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Posts Tagged ‘Banco do Brasil’

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Vida Boa

Um bancário com alma de poeta

Devo meu casamento à minha entrada no Banco do Brasil. Explico. Em 1953, a Sílvia, minha então namorada, me deu um ultimato: disse que eu precisava ter um emprego fixo, que me permitisse seguir uma carreira, para que pudéssemos enfim nos casar. Não me adiantou argumentar que não tinha temperamento ou habilidade para ser bancário, já que pretendia me tornar jornalista e poeta e estudava línguas e literaturas neolatinas na Faculdade Nacional de Filosofia. Mas o amor foi maior e segui a orientação dela: fiz cursinho, passei no concurso e, em janeiro de 1954, aos 24 anos, tomei posse no BB.

Ah, o casamento aconteceu em 1956, e ainda bem que dei ouvidos à Sílvia. Depois de 35 anos de uma auspiciosa carreira, aqui e no exterior, me aposentei em 1989 com a sensação do dever cumprido e com a felicidade de ter sido um bom profissional, que soube aproveitar todas as oportunidades que lhe foram oferecidas ao longo dos anos. Depois de aposentado, intensifiquei minha atividade literária escrevendo para jornais, publicando meus próprios livros e traduzindo cerca de 30 autores consagrados do inglês, francês, espanhol e italiano.

Comecei a traduzir por curiosidade. Ao longo da vida, fiz traduções por desafio, para ganhar dinheiro e para minha satisfação pessoal. Algumas, no entanto, foram feitas por amor, ou seja, por dedicação absoluta – sem pensar na publicação e muito menos na remuneração –, e me trouxeram aquela euforia inigualável própria do ato criativo. . Fui um dos selecionados pelo Prof. Paulo Rónai para traduzir trabalhos da Coleção dos Prêmios Nobel de Literatura; auxiliei Antônio Houaiss na Grande Enciclopédia Delta-Larousse e Carlos Lacerda na Enciclopédia Século XX. Por alguns trabalhos recebi prêmios, como o Jabuti, pela tradução de Os Gatos, de T. S. Eliot, outro pela Novela do Bom Velho e da Bela Mocinha, de Ítalo Svevo  e o da Academia Brasileira de Letras, pelo Teatro Completo, igualmente de  Eliot, Também traduzi Shakespeare, Rimbaud, Hermann Hesse, Calvino, Kazantzakis, Umberto Eco e vários outros.

Minha carreira bancária teve início na seção de Imposto Sindical da agência Centro, no Rio de Janeiro. Trabalhei depois em Cobranças no Interior, Cadastro e na Administração do Edifício Sede (todos onde hoje funciona o CCBB). Já comissionado fui servir na Gerência de Exportação da Cacex, onde me especializei em política do cacau, tendo representado a Carteira em várias reuniões internacionais. Em função desse trabalho, fui indicado, num convênio entre o Banco do Brasil e o Itamarati, para exercer as funções de adido comercial do Brasil na Holanda, de 1968 a 1970. Por esse trabalho de promoção comercial recebi a condecoração de Cavaleiro da Ordem de Oranje-Nassau.  Em 1973, tirei licença sem vencimentos e fui para Portugal como redator da revista Seleções do Reader’s Digest. Em 1978, voltei ao Banco como subgerente da agência de Lisboa, onde permaneci por cinco anos. Em 1983 fui transferido para a agência do BB em Londres, realizando assim o meu grande sonho de morar naquela cidade incrível. Em 1985, fui designado  para a Suécia, como primeiro gestor do escritório de representação do Banco em Estocolmo, onde me aposentei em 1989.

Antes de voltar definitivamente ao Brasil, eu e Sílvia, que é cantora lírica, realizamos outro sonho e vivemos mais quatro maravilhosos anos na França, onde pudemos desfrutar de toda a cultura europeia, que tanto amamos, e pude me dedicar ainda mais ao estudo dos autores que ia traduzindo.

Comprava e colecionava todos os livros, revistas e recortes que podia sobre a vida/obra do diabólico Arthur e cheguei a ter umas três centenas de livros correlatos. Quando regressei ao Brasil, em 1993, encontrei no editor José Mário Pereira, da Topbooks, um entusiasta pela obra de Rimbaud e com ele vim a editar os três volumes, Poesia Completa, Prosa Poética e, finalmente, a Correspondência, que saiu em 2009. Para fugir à tentação de voltar a rever a obra do poeta, doei todos os 180 livros de minha coleção “rimbaldiana” à biblioteca do Centro Cultural Banco do Brasil.

