Se tivesse de sintetizar numa única frase a personalidade de Rilke, diria que ele foi alguém que brincava de boneca com os anjos.
Ainda que a frase possa parecer a princípio extravagante, ela encerra, no entanto, dois pólos da maior significação para o entendimento da obra do Poeta:
uma educação juvenil inculcada, dirigida e opressora,
e o voo desabrido e transcendental de sua maturidade poética.
Não pretendo entrar nos pormenores biográficos desse Autor, já sobejamente conhecidos do público; mas, para justificar a frase inicial, é necessário pelo menos que se tenha presente o fato de que Rilke foi o segundo filho de um casal estranho:
o pai era um militar aposentado, que se separa da família quando o menino tinha oito anos;
a mãe, uma espécie de Madame Bovary tcheca,
dominante, verdadeira cabeça do casal, que, para compensar a perda de sua primeira filha, muito cedo falecida, dá ao garoto o nome de René MARIA e vai criá-lo durante muito tempo vestido de menina e comportando-se como tal.
Esse inculcado comportamento feminino vai marcar profundamente a alma de Rilke e justifica, de certo modo, a aversão que desenvolveu pela mãe durante toda sua vida. Basta saber que, de 1915 a 1926, ano de sua morte, Rilke não teve o menor contato com ela, a qual, tendo sobrevivido ao filho por mais cinco anos, nunca se manifestou publicamente a seu respeito.
Conseguindo vencer o mimo excessivo que lhe votava a Srª Rilke, o Poeta teve em seguida de enfrentar o extremo oposto: a imposição do pai para que seguisse a carreira militar e se transformasse num verdadeiro homem.
Para o bem da Poesia, Rilke fracassou também no setor beligerante…
Mas dessa incongruente mistura nasceu uma personalidade rebelde em todos os sentidos, muito semelhante à de Rimbaud, que o antecede na recusa formal do trabalho como obrigação, a fim de se manter inteiramente a serviço da Poesia.
Como o menino-poeta francês, Rilke é também um errante; viaja sem cessar, deixando-nos — em nosso grosseiro pragmatismo atual — a pensar como conseguia dinheiro para tamanhas andanças.
Em companhia de Lou-Andreas Salomé, russa de nascimento, e mulher avançadíssima para o seu tempo, visitou duas vezes a Rússia e entrevistou-se com Toistói. Em seu arroubo, passou a considerar a Rússia sua pátria espiritual, e só deve ter perdido esse elã fantasioso, na segunda viagem, quando volta a encontrar-se com Tolstoi e este lhe resolve dar, horas a fio, umas lições de … poesia.
Sua verdadeira pátria espiritual seria, mais tarde, a França, para onde ocorriam todos aqueles artistas que aspiravam a uma escala internacional. Em 1902 o poeta aceitara convite para permanecer uma temporada em Worpswede, colônia de pintores estabelecida nas imediações de Bremen, e onde Rilke vem a conhecer Clara Westhoff, ex-aluna de Rodin, com a qual se casa… um tanto precipitadamente, segundo a indiscreta discrição dos levantadores de cronologias; tanto assim que, informam tais senhores, o casamento, realizado na primavera de 1901, vai dar ao casal uma filha, Ruth, já no mês de dezembro daquele mesmo ano…
Com a mesma precipitação com que se casam, os jovens se separam em maio do ano seguinte, e embora permanecessem amigos, o poeta e a mulher, a partir de então, só teriam encontros ocasionais. Mas foi Clara Westhoff quem mudou a vida do poeta, sugerindo — a ele, que se tornara à época um crítico de arte — a ida a Paris com o fito de escrever um ensaio sobre Rodin, então no auge de sua notoriedade. Desse contacto inicial entre o poeta e o escultor vai nascer um relacionamento irregular, gerado por uma admiração mútua, que levará Radin a, mais tarde, contratar Rilke como seu secretário particular, e, pouco tempo depois, a despedi-lo de maneira imperdoavelmente humilhante.
Paris, no entanto, exercerá sobre Rilke um fascínio mesmérico, e é lá que o poeta inicia sua fase de aprendizagens, principalmente seu aprendizado de ver. “Estou aprendendo a ver“ — escreverá ele em seus “Cadernos de Malte Laurids Brigge”, sua primeira obra em prosa, de difícil gestação, na qual levou seis anos trabalhando, de 1903 a 1909. Essas anotações meio-romanceadas meio-autobiográficas, e frutos de uma fantasia (Rilke se supunha descendente de um nobre dinamarquês que visitara Paris) — são um permanente desdobrar de folhas, um constante abrir de gavetas, em que vemos a obra escrever-se a si mesma à medida em que está sendo escrita. É uma luta obsediante e cotidiana do poeta consigo mesmo ou com seu duplo, o Anjo, como uma espécie de Jacob diante do espelho ou a fusão da imagem do lutador com a de seu antagonista.
