Uma das minhas maiores frustrações como tradutor é a de não ter me empenhado em transladar à nossa língua a nervosa e personalíssima arte poética de César Vallejo, vate peruano cuja influência dominou toda a literatura latino-americana do século XX e se propaga ainda hoje pelo nosso. Dele traduzi apenas três poemas (Los passos lejanos, La araña e Oh las quatro paredes de la celda), que publiquei em minha antologia de poemas traduzidos, O Torso e o Gato (Record, 1991), mas minha intenção foi sempre fazer todo o Trilce, de 1924, e bem assim Los Heraldos Negros, seu primeiro livro, de 1918.
Vallejo é importante, é mesmo o poeta de língua espanhola mais importante da América Latina, ombreando-se na força expressiva com Neruda. Foi o primeiro a subverter os padrões linguísticos da poesia em língua espanhola, a introduzir a linguagem do modernismo nas Américas, a criar um vocabulário próprio em que usa indiscriminadamente letras como o h – enfim, numerar suas qualidades seria o mesmo que traçar o retrato de corpo inteiro de um Rimbaud dos Andes. E sua poesia é profunda, toca no âmago da angústia humana, revolve feridas da alma. Seu tema principal é o homem universal, mesmo quando está falando de si mesmo. O grande escritor e poeta católico Thomas Merton considerou-o “o mais importante poeta universal depois de Dante”.
Vallejo teve uma vida miserável em sua terra natal, vivendo de pequenos biscates literários e de aulas esparsas de latim. Não chegou a se formar em Direito, quando jovem, na Universidade de Trujillo, por falta de dinheiro, só o conseguindo bem mais tarde. Tenta a vida como professor, mas acaba sendo preso num caso equívoco de atentado a um político local, passando a viver perseguido pela justiça. Nessa altura conhece o grande poeta Manuel González Prada (1848-1919), ativista político que o conduz ao socialismo. Graças a um amigo, que partilha com ele uma passagem de navio na terceira classe, parte em 1928 para a Europa e vai viver em Paris, onde conhece vultos importantes como Antonin Artaud, Jean Cocteau e Pablo Picasso, tendo este último feito um retrato seu, sobre estêncil, que se tornou icônico [vide acima]. Esses conhecimentos intelectuais, no entanto, em nada facilitam sua subsistência, e seu dia-a-dia é de penúria, morando em cômodos inóspitos com a fiel amante Georgette Philipart, que compartilha de sua miséria. Um pequeno emprego numa gráfica permite a subvida ínfima do casal. Sua inclinação política leva-o a visitar, a convite, duas ou três vezes a Rússia, sem que isto lhe traga qualquer proveito material, continuando a levar, até o fim de sua vida, em 1938, aos 46 anos, uma existência de desterrado, em cômodos sem luz nem calefação. Vallejo nunca mais voltou ao Peru.
Aqui vão mais três poemas dele: Idílio Muerto, o que leva apenas o número XIII (ambos de Trilce) e o estranho Piedra Negra Sobre una Piedra Blanca (de Gleba, 2ª parte de Nómina de Huesos [1923-1936], póstumo); porém o que eu mais gostaria (já tentei) traduzir seria o primeiro (homônimo) de Los Heraldos Negros, que começa “Hay golpes en la vida tan fuertes… Yo no sé!” em que há, aquele verso aparentemente intraduzível em português: “de algún pan que en la puerta del horno se nos quema“ . Não consegui encontrar uma saída (métrica) para o “se nos quema” (seria: que na porta do forno deixamos queimar, que deixamos queimar na porta do forno, que se queima à porta do forno, etc.), construção com verbo pronominal que também existe em português: que se nos queima, mas que soa demasiadamente acadêmico, traindo o coloquialismo de Vallejo. Os leitores mais afoitos que se empenhem…
IDILIO MUERTO
Qué estará haciendo esta hora mi andina y dulce Rita
de junco y capulí;
ahora que me asfixia Bizancio, y que dormita
la sangre, como flojo cognac, dentro de mí.
Dónde estarán sus manos que en actitud contrita
planchaban en las tardes blancuras por venir;
ahora, en esta lluvia que me quita
las ganas de vivir.
Qué será de su falda de franela; de sus
afanes; de su andar;
de su sabor a cañas de mayo del lugar.
Ha de estarse a la puerta mirando algún celaje,
y al fin dirá temblando: «Qué frío hay… Jesús!»
y llorará en las tejas un pájaro salvaje.
César Vallejo, 1918
IDÍLIO MORTO
Que estará fazendo agora minha andina e doce Rita
de junco e capulim,
agora que Bizâncio me sufoca e que dormita
o sangue como frouxo conhaque dentro de mim.
Onde estarão as mãos na atitude contrita
de engomar todas tardes brancuras do porvir;
agora, que esta chuva me interdita
o anseio de existir.
Que será de sua saia de flanela, de seus
afãs, de seu andar,
daquele seu sabor de canas do lugar.