Aos poucos, fui publicando minhas próprias obras. Os livros de versos Nau dos Náufragos (1982) e Visitações de Alcipe (1991) foram editados em Portugal. No Brasil, publiquei A Caça Virtual e Outros Poemas (2001, finalista do Prêmio Jabuti de poesia daquele ano), editado pela Record. Organizei os livros Poesia e Prosa, de Charles Baudelaire (Nova Aguilar, 1995) e À Margem das Traduções, de Agenor Soares de Moura (Arx Editora, 2003). Escrevi o ensaio O Corvo e Suas Traduções (Nova Aguilar, 2000 – 3ª edição, 2012, pela LeYa-SP) e o manual Poesia Ensinada aos Jovens (Tessitura-BH, 2010). Para o Banco do Brasil, especificamente, escrevi o livro A Moeda no Brasil, que vem sendo periodicamente reeditado desde 2000, e traduzi o extenso catálogo da Exposição Paris 1900, realizada no CCBB em maio/junho de 2002.

Atualmente, vivo no Rio de Janeiro dedicado exclusivamente aos meus trabalhos literários e jornalísticos, e claro, a acompanhar de perto e a me maravilhar com as apresentações líricas da Sílvia, cuja voz permanece a mesma de quando me apontou o caminho glorioso do Banco do Brasil.

Saiu na revistinha da PREVI (Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil) em seu número de maio de 2013.

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Um Senhor em meu lugar

Em 1959, embora já trabalhasse no Banco do Brasil, eu dava meio expediente na Editora Delta, à travessa do Ouvidor, 66 – 3º andar, no Rio de Janeiro. Não consigo me lembrar como fui parar nessa empresa, provavelmente porque a essa altura, já colaborando com o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil e com dois livros traduzidos para a Civilização Brasileira, eu andasse buscando trabalhos extras onde quer que fosse. Soube que a Delta estava preparando uma enciclopédia e lá havia verbetes para tradução. Creio que comecei por aí, mas acabei indo trabalhar com o Dr. Pedro Lorch, um dos sócios da firma, na edição, para o público jovem brasileiro, de uma adaptação da enciclopédia juvenil norte-americana, Our Wonderful World. Toda semana, no  4º andar da editora, reunia-se um grupo de intelectuais (um brain storm, como dizia o Dr. Pedro) para opinar sobre as matérias que deviam entrar em tradução no livro e sobre as que precisavam ser adaptadas ou suprimidas. Eu devia atuar como uma espécie de secretário silencioso, anotando as sugestões. De posse delas, competia a mim encontrar os livros em que tais sugestões apareciam, copiá-las e conformá-las ao espaço a elas destinado no livro. Onde aparecia no original inglês, por exemplo, o diário de navegação de Colombo, a sugestão óbvia era trocá-lo pela carta de Caminha, e eu devia examinar o livro e achar os trechos correspondentes para depois adequá-los às páginas de nossa enciclopédia. Esse trabalho era feito na biblioteca do 3º andar, onde eu trabalhava sozinho, pesquisando os livros que lá havia e outros que eu podia encomendar à vontade às livrarias associadas da Delta. Nesse verdadeiro paraíso, sonho dourado do jovem poeta e escritor que então eu era, além de conviver com grandes intelectuais como Anísio Teixeira, Otto Maria Carpeaux, Aurélio Buarque de Holanda, Antônio Houaiss, Darcy Ribeiro, Péricles Madureira de Pinho e outros, eu ficara conhecendo o Carlos Scliar, que tratava das ilustrações e da paginação do livro, e chegou a montar seis cadernos da nossa enciclopédia (que guardo até hoje como relíquia). Mas quando estava mais me deleitando com aquele banho lustral, apesar das dificuldades crescentes para encontrar as fontes sugeridas nas reuniões, Scliar me informou que a obra ia ser descontinuada para dar lugar a um novo projeto que acabara de ser aprovado pela  Delta: a criação de uma revista. Senti-me ameaçado e mesmo despedido e fui falar com o Dr.Pedro, que me disse ser verdade, que a enciclopédia entraria em recesso e eu devia desocupar a biblioteca para a nova turma que chegava. Mas não estava despedido, apenas perderia a exclusividade da sala, pois ela seria transformada em redação. Sem dúvida teriam um lugar de tradutor para mim na futura revista. O mal é que  eu  ia  ficar  sem   o  “ bico ” que , confesso, graças à proteção de (são) Pedro Lorch, era bem remunerado. Mas vibrei quando me garantiu que eu não sairia da editora, talvez apenas da biblioteca. E a minha catedral refrigerada e silenciosa, onde eu fazia as minhas pesquisas e condensações, se viu um dia, de repente, invadida por uma turma ruidosa e descontraída que vinha criar a revista Senhor.

