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Posts Tagged ‘Manuel Bandeira’

Se tivesse de sintetizar numa única frase a personalidade de Rilke, diria que ele foi alguém que brincava de boneca com os anjos.

Ainda que a frase possa parecer a princípio extravagante, ela encerra, no entanto, dois pólos da maior significação para o entendimento da obra do Poeta:

uma educação juvenil inculcada, dirigida e opressora,

e o voo desabrido e transcendental de sua maturidade poética.

Não pretendo entrar nos pormenores biográficos desse Autor, já sobejamente conhecidos do público; mas, para justificar a frase inicial, é necessário pelo menos que se tenha presente o fato de que Rilke foi o segundo filho de um casal estranho:

o pai era um militar aposentado, que se separa da família quando o menino tinha oito anos;

a mãe, uma espécie de Madame Bovary tcheca,

dominante, verdadeira cabeça do casal, que, para compensar a perda de sua primeira filha, muito cedo falecida, dá ao garoto o nome de René MARIA e vai criá-lo durante muito tempo vestido de menina e comportando-se como tal.

Esse inculcado comportamento feminino vai marcar profundamente a alma de Rilke e justifica, de certo modo, a aversão que desenvolveu pela mãe durante toda sua vida. Basta saber que, de 1915 a 1926, ano de sua morte, Rilke não teve o menor contato com ela, a qual, tendo sobrevivido ao filho por mais cinco anos, nunca se manifestou publicamente a seu respeito.

Conseguindo vencer o mimo excessivo que lhe votava a Srª Rilke, o Poeta teve em seguida de enfrentar o extremo oposto: a imposição do pai para que seguisse a carreira militar e se transformasse num verdadeiro homem.

Para o bem da Poesia, Rilke fracassou também no setor beligerante…

Mas dessa incongruente mistura nasceu uma personalidade rebelde em todos os sentidos, muito semelhante à de Rimbaud, que o antecede na recusa formal do trabalho como obrigação, a fim de se manter inteiramente a serviço da Poesia.

Como o menino-poeta francês, Rilke é também um errante; viaja sem cessar, deixando-nos — em nosso grosseiro pragmatismo atual — a pensar como conseguia dinheiro para tamanhas andanças.

Em companhia de Lou-Andreas Salomé, russa de nascimento, e mulher avançadíssima para o seu tempo, visitou duas vezes a Rússia e entrevistou-se com Toistói.  Em seu arroubo, passou a considerar a Rússia sua pátria espiritual, e só deve ter perdido esse elã fantasioso, na segunda viagem, quando volta a encontrar-se com Tolstoi e este lhe resolve dar, horas a fio, umas lições de … poesia.

Sua verdadeira pátria espiritual seria, mais tarde, a França, para onde ocorriam todos aqueles artistas que aspiravam a uma escala internacional. Em 1902 o poeta aceitara convite para permanecer uma temporada em Worpswede, colônia de pintores estabelecida nas imediações de Bremen, e onde Rilke vem a conhecer Clara Westhoff, ex-aluna de Rodin, com a qual se casaum tanto precipitadamente, segundo a indiscreta discrição dos levantadores de cronologias; tanto assim que, informam tais senhores, o casamento, realizado na primavera de 1901, vai dar ao casal uma filha, Ruth, já no mês de dezembro daquele mesmo ano…

Com a mesma precipitação com que se casam, os jovens se separam em maio do ano seguinte, e embora permanecessem amigos, o poeta e a mulher, a partir de então, só teriam encontros ocasionais. Mas foi Clara Westhoff quem mudou a vida do poeta, sugerindo — a ele, que se tornara à época um crítico de arte — a ida a Paris com o fito de escrever um ensaio sobre Rodin, então no auge de sua notoriedade. Desse contacto inicial entre o poeta e o escultor vai nascer um relacionamento irregular, gerado por uma admiração mútua, que levará Radin a, mais tarde, contratar Rilke como seu secretário particular, e, pouco tempo depois, a despedi-lo de maneira imperdoavelmente humilhante.

