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Posts Tagged ‘Fábulas’

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Vida Boa

Um bancário com alma de poeta

Devo meu casamento à minha entrada no Banco do Brasil. Explico. Em 1953, a Sílvia, minha então namorada, me deu um ultimato: disse que eu precisava ter um emprego fixo, que me permitisse seguir uma carreira, para que pudéssemos enfim nos casar. Não me adiantou argumentar que não tinha temperamento ou habilidade para ser bancário, já que pretendia me tornar jornalista e poeta e estudava línguas e literaturas neolatinas na Faculdade Nacional de Filosofia. Mas o amor foi maior e segui a orientação dela: fiz cursinho, passei no concurso e, em janeiro de 1954, aos 24 anos, tomei posse no BB.

Ah, o casamento aconteceu em 1956, e ainda bem que dei ouvidos à Sílvia. Depois de 35 anos de uma auspiciosa carreira, aqui e no exterior, me aposentei em 1989 com a sensação do dever cumprido e com a felicidade de ter sido um bom profissional, que soube aproveitar todas as oportunidades que lhe foram oferecidas ao longo dos anos. Depois de aposentado, intensifiquei minha atividade literária escrevendo para jornais, publicando meus próprios livros e traduzindo cerca de 30 autores consagrados do inglês, francês, espanhol e italiano.

Comecei a traduzir por curiosidade. Ao longo da vida, fiz traduções por desafio, para ganhar dinheiro e para minha satisfação pessoal. Algumas, no entanto, foram feitas por amor, ou seja, por dedicação absoluta – sem pensar na publicação e muito menos na remuneração –, e me trouxeram aquela euforia inigualável própria do ato criativo. . Fui um dos selecionados pelo Prof. Paulo Rónai para traduzir trabalhos da Coleção dos Prêmios Nobel de Literatura; auxiliei Antônio Houaiss na Grande Enciclopédia Delta-Larousse e Carlos Lacerda na Enciclopédia Século XX. Por alguns trabalhos recebi prêmios, como o Jabuti, pela tradução de Os Gatos, de T. S. Eliot, outro pela Novela do Bom Velho e da Bela Mocinha, de Ítalo Svevo  e o da Academia Brasileira de Letras, pelo Teatro Completo, igualmente de  Eliot, Também traduzi Shakespeare, Rimbaud, Hermann Hesse, Calvino, Kazantzakis, Umberto Eco e vários outros.

Minha carreira bancária teve início na seção de Imposto Sindical da agência Centro, no Rio de Janeiro. Trabalhei depois em Cobranças no Interior, Cadastro e na Administração do Edifício Sede (todos onde hoje funciona o CCBB). Já comissionado fui servir na Gerência de Exportação da Cacex, onde me especializei em política do cacau, tendo representado a Carteira em várias reuniões internacionais. Em função desse trabalho, fui indicado, num convênio entre o Banco do Brasil e o Itamarati, para exercer as funções de adido comercial do Brasil na Holanda, de 1968 a 1970. Por esse trabalho de promoção comercial recebi a condecoração de Cavaleiro da Ordem de Oranje-Nassau.  Em 1973, tirei licença sem vencimentos e fui para Portugal como redator da revista Seleções do Reader’s Digest. Em 1978, voltei ao Banco como subgerente da agência de Lisboa, onde permaneci por cinco anos. Em 1983 fui transferido para a agência do BB em Londres, realizando assim o meu grande sonho de morar naquela cidade incrível. Em 1985, fui designado  para a Suécia, como primeiro gestor do escritório de representação do Banco em Estocolmo, onde me aposentei em 1989.

Antes de voltar definitivamente ao Brasil, eu e Sílvia, que é cantora lírica, realizamos outro sonho e vivemos mais quatro maravilhosos anos na França, onde pudemos desfrutar de toda a cultura europeia, que tanto amamos, e pude me dedicar ainda mais ao estudo dos autores que ia traduzindo.

Comprava e colecionava todos os livros, revistas e recortes que podia sobre a vida/obra do diabólico Arthur e cheguei a ter umas três centenas de livros correlatos. Quando regressei ao Brasil, em 1993, encontrei no editor José Mário Pereira, da Topbooks, um entusiasta pela obra de Rimbaud e com ele vim a editar os três volumes, Poesia Completa, Prosa Poética e, finalmente, a Correspondência, que saiu em 2009. Para fugir à tentação de voltar a rever a obra do poeta, doei todos os 180 livros de minha coleção “rimbaldiana” à biblioteca do Centro Cultural Banco do Brasil.