Quando cheguei de manhã, já encontrei a sala ocupada. À mesa, que eu considerava minha, estava sentado um senhor forte, de terno e gravata e fumando cachimbo, uma gravata dessas coloridas de entrevista na televisão. Ao lado dele, na mesinha onde eu escrevia à máquina, uma jovem senhora, com todos os clichês de secretária do chefão. Tratava-se de Nahum Sirotsky, jornalista da pesada, que estava vindo da Manchete depois de passar por vários jornais e revistas de prestígio e ter sido jornalista acreditado junto à ONU, em Nova York. É possível que tenha trazido de todos esses postos avançados uma certa pinta de americano, pois só aprovava os trabalhos ou sugestões de seus auxiliares com um  okie dokie, que era também correspondido por eles. E eles eram: Paulo Francis, Ivan Lessa, Luís Lobo, Adirson Barros, e na parte gráfica, além naturalmente do Scliar (que como eu já estava na casa), Glauco Rodrigues e Jaguar. Com a presença dos irmãos Weissmann (Simão e Sérgio), os sócios da Delta mais diretamente ligados à revista, Nahum fez um briefing sobre os objetivos da publicação que seria destinada a homens mas dirigida às mulheres de bom gosto; trataria de política e literatura em pé de igualdade; primoroso apuro gráfico; um estudo de fotógrafos premiados, mostrando moças bonitas e descoladas; muito humor, escrito e desenhado; ensaios sérios ao lado de dicas frívolas e maneirosas. Enfim, uma revista que pretendia ser uma New Yorker ou uma Esquire  mas com a nossa sem-cerimônia tropical. E apresentou um “boneco” do que seria o primeiro número: artigos de Carlos Lacerda, Otto Maria Carpeaux, Anísio Teixeira, Odilo Costa Fº, Reynaldo Jardim, Clarice Lispector,  Flávio Rangel, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos,  além de poemas e uma novela completa.

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Nahum, com seu cachimbo, juntamente com os okie dokies Ivan Lessa, Luiz Lobo e  Paulo Francis, pareciam todos empolgadíssimos como que antevendo a revolução gráfica que iriam causar no mundo editorial. Diferentemente do que ocorrera na enciclopédia, eu agora me sentia de todo sem função no meio daqueles rapazes agitados que se comportavam como estrangeiros (ou pelo menos com a ideia que eu fazia de estrangeiros). Continuei a ter uma mesinha com máquina de escrever que a bem dizer não usava, já que era continuamente compartilhada com os dinâmicos redatores. O mais lépido e trepidante deles,  Ivan Lessa, havia recém-chegado de Londres, onde morava, e produzia ideias em cascata,  parecendo estar ao mesmo tempo em todos os cantos e banheiros da editora. Luiz Lobo , mineiro já aclimatadamente carioca, distribuía seu sorriso matreiro mesmo tratando dos assuntos mais sérios, nos quais sempre introduzia um viés malicioso. Francis chegara na base do low profile, pois dias antes tinha sido o protagonista de um episódio então comentado a sottovoce pelos redatores da revista: ele fizera a crítica de um espetáculo teatral da companhia Tônia, Celi, Autran, e marcara a bobeira de insinuar que seus componentes formavam “um trio amoroso”. Dias depois, numa apresentação pública, Celi encontrara Francis na plateia, tirara-lhe os óculos e lhe aplicara um tabefe no rosto. Eu, que   já o conhecia dos tempos do Suplemento do JB e sabia de sua ampla cultura literária, logo me aproximei dele e antes de sair o primeiro número, em março de 1959,  ele já me “distinguia” com a encomenda da tradução de “As Neves do Kilimanjaro”, de Hemingway, para sair no lançamento da revista, onde acabei aparecendo em dose dupla, pois, nesse número inaugural, saiu também a minha tradução de um conto de Ray Bradbury, En la noche, apropriadamente ilustrado por Jaguar. Francis gostou tanto do trabalho que até escreveu uma nota de abertura dizendo que eu havia propositadamente usado os tratamentos tu e você na mesma frase para dar aos diálogos maior fluência e naturalidade.