Rilke passa horas e mais horas no Jardin des Plantes vendo tudo: plantas, bichos, pessoas. A visão torna-se seu sentido mais aguçado e penetrante e ele vê não só a superfície exterior das coisas, mas igualmente o interior delas e, mais além, um superinterior, recriado em sua imaginação, que lhes atribui — às plantas, aos bichos e às pessoas — uma outra vida, uma outra forma, uma outra substância. Vai além e se incorpora ao objeto de sua visão e vê-se na coisa vista, e nela atua nesses vários planos existenciais, crescendo-planta, andando-pantera, falando-fonte, queimando-se-fósforo.
Esse “aprender a ver” irá tornar-se uma trade mark de Rilke, uma característica que resistirá, ao longo já de nove décadas, a toda espécie de diluições na literatura dos principais países europeus, agravada sintomaticamente por uns tantos outros do lado de cá do Atlântico.
Ao ser traduzida a obra para o francês em 1927 por seu amigo Maurice Betz, que lhe abre de vez as portas do livre trânsito internacional, Rilke já havia conquistado seu lugar no procênio da Poesia. Aprendera muitas línguas, o russo e o dinamarquês especialmente; traduzira muito, principalmente os franceses, como Proust, Gide e Valéry, dos quais era amigo; escreve seus próprios poemas em francês; convive com as grandes figuras artísticas da época e tem amigos influentes que o protegem, o adotam, o preservam das rasteiras dificuldades da vida para que ele possa empreender o grande voo da criação artística. Rilke aprendera a lição que empresta ao Torso Arcaico de Apolo, transformado por ele num dos momentos epigônicos da poética universal. “Tens que mudar tua vida ! » e essa mudança, essa luta, que transforma o pobre e humilde poeta despaisado e sem raízes num altíssimo expoente pretendido por várias pátrias e famílias, e que agora fala de igual para igual ao seu antigo mestre e patrão, Auguste Rodin.
Rilke sai vencedor desse combate, mas está só. Literalmente só. Não tem família, e embora desfrute da amizade e do amor de muitas mulheres que se maravilharam com sua presença e o fascínio de sua poesia, a solidão monasticamente buscada em ásperos refúgios, será doravante o objetivo de sua vida, a sua ascese, a aprendizagem mais alta. Essa solidão irá gerar sua obra máxima, talvez a obra máxima da poesia ocidental do século XX, “As Elegias de Duíno ” e “Os Sonetos a Orfeu”. E ei-lo finalmente, no polo oposto da timidez e do acanhamento da infância, agora no caminho da transcendência, a ouvir os Anjos, a dialogar com Deus …
Dotada de características especiais, tendo criado uma dicção personalíssima, que ele impõe à poesia universal, o primeiro contacto com a poesia de Rilke, seja em que língua feito, é sempre fascinante e revelador. No Brasil e em Portugal, inúmeros foram os tradutores que se propuseram a colocar a obra de Rilke ao alcance do público, e essas traduções, a par das francesas, inglesas e castelhanas que também nos chegavam, influenciaram grandemente os nossos poetas, dando ensejo ao aparecimento de coletâneas de elegias e a profusos livros de sonetos.
Se Rilke nos influenciou a todos, velhos poetas da Geração de 45, jovens poetas dos anos 50, vanguardistas e concretistas das décadas seguintes, houve um tempo, contudo, em que esteve na estante, ofuscado pelos Pounds e Eliots que o pós-guerra nos trazia e impunha. Mas, eis que, de novo, como esse Torso que assume outra forma de vida em si mesmo, o nome de Rilke volta às vitrines do mundo, e novas edições de sua obra e estudos sobre ela aparecem na Alemanha e na França, nos Estados Unidos e no Brasil. Sentimos estar perto o dia em que teremos uma edição da obra completa de Rilke em nosso país.
Correndo por fora de modismos ou conveniências, ditado apenas pelo seu amor ao Poeta, um homem de empresa, um banqueiro, um bissexto do mundo das letras, está sendo, segundo minha opinião, um dos responsáveis pela efervescência de Rilke no Brasil. Desde os anos 50 que Karlos Rischbieter tinha o Poeta na mira de sua devoção e acalentava o capricho de um dia traduzi-lo; o capricho se tornou paixão e passou a ocupar todas as folgas de seu pensamento, a preencher as lacunas que uma temporada de isolamento em Brasilia lhe proporcionava. Traduzir Rilke passou a ser um derivativo, uma cachaça, um segundo motivo de vida, dessa vida que temos de mudar para irmos além. E ele próprio se admirava quando, em seu quarto de hotel no exterior, enquanto descansava entre um meeting e outro, sentia a presença de Rilke se insinuar em sua mente, e complexas projeções econométricas iam dando lugar às inflexões filosóficas do Poeta, que ele procurava de qualquer forma fixar.