Paris, no entanto, exercerá sobre Rilke um fascínio mesmérico, e é lá que o poeta inicia sua fase de aprendizagens, principalmente seu aprendizado de ver. “Estou aprendendo a verescreverá ele em seus “Cadernos de Malte Laurids Brigge”,  sua primeira obra em prosa, de difícil gestação, na qual levou seis anos trabalhando,  de 1903 a 1909. Essas anotações meio-romanceadas meio-autobiográficas, e frutos de uma fantasia (Rilke se supunha descendente de um nobre dinamarquês que visitara Paris) — são um permanente desdobrar de folhas, um constante abrir de gavetas, em que vemos a obra escrever-se a si mesma à medida em que está sendo escrita. É uma luta obsediante e cotidiana do poeta consigo mesmo ou com seu duplo, o Anjo, como uma espécie de Jacob diante do espelho ou a fusão da imagem do lutador com a de seu antagonista.

Rilke passa horas e mais horas no Jardin des Plantes vendo tudo: plantas, bichos, pessoas. A visão torna-se seu sentido mais aguçado e penetrante e ele vê não só a superfície exterior das coisas, mas igualmente o interior delas e, mais além, um superinterior, recriado em sua imaginação, que lhes atribui — às plantas, aos bichos e às pessoas — uma outra vida, uma outra forma, uma outra substância. Vai além e se incorpora ao objeto de sua visão e vê-se na coisa vista, e nela atua nesses vários planos existenciais, crescendo-planta, andando-pantera, falando-fonte, queimando-se-fósforo.

Esse “aprender a ver” irá tornar-se uma trade mark de Rilke, uma característica que resistirá, ao longo já de nove décadas, a toda espécie de diluições na literatura dos principais países europeus, agravada sintomaticamente por uns tantos outros do lado de cá do Atlântico.

Ao ser traduzida a obra para o francês em 1927 por seu amigo Maurice Betz, que lhe abre de vez as portas do livre trânsito internacional, Rilke já havia conquistado seu lugar no procênio da Poesia. Aprendera muitas línguas, o russo e o dinamarquês especialmente; traduzira muito, principalmente os franceses, como Proust, Gide e Valéry, dos quais era amigo; escreve seus próprios poemas em francês; convive com as grandes figuras artísticas da época e tem amigos influentes que o protegem, o adotam, o preservam das rasteiras dificuldades da vida para que ele possa empreender o grande voo da criação artística. Rilke aprendera a lição que empresta ao Torso Arcaico de Apolo, transformado por ele num dos momentos epigônicos da poética universal. “Tens que mudar tua vida ! » e essa mudança, essa luta, que transforma o pobre e humilde poeta despaisado e sem raízes num altíssimo expoente pretendido por várias pátrias e famílias, e que agora fala de igual para igual ao seu antigo mestre e patrão, Auguste Rodin.

Rilke sai vencedor desse combate, mas está só. Literalmente só. Não tem família, e embora desfrute da amizade e do amor de muitas mulheres que se maravilharam com sua presença e o fascínio de sua poesia, a solidão monasticamente buscada em ásperos refúgios, será doravante o objetivo de sua vida, a sua ascese, a aprendizagem mais alta. Essa solidão irá gerar sua obra máxima, talvez a obra máxima da poesia ocidental do século XX, “As Elegias de Duíno ” e  “Os Sonetos a Orfeu”. E ei-lo finalmente, no polo oposto da timidez e do acanhamento da infância, agora no caminho da transcendência, a ouvir os Anjos, a dialogar com Deus …

Dotada de características especiais, tendo criado uma dicção personalíssima, que ele impõe à poesia universal, o primeiro contacto com a poesia de Rilke, seja em que língua feito, é sempre fascinante e revelador.  No Brasil e em Portugal, inúmeros foram os tradutores que se propuseram a colocar a obra de Rilke ao alcance do público, e essas traduções, a par das francesas, inglesas e castelhanas que também nos chegavam, influenciaram grandemente os nossos poetas, dando ensejo ao aparecimento de coletâneas de elegias e a profusos livros de sonetos.