Eu logo me integrava na equipe da Senhor e passei a traduzir sistematicamente todas as novelas e também alguns contos esparsos e poemas. Nahum chegou a me encomendar um artigo  “Para inglês ver”, que saiu no número de abril de 1959. Passei a “viver” o clima de agitação da revista, indo lá todos os dias, mesmo quando não tinha trabalhos para receber ou entregar. Um de seus financiadores, o jovem Sérgio Waismann, que também fumava cachimbo, entusiasmado com a dinâmica de Nahum, gostava de circular pela redação conversando com as figuras importantes que nos visitavam ou vinham trazer suas colaborações, e me tratava como um velho funcionário da casa. Tudo cheirava a sucesso. Grande foi a euforia dos patrocinadores e maior ainda a dos redatores com o lançamento dos primeiros números, largamente elogiados pela imprensa, embora as vendas ainda fossem inexpressivas e as firmas se mostrassem arredias diante dos altos padrões de qualidade exigidos para a colocação de anúncios.    Mas, ao fim de três meses, as finanças começaram a andar mal e os demais sócios resolveram estabelecer um dead line para saírem do vermelho. Contrataram então Ivan Meira e Edeson Coelho para comandar a publicidade e eles apareceram à frente de um grande séquito com a aura de trazerem consigo as contas publicitárias mais gordas do país. Contudo a vinda deles implicou apenas em acréscimo da folha de pagamento e a consequente redução do dead line antes imposto. Em fins de 1962, Reynaldo Jardim, que já havia assumido o lugar de Nahum, e o Edeson Coelho, o corifeu do gigante publicitário, assumiram o patrimônio da revista. Fui mantido em meu cargo de tradutor oficial e minha última colaboração neste setor foi a novela “Amor no trem ”, de Mary Mac Carthy, em setembro de 1962. Reynaldo, não podendo pagar os altos direitos autorais exigidos pelas editoras estrangeiras das novelas, resolveu substituí-las por uma seção chamada “Balaio”, que era uma espécie de suplemento literário com notas sobre livros, teatro, cinema, etc. Nela publiquei, no mês seguinte, um texto sobre Hermann Hesse, que havia falecido em agosto daquele ano.   Com a nova direção, a revista em seguida mudaria de endereço, deixando a travessa do Ouvidor. Seriam ainda editados alguns números, com novo rumo editorial, que dava maior ênfase aos assuntos econômicos. Acabou encerrando definitivamente suas atividades em janeiro de 1964.  E assim fiquei de novo sozinho na biblioteca, de volta ao trono, aguardando que um novo milagre viesse a acontecer…

Saiu no jornal (papel e JPG) O TREM ITABIRANO em setembro de 2013.

Nota: Se querem saber como acabou a história, é só ler a parte final do post de 27.05.2012 (Lembrança de Houaiss) aqui

fábulas

POR FIM, AS VERDADEIRAS FÁBULAS DE LA FONTAINE

Jean de La Fontaine (1621-1695) não escondia o jogo e informava desde o início a origem  de sua inspiração: “canto aqueles heróis cujo pai foi Esopo” e “me sirvo de animais para   instruir os homens”. Essa declaração consta do prólogo de sua primeira coletânea de fábulas (124) dedicadas a Monseigneur Le Dauphin, o filho mais velho do rei Luís XIV, o qual, naquele ano de 1668 contava apenas 8 anos e 5 meses de idade. Era essa a maneira notória com que os escritores da época buscavam a proteção de um mecenas para poder exercer seu ofício literário sem se aterem às preocupações domésticas. A oferta surtiu efeito e La Fontaine foi agraciado pelo rei com uma pensão anual de mil francos, além de fazer amizade com Nicolas Fouquet, superintendente das finanças reais, que lhe arranjou um emprego para o ajudar em sua obra poética. Certamente as coisas seriam ainda melhores se o delfim tivesse ascendido ao trono, mas ele morreu antes do pai e a coroa terminou cabendo a um bisneto de Luís XIV. Por outro lado, Fouquet se indispôs com o rei, perdeu o emprego, e quase arrasta nas más graças  La Fontaine, cuja sorte no entanto  permitiu com que duas  damas da corte, as duquesas de Bouillon e a de Orleãs, o hospedassem em suas mansões. Como não podia deixar de ser, o escritor acabou sendo recebido na Academia Francesa em 1684, apesar de certa oposição que o rei fazia ao seu nome, por ver, em suas Fábulas, alusões desagradáveis aos procedimentos da Corte