Quando eu soube dessa singular experiência e tive acesso à leitura dessas traduções surpreendeu-me grandemente que alguém, não integrado no métier poético, que não fosse poeta em tempo integral, pudesse captar de maneira tão adequada e sutil certas peculiaridades desse texto. Também eu tivera meus embates com o Monstro, ou melhor com o terrível Anjo, e sabia o amargor, a frustração que derivava de cada tentativa inútil de lhe captar as nuances e entretons. Lendo os longos poemas de Rilke, como os dois Réquiens, o Alceste, o Orfeu-Euridice-Hermes, o Nascimento de Vênus, nas versões de Rischbiter, fiquei contentemente surpreso de encontrar momentos de perfeita adequação tonal e fraseológica, certas transposições de genuína beleza, que muito tradutor e poeta diplomado gostaria de assinar. Por isso não tive hesitações em incentivá-lo não só a prosseguir nos trabalhos, como lhe sugeri — desta vez para surpresa dele, seguida de uma cautelosa indecisão — que publicasse as traduções. Enquanto se decidia, logo alguns editores farejaram no domínio público da obra do Poeta uma excelente oportunidade, e surgiram do dia para a noite algumas edições ou reedições de Rilke, antecipando o lançamento que a cautela editorial do Dr. Karlos lhes ensejara. Mas o livro finalmente veio à luz. Como todo trabalho de amor — não feito com intuitos pecuniários nem por motivos profissionais –, representa muito para o seu autor: ele é a paga dos momentos insones, de busca exaustiva de soluções que teimam em fugir, de termos que se desvanecem diante de nós antes que os possamos apreender de todo e cujo sentido era exatamente aquele que buscávamos com sofreguidão, cansaço, desatino. Se a frase está cheia de “nós”, assim dita no plural, é que estou certo de que o Dr. Rischbieter passou pelas mesmas angústias por que todos nós, tradutores de poesia, passamos. E estou certo de que, como nós, ele também terá tido as suas alegrias nos momentos de inspiração, quando o termo nos chega de leve ou quando quase o encontramos à mão ou dentro da gaveta; nos momentos de puro júbilo, quando a frase bate certa e ouvimos como um eco que nos viesse do outro lado da montanha; terá tido, finalmente, aquela sensação de haver chegado ao fim de alguma coisa, nem que seja a um fim provisório que incentiva um recomeço, quando viu que seus trabalhos iam adquirindo o formato de um livro, o formato de um ser, de um filho temporão.
Mas representa igualmente muito para nós, simples leitores ou amigos do tradutor, que nos deliciaremos com a sua realização e nos enriqueceremos com o seu exemplo. Pois este livro encerra um grande exemplo: a certeza de que podemos ir sempre um pouco além de nós mesmos, de podermos encontrar em nosso interior uma outra fonte de vida, um outro motivo de realização. Dr. Karlos — homem feliz — encontrou-os na poesia. Que grande contribuição será a sua e a deste livro se puder despertar com ele em alguns de nós o gosto pela poesia, ela tão escondida e esmagada pelos meios de comunicação mais fáceis e imediatos. Que grande trabalho será então o seu se conseguir fazer — nem que seja episodicamente, bissextamente, anualmente como o sentimento de Natal — com que nos debrucemos alguns minutos sobre estas páginas e reencontremos a vibração do sopro poético de que há tanto andávamos esquecidos.
Tenho certeza que esta será a maior realização a que poderá aspirar o autor desta tradução e o maior beneficio que nós, seus leitores, dela poderemos tirar.
