Por mais que os críticos tentem rotulá-lo de datado e demodê, e alguns pedantes literários insistam em depreciar suas qualidades poéticas, o Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, toda vez que surge em nova apresentação — seja no palco, no cinema, em vídeo, disco ou livro — faz com que a devotada legião de seus admiradores se engrosse de novos milhares de jovens que não tinham ainda conhecimento da obra. Encenada mais de 14.000 vezes só na França, motivo de quatro filmes, duas óperas, um balé, várias gravações discográficas, um musical, traduzida em todas as línguas vivas, às vezes em mais de uma versão, seu sucesso indeclinável só pode ser explicado pela genialidade de sua concepção e a beleza correspondente de sua feitura.
Quanto à tradução brasileira da peça, devida à pena do escritor pernambucano Carlos Porto Carreiro (1865-1931) e publicada em 1907 (dez anos depois de sua estréia na França) — a absoluta fidelidade ao texto e ao espírito do texto, sem nada omitir, nem modificar sua estrutura, mas sem o menor servilismo, “arrancando do português faíscas que cegam”, às vezes mais ardentes que as do próprio original — esta consegue transmitir ao leitor de língua portuguesa toda a ductilidade do idioma original, a sua verve e suas peripécias verbais sem nunca se desviar da rigorosa vernaculidade cultivada à época pelos grandes escritores de nosso idioma.
Carlos Porto Carreiro, nascido em Pernambuco em 1865, era professor de economia política e finanças na Faculdade de Direito do Recife. Havia escrito alguns livros jurídicos e compunha versos, mas não gostava de ser chamado poeta, já que esta designação, na provinciana sociedade mercantil da época, presumia o tipo do boêmio desocupado, que não se coadunava com sua respeitabilidade de professor. Três anos mais velho que Rostand, Porto Carreiro encantou-se à primeira leitura com sua comédia heróica e logo intentou traduzi-la. Dedicava todos os seus esforços a essa empresa e consta que, às vezes, em seu trajeto de bonde para a Faculdade, ocorria-lhe saltar do veículo e entrar no primeiro botequim que via, a fim de tomar nota de versos que a inspiração lhe ditara ao longo do percurso. A tradução passou a ocupar-lhe inteiramente o espírito, conforme testemunha seu aluno e coestaduano França Pereira, um dos primeiros a saudá-la entusiasticamente quando esta saiu em fascículos nas páginas do Diário de Pernambuco , nos primeiros anos do século XX: “Quando, há cerca de um ano, suponho eu, nos encontramos, lembro-me bem do fulgor de seu olhar febricitante, do riso que lhe brincava nos lábios e do tremor que lhe agitava as mãos, ao falar-me do seu Cyrano, como se ele quisesse reviver ante meus olhos deslumbrados o velho Galrão da Gasconha num outro poema dramatizado. Nessa hora eu tive a ventura de escutar-lhe a recitação de vários trechos da obra. O que o desanimava, dizia-me, era a suspeita de se frustrarem seus esforços neste “meio” onde o galardoariam talvez com esta frase esmagadora: — Ora! uma tradução! — E mais nada. Ela aí está e, até eu que julgo um ingrato labor esse de verter a Poesia de um povo na língua de outro povo pensando, sentindo e querendo diferentemente, eu não sei como recusar-lhe agora o qualificativo de perfeita”.
Depois de publicada em fascículos na província, a tradução apareceu em livro em 1907, impressa pela J. Ribeiro dos Santos, do Rio de Janeiro. José Veríssimo, crítico da escola realista, fazendo à época (1907) a resenha da tradução de Porto Carreiro, assim se expressa, depois de confessar não ter pela obra e seu autor francês “a admiração de praxe” (sic): “Para atingir a perfeição conseguida pelo Sr. Porto Carrero na tradução do Cyrano de Rostand era preciso que o seu amor por esta obra fosse tal que, identificando-se com ela, lhe sentisse o assunto quase tanto como o autor o sentira. E deve ter sido assim, senão o seu trabalho não teria o vigor e a lindeza do original. O talento poético, as suas capacidades de emérito versejador, e ainda o seu raro conhecimento das duas línguas, não bastariam sem essa consubstanciação, para fazer desta tradução a obra-prima que, no seu gênero, ela é. Nem é excessivo o meu elogio, simples atestação de um fato que qualquer leitor poderá verificar. Com a escrupulosa fidelidade, ao pensamento e à expressão do autor, principal qualidade de toda a tradução, distingue-se mais esta pelo vernáculo da linguagem, sem o mínimo ressaibo da francesa, e do estilo que conservam todas as qualidades de brilho, elegância, finura, gentileza e galanteria que os admiradores de Rostand se comprazem em lhe achar.” Depois de analisar alguns trechos da peça, sobre os quais diz ficar “em dúvida qual prefira, o original ou a tradução”, o sisudo crítico arrisca uma profecia que se revelará — felizmente –enganosa: “Edmond Rostand não fez obra de grande poesia e de grande poeta. Menos o será uma tradução, mesmo a do Sr. Porto Carrero, dessa obra, destinada a perecer ao cabo de alguns anos de fama teatral.”