Ao longo de 25 anos (1668-1693), La Fontaine produziu e editou um total de 243 historietas,  divididas em 12 tomos, que se tornaram dos livros mais lidos da literatura francesa, e, no dizer de um de seus antigos editores, lhe asseguraram o lugar de “o mais francês de nossos poetas, o que embala nossa infância e cujas fábulas sugamos, de certa forma, junto com o leite materno”

Essas fábulas, apesar de lidas por crianças de todo o mundo, não se limitam a ser especificamente um livro infantil; os ensinamentos morais que delas derivam se aplicam não só aos homens comuns, mas aos governantes e poderosos. Além disso, a livre expressão de seu estilo, a recorrência a termos técnicos de diferentes artes e ofícios, suas alusões à história, à mitologia e aos costumes populares exigem uma leitura adulta e, em alguns casos, até mesmo inquiridora. Eis a razão porque certas edições aparecem pontuadas de notas, algumas bastante curiosas, como a do entomólogo Jean-Henri Fabre (1823-1915) que apontou erros científicos no comportamento dos insetos da fábula A Cigarra e a Formiga.  Certamente o cientista não soube ler o poeta que, desde o início, dando vozes aos animais, pretendeu criar uma feérie, uma fantasia, e não escrever um tratado zoológico…

As fábulas de La Fontaine atraem principalmente pelo “descompromisso” de sua leitura, pela liberdade de seus versos de metros variados e rimas não pretensiosas, recheados de expressões familiares, fazendo da linguagem animal um pastiche da humana. Era natural que o texto viesse a exercer fascínio sobre os tradutores de todas as línguas e, em português, temos inúmeros exemplos, desde os clássicos Manuel Barbosa du Bocage, Filinto Elísio, Curvo Semedo, Jaime de Séguier e Gonçalves Crespo aos nossos Machado de Assis, Raimundo Correa e o quilométrico Barão de Paranapiacaba. De tempos em tempos, o livro é revisitado, a linguagem atualizada, como aconteceu em nossos dias com as traduções de Milton e Eugênio Amado em 1989 e a do poeta Ferreira Gullar em 1997. E agora nos chega a boa surpresa neste volume das Fábulas Selecionadas de La Fontaine, edição encadernada em cor azul da Cosac Naify, com ilustrações do artista norte-americano Alexander Calder e tradução (como sempre impecável) do nosso Leonardo Froes. Como alguns de seus predecessores famosos (Jean de Granville, Karl Girardet, Gustave Doré, Marc Chagall, etc), Calder, o famoso criador dos móbiles e das esculturas monumentais, também se apaixonou pelas fábulas e selecionou 36 delas para ilustrar. O resultado foi a criação de desenhos um tanto cômicos e bem arejados que diferem das concepções macambúzias de seus antecessores. E exibem uma dinâmica gestual que se casa perfeitamente com a naturalidade da exposição poética de La Fontaine. Em pé de igualdade,notórios são os acertos do tradutor: sem se afastar uma sílaba que seja da métrica original, Leonardo Froes consegue traduzir integralmente sem adaptar, sem reescrever, sem copidescar. O texto francês posto em cotejo permite ao leitor seguir a habilidade com que ele translada não só o sentido, mas as mesmas palavras, ditas na mesma forma em que  estão no original. As múltiplas adaptações de todo gênero, que inundaram o mercado de livros infantis, só serviam para falsear o texto, descaracterizar o estilo do autor. Felizmente com esta bela edição da Cosac Naify, as crianças poderão conhecer o que lhes vinha quase sempre adulterado, os leitores adultos reavaliar um texto que lhes parecerá inteiramente novo e, aqueles que se interessam diretamente pela exaustiva arte da tradução, aplaudir a segurança com que Froes vai assimilando e reproduzindo cada verso do francês.#

Saiu no  Prosa & Verso (O Globo) em 17.08.2013 com o título “Cálder, Fróes e as Fábulas de La Fontaine”

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Lembrança: Souvenir, souvenir, que me veux-tu ? (Verlaine). Eu saía de casa no square (espécie de rua particular) du Trocadéro e descia  pela rue Sheffer à esquerda em direção da rue du Passy. E era só continuar pela rue du Passy que se chegava à Chaussée de la Muette já na entrada do parque  Ranelagh onde se encontra o excelente museu Marmottan com suas 65 telas de Monet, doadas por seu filho Michel em 1971. O parque é dedicado às crianças e tem um teatro de marionetes (guignol) e um carrossel. Mas antes,  logo à entrada, está a enorme estátua de La Fontaine com o indefectível corvo trazendo en son bec un fromage. Voilà!