Aos poucos, fui publicando minhas próprias obras. Os livros de versos Nau dos Náufragos (1982) e Visitações de Alcipe (1991) foram editados em Portugal. No Brasil, publiquei A Caça Virtual e Outros Poemas (2001, finalista do Prêmio Jabuti de poesia daquele ano), editado pela Record. Organizei os livros Poesia e Prosa, de Charles Baudelaire (Nova Aguilar, 1995) e À Margem das Traduções, de Agenor Soares de Moura (Arx Editora, 2003). Escrevi o ensaio O Corvo e Suas Traduções (Nova Aguilar, 2000 – 3ª edição, 2012, pela LeYa-SP) e o manual Poesia Ensinada aos Jovens (Tessitura-BH, 2010). Para o Banco do Brasil, especificamente, escrevi o livro A Moeda no Brasil, que vem sendo periodicamente reeditado desde 2000, e traduzi o extenso catálogo da Exposição Paris 1900, realizada no CCBB em maio/junho de 2002.

Atualmente, vivo no Rio de Janeiro dedicado exclusivamente aos meus trabalhos literários e jornalísticos, e claro, a acompanhar de perto e a me maravilhar com as apresentações líricas da Sílvia, cuja voz permanece a mesma de quando me apontou o caminho glorioso do Banco do Brasil.

Saiu na revistinha da PREVI (Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil) em seu número de maio de 2013.

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Um Senhor em meu lugar

Em 1959, embora já trabalhasse no Banco do Brasil, eu dava meio expediente na Editora Delta, à travessa do Ouvidor, 66 – 3º andar, no Rio de Janeiro. Não consigo me lembrar como fui parar nessa empresa, provavelmente porque a essa altura, já colaborando com o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil e com dois livros traduzidos para a Civilização Brasileira, eu andasse buscando trabalhos extras onde quer que fosse. Soube que a Delta estava preparando uma enciclopédia e lá havia verbetes para tradução. Creio que comecei por aí, mas acabei indo trabalhar com o Dr. Pedro Lorch, um dos sócios da firma, na edição, para o público jovem brasileiro, de uma adaptação da enciclopédia juvenil norte-americana, Our Wonderful World. Toda semana, no  4º andar da editora, reunia-se um grupo de intelectuais (um brain storm, como dizia o Dr. Pedro) para opinar sobre as matérias que deviam entrar em tradução no livro e sobre as que precisavam ser adaptadas ou suprimidas. Eu devia atuar como uma espécie de secretário silencioso, anotando as sugestões. De posse delas, competia a mim encontrar os livros em que tais sugestões apareciam, copiá-las e conformá-las ao espaço a elas destinado no livro. Onde aparecia no original inglês, por exemplo, o diário de navegação de Colombo, a sugestão óbvia era trocá-lo pela carta de Caminha, e eu devia examinar o livro e achar os trechos correspondentes para depois adequá-los às páginas de nossa enciclopédia. Esse trabalho era feito na biblioteca do 3º andar, onde eu trabalhava sozinho, pesquisando os livros que lá havia e outros que eu podia encomendar à vontade às livrarias associadas da Delta. Nesse verdadeiro paraíso, sonho dourado do jovem poeta e escritor que então eu era, além de conviver com grandes intelectuais como Anísio Teixeira, Otto Maria Carpeaux, Aurélio Buarque de Holanda, Antônio Houaiss, Darcy Ribeiro, Péricles Madureira de Pinho e outros, eu ficara conhecendo o Carlos Scliar, que tratava das ilustrações e da paginação do livro, e chegou a montar seis cadernos da nossa enciclopédia (que guardo até hoje como relíquia). Mas quando estava mais me deleitando com aquele banho lustral, apesar das dificuldades crescentes para encontrar as fontes sugeridas nas reuniões, Scliar me informou que a obra ia ser descontinuada para dar lugar a um novo projeto que acabara de ser aprovado pela  Delta: a criação de uma revista. Senti-me ameaçado e mesmo despedido e fui falar com o Dr.Pedro, que me disse ser verdade, que a enciclopédia entraria em recesso e eu devia desocupar a biblioteca para a nova turma que chegava. Mas não estava despedido, apenas perderia a exclusividade da sala, pois ela seria transformada em redação. Sem dúvida teriam um lugar de tradutor para mim na futura revista. O mal é que  eu  ia  ficar  sem   o  “ bico ” que , confesso, graças à proteção de (são) Pedro Lorch, era bem remunerado. Mas vibrei quando me garantiu que eu não sairia da editora, talvez apenas da biblioteca. E a minha catedral refrigerada e silenciosa, onde eu fazia as minhas pesquisas e condensações, se viu um dia, de repente, invadida por uma turma ruidosa e descontraída que vinha criar a revista Senhor.