[Palavras de apresentação pronunciadas quando do lançamento do livro]
A IMBATÍVEL TRADUÇÃO DE BANDEIRA
Creio que foi nos anos 50, quando sonhávamos colaborar no avançadíssímo Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, que tomei meu primeiro contato com a obra de Rilke. O Suplemento vinha publicando, ao longo de semanas, as “Elegias de Duíno”, em tradução de Dora Ferreira da Silva, que considero, até hoje, a melhor realização que conheço desses poemas em língua portuguesa. E certamente já havíamos lido algum artigo sobre a obra do Poeta, assinado por Carpeaux no antigo suplemento “Letras & Artes”, pois era ele sempre quem nos dizia as primeiras palavras sobre os velhos fenômenos literários europeus, que chegavam com tremendo atraso ao nosso terceiro mundo. Mas só então a estávamos conhecendo, em português, embora pouco depois, em 1953, Geir Campos, igualmente jovem poeta à época, fosse nos revelar um primeiro estoque dos “Novos Poemas”, na bela e saudosa coleção Rubayat, da Editora José Olympío. Embora a crítica posterior viesse a julgar as traduções de Geir um tanto “light”, em que a linguagem rilkeana é docemente simplificada pelas necessidades da rima e da métrica, a ele cabe, sem dúvida, o titulo de primeiro divulgador do poeta entre nós, divulgador no sentido literal do termo, ou seja, aquele que põe ao alcance do vulgo uma obra de arte, sem trancá-la na torre de marfim das elucubrações universitárias ou dos pequenos grupos diletantes.
No rastro de Geir surgiria em seguida “A Canção de Amor e de Morte do Porta-Estandante Cristóvão Rilke”, em tradução de Cecília Meireles, e “As Cartas a um Jovem Poeta”, transpostas por Paulo Rónai, que saíram em edição conjunta em 1953. A tradução de Rónai, escritor de origem húngara, radicado no Brasil durante a Guerra, e profundo conhecedor do alemão, fora feita diretamente do original rilkiano, e a de Cecília, embora usando como base a versão francesa de Suzanne Kra, de 1927, teve a leitura de Rónai, e continua sendo, até hoje, o representante oficial desse texto em nossa língua.
Nós, poetas novos de então, invejávamos Geir Campos e Mário Faustino por terem acesso direto aos textos rilkianos, enquanto nos contentávamos em comparar o que surgia em português com as edições francesas que, a essa altura, já nos eram acessíveis. É bem verdade que, do outro lado do Atlântico, o professor Paulo Quintela, da Universidade de Coimbra, já havia posto ao alcance do público português a quase totalidade da obra rilkiana, cabendo-lhe a incontestável primazia no campo das antecedências. No entanto, suas traduçôes nos pareciam graníticas, pesadas valquírias operátícas tentando inutilmente a esgarçante fragilidade de balé das composições de Rilke, e por isso preferíamos às portuguesas as já clássicas traduções de Maurice Betz e Angelloz, quando não nos valíamos de edicões espanholas ou latinoamericanas, como a “Antologia Poética”, de Hurtado Giol, e as “Gedichte – Poesias”, de Pino Saavedra, que nos permitiam uma diversidade ínterpretativa em relação à prata da casa em cujas baixelas de esmalte estávamos já fartos de comer. Outros, mais familiarizados com a língua inglesa, recorriam igualmente às corretas traduções de Herter Norton, J. B. Leishman e Selden Rodman. Mas o grande momento da poesia de Rilke em língua portuguesa apresentou-se diante de nós com a tradução do “Torso Arcaico de Apolo”, feita por Manuel Bandeira em 1948, mas que só iríamos conhecer na terceira edição de seus “Poemas Traduzidos”, publicada em 1956. Ali estava a verdadeira linguagem rilkiana! Bandeira, grande poeta, excelso conhecedor da arte de fazer versos, o maior de nossos tradutores de poesia que, além do mais sabia alemão, nos havia brindado com uma joia rara, o exemplo da perfeição a que poderia aspirar um tradutor de poesia. Parecia tão definitiva que nem mesmo os maiores divulgadores da poesia de Rilke em língua portuguesa (Augusto de Campos, José Paulo Paes e o granítico Quintela) haviam incluído o Torso em suas traduções. Com o tempo, alguns analistas mais exigentes, observaram que, apesar de ter mantido os belos enjambements do original, numa permanente recorrência do fluxo do poema, Bandeira, do ponto de vista meramente formal, não havia mantido a frase imperativa, “Du musst dein Leben ändern” (literalmente “Precisas mudar tua vida”) parecendo-lhes algo edulcorado aquele “mudares de vida”, em vez de “mudar a vida”, pois que diminuía a força imperativa da expressão, podendo aplicar-se até mesmo a processos vulgares de regeneração, como no caso de um boêmio que retornasse á vida familiar, em vez de exprimir apenas e somente a imperiosa imposição do Torso, que exige uma radical mudança do destino, como que a dizer ao Poeta: Se eu pude ser outro, também tens que fazer o mesmo. E Rilke aprendeu a lição: um dia, o jovem tímido e pobre que se humilhara diante de Rodin viria a tratá-lo em pé de igualdade, já amigo de Gide, de Proust e Valéry, de quem traduziria as obras, disputado pelos salões sociais e literários da gloriosa Paris!