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Uma preocupação vem me assaltando ultimamente: que será de meus livros?  quem ficará com eles? Serão vendidos a peso, doados a uma instituição de caridade, conservados por algum parente que goste de leitura?

Escrevo num quarto calafetado de livros: pelas quatro paredes, eles vão do rodapé ao teto e se espalham ainda pela cimeira da porta. Dispostos nas estantes sem nenhum critério, às vezes tenho dificuldade de encontrar algum, mas posso dizer que conheço a maioria pela lombada, sou capaz de “sentir” a presença de um deles mesmo quando espremido nas prateleiras mais altas. Já sonhei uma vez que as estantes se desmoronaram sobre mim, soterrando-me nos livros, por isto não ouso “pescar” nenhum do alto, puxando-o pela lombada. Há alguns que estão comigo há mais de cinco décadas, tenho certamente outros ainda mais antigos. Quantas lembranças me trazem quando reencontro um desses velhos companheiros e o tomo nas mãos para abri-lo ao acaso: este foi Fulano que me deu, aquele outro ganhei num concurso, o Casimiro tem uma dedicatória de meu pai, simples, direta, “Ao Ivo Salve  25-12-44 Oferenda s/ pae, Ormindo”, presente de aniversário dos meus 15 anos! Amo-os, é claro, como se fossem filhos de papel, os filhos de sangue que não tive. Recentemente um jornal de São Paulo me pediu um poema de Natal e escrevi:

PAPAI, NOEL

Pelo Natal eu só ganhava livros

Eu pedia carrinhos de brinquedo

e ele me dava livros no Natal

Durante o ano eu lhe pedia livros

que ele me dava mesmo sem pedir

Anos sem que eu pudesse reverter

o sentido do dar e receber

Eu sonhava lhe dar uma alegria

algo de mim que o fosse contentar

Ele sonhava que eu gerasse um filho

e nem meus livros eu lhe pude dar.

Eu quis dizer, neste verso final, que não cheguei a dar a meu pai a alegria de ver publicados os meus próprios livros, pois ele morreu antes que  a Caça Virtual e meus outros opúsculos viessem a lume. Mas sabia das minhas traduções e ficava feliz quando via meu nome nos jornais.