Quando cheguei de manhã, já encontrei a sala ocupada. À mesa, que eu considerava minha, estava sentado um senhor forte, de terno e gravata e fumando cachimbo, uma gravata dessas coloridas de entrevista na televisão. Ao lado dele, na mesinha onde eu escrevia à máquina, uma jovem senhora, com todos os clichês de secretária do chefão. Tratava-se de Nahum Sirotsky, jornalista da pesada, que estava vindo da Manchete depois de passar por vários jornais e revistas de prestígio e ter sido jornalista acreditado junto à ONU, em Nova York. É possível que tenha trazido de todos esses postos avançados uma certa pinta de americano, pois só aprovava os trabalhos ou sugestões de seus auxiliares com um  okie dokie, que era também correspondido por eles. E eles eram: Paulo Francis, Ivan Lessa, Luís Lobo, Adirson Barros, e na parte gráfica, além naturalmente do Scliar (que como eu já estava na casa), Glauco Rodrigues e Jaguar. Com a presença dos irmãos Weissmann (Simão e Sérgio), os sócios da Delta mais diretamente ligados à revista, Nahum fez um briefing sobre os objetivos da publicação que seria destinada a homens mas dirigida às mulheres de bom gosto; trataria de política e literatura em pé de igualdade; primoroso apuro gráfico; um estudo de fotógrafos premiados, mostrando moças bonitas e descoladas; muito humor, escrito e desenhado; ensaios sérios ao lado de dicas frívolas e maneirosas. Enfim, uma revista que pretendia ser uma New Yorker ou uma Esquire  mas com a nossa sem-cerimônia tropical. E apresentou um “boneco” do que seria o primeiro número: artigos de Carlos Lacerda, Otto Maria Carpeaux, Anísio Teixeira, Odilo Costa Fº, Reynaldo Jardim, Clarice Lispector,  Flávio Rangel, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos,  além de poemas e uma novela completa.

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Nahum, com seu cachimbo, juntamente com os okie dokies Ivan Lessa, Luiz Lobo e  Paulo Francis, pareciam todos empolgadíssimos como que antevendo a revolução gráfica que iriam causar no mundo editorial. Diferentemente do que ocorrera na enciclopédia, eu agora me sentia de todo sem função no meio daqueles rapazes agitados que se comportavam como estrangeiros (ou pelo menos com a ideia que eu fazia de estrangeiros). Continuei a ter uma mesinha com máquina de escrever que a bem dizer não usava, já que era continuamente compartilhada com os dinâmicos redatores. O mais lépido e trepidante deles,  Ivan Lessa, havia recém-chegado de Londres, onde morava, e produzia ideias em cascata,  parecendo estar ao mesmo tempo em todos os cantos e banheiros da editora. Luiz Lobo , mineiro já aclimatadamente carioca, distribuía seu sorriso matreiro mesmo tratando dos assuntos mais sérios, nos quais sempre introduzia um viés malicioso. Francis chegara na base do low profile, pois dias antes tinha sido o protagonista de um episódio então comentado a sottovoce pelos redatores da revista: ele fizera a crítica de um espetáculo teatral da companhia Tônia, Celi, Autran, e marcara a bobeira de insinuar que seus componentes formavam “um trio amoroso”. Dias depois, numa apresentação pública, Celi encontrara Francis na plateia, tirara-lhe os óculos e lhe aplicara um tabefe no rosto. Eu, que   já o conhecia dos tempos do Suplemento do JB e sabia de sua ampla cultura literária, logo me aproximei dele e antes de sair o primeiro número, em março de 1959,  ele já me “distinguia” com a encomenda da tradução de “As Neves do Kilimanjaro”, de Hemingway, para sair no lançamento da revista, onde acabei aparecendo em dose dupla, pois, nesse número inaugural, saiu também a minha tradução de um conto de Ray Bradbury, En la noche, apropriadamente ilustrado por Jaguar. Francis gostou tanto do trabalho que até escreveu uma nota de abertura dizendo que eu havia propositadamente usado os tratamentos tu e você na mesma frase para dar aos diálogos maior fluência e naturalidade.