Se Rilke nos influenciou a todos, velhos poetas da Geração de 45, jovens poetas dos anos 50, vanguardistas e concretistas das décadas seguintes, houve um tempo, contudo, em que esteve na estante, ofuscado pelos Pounds e Eliots que o pós-guerra nos trazia e impunha. Mas, eis que, de novo, como esse Torso que assume outra forma de vida em si mesmo, o nome de Rilke volta às vitrines do mundo, e novas edições de sua obra e estudos sobre ela aparecem na Alemanha e na França, nos Estados Unidos e no Brasil. Sentimos estar perto o dia em que teremos uma edição da obra completa de Rilke em nosso país.

Correndo por fora de modismos ou conveniências, ditado apenas pelo seu amor ao Poeta, um homem de empresa, um banqueiro, um bissexto do mundo das letras, está sendo, segundo minha opinião, um dos responsáveis pela efervescência de Rilke no Brasil. Desde os anos 50 que Karlos Rischbieter  tinha o Poeta na mira de sua devoção e acalentava o capricho de um dia traduzi-lo; o capricho se tornou paixão e passou a ocupar todas as folgas de seu pensamento, a preencher as lacunas que uma temporada de  isolamento em Brasilia lhe proporcionava. Traduzir Rilke passou a ser um derivativo, uma cachaça, um segundo motivo de vida, dessa vida que temos de mudar para irmos além. E ele próprio se admirava quando, em seu quarto de hotel no exterior, enquanto descansava entre um meeting e outro, sentia a presença de Rilke se insinuar em sua mente, e complexas projeções econométricas iam dando lugar às inflexões filosóficas do Poeta, que ele procurava de qualquer forma fixar.

Quando eu soube dessa singular experiência e tive acesso à leitura dessas traduções surpreendeu-me grandemente que alguém, não integrado no métier poético, que não fosse poeta em tempo integral, pudesse captar de maneira tão adequada e sutil certas peculiaridades desse texto. Também eu tivera meus embates com o Monstro, ou melhor com o terrível Anjo, e sabia o amargor, a frustração que derivava de cada tentativa inútil de lhe captar as nuances e entretons. Lendo os longos poemas de Rilke, como os dois Réquiens, o Alceste, o Orfeu-Euridice-Hermes, o Nascimento de Vênus, nas versões de Rischbiter, fiquei contentemente surpreso de encontrar momentos de perfeita adequação tonal e fraseológica, certas transposições de genuína beleza, que muito tradutor e poeta diplomado gostaria de assinar. Por isso não tive hesitações em incentivá-lo não só a prosseguir nos trabalhos, como lhe   sugeri — desta vez para surpresa dele, seguida de uma cautelosa indecisão — que publicasse as traduções. Enquanto se decidia, logo alguns editores farejaram no domínio público da obra do Poeta uma excelente oportunidade, e surgiram do dia para a noite algumas edições ou reedições de Rilke, antecipando o lançamento que a cautela editorial do Dr. Karlos lhes ensejara. Mas o livro finalmente veio à luz.  Como todo trabalho de amor — não feito com intuitos pecuniários nem por motivos profissionais –, representa muito para o seu autor: ele é a paga dos momentos insones, de busca exaustiva de soluções que teimam em fugir, de termos que se desvanecem diante de nós antes que os possamos apreender de todo e cujo sentido era exatamente aquele que buscávamos com sofreguidão, cansaço, desatino. Se a frase está cheia de “nós”, assim dita no plural, é que estou certo de que o Dr. Rischbieter passou pelas mesmas angústias por que todos nós, tradutores de poesia, passamos. E estou certo de que, como nós, ele também terá tido as suas alegrias nos momentos de inspiração, quando o termo nos chega de leve ou quando quase o encontramos à mão ou dentro da gaveta; nos momentos de puro júbilo, quando a frase bate certa e ouvimos como um eco que nos viesse do outro lado da montanha; terá tido, finalmente, aquela sensação de haver chegado ao fim de alguma coisa, nem que seja a um fim provisório que incentiva um recomeço, quando viu que seus trabalhos iam adquirindo o formato de um livro, o formato de um ser, de um filho temporão.

