Depois de ler na Gaveta a análise que fizemos de um soneto de Shakespeare, AQUI, o leitor Felipe (?) enviou-nos cópia de sua tradução do XC – 90, pedindo que a avaliássemos AQUI. Este não será nosso procedimento habitual, mas vamos abrir uma exceção dada a qualidade do trabalho.
Eis o envio:
Soneto 90
Odeia-me, portanto, desde agora,
Que o mundo os meus feitos contraria.*
Alia-te à fortuna sem demora;
Não aguardes o fim desta agonia.
Não venhas, quando já meu coração
Estiver são, reabrir suas chagas;
Não deixes que à noite de trovão *
Suceda uma chuvosa madrugada.
Não esperes o fim, para deixar-me,
Da mesquinha sequência destas dores;
Faze-o agora, e deixa provar-me *
Da Fortuna o poder e os horrores. *
Então outras formas de dor, amada, *
Perante tua perda serão nada.
Eis a avaliação:
Pontos positivos:
Conhecimento adequado dos idiomas fonte/alvo.
(Caro Felipe, você escolheu um dos mais difíceis sonetos do Vate e embora não tenha chegado (ainda) a uma grande tradução, conseguiu alguns efeitos que demonstram seu pendor para a ingrata arte de traduzir poesia. Uma boa tradução – como sabe – deve tentar reproduzir “o que está dito da forma como foi dito”, ou seja: aquilo que antigamente se chamava de fidelidade. Sua capacidade de compreensão/reprodução é bastante apurada, salvo em um caso ou outro em que você acaba, como a maioria dos tradutores, por “passar por cima”. Esse soneto começa com aquele terrível “if ever”, que tem necessariamente de ser mantido, algo como “desde já, já agora, que seja agora”, que você soube muito bem enfatizar. Bastava isto para qualificá-lo.)
Deficiências:
É necessário melhorar sua prática da metrificação: os versos apontados com *são deficientes, com uma sílaba a menos (ditos de pé quebrado) devido a hiatos não recomendáveis neste tipo de tradução (ex. ‘Não/ dei/xes /que// à/ noi/te/ etc.) A contagem habitual neste caso seria /que à/ constituindo uma única sílaba. É fácil consertar: Não/ per/mi/tas/ que à/ etc. Tente acertar metricamente os outros assinalados. O 11º verso tem icto na 5ª. sílaba, o que é incomum no decassílabo; melhor seria: Outras formas de amor, então, amada.
Parabéns:
Pela fluência dos versos, coisa difícil de se conseguir em tradução. Sua versão do icônico Give not a windy night a rainy morow por Não deixes que a uma noite de trovão / Suceda uma chuvosa madrugada é galardão de futuro grande tradutor. Você deve ser muito jovem; vá em frente; tem todo o resto do ano para conseguir a tradução nota dez.
Go ahead!
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ANTOLOGIA POÉTICA DA GAVETA
DOIS CASOS ESPECIAIS
Nosso álbum de poemas escolhidos acolhia de preferência os poetas parnasianos; só muito mais tarde descobrimos os grandiosos Cruz e Souza e Augusto dos Anjos (Simbolistas). Os poemas em geral eram versos de amor, idealistas, sonhadores ou sofredores, queixando-se dos infortúnios da vida, da solidão, do abandono. Mas havia duas exceções curiosas: um devaneio espiritual (“Ilusões da vida”, de Francisco Otaviano) e um soneto filosófico (“A Cegonha”, de Aníbal Teófilo), que todos achávamos grandiosos e sabíamos de cor.
FRANCISCO OTAVIANO (1825-1889) – poeta carioca (17)
Francisco Otaviano de Almeida Rosa, advogado, jornalista, diplomata, político, membro da ABL, sempre se queixou de nostalgia literária, arrebatado pela política a que chamava de “Messalina impura”. Como poeta ficou famoso com os versos abaixo:
ILUSÕES DA VIDA
Quem passou pela vida em branca nuvem
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem – não foi homem,
Só passou pela vida – não viveu.
ANTOLOGIA DOS ‘ESDRÚXULOS´
ANÍBAL TEOFILO (1873-1915)–poeta brasileiro nascido no Paraguai-(18)
Só pelo nome já se justificaria sua inclusão nos ‘esdrúxulos’: Aníbal Teófilo de Ladislau y Silva Figueiredo de Girón de Torres y Espinosa, mas além disso o nosso poeta nasceu em Humaitá, no Paraguai, durante a campanha cisplatina em que o pai, militar, servia. Ele também militar e político, era de porte atlético, belicoso, rixento. Numa disputa com o deputado federal Gilberto Amado foi por este assassinado com dois tiros de pistola pelas costas, no salão do Jornal do Comércio, no dia 19.06.1915. Seu poema que abaixo transcrevemos garantiu-lhe celebridade literária:
A CEGONHA
Em solitária, plácida cegonha,
Imersa num cismar ignoto e vago,
Num fim de ocaso, à beira azul de um lago,
Sem tristeza, quem há que os olhos ponha?
Vendo-a, Senhora, vossa mente sonha
Talvez, que o conde de um palácio mago,
Loura fada perversa, em tredo afago,
Mudou nessa pernalta erma e tristonha.
Mas eu, que em prol da Luz, do pétreo, denso
Véu do Ser ou Não Ser, tento a escalada
Qual morosa, tenaz, paciente lesma,
Ao vê-la assim mirar-se na água, penso
Ver a Dúvida Humana debruçada
Sobre a angústia infinita de si mesma.