Eu logo me integrava na equipe da Senhor e passei a traduzir sistematicamente todas as novelas e também alguns contos esparsos e poemas. Nahum chegou a me encomendar um artigo  “Para inglês ver”, que saiu no número de abril de 1959. Passei a “viver” o clima de agitação da revista, indo lá todos os dias, mesmo quando não tinha trabalhos para receber ou entregar. Um de seus financiadores, o jovem Sérgio Waismann, que também fumava cachimbo, entusiasmado com a dinâmica de Nahum, gostava de circular pela redação conversando com as figuras importantes que nos visitavam ou vinham trazer suas colaborações, e me tratava como um velho funcionário da casa. Tudo cheirava a sucesso. Grande foi a euforia dos patrocinadores e maior ainda a dos redatores com o lançamento dos primeiros números, largamente elogiados pela imprensa, embora as vendas ainda fossem inexpressivas e as firmas se mostrassem arredias diante dos altos padrões de qualidade exigidos para a colocação de anúncios.    Mas, ao fim de três meses, as finanças começaram a andar mal e os demais sócios resolveram estabelecer um dead line para saírem do vermelho. Contrataram então Ivan Meira e Edeson Coelho para comandar a publicidade e eles apareceram à frente de um grande séquito com a aura de trazerem consigo as contas publicitárias mais gordas do país. Contudo a vinda deles implicou apenas em acréscimo da folha de pagamento e a consequente redução do dead line antes imposto. Em fins de 1962, Reynaldo Jardim, que já havia assumido o lugar de Nahum, e o Edeson Coelho, o corifeu do gigante publicitário, assumiram o patrimônio da revista. Fui mantido em meu cargo de tradutor oficial e minha última colaboração neste setor foi a novela “Amor no trem ”, de Mary Mac Carthy, em setembro de 1962. Reynaldo, não podendo pagar os altos direitos autorais exigidos pelas editoras estrangeiras das novelas, resolveu substituí-las por uma seção chamada “Balaio”, que era uma espécie de suplemento literário com notas sobre livros, teatro, cinema, etc. Nela publiquei, no mês seguinte, um texto sobre Hermann Hesse, que havia falecido em agosto daquele ano.   Com a nova direção, a revista em seguida mudaria de endereço, deixando a travessa do Ouvidor. Seriam ainda editados alguns números, com novo rumo editorial, que dava maior ênfase aos assuntos econômicos. Acabou encerrando definitivamente suas atividades em janeiro de 1964.  E assim fiquei de novo sozinho na biblioteca, de volta ao trono, aguardando que um novo milagre viesse a acontecer…

Saiu no jornal (papel e JPG) O TREM ITABIRANO em setembro de 2013.

Nota: Se querem saber como acabou a história, é só ler a parte final do post de 27.05.2012 (Lembrança de Houaiss) aqui

fábulas

POR FIM, AS VERDADEIRAS FÁBULAS DE LA FONTAINE

Jean de La Fontaine (1621-1695) não escondia o jogo e informava desde o início a origem  de sua inspiração: “canto aqueles heróis cujo pai foi Esopo” e “me sirvo de animais para   instruir os homens”. Essa declaração consta do prólogo de sua primeira coletânea de fábulas (124) dedicadas a Monseigneur Le Dauphin, o filho mais velho do rei Luís XIV, o qual, naquele ano de 1668 contava apenas 8 anos e 5 meses de idade. Era essa a maneira notória com que os escritores da época buscavam a proteção de um mecenas para poder exercer seu ofício literário sem se aterem às preocupações domésticas. A oferta surtiu efeito e La Fontaine foi agraciado pelo rei com uma pensão anual de mil francos, além de fazer amizade com Nicolas Fouquet, superintendente das finanças reais, que lhe arranjou um emprego para o ajudar em sua obra poética. Certamente as coisas seriam ainda melhores se o delfim tivesse ascendido ao trono, mas ele morreu antes do pai e a coroa terminou cabendo a um bisneto de Luís XIV. Por outro lado, Fouquet se indispôs com o rei, perdeu o emprego, e quase arrasta nas más graças  La Fontaine, cuja sorte no entanto  permitiu com que duas  damas da corte, as duquesas de Bouillon e a de Orleãs, o hospedassem em suas mansões. Como não podia deixar de ser, o escritor acabou sendo recebido na Academia Francesa em 1684, apesar de certa oposição que o rei fazia ao seu nome, por ver, em suas Fábulas, alusões desagradáveis aos procedimentos da Corte