Mas representa igualmente muito para nós, simples leitores ou amigos do tradutor, que nos deliciaremos com a sua realização e nos enriqueceremos com o seu exemplo. Pois este livro encerra um grande exemplo: a certeza de que podemos ir sempre um pouco além de nós mesmos, de podermos encontrar em nosso interior uma outra fonte de vida, um outro motivo de realização. Dr. Karlos — homem feliz — encontrou-os na poesia. Que grande contribuição será a sua e a deste livro se puder despertar com ele em alguns de nós o gosto pela poesia, ela tão escondida e esmagada pelos meios de comunicação mais fáceis e imediatos. Que grande trabalho será então o seu se conseguir fazer — nem que seja episodicamente, bissextamente, anualmente como o sentimento de Natal — com que nos debrucemos alguns minutos sobre estas páginas e reencontremos a vibração do sopro poético de que há tanto andávamos esquecidos.

Tenho certeza que esta será a maior realização a que poderá aspirar o autor desta tradução e o maior beneficio que nós, seus leitores, dela poderemos tirar.

[Palavras de apresentação pronunciadas quando do lançamento do livro]

A IMBATÍVEL TRADUÇÃO DE BANDEIRA

 

Creio que foi nos anos 50, quando sonhávamos colaborar no avançadíssímo Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, que tomei meu primeiro contato com a obra de Rilke. O Suplemento vinha publicando, ao longo de semanas, as “Elegias de Duíno”, em tradução de Dora Ferreira da Silva, que considero, até hoje, a melhor realização que conheço desses poemas em língua portuguesa. E certamente já havíamos lido algum artigo sobre a obra do Poeta, assinado por Carpeaux no antigo suplemento “Letras & Artes”, pois era ele sempre quem nos dizia as primeiras palavras sobre os velhos fenômenos literários europeus, que chegavam com tremendo atraso ao nosso terceiro mundo. Mas só então a estávamos conhecendo, em português, embora pouco depois, em 1953, Geir Campos, igualmente jovem poeta à época, fosse nos revelar um primeiro estoque dos “Novos Poemas”, na bela e saudosa coleção Rubayat, da Editora José Olympío. Embora a crítica posterior viesse a julgar as traduções de Geir um tanto “light”, em que a linguagem rilkeana é docemente simplificada pelas necessidades da rima e da métrica, a ele cabe, sem dúvida, o titulo de primeiro divulgador do poeta entre nós, divulgador no sentido literal do termo, ou seja, aquele que põe ao alcance do vulgo uma obra de arte, sem trancá-la na torre de marfim das elucubrações universitárias ou dos pequenos grupos diletantes.

No rastro de Geir surgiria em seguida “A Canção de Amor e de Morte do Porta-Estandante Cristóvão Rilke”, em tradução de Cecília Meireles, e “As Cartas a um Jovem Poeta”, transpostas por Paulo Rónai, que saíram em edição conjunta em 1953. A tradução de Rónai, escritor de origem húngara, radicado no Brasil durante a Guerra, e profundo conhecedor do alemão, fora feita diretamente do original rilkiano, e a de Cecília, embora usando como base a versão francesa de Suzanne Kra, de 1927, teve a leitura de Rónai, e continua sendo, até hoje, o representante oficial desse texto em nossa língua.