Outra dedicatória, ainda mais sucinta, e dessa mesma data, dizia: “Do Pedro, ao Ivo. Rio, 25/12/44”. O ofertante, no caso, era meu tio materno, Pedro Pimentel, que morou por uns tempos em nossa casa na rua Pontes Correa. Autodidata, escrevia num português correto, estribado em duas ou três gramáticas e dicionários que integravam sua pequena biblioteca pessoal. Era funcionário graduado do Lloyd Brasileiro e redigia longos relatórios sobre as viagens de inspeção que fazia pelos portos do país. Numa delas, a mais demorada, voltou noivo de uma cearense, e como devia em seguida fazer outra viagem, dessa vez para o Sul do Brasil, pediu à minha mãe que fosse a Fortaleza “resgatar” a noiva. Acompanhei minha mãe nessa viagem e acabamos nos casando (por procuração) com a moça que trouxemos conosco, depois de uma cerimônia privada, certamente para satisfação da família cearense que não podia vir ao Rio. Nos tempos de solteiro que passou conosco, foi meu grande inspirador e roommate (adoro esta palavra), sabatinando-me com frequência sobre questões de português, ortografia, colocação de pronomes, significado de palavras, etc. Era poeta, compunha sonetos bem rimados e metrificados, e foi com ele que aprendi métrica, a escandir versos e a gostar realmente de poesia. Tínhamos um caderno-álbum em que transcrevíamos os poemas que julgávamos “de primeira classe”, e certa vez me censurou por eu haver acolhido uns versos que ele considerava “inferiores”. Agastado com a restrição ao meu gosto literário, arranquei num rompante a folha do álbum, entreguei-o a ele e nunca mais falamos no assunto. Eu o admirava profundamente pela aura de suas viagens, pelas histórias que contava de sua experiência marítima; tinha sido oficial da marinha mercante e conhecera vários portos estrangeiros. Em Nova York visitou a Coney Island e almoçou no famoso restaurante do Jack Dempsey. Garantia, para mim incrédulo em meu incipiente inglês, que os americanos diziam “uóra” em vez de “water”. Vestia ternos de linho Taylor 120 e tinha sapatos feitos sob medida, que guardava em alvas sacolas de flanela; havia um par que me fascinava, de duas cores, marrom e branco,  cuja imponência era acentuada pela robustez do solado. Aos sábados entregava-se a uma longa rotina dedicada aos cuidados corporais: cortava as unhas, passava-lhes talco e as friccionava com uma escova própria, de camurça, que ele guardava num estojo certamente adquirido no exterior, no qual havia ainda uma tesourinha pontuda que servia para aparar as cerdas nasais e um minúsculo pincel com que enegrecia o bigode. Engraxava os sapatos e se preparava para sair à noite, quando ia “furar cartão” (dançar) nas boates da avenida Rio Branco. Era a única ocasião em que não o acompanhávamos, pois costumávamos passear juntos na baratinha descapotável que ele havia adquirido e na qual só carregava duas pessoas de cada vez, para não afetar as molas de suspensão. Nós, mais novos, ficávamos siderados quando ele e minha mãe se punham a lembrar fatos de sua juventude no Herval. “Cedinha, você lembra quando o Ti´Tatão, etc” e ela retrucava com outro caso desse tempo, e ambos diziam: “Lá se vão uns trinta anos!” Meus irmãos se entreolhavam, impossível alguém se lembrar do que havia acontecido a trinta anos passados. Ele e eu trocávamos impressões de leitura e costumávamos declamar juntos algum longo poema, o livro revezando em nossas mãos. De tanto lermos os “Poemas” de Menotti del Picchia, já sabíamos de cor quase todo o “Juca Mulato” e “O beijo de Arlequim”. Um dia, fizemos um desafio mútuo: ver quem escrevia o melhor soneto sobre “Vida”. Passados uns dias, depois do jantar, ele tirou do bolso um papel e leu sua composição que falava de nascimento, infância, juventude, maturidade e morte. Dei um sorriso sardônico, com ares de quem já estava saboreando as batatas da vitória. E declamei o meu bestialógico, onde as presenças de Augusto dos Anjos e de Raul de Leoni eram mais que flagrantes, atropeladas por imprecisas noções de biologia:

A vida é o resultante grau da orgânica

Evolução da célula. É energia

Que mais se apura, dia para dia,

Desde os tempos remotos da Era Oceânica.

É movimento, é força que se cria;

De potencial transforma-se em dinâmica.

Evolveu-se da Micro à Pterodâmica

Espécie em fecunda embriogenia.

(etc)

Meu tio conseguiu disfarçar sua perplexidade diante daquele despautério. Pegou o papel, leu-o com atenção, elogiou o emprego de “evolver” em lugar de “evoluir”, que o Cândido de Figueiredo (em quem costumava estribar-se para a elucidação de dúvidas gramaticais) considerava um galicismo. Sem dizer o que achava, falou que tinha uma dúvida: Não seria pterodáctila em vez de pterodâmica? Finquei pé no pterodâmica, sem o que lá se iria embora a minha rima rica (achava eu, rara e riquíssima).  O Lello Universal Ilustrado de sua estante particular não me abonava o termo, nem sequer trazia o pterodáctilo proposto. Meu professor de biologia é quem resolveria o caso. No dia seguinte, fui à aula (noturna, que eu costumava matar) e submeti meu mostrengo ao professor, a quem já havia mostrado outros escritos meus. “Do ponto de vista científico, não faz sentido; é confuso e incongruente. Mas os versos são bons e você deve insistir. Na sua idade, seria melhor escrever poemas de amor”.  Confessei ao tio o meu fracasso científico e minha vitória poética. Ele me incentivou dizendo que de fato eu seria um grande poeta. Ele, o meu guia, acreditava em mim, achava que eu podia caminhar sozinho. Fiquei determinado a não decepcioná-lo no futuro. Quando nos deixou para montar a própria casa, praticamente na mesma rua, senti um vazio indescritível: lá se foram as gramáticas, os sapatos ensacados, as tesourinhas de unha, além do encantamento mútuo com a leitura de nossas produções. Lá se fora o amigo, o companheiro, o roommate,  meu ídolo,  meu mestre. Ali tão perto e já tão distante, como se entre nós o tempo tivesse colocado uma barreira intransponível.

