Podemos dizer que este é um livro ímpar na pletórica bibliografia de Rimbaud: é, ao mesmo tempo, uma biografia, uma coleção de cartas e um compêndio de notas e observações – tudo num único volume. Ao traduzir a correspondência de Rimbaud, não nos restringimos às cartas (aliás importantes) de sua juventude; mas preservamos, de maneira especial, aquelas menos famosas, que ele escreveu aos seus familiares (no caso, a mãe e a irmã, às quais chamava de Caros Amigos) nos onze anos em que se auto-exilou na África (1880-1891). Nelas, Rimbaud evidencia seu abandono definitivo da literatura: não há nenhum vestígio do fabuloso estilista das obras primas de Charleville. O je era aqui un autre, a bem dizer o seu antípoda. Rimbaud pensa em viver uma outra (nova) vida: trabalhar muito para ficar fico e poder viver de rendas; casar-se; ter um filho ao qual transmitiria os verdadeiros princípios de uma existência real. Chega mesmo a cumular fortuna e traz suas moedas de ouro e prata num amarrado que não tira da cintura nem mesmo para dormir. As primeiras remessas de dinheiro para casa seguem com a orientação de que devem ser aplicadas a juros, mas a mãe – camponesa – acaba comprando mais um alqueire de terra para futuro desespero de Rimbaud.
Eis o que escreveu sobre este livro o editor da Topbooks:
AS CARTAS DE RIMBAUD
Com este volume – Correspondência – A TOPBOOKS encerra a publicação da Obra Completa de Rimbaud , depois de proceder à reedição dos tomos anteriores, Poesia Completa e Prosa Poética. Fica assim o leitor brasileiro, a partir de agora, na posse de tudo o que foi escrito pelo gênio de Jean-Nicolas-Arthur Rirnbaud, desde seus primeiros trabalhos escolares de 1864 até a última carta, ditada à sua irmã Isabelle, já em seu leito de morte no hospital de Marselha, em 1891.
Tendo rompido com a poesia quando tinha apenas 21 anos, depois de vaticinar em Uma Estadia no Inferno: “Força é que um dia eu me vá para bem longe, pois tenho que ajudar os outros, é meu dever” – o poeta de Charleville empreende, a partir de 1880, uma série de viagens pelo Oriente, numa errância que iria durar 11 anos, durante os quais buscou desesperadamente acumular riqueza para se tornar independente e ajudar os seus. Com esse gesto, assume uma personalidade irreconhecível para aqueles que só o apreciavam literariamente. Com ela pareceu adquirir – ainda conforme suas palavras premonitórias em Une Saison – o segredo de “mudar a vida”, ou, neste caso, mudar devida (Du musst dein Leben andem; diria Rilke bem mais tarde), pois essa “existência africana” pode ser considerada a antítese daquela anterior, em que buscava uma realização meramente literária, entregue tão só às aventuras do espírito. Estas duas vidas, estas existências opostas podem ser aqui observadas na leitura integral de sua correspondência: as chamadas “cartas da vida literária” (período que vai de 1870 a 1875) contrapostas às cartas africanas” (que abrangem de 1880 a 1891).
O abandono da literatura, no caso de Rimbaud, foi realmente total. Depois das culminâncias poéticas das Iluminações – as últimas das quais são datadas por alguns estudiosos como sendo de 1875 – nada escrito por ele foi encontrado que se possa classificar de “poético”. O que deixou de seu punho após essa data são apenas estas cartas dirigidas aos familiares, a uns poucos amigos e a seus associados comerciais, escritas sem preocupação estilística, meramente noticiosas, informativas. Mesmo em duas ocasiões, ao publicar no jornal Le Bospboie Égyptien, do Cairo, em agosto de 1887, o relato de sua viagem do Choa ao Harar, a linguagem usada é antes a de um explorador, a de um observador geográfico, do que a de um ex-poeta. E quando escreve, com o intuito de ser editado em Paris, uma “reportagem” para ser enviada à Sociedade de Geografia, nem mesmo assim o tom sobressai do convencional- científico para adquirir uma fulgurância qualquer de sua antiga “prosa de diamante”.