Nós, poetas novos de então, invejávamos Geir Campos e Mário Faustino por terem acesso direto aos textos rilkianos, enquanto nos contentávamos em comparar o que surgia em português com as edições francesas que, a essa altura, já nos eram acessíveis. É bem verdade que, do outro lado do Atlântico, o professor Paulo Quintela, da Universidade de Coimbra, já havia posto ao alcance do público português a quase totalidade da obra rilkiana, cabendo-lhe a incontestável primazia no campo das antecedências. No entanto, suas traduçôes nos pareciam graníticas, pesadas valquírias operátícas tentando inutilmente a esgarçante fragilidade de balé das composições de Rilke, e por isso preferíamos às portuguesas as já clássicas traduções de Maurice Betz e Angelloz, quando não nos valíamos de edicões espanholas ou latinoamericanas, como a “Antologia Poética”, de Hurtado Giol, e as “Gedichte – Poesias”, de Pino Saavedra, que nos permitiam uma diversidade ínterpretativa em relação à prata da casa em cujas baixelas de esmalte estávamos já fartos de comer. Outros, mais familiarizados com a língua inglesa, recorriam igualmente às corretas traduções de Herter Norton, J. B. Leishman e Selden Rodman. Mas o grande momento da poesia de Rilke em língua portuguesa apresentou-se diante de nós com a tradução do “Torso Arcaico de Apolo”, feita por Manuel Bandeira em 1948, mas que só iríamos conhecer na terceira edição de seus “Poemas Traduzidos”, publicada em 1956. Ali estava a verdadeira linguagem rilkiana!  Bandeira, grande poeta, excelso conhecedor da arte de fazer versos, o maior de nossos tradutores de poesia que, além do mais sabia alemão, nos havia brindado com uma joia rara, o exemplo da perfeição a que poderia aspirar um tradutor de poesia. Parecia tão definitiva que nem mesmo os  maiores divulgadores da poesia de Rilke em língua portuguesa (Augusto de Campos, José Paulo Paes e o granítico Quintela) haviam incluído o Torso em suas traduções. Com o tempo, alguns analistas mais exigentes, observaram que, apesar de ter mantido os belos enjambements do original, numa permanente recorrência do fluxo do poema, Bandeira, do ponto de vista meramente formal, não havia mantido a frase imperativa, “Du musst dein Leben ändern” (literalmente “Precisas mudar tua vida”) parecendo-lhes algo edulcorado aquele “mudares de vida”, em vez de “mudar a vida”, pois que diminuía a força imperativa da expressão, podendo aplicar-se até mesmo a processos vulgares de regeneração, como no caso de um boêmio que retornasse á vida familiar, em vez de exprimir apenas e somente a imperiosa imposição do Torso, que exige uma radical mudança do destino, como que a dizer ao Poeta:  Se eu pude ser outro, também tens que fazer o mesmo. E Rilke aprendeu a lição: um dia, o jovem tímido e pobre que se humilhara diante de Rodin viria a tratá-lo em pé de igualdade, já amigo de Gide, de Proust e Valéry, de quem traduziria as obras, disputado pelos salões sociais e literários da gloriosa Paris!

Inúmeras são as traduções deste poema em inglês, disponíveis na Internet. Conseguimos examinar as seguintes: H. Landman, C. F. MacIntyre, Douglas Ryan Van Benthuysen, Stephen Mitchell, Winslow Shea, Don Paterson, Cliff Crego, a maioria sem métrica e sem rimas ou semi-rimadas (como a de MacIntyre). De início, o adjetivo “unerhörtes” (literalmente, inaudito, nunca ouvido falar, nunca visto) apresenta muitas variantes: fantastic, fabulous, awesome, legendary, incredible, terrific, outrageous (head), e “unheard” apenas em Cliff Crego e Douglas Ryan VanBenthuysen.  A solução para  “Aber”, solto no fim do verso e precedido por ponto, é quase sempre o “Yet” na mesma posição, salvo em alguns casos em que aparece “But” (variantes: “And yet his torso”, em Stephen Mitchell, “Yet here” em Winslow Shea e apenas ponto em Don Paterson). A frase final “Du musst dein Leben ändern” é traduzida sempre por “You must change your life”. A única rimada e metrificada é a de Winslow Shea, que incrivelmente transforma a definitiva frase final num simples “Reform!” A que nos pareceu mais expressiva foi a H. Landman, que chegou a traduzir o “Raubtierfelle” por “predator´s  coat”, o que, embora literal, não nos parece nada rilkiano. A tradução francesa de que dispomos, de Jacques Legrad, não observa métrica e rima, embora mantenha o fecho “Tu dois changer ta vie”. Em português, além da consagrada tradução de Bandeira, apareceram posteriormente outras duas, que apresentamos abaixo, juntamente com aquela:

Archaïscher Torso Apollos

RAINER MARIA RILKE

Wir kannten nicht sein unerhörtes Haupt,
darin die Augenäpfel reiften. Aber
sein Torso glüht noch wie ein Kandelaber,
in dem sein Schauen, nur zurückgeschraubt,

sich hilt and glänzt. Sonst könnte nicht der Bug
der Brust dich blenden, and im leisen Drehen
der Lenden könnte nicht ein Lächeln gehen
zu jener Mitte, die die Zeugung trug.