Vejam: abre-se um livro e de sua dedicatória, amarelecida e quase desfeita pela idade, surgem tantas lembranças, flashes-back de uma vida, viagem de regresso ao tempo nunca perdido da juventude. Então, digam-me lá: o que fazer dos meus livros já que me pesa tanto ter que deixá-los  sem destino,  sem definição? Estive pensando em várias soluções. Durante mais de trinta anos andei colecionando livros relativos a Rimbaud e à sua obra: edições integrais, biografias, ensaios, dicionários, revistas especializadas, etc. No fim do ano passado, quando editei o terceiro e último volume de minha tradução de sua obra completa, percebi que estava diante de um acervo bastante expressivo, não só quanto ao valor artístico mas igualmente quanto ao material, pois nele se incluem algumas obras raras, primeiras edições, livros fac-similados, etc. Depois de considerar cumprida a incumbência a que me autodeterminei de colocar ao alcance do leitor brasileiro tudo o que o gênio de Charleville havia escrito, a visão diária desses 120 volumes à minha frente na estante acaba sendo um pequeno suplício, pois me faz lembrar cada um dos momentos em que estive em combate ferrado com o Anjo. Resolvi, pois, doá-los a Biblioteca do Centro Cultural Banco do Brasil, onde eles poderiam continuar formando uma coleção especializada, e também ao alcance de minha vista em caso de me bater uma (inexplicável) saudade repentina.

Excelente ideia. Mas, e os outros? Que destino darei, por exemplo, àquele magnífico “Les Fleurs du Mal” da coleção Pastels, ilustrado por Jacques Roubille, Éditions du Panthéon, do qual só foram impressos 500 exemplares “sur pur fil Johannot” (o meu é o nº 318), em MCMXLVI, hoje considerado obra rara e fora do comércio? Comprei-o com o meu primeiro salário, na livraria francesa que havia no térreo da Faculdade de Filosofia, onde eu cursava Línguas Neolatinas, ali onde é hoje a Maison de France. Preciosidade que eu guardava numa caixa de charutos e em cujas páginas comecei a acumular algumas notas graúdas, talvez para novas e temerárias aquisições.

Assim como ocorreu em relação a Rimbaud, também quando organizei em 1995 para a Nova Aguilar o volume ”Poesia e Prosa”, de Charles Baudelaire, acabei formando uma coleção com as dezenas de livros que tive de ler para selecionar o material existente em português, além de várias edições francesas que eu já tinha ou que vim a adquirir. Lá estão eles ocupando toda uma prateleira da estante. Também os livros de e sobre Rilke, arrecadados para uma edição quase completa de sua obra, que a Nova Aguilar pretendia fazer logo depois do Baudelaire; são ainda 34 volumes, mesmo depois da devolução de cerca de mais 20, emprestados pelo Dr. Rischbieter. Mais em cima, a minha paixão da juventude, o romantíssimo Edmond Rostand, com todas as belas edições do “Cyrano de Bergerac” e do “L´Aiglon”, inclusive a famosa edição da Impremerie Nationale de 1983, sem falar na raríssima biografia escrita por sua mulher, Rosemonde Gérard, em 1935, e com uma dedicatória da própria “pour Jacques Chabanne, très sympathiquement” (peça de colecionador, de 1935). Falar de Rostand seria falar de todos os sonhos, vitórias e decepções de amor que sagraram os meus anos juvenis, arroubos, versos ardentes, lágrimas contidas, coração convulso…

Da parte superior da estante, ocupando mais de duas prateleiras, Shakespeare me observa através de ricas edições de suas obras completas e uma porção de traduções em várias línguas. Não, não o esqueci, foi meu primeiro cometimento, minha “glória” maior de quando o vi (em minha tradução) sob o formato de imponente coffee-table book, ilustrado por Isolda Hermes da Fonseca e editado por Carlos Lacerda, a quem eu assessorava na redação da Enciclopédia Século XX. Que será destes tesouros sentimentais, desses pedaços líricos de mim? Talvez o melhor será deixá-los também para o Banco do Brasil, onde trabalhei por 37 anos, para o seu CCBB cuja biblioteca saberá guardá-los com cuidado, ainda que não lhes possa dispensar o mesmo carinho que lhes dediquei. Mas, você, o que faria em meu lugar?

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