Face a esse quadro, poderia o leitor imaginar que a leitura dessas últimas cartas não encerra qualquer valor a acrescentar à obra do poeta. Mas pode se dizer, ao contrário, que elas são a reafirmação de sua obra, sua transposição para a própria vida. São a outra face da moeda, o complemento de um todo, pois nos permitem conhecer (e admirar) um outro Rimbaud (Je est un autre!), que procede na vida real com a mesma obstinação que teve em sua vida literária: lutando pela auto-superação, para ir sempre mais longe c mais além, para fazer o que o homem ainda fizera. É a continuação de seu velho sonho de adolescente, a sua transformação em realidade, a conquista de sua independência, daquela “liberdade livre”, que vem então a admitir como possível apenas pelo acúmulo de riqueza.
Apesar dessa mudança literal, pode-se perceber nesta leitura que o novo Rimbaud, o aventureiro, o explorador, o comerciante de produtos primários, e até mesmo o vendedor de armas, continua a manter um vínculo afetivo (disfarçado em distante formalismo) com os seus íntimos, a mãe e a irmã, às quais se dirige como “caros amigos”. A elas conta suas andanças, suas atividades, seus negócios, seus desejos e frustrações. E lhes pede livros com a mesma fome do leitor de outrora, só que então com o objetivo único de se preparar para o exercício de suas múltiplas ocupações. Com o passar do tempo, contudo, Roche, a casa materna – o porto para o qual velejava depois de todas as suas tempestades – já não atende ao seu desejo de pouso permanente, embora pense uma ou outra vez em voltar, casar-se, gerar um filho. O clima tropical já se apossava de seu corpo, a solidão lhe conquistara a alma. E a volta final se dá nas circunstâncias e condições mais terríveis pelas quais pode um ser humano passar, descritas, ainda desta vez, sem o menor rebique literário, num relato factual e quase impiedoso. Em suma, pode-se dizer que estas cartas são a réplica viva da Saison, a segunda passagem – agora real, inquestionável- por um inferno em vida.
A Topbooks tem o privilégio de apresentar pela primeira vez ao público brasileiro a edição integral dessa correspondência de Rimbaud, acrescida de comentários e notas que visam a dar ao leitor o conjunto das circunstâncias em que tais cartas foram escritas e esclarecê-lo sobre termos ou passagens que lhe poderiam parecer obscuras. Quis ainda o organizador deste volume – seu tradutor e comentarista – que a linguagem destas cartas acompanhasse fielmente a maneira direta e coloquial em que foram vazadas, sem melhorá-las, nem corrigi-las, mantendo a espontaneidade do original.
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PARABÉNS SILENCIOSOS
Todos os anos nesta data eu corria para o telefone a fim de dar os parabéns ao meu irmão Ney pelo seu aniversário. Ele não gostava de receber parabéns e era lacônico nos agradecimentos. Talvez tivesse demasiada consciência de que não estava fazendo mais um ano de vida e sim que a vida lhe estava tirando mais um ano de existência. Mesmo assim esperávamos que a cena fosse repetir-se uma imensidão de vezes, gostasse ele ou não dos cumprimentos. Hoje estaria completando 86 anos. Infelizmente a sequência se quebrou no dia 25 de junho de 2014, quando ele faleceu em consequência de uma operação de safena mal sucedida. Agora, quando chega esta data o telefone permanece como um símbolo de silêncio, aquela eterna pergunta que nós os humanos fazemos em frente do mistério: Onde estará? Que é feito dele? Será que está ouvindo a nossa voz?…
Ivo, posso até estar falando besteira, espero que não, mas acredito que Rimbaud, nas cartas, completa um ciclo reafirmando a sua vidência poética (o plano pessoal, o pesadelo sonhado em sua juventude) querendo ou não o mapa de sua aventura tanto poética quanto africana já deveria estar traçado em seu inconsciente desde a infância.
Obrigado pelo seu blog
A.C.
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