Sonst stünde dieser Stein entstellt and kurz
unter der Schultern durchsichtigem Sturz
and flimmerte nicht so wie Raubtierfelle;

und bräche nicht aus alien seinen Rändern
aus wie ein Stern: denn da ist keine Stelle,
die dich nicht sieht. Du musst dein Leben ändern.

Torso arcaico de Apollo

Não sabemos como era a cabeça, que falta,
De pupilas amadurecidas, porém
O torso arde ainda como um candelabro e tem,
Só que meio apagada, a luz do olhar, que salta

E brilha. Se não fosse assim, a curva rara
Do peito não deslumbraria, nem achar
Caminho poderia um sorriso e baixar
Da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.

Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
Pedra, um desfigurado mármore, e nem já
Resplandecera mais como pele de fera.

Seus limites não transporia desmedida
Como uma estrela; pois ali ponto não há
Que não te mire. Força é mudares de vida.

Tradução de Manuel Bandeira

Torso arcaico de Apolo

Não conhecemos sua cabeça legendária
na qual as pupilas maturavam. Porém
seu torso ainda arde como uma luminária,
em que seu olhar, mais tênue, se detém,

fica e brilha. Senão o leve reflexo
da curva do seu peito não te cegaria,
nem o sorrir, no giro dos quadris, iria
correr para esse centro que portava o sexo.

Seria apenas uma pedra deformada
sob os ombros de diáfana derrocada
e como pêlos de fera não brilharia

e nem teria toda sua forma rompida
como uma estrela: lugar não haveria
que não ti veja. Precisas mudar tua vida.

Traduçâo de Karlos Rischbieter

Torso arcaico de Apolo

Não sabemos como era a cabeça inaudita,
onde as pupilas amadureciam. Glabro
no entanto o torso aclara como um candelabro,
onde apenas mais tênue, o seu olhar nos fita

e brilha. Senão como poderia o plexo
do peito assim cegar-te, e iria, no impreciso
arquear de parte da cintura, um leve riso
correr para esse centro, onde existia o sexo?

Seria um simples bloco mutilado e falto
e de seus ombros nunca o translucente salto
reluziria assim como um lombo de fera

nem romperia as órbitas qual explodida
estrela: pois ali ponto nenhum se espera
que não te veja. Tens que mudar tua vida.

Tradução de Ivo Barroso


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LXXI

No longer mourn for me when I am dead

Than you shall hear the surly sullen bell

Give warning to the world that I am fled

From this vile world, with vilest worms to dwell:

Nay, if you read this line, remember not

The hand that writ it; for I love you so,

That I in your sweet thoughts would be forgot,

If thinking on me then should make you woe.

O! if, – I say, you look upon this verse,

When I perhaps compounded am with clay,

Do not so much as my poor name rehearse,

But let your love even with my life decay;

Lest the wise world should look into your moan,

And mock you with me after I am gone.

 

 

 

71

Não lamentes por mim quando eu morrer

Senão enquanto o surdo sino diz

Ao mundo vil que o deixo e vou viver

Em meio aos vermes que inda são mais vis.

Nem te recorde o verso comovido

A mão que o escreveu, pois te amo tanto

Que antes achar em tua mente olvido

Que ser lembrado e te causar o pranto.

Ah! peço-te que ao leres esta queixa

Quando for minha carne consumida,

Não te refiras ao meu nome e deixa

Que morra o teu amor com minha vida.

Não veja o mundo e zombe desta dor

Por minha causa, quando morto eu for.

 

(Publicado
em “William Shakespeare, 42 Sonetos

           
Editora Nova Fronteira, 005)


[Nota: Na “visita” de Manuel Bandeira ao Clube
dos Doze, em 1954, tive a oportunidade de mostrar-
lhe a tradução deste soneto de Shakespeare.
Bandeira leu-o com atenção e me disse:“Este sim!
Eu assinaria embaixo.” Tais palavras me deram
estímulo para iniciar uma batalha que só terminaria
recentemente: o auto-desafio de traduzir 50 dos 154
sonetos do Vate.]

