entregando-me a incumbência de fazer o livro inteiro. Fiquei eufórico pois iria receber pelo trabalho uma quantia régia para a época em termos de pagamento de tradução literária. Quando entreguei o trabalho completo, algum tempo depois, ele me perguntou como eu havia resolvido a problema dos termos específicos de carpintaria e eu lhe revelei que me socorrera de velhos dicionários bilíngues portugueses e de um profissional do ramo, ligado à família. Satisfeito com meu empenho, Rónai logo me deu um segundo livro da Coleção para traduzir: a poesia de Erik-Axel Karfeldt, poeta nacional sueco, e me entregou os originais. Disse-lhe que eu não sabia uma palavra de sueco, mas ele argumentou que o livro serviria para eu me familiarizar com a estrutura dos poemas, e podia me valer de uma tradução francesa (que me deu) para estabelecer o texto. Também este consegui fazer a contento do Mestre. (A ironia é que, anos depois, fui morar na Suécia, onde fiquei 5 anos, e então pude cotejar minha tradução com o original.) Como trabalhávamos em andares diferentes e também em horários diversos, quase nunca o encontrava, mas sempre que nos víamos no elevador ou nas escadas, ele me cumprimentava com a educada cordialidade que sempre o caracterizou, mas com evidente simpatia. Poucos anos depois, fui para a Europa e passei ausente do Brasil cerca de 25 anos. Nunca mais o vi. Mas não posso me esquecer de sua fisionomia, que, sempre contida, soube demonstrar um sinal de alegria, quando me disse que minha tradução estava muito boa e que eu fora aprovado para colaborar na Coleção Nobel. Daí meu eterno reconhecimento.
MOREIRA CAMPOS (1914-1994)
Em 1957 fui a Fortaleza assistir ao casamento de meu tio Pedro Pimentel com uma jovem de lá. Amante das letras, autor de excelentes sonetos e autodidata de redação escorreita, ele era inspetor do Lloyd Brasileiro e tinha ido à capital cearense fazer um relatório sobre as atividades portuárias da região, o que lhe consumiu vários meses de trabalho e lhe permitiu fazer algumas amizades entre os intelectuais da terra, além naturalmente de vir a conhecer a Stella com quem se casou..
Quando cheguei a Fortaleza, tio Pedro fez questão de me apresentar a um escritor de quem ficara amigo e com quem se comprazia em palestras literárias. Foi assim que cheguei à casa de Moreira Campos, num domingo, onde o encontrei em pleno lazer, depois do almoço. Moreira estava comodamente vestido como competia ao lugar e à ocasião, de roupa clara e sandálias de couro, e me convidou a ficar à vontade, a tirar o paletó e aproveitar a deliciosa brisa marinha que começava a soprar com educada suavidade. Bebemos uma água de coco e começamos a falar de livros. Moreira tinha acabado de editar um livro de contos, Portas fechadas, e logo me deu um exemplar autografado. Eu estava em dia com o que se publicava no Rio e São Paulo e lhe falei de livros com títulos semelhantes, algo mais antigos, de 1944, o Fronteira Agreste, de Ivan Pedro Martins, e o Porteira fechada, de Ciro Martins. Moreira adiantou-me que seu livro era urbano e procurava fugir ao regionalismo então na moda, embora abdicasse igualmente das experimentações léxicas, que lhe pareciam um tanto artificiais.
Trouxe o livro comigo e comecei a lê-lo já na viagem de volta e quando cheguei ao Rio estava convicto de que havia conhecido um grande e autêntico escritor e que seu livro merecia divulgação aqui no Sul do país. Nessa época eu havia escrito uma resenha de crítica literária para o jornal comunista O Semanário sobre a poesia de Afonso Félix de Souza, que me valeu o convite para escrever outras. A seguinte (e creio, também última) foi sobre Portas Fechadas, de Moreira Campos, que eu saudava como um grande escritor nordestino cuja escrita precisava romper as fronteiras nordestinas e chegar aos leitores do eixo Rio-São Paulo. Agora procurei nos meus caóticos guardados mas não encontrei o recorte. Estou certo de que foi a primeira vez que o nome de Moreira Campos, que logo iria se tornar o grande Moreira Campos, apareceu na imprensa sulista. Como enviei a ele um exemplar do jornal, é possível que ainda reste essa inexpressiva lembrança em meio ao seu espólio que muito se enriqueceu com suas obras posteriores.
fascinantes os mementos…
Caro Ivo Barroso,
que maravilha poder ler seu texto sobre estes três grandes personagens. Antes de cursar Letras na UFC, pois ainda não tinha chegado meu momento de prestar o vestibular, um amigo me disse: “você precisa vir comigo hoje à Universidade, terá uma conferência de um professor, que é um grande escritor, e particularmente um grande contista”. Ele estava se referindo a Moreira Campos. Fui ver a sua palestra e fiquei encantado com a fala daquele homem extremamente gentil e inteligente. No final da conferência, vi que meu amigo estava com uma edição de “Dizem que os cães vêem as coisas”, tomei-a emprestado do meu colega e fui pedir uma dedicatória para Moreira em nossos nomes. Ele escreveu as seguintes palavras: Meus caros amigos, isto aqui não é nada, leiam Kafka! Com o carinho do Moreira Campos”. Lembro-me ainda da emoção que sentimos. Seus textos são riquíssimos, pena que ainda muito pouco lido no nosso país.
Sobre Meyer-Clason, nunca me esqueço as palavras de Rosa ao seu tradutor, quando Clason demonstrava sentir muita angústia por ter que traduzir o universo de Rosa. Este apenas lhe diz: “Meu caro amigo, além de traduzir palavra por palavra, sintaxe por sintaxe etc., o importante é traduzir PENSAMENTO POR PENSAMENTO”, e Rosa o escreve assim mesmo em caixa alta. A correspondência entre os dois foi, de fato, uma experiência muito bonita.
Compartilho com V. o meu blog, com traduções de escritores e ensaístas italianos: http://traduzirfantasmas.wordpress.com/
Muito obrigado por me fazer lembrar de nosso querido Moreira Campos, e obviamente de Meyer-Clason e Paulo Rónai,
un caro saluto,
Davi Pessoa.
Caro Davi,
comovente sua memória de Moreira Campos! Tomei a liberdade de mandar uma cópia para o Nilto Maciel (niltomaciel@uol.com.br) que está fazendo uma coletânea de referências ao grande Moreira Campos. Ele certamente irá se emocionar com a dedicatória que o MC lhe deu.
Um abraço grato do
Ivo Barroso
Caro Ivo,
obrigado pelas suas palavras gentis, e agradeço por compartilhar esta nossa “aventura” com o Nilto Maciel.
um abraço do
Davi.
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Beste, isolde Ohlbaum
[…] desta Gaveta poderá encontrar aqui uma notícia e duas de suas versões de meus poemas aqui e aqui, além do conto “Roteiro Turístico”, que ele também traduziu aqui. Vertendo para o alemão […]