Inúmeras são as traduções deste poema em inglês, disponíveis na Internet. Conseguimos examinar as seguintes: H. Landman, C. F. MacIntyre, Douglas Ryan Van Benthuysen, Stephen Mitchell, Winslow Shea, Don Paterson, Cliff Crego, a maioria sem métrica e sem rimas ou semi-rimadas (como a de MacIntyre). De início, o adjetivo “unerhörtes” (literalmente, inaudito, nunca ouvido falar, nunca visto) apresenta muitas variantes: fantastic, fabulous, awesome, legendary, incredible, terrific, outrageous (head), e “unheard” apenas em Cliff Crego e Douglas Ryan VanBenthuysen. A solução para “Aber”, solto no fim do verso e precedido por ponto, é quase sempre o “Yet” na mesma posição, salvo em alguns casos em que aparece “But” (variantes: “And yet his torso”, em Stephen Mitchell, “Yet here” em Winslow Shea e apenas ponto em Don Paterson). A frase final “Du musst dein Leben ändern” é traduzida sempre por “You must change your life”. A única rimada e metrificada é a de Winslow Shea, que incrivelmente transforma a definitiva frase final num simples “Reform!” A que nos pareceu mais expressiva foi a H. Landman, que chegou a traduzir o “Raubtierfelle” por “predator´s coat”, o que, embora literal, não nos parece nada rilkiano. A tradução francesa de que dispomos, de Jacques Legrad, não observa métrica e rima, embora mantenha o fecho “Tu dois changer ta vie”. Em português, além da consagrada tradução de Bandeira, apareceram posteriormente outras duas, que apresentamos abaixo, juntamente com aquela:
Archaïscher Torso Apollos
RAINER MARIA RILKE
Wir kannten nicht sein unerhörtes Haupt,
darin die Augenäpfel reiften. Aber
sein Torso glüht noch wie ein Kandelaber,
in dem sein Schauen, nur zurückgeschraubt,
sich hilt and glänzt. Sonst könnte nicht der Bug
der Brust dich blenden, and im leisen Drehen
der Lenden könnte nicht ein Lächeln gehen
zu jener Mitte, die die Zeugung trug.
Sonst stünde dieser Stein entstellt and kurz
unter der Schultern durchsichtigem Sturz
and flimmerte nicht so wie Raubtierfelle;
und bräche nicht aus alien seinen Rändern
aus wie ein Stern: denn da ist keine Stelle,
die dich nicht sieht. Du musst dein Leben ändern.
—
Torso arcaico de Apollo
Não sabemos como era a cabeça, que falta,
De pupilas amadurecidas, porém
O torso arde ainda como um candelabro e tem,
Só que meio apagada, a luz do olhar, que salta
E brilha. Se não fosse assim, a curva rara
Do peito não deslumbraria, nem achar
Caminho poderia um sorriso e baixar
Da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.
Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
Pedra, um desfigurado mármore, e nem já
Resplandecera mais como pele de fera.
Seus limites não transporia desmedida
Como uma estrela; pois ali ponto não há
Que não te mire. Força é mudares de vida.
Tradução de Manuel Bandeira
—
Torso arcaico de Apolo
Não conhecemos sua cabeça legendária
na qual as pupilas maturavam. Porém
seu torso ainda arde como uma luminária,
em que seu olhar, mais tênue, se detém,
fica e brilha. Senão o leve reflexo
da curva do seu peito não te cegaria,
nem o sorrir, no giro dos quadris, iria
correr para esse centro que portava o sexo.
Seria apenas uma pedra deformada
sob os ombros de diáfana derrocada
e como pêlos de fera não brilharia
e nem teria toda sua forma rompida
como uma estrela: lugar não haveria
que não ti veja. Precisas mudar tua vida.
Traduçâo de Karlos Rischbieter
—
Torso arcaico de Apolo
Não sabemos como era a cabeça inaudita,
onde as pupilas amadureciam. Glabro
no entanto o torso aclara como um candelabro,
onde apenas mais tênue, o seu olhar nos fita
e brilha. Senão como poderia o plexo
do peito assim cegar-te, e iria, no impreciso
arquear de parte da cintura, um leve riso
correr para esse centro, onde existia o sexo?
Seria um simples bloco mutilado e falto
e de seus ombros nunca o translucente salto
reluziria assim como um lombo de fera
nem romperia as órbitas qual explodida
estrela: pois ali ponto nenhum se espera
que não te veja. Tens que mudar tua vida.
Tradução de Ivo Barroso