Porto Carreiro nunca teve a felicidade de ver sua magnífica tradução encenada. R. Magalhães Jr. atribui o fato às “dificuldades financeiras e artísticas que uma realização de tal ordem envolveria, já que a peça tem mais de quarenta personagens e grande variedade de cenários e roupagens do século XVII”. Mas a peça, como leitura, nunca deixou de circular. Já em 1902 saía a 2ª edição; posteriormente à morte do tradutor, vieram outras, já então editadas pela Pongetti, do Rio: a 5ª é de 1944. Nesse mesmo ano, a Confraria dos Bibliófilos Brasileiros CATTLEYA ALBA fez uma edição de luxo, de 200 exemplares fora do comércio, ilustrada com desenhos a bico de pena por Martha P. Schidrowitz. A última de nosso conhecimento, a 8ª, data de 1966. É curioso notar que os livros de direito de Porto Carreiro conheceram êxito semelhante ao de sua inigualável tradução. Suas Lições de economia política e noções de finanças tiveram sete edições publicadas pela Briguiet, do Rio. Contudo, até nessa gloríola jurídica Porto Carreiro foi um raté como Cirano: as edições são todas póstumas — a 3ª é de 1935, a 4ª de 1940, a 5ª de 1944, a 6ª de 1952 e a 7ª de 1957!.
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A leitura comparada dos textos — original e tradução — permite ao leitor verificar a extrema fidelidade de Porto Carreiro à estrutura e ao estilo da peça. As falas são rigorosamente respeitadas, sem cortes ou acréscimos, cada verso traduzido vis-à-vis do verso original. A beleza e a sonoridade das frases encontram sua exata correpondência em língua portuguesa, conservando-se aqui o timbre e a gama das inflexões. Vez por outra, o efeito, conseguido em francês pela utilização de uma rima rara ou preciosa, se não é correspondido sur place, vai aparecer em outro trecho onde melhor se ajusta. Mas o tradutor jamais foge às dificuldades estilísticas do original; utiliza recursos semelhantes, imagens reverberadas, rimas esdrúxulas, alusões consentâneas num surpreendente equilíbrio de isotopias. Veja-se, por exemplo, a tirada em que Cirano, após seu duelo com o visconde de Valvert, sabe pela aia de Roxana, que esta deseja encontrá-lo (Ato II, Cena VII). Le Bret, o amigo, vendo seu contentamento, pergunta-lhe se doravante ele será mais calmo. Ao que Cirano retruca:
Em Rostand
Maintenant…
Mais je vais être frénétique et fulminant!
Il me faut une armée entière à deconfire!
J’ai dix coeurs; j’ai vingt bras; il ne peut me suffire
De pourfendre des nains…
Il me faut des géants!
E a devolução de Porto Carreiro, conservando (e ampliando) a magnífica aliteração em ff do segundo verso, mantendo a elegância do verbo (pourfendre) e procedendo a duas antonomásias (Briareu e Golias) — muito no estilo de Rostand — para tornar o dito ainda mais grandiloqüente:
Doravante
É que vou ser feroz, furioso, fulminante;
Não basta um contendor: de exércitos preciso!
Sinto-me um Briareu. Na luta já não viso
Desbaratar anões…
Careço de Golias!
Outro exemplo da magistral perícia do tradutor se encontra na graciosa receita em versos que o bom pasteleiro Ragueneau lê aos seus “pares” (Ato II, Cena IV). A dificuldade maior está na manutenção do tom equivalente desses versos curtos, de ritmo sincopado, com rimas ricas e sestrosas, em que, além disso, há jogos de palavra brilhantemente mantidos pelo tradutor:
ROSTAND PORTO CARREIRO
Battez, pour qu’ils soient mousseux, Batam-se bem alguns ovos
Quelques oeufs; — Inda novos —
Incorporez à leur mousse Nas ondas que a espuma trouxe,
Un jus de cédrat choisi; De cidra o sumo se deite,
Versez-y Grosso leite,
Un bon lait d’amande douce; Bom leite de amêndoa doce.
Mettez de la pâte à flanc Passe-se dentro da lata
Dans le flanc Fresca nata
De moules à tartelette; Em fôrmas de bom-bocado;
D’un doigt preste, abricotez De damasco a borda peje-se;
Les côtés; E despeje-se
Versez goutte à gouttelette Gota a gota, com cuidado,
Votre mousse en ces puits, puis Tudo na fôrma, de forma
Que ces puits Que essa forma
Passent au four, et, blondines, Vá para o forno e, rendendo-a,
Sortant en gais troupelets, Sigam-se as outras: saindo,
Ce sont les Venham vindo
Tartelettes amandines! As tortazinhas de amêndoa!