Há de estar bem à porta contemplando a paisagem;
dirá por fim tremendo: “Que frio faz… Meu Deus!”
e chorará nas telhas um pássaro selvagem.
XIII
Pienso en tu sexo.
Simplificado el corazón, pienso en tu sexo,
ante el hijar maduro del día.
Palpo el botón de dicha, está en sazón.
y muere un sentimiento antiguo
degenerado en seso.
Pienso en tu sexo, surco más prolífico
y harmonioso que el vientre de la Sombra,
aunque la Muerte concibe y pare
de Dios mismo.
Oh Conciencia,
pienso, sí, en el bruto libre
que goza donde quiere, donde puede.
Oh, escándalo de miel de los crepúsculos.
Oh estruendo mudo.
¡Odumodneurtse!
XIII
Penso em teu sexo.
Simplificado o coração, penso em teu sexo,
ante o filhar maduro do dia.
Palpo o botão de dita, está maduro,
e morre um sentimento antigo
degenerado em siso.
Penso em teu sexo, sulco mais prolífico
e harmonioso do que o ventre da Sombra,
embora a Morte conceba e paira
do próprio Deus.
Oh, Consciência,
penso, sim, no bruto livre
que goza aonde quer, aonde pode.
Oh, escândalo de mel desses crepúsculos.
Oh, estrondo mudo.
!Odumodnortse!
PIEDRA NEGRA SOBRE UNA PIEDRA BLANCA
Me moriré em Paris con aguacero,
un día del cual tengo ya el recuerdo.
Me moriré en Paris – y no me corro –
talvez un jueves, como hoy, de otoño.
Jueves será, porque hoy, que proso
estos versos, los húmeros me he puesto
a la mala y, jamás como hoy, me he vuelto,
con todo mi caminho, a verme solo.
César Vallejo há muerto, le pegaban
todos sin que él les haga nada;
le daban duro con un palo y duro
tambien con una soga; son testigos
los días jueves y los huesos húmeros,
la soledad, la lluvia, los caminhos…
PEDRA NEGRA SOBRE UMA PEDRA BRANCA
Morrerei em Paris com aguaceiro,
num dia de que até já bem me lembro.
Morrerei em Paris – e não me movo –
numa quinta, como a de hoje, no outono.
Será quinta, porque hoje, quinta, pro-
so estes versos, os úmeros me causam
mal, e jamais como hoje me levaram,
com todo o meu caminho, a ver-me só.
Morreu Cesar Vallejo, que espancavam
todos sem que ele lhes fizesse nada;
lhe davam duro com porrete e rijo
também com uma corda, testemunhas
são os dias de quinta e os ossos úmeros,
a solidão, a chuva, e os caminhos.
Maravilha, Ivo. Vai pro meu facebook, também. Teve ótima repercussão a primeira leva.Este – já foi – com o título COMO É BOM VER UM GRANDE POETA FALANDO SOBRE OUTRO…
Sr. Ivo,
No poema “Penso em teu sexo…” me pareceu que o bruto livre gozou tão forte que faltou a vogal “o” do aonde.
Abraço,
João Renato.
Oi, João Renato,
Obrigado pela acurada observação. Já corrigi.
Abraços,
Ivo Barroso
Excelentes versões de um ótimo tradutor!
Apenas chamo a atenção para o errinho de digitação no verso do poema XIII:
“que goza ande [sic] quer, aonde pode.”
Deveria ser “aonde”, por certo.
Além de poeta que merece (maior) atenção como poeta, Ivo Barroso é um dos grandes tradutores do nosso país. Isto ele já demonstrou diversas vezes.
Gratíssimo, Lino,
é sempre bom sabermos que as pessoas nos leem com atenção. Já corrigi.
Abraços,
Inb
Idílio Morto, que coisa mais poderosa. Obrigado pelas traduções.
Caríssimo Poeta Ivo Barroso,
Maravilha!
Um trabalho digno de um Vallejo tão esquecido por aqui!
Aguardarei, dia após dia, certamente, o conjunto da obra: A grande poesia de Cesar Vallejo, em tradução de Ivo Barroso!
Muito obrigado!
Caro amigo,
infelizmente isto parece impossível. Já não tenho aquele pique dos meus dias de universidade quando usava a poesia de Vallejo para impressionar os colegas e a de Salinas para conquistar as meninas. Mas farei tudo para apresentar, vez por outra, mais alguns poemas de Vallejo, que sempre me encantaram.
Obrigado por suas palavras sempre incentivadoras,
Ivo barroso
[…] De repente, brotando do mais fundo da lembrança, veio um grito – um pedido de socorro ou um gesto firme de ajuda? – uma voz de desespero e de esperança: Quero escrever, mas só me sai espuma… O Quero dizer muitíssimo e me embrulho Ah! Vallejo! Meu deus, meu consolo, inspiração e crença. Onde estavas? SAIBA MAIS SOBRE VALLEJO: link 01, link 02 […]