Ao longo de 25 anos (1668-1693), La Fontaine produziu e editou um total de 243 historietas,  divididas em 12 tomos, que se tornaram dos livros mais lidos da literatura francesa, e, no dizer de um de seus antigos editores, lhe asseguraram o lugar de “o mais francês de nossos poetas, o que embala nossa infância e cujas fábulas sugamos, de certa forma, junto com o leite materno”

Essas fábulas, apesar de lidas por crianças de todo o mundo, não se limitam a ser especificamente um livro infantil; os ensinamentos morais que delas derivam se aplicam não só aos homens comuns, mas aos governantes e poderosos. Além disso, a livre expressão de seu estilo, a recorrência a termos técnicos de diferentes artes e ofícios, suas alusões à história, à mitologia e aos costumes populares exigem uma leitura adulta e, em alguns casos, até mesmo inquiridora. Eis a razão porque certas edições aparecem pontuadas de notas, algumas bastante curiosas, como a do entomólogo Jean-Henri Fabre (1823-1915) que apontou erros científicos no comportamento dos insetos da fábula A Cigarra e a Formiga.  Certamente o cientista não soube ler o poeta que, desde o início, dando vozes aos animais, pretendeu criar uma feérie, uma fantasia, e não escrever um tratado zoológico…

As fábulas de La Fontaine atraem principalmente pelo “descompromisso” de sua leitura, pela liberdade de seus versos de metros variados e rimas não pretensiosas, recheados de expressões familiares, fazendo da linguagem animal um pastiche da humana. Era natural que o texto viesse a exercer fascínio sobre os tradutores de todas as línguas e, em português, temos inúmeros exemplos, desde os clássicos Manuel Barbosa du Bocage, Filinto Elísio, Curvo Semedo, Jaime de Séguier e Gonçalves Crespo aos nossos Machado de Assis, Raimundo Correa e o quilométrico Barão de Paranapiacaba. De tempos em tempos, o livro é revisitado, a linguagem atualizada, como aconteceu em nossos dias com as traduções de Milton e Eugênio Amado em 1989 e a do poeta Ferreira Gullar em 1997. E agora nos chega a boa surpresa neste volume das Fábulas Selecionadas de La Fontaine, edição encadernada em cor azul da Cosac Naify, com ilustrações do artista norte-americano Alexander Calder e tradução (como sempre impecável) do nosso Leonardo Froes. Como alguns de seus predecessores famosos (Jean de Granville, Karl Girardet, Gustave Doré, Marc Chagall, etc), Calder, o famoso criador dos móbiles e das esculturas monumentais, também se apaixonou pelas fábulas e selecionou 36 delas para ilustrar. O resultado foi a criação de desenhos um tanto cômicos e bem arejados que diferem das concepções macambúzias de seus antecessores. E exibem uma dinâmica gestual que se casa perfeitamente com a naturalidade da exposição poética de La Fontaine. Em pé de igualdade,notórios são os acertos do tradutor: sem se afastar uma sílaba que seja da métrica original, Leonardo Froes consegue traduzir integralmente sem adaptar, sem reescrever, sem copidescar. O texto francês posto em cotejo permite ao leitor seguir a habilidade com que ele translada não só o sentido, mas as mesmas palavras, ditas na mesma forma em que  estão no original. As múltiplas adaptações de todo gênero, que inundaram o mercado de livros infantis, só serviam para falsear o texto, descaracterizar o estilo do autor. Felizmente com esta bela edição da Cosac Naify, as crianças poderão conhecer o que lhes vinha quase sempre adulterado, os leitores adultos reavaliar um texto que lhes parecerá inteiramente novo e, aqueles que se interessam diretamente pela exaustiva arte da tradução, aplaudir a segurança com que Froes vai assimilando e reproduzindo cada verso do francês.#

Saiu no  Prosa & Verso (O Globo) em 17.08.2013 com o título “Cálder, Fróes e as Fábulas de La Fontaine”

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Lembrança: Souvenir, souvenir, que me veux-tu ? (Verlaine). Eu saía de casa no square (espécie de rua particular) du Trocadéro e descia  pela rue Sheffer à esquerda em direção da rue du Passy. E era só continuar pela rue du Passy que se chegava à Chaussée de la Muette já na entrada do parque  Ranelagh onde se encontra o excelente museu Marmottan com suas 65 telas de Monet, doadas por seu filho Michel em 1971. O parque é dedicado às crianças e tem um teatro de marionetes (guignol) e um carrossel. Mas antes,  logo à entrada, está a enorme estátua de La Fontaine com o indefectível corvo trazendo en son bec un fromage. Voilà!

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