Não passará certamente despercebida ao leitor a pletora de momentos estelares — verdadeiras árias de ópera — como a balada do duelo, as (vinte) tiradas sobre o nariz, a apresentação dos cadetes de Gasconha, os “não, obrigado!”, a cena do balcão com o arquifamoso beijo de Roxana (un point rose qu’on met sur l’i du verbe aimer), as incríveis patranhas da viagem à Lua e a divertida e ao mesmo tempo angustiosa gazeta de Cirano. Em todas elas, Porto Carreiro — espadachim à altura de seu contendor francês — apara os golpes estilísticos do mestre, retruca-lhe com idênticos tintilares do verso, devolve-lhe a exuberância das rimas, num duelo em que as belezas dos idiomas em choque saem da refrega empatadas. O que talvez lhe passe despercebido, se não é versado na arte sutil da tradução, será aquela seqüência inesgotável de “estalos”, a série infindável de achados, que constituem o apanágio dos grandes tradutores. A identificação tradutor/autor é aqui obtida com tamanha propriedade que um texto pode ser visto como reflexo do outro num jogo de espelhos de virtuosidades. Vejamos mais um exemplo, o trecho em que Ragueneau descreve a figura de Cirano (Ato I, Cena II):
Em Rostand:
Certes, je ne crois pas que jamais nous le peigne
Le solennel Monsieur Philippe de Champaigne;
Mais bizarre, excessif, extravagant, falot,
Il eût fourni, je pense, à feu Jacques Callot
Le plus fol spadassin à mettre entre ses masques:
Feutre à panache triple et pourpoint à six basques,
Cape que par-derrière, avec pompe, l’estoc
Lève, comme une queue insolente de coq,
Plus fier que tous les Artabans dont la Gascogne
Fut et sera toujours l’alme Mère Gigogne,
Il promène en sa fraise à la Pulcinella,
Un nez!… Ah! messeigneurs, quel nez que ce nez-là!…
Em Porto Carreiro:
Semelhante perfil duvido que o desenhe
O pincel do Senhor Philippe de Champaigne;
Mas, bizarro, excessivo, estróina, caprichoso,
Jacques Callot lhe achara o exemplo vigoroso
De louco espadachim, de trêfego brigão:
Três plumas no chapéu, seis abas no gibão,
Capa que, sobre a espada, eleva-se arrogante,
Como um rabo de galo afoito e petulante!
Orgulhoso Artaban, que, altivo de caráter,
A Gasconha gerou no ventre de alma mater,
Mostra uma crista rubra e polichinelesca,
— Um nariz! Ah! Meu Deus! Que penca gigantesca.
Poder-se-ia argumentar que algumas rimas (falot/Callot, masques/basques, l’estoc/coq) sofreram simplificações na tradução, principalmente a última, em que a expressão ce nez-là se embebe totalmente na palavra anterior Pulcinella. No entanto, uma tentativa de se manter esse malabarismo rímico, algo como
Qual de Polichinelo um narigão a que ele
Se subjuga. Ah! Meu Deus! mas que nariz aquele!
pecaria pela falta de força e agilidade em relação à equivalência que Porto Carreiro encontrou com aquela “crista rubra e polichinelesca”. Tem-se, assim, em muitos casos, que o aparente sacrifício de um recurso formal resulta em ganho para a graça da frase e o brilhantismo do verso.
Há um ponto, contudo, que Porto Carreiro certamente teria feito de outra forma se vivesse em nossos dias, quando uma liberdade maior de linguagem se permite sem que haja estremecimento dos bons usos e costumes vernáculos. Trata-se do verso em que Cirano, observando que Lise, mulher de Ragueneau, dá excessiva atenção a um mosqueteiro, a ela se dirige com firmeza:
…Ragueneau me plaît. C’est pourquoi, dame Lise,
Je défends que quelqu’un le ridicoculise.
No verbo ridicoculer , criação de Rostand, está embutida a palavra cocu (=corno, marido enganado). A palavra, na França de Rostand, não tinha o impacto-tabu de termo chulo de que se coloria entre nós. Por isso, dentro das limitações da época, Porto Carreiro traduziu simplesmente
…Ragueneau me agrada. É bom saberdes, Lise:
Não permito a ninguém que o ridicularize!
perdendo, para o público de língua portuguesa, a maliciosa graça do original. Hoje talvez tivesse tentando algo como:
…Ragueneau me agrada. É bom saberdes, Lise:
Não permito a ninguém que o ridicornalize!