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Em 1954, o poeta Geir Campos tinha na Rádio Ministério da Educação um programa semanal chamado “Poesia Viva”, em que discorria sobre arte poética e grandes escritores, além de solicitar dos ouvintes que lhe enviassem seus poemas. Cada semana um deles era “premiado” com a leitura dos versos feita pelos locutores da emissora. Quando esses premiados alcançaram o número de doze, Geir os convocou para uma leitura personalizada em seu programa e prometeu fazer uma antologia reunindo os poetas escolhidos. Éramos: Albertus Marques, Alfredo Benvenuto da Silva, Edson Guedes de Moraes, Índia (Nídia) Rego, Jorge Cooper, Lia Feitosa de Castro, Maria Teresa Willaume, Marly Santos de Oliveira, Myrtes Riberte, Ruth Maria Chaves, Wilson Alvarenga Borges e eu. Como o livro, que seria editado pelo Serviço de Documentação do MEC, demorasse a sair, um dos premiados teve a idéia de reunir os doze poetas num clube para nos encontrarmos regularmente, a fim de palestrarmos e promover a edição de nossas “obras”. Tempos depois, em 1956, ocorreu-nos carregar com Manuel Bandeira até a nossa “sede social” (a casa de uma das nossas poetisas, Nídia Rego) onde, além de pedir seus conselhos, iríamos submetê-lo à tortura de ouvir os nossos versos e lhe fazer a clásica pergunta se devíamos continuar ou desistir. Bem humorado, o bom Manu, que tinha sido nosso professor de literatura hispano-americana na Faculdade Nacional de Filosofia, ali pertinho, nos recebeu em seu apartamento da Avenida Beira-Mar, 406, e se dispôs a ir conosco, de carro, até a Tijuca, onde um pequeno grupo nos esperava com suas laudas de poemas e alguns quitutes caseiros. Logo que chegou, fizemos ao poeta uma apresentação com estas palavras:

Caro poeta Manuel Bandeira:

Os jovens que o convidaram a esta reunião, incumbiram-me de expressar-lhe o nosso intuito e objetivo. Por isso, para que o senhor tenha uma ideia do lugar para onde foi “sequestrado” e da “tortura” que lhe intentaremos impor, devo dizer-lhe, inicialmente, que esta sala – o local do crime – é a sede do “Club dos 12”, gentilmente cedida pela sra. Índia Rêgo, dona da casa e nossa vice-presidenta. Em seguida, direi – para sua tranquilidade ou desespero maior – que os doze a que se refere o nome do club, não constituem nenhuma sociedade fechada, de propósitos sicários, mas um grupo de poetas daquela que poderíamos chamar de a “novississima geração”. Decerto, a esta altura, o senhor já deve estar rememorando os conselhos que o seu colega de grandeza o poeta Carlos Drumond de Andrade, em crônica naturalmente célebre, andou pontificando sobre a maneira mais estratégica de como se proceder em presença de escritores plumitivos. Mas, aqui, o senhor pode ficar com o espirito desprevenido, pois somos poetas de boa paz. Conhecemo-nos e formamos este clube, de intenções amigas, por inspiração do colega Edson Guedes de Moraes, nosso indispensável presidente, que nos agarrou à unha, um por um, num programa radiofônico dedicado à poesia, e mantido pelo Ministério da Educação, em sua emissora especializada. Ali obtivemos prêmios iniciais de classificação que muito nos incentivaram, principalmente depois que o Serviço de Documentação, do Dr. Simeão Leal, aceitou selecionar doze premiados para com eles editar uma antologia de novíssimos. Nós somos esses 12. Aliás, já somos esses 12 há algum tempo, mas a antologia não saiu até agora. É bom dizer que isso não representa uma reclamação e que não o trouxemos aqui para conhecer as nossas queixas; mas o fato é que não temos tido muita sorte e a antologia está sendo protelada de contínuo. Da última vez, quando os originais já estavam no prelo, a Imprensa Nacional foi forçada a interromper esse trabalho para enfrentar a árdua tarefa de produzir cédulas-únicas para as eleições passadas. Resultado: a antologia atrasou-se, mas em compensação, o Brasil, com isso, já teve vários presidentes*. Aí, para não perdemos o contato uns com os outros, fizemos o club. Editamos mensalmente um caderninho de poesia com as nossas últimas produções, no mimeógrafo, que é, por assim dizer, a imprensa dos escritores inéditos – e o distribuímos entre os sócios que já são muitos, e cujos trabalhos, selecionados, também aparecem naquelas páginas, juntamente com os doze.
Com isso, tenho como apresentados os executores deste “estado de sítio”. Agora direi porque o escolhemos para “vítima”, ou melhor, para a primeira de nossas “vitimas”.0 senhor é hoje, poeta Manuel Bandeira, uma espécie de instituição nacional. Mas, instituição nacional “par droît de conquête”. O tempo vai passando, vão surgindo os chamados “valores novos”, as rodinhas literárias fazem um alvoroço danado, dizendo que o livro do Fulaninho é lindo, que o poema do outro rapaz é uma coisa genial, mas tudo besteira – quando a gente quer mesmo sentir a Poesia, aquela coisa muito viva e muito simplicicade, que nenhuma definição consegue satisfazer, conforme o senhor mesmo já nos disse; quando a gente quer sentir aquela espécie de sopro renovado, aquela chuva madura caindo muito boazinha nas tardes consumidas; quando a gente procura no eu de hoje a serena mansidão do nós-criança, e lembramos o tempo grande, o mistério quente das palavras antigas, uns certos caminhos ladeados de sombras, uns amigos apagados no pranto, uma tristeza incutida nas coisas – aí então a gente se volta para o velho Manu e vai buscar a “Consoada”, o “Vou-me embora pra Pasárgada”, o “Profundamente”, enfim todos aqueles milagres de palavras que conseguiram captar tantos momentos de inefável. Parece que há no senhor, em sua vida, em seu jeitão calado, em seus livros, em tudo que recebe o seu toque, uma efusão de poesia – mas de uma poesia permanente, sem intervalo entre os poemas, – como se lhe fosse dado esse dom de continuidade poética numa ação criadora que o acompanha em todo o seu modo de existir.Como se o senhor, possuísse o encantamento de transformar as coisas todas da vida, as bonitas e as feias, as comuns e as incomuns, em grandes momentos de beleza, transformando-se com elas, transmutando-se na própria beleza das coisas. Foi por isso, nosso grande Manuel Bandeira, que o convidamos a esta reunião. Acontece que escrevemos os nossos poemas, pretendemos a Beleza, mas estamos sempre insatisfeitos com aquela que conseguimos produzir. Muitas indecisões nos atrapalham e a nossa compensação única são aqueles momentos em que pensamos na possibilidade de nos transformarmos, deixando cair as tristes penas feias de nossas dúvidas.

Bandeira, com sua voz meio velada, e a característica tossezinha com que pontilhava suas frases mais longas, mostrava uma discreta simpatia diante dos nossos versos e de uns eventuais salgadinhos. Em tom absolutamente informal, como numa conversa entre amigos, absteve-se de dar conselhos ou fazer julgamentos, indicando-nos apenas a leitura de autores fundamentais, deles excluindo, por modéstia, a sua própria poesia, que era, aliás, o motivo de nossa grande busca e maior veneração. Disse que a seleção feita por Geir tinha sido já um batismo, um atestado de qualidade que nos distinguia entre centenas de outros jovens que escreviam versos. Que ele próprio tinha tido dificuldades em publicar seus livros, contando com a ajuda da família para a edição dos primeiros. Mas se a poesia era de fato um impositivo em nossas vidas, uma experiência inelutável, então saberíamos continuar sem a pressa de aparecer, sem o desejo imediato de reconhecimento, apenas pela necessidade íntima e profunda de nos realizarmos no poema. Em nenhum momento demonstrou estar cansado de nossa apegada companhia e só se levantou quando nos oferecemos a levá-lo de volta. Muito educado sempre, ouvi-o arrematar a “visita” com a frase: “Obrigado pelos versos e pelos salgadinhos.” (Eu nunca soube se uns estavam à altura dos outros, mas sei bem que foi uma palavra sua que me levou à suprema coragem de traduzir Shakespeare).

(*) O momento político de então era incerto e agitado: entre a morte de Getúlio (1954) e a posse de Juscelino (1956), tivemos 3 presidentes: Café Filho, Carlos Luz e Nereu Ramos.

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