A tradução de Porto Carreiro é justalinear: a cada verso do original corresponde igual verso em português; não há o recurso da paráfrase, nem da transposição. Por isso, sempre nos admirou que, na parte final, precisamente no epitáfio de Cirano, o fidelíssimo tradutor Porto Carreiro tivesse omitido um verso – e, a nosso ver, o verso mais significativo de toda a estrofe: “Qui fut tout, et qui ne fut rien” (Que foi tudo, e que nada foi”), sem que houvesse uma razão para isso. Poderia terminar, por exemplo, assim:
— Aqui repousa Saviniano,
Aqui jaz Hércules Cirano
De Bergerac, um pobre herói,
O que foi tudo e nada foi.
simplesmente passando o Bergerac para rima interna e dotado a estrofe de um verso a mais, sempre melhor do que um verso a menos. A única razão que me ocorre para essa omissão de Porto Carreiro é a de que ele amava tanto o “seu” Cirano que não podia admitir não ter sido ele nada, ainda que no dizer do próprio.
Acreditam alguns que a tradução de Porto Carreiro esteja hoje um pouco defasada, que tenha envelhecido, vazada que foi numa linguagem escorreitamente vernácula. Contraria a imputação o fato de continuarmos a gostar de Machado e outros clássicos, apesar de a linguagem destes destoar da indigência vocabular dos escritores de hoje. Há certamente palavras e expressões que, correntes na época do tradutor, já não são hoje usadas. O leitor estranhará, por exemplo, encontrar, no I Ato, a palavra “botequineira”, designando a pessoa que vende guloseimas e bebidas nos teatros; pois era assim no tempo de Porto Carreiro; hoje ele certamente diria: a baleira ou a vendedora de balas. Além disso, essa personagem põe ao dispor de Cirano os artigos que traz consigo e ele escolhe apenas uma uva, um copo d´água pura e meio macarrão. Esse macarrão era um confeito daquela época, um pequeno canutilho doce em formato do macarrão de massa. Os revisores do texto de Carreiro, temerosos de que os leitores entendessem mal o termo, acabaram emendando para “macarroni”, a forma que, na verdade, designa, em francês, a massa e não o confeito, que é mesmo “macaron”. Ocorre, porém, que, ao fazê-lo, estavam acrescentando uma sílaba métrica ao verso, adulterando, dessa forma, a perfeição do alexandrino. Por isso resolveu -se, nesta edição, manter o termo tal como o escreveu Porto Carreiro e explicar o seu significado ao leitor. O mesmo ocorre na descrição do cenário do II Ato – A Pastelaria dos Poetas – em que se menciona uma lareira ou forno aberto “diante do qual, entre monstruosos cachorros, sustentando cada um sua marmita, lacrimejam assados dentro dos pingadouros”. “Cachorros” e “marmitas” são termos especiais para designar o que chamaríamos hoje de “ganchos da lareira” e seus “tabuleiros de folha”. O cão da lareira é uma espécie de armação metálica para apoiar a lenha que arde na lareira e evitar que ela role para fora; chama-se assim em português porque na origem tinham o formato de cães. Sobre eles estavam então essas formas para receber os pingos de gordura que gotejavam dos assados e não deviam cair sobre a lenha e o fogo. Outra palavra que vai aparecer nesse ato – cuque – é hoje conhecida por “cuca” (mestre-cuca).
A tradução de Porto Carreiro é um clássico de nossa língua que nos cumpre preservar. Está solidamente integrada no patrimônio de nossa literatura. Ela transcende o teatro; é uma obra literária de grande beleza, um poema de qualidades incontestes, a preservação de nobres sentimentos e belas atitudes fixados para sempre na mágica intemporal da Poesia. Diferentemente daquela sombra do nariz no muro do jardim, que fazia Cirano sair de seus devaneios para voltar à torpe realidade, esta tradução — sombra luminosa do original — nos faz sair do estreito mundo em que vivemos para desfrutarmos um momento de sonho na Lua de Cirano e de Rostand.
Ivo Barroso
[…] Rostand em 1897. A tradução que li foi a de Carlos Porto Carreiro, comentada por Ivo Barroso aqui. Cyrano é um personagem realmente fantástico, espadachim e poeta, cômico e impressionante. Tem […]
Meu caro,
a tradução de Porto Carreiro é imbatível, destas feitas com as entranhas e não para ganhar algo com a venda do livro; é como se fosse escrita pelo próprio Rostand em português: todos os recursos estilísticos, a mesma erudição, o mesmo vocabulário romântico e rebuscado, as mesmas rimas mirabolantes… Faz bem em recomendar aos seus leitores que procurem ler essa versão e não aquela mediocridade editada pela Martin CLaret.
Muito obrigada pelos trechos e por trazer à tona parte de uma história que me agrada ter acesso.