Foi o editor José Mário Pereira quem promoveu meu encontro com João Antônio. Eu tinha grande admiração por ele e sabia que ambos achávamos genial o livro “Desabrigo” (1942), de Antônio Fraga, a obra-prima que havia instaurado uma linguagem nova em nossa literatura. Também admirava muitíssimo o livro de estreia de João Antônio, “Malagueta, Perus e Bacanaço” (1963) e sabia das circunstâncias de sua publicação (a casa dele pegou fogo e destruiu o manuscrito original, que foi refeito inteira e imediatamente de memória). José Antônio nesta altura já morava sozinho, sem a família, aqui no Rio, levando uma vida dentro de padrões semelhantes aos de seus personagens, indivíduos pobres, do submundo, “órfãos do olhar humano e da fortuna”. Vivia de seus direitos de autor e de colaborações para os jornais. Estávamos em 1995, eu acabava de lançar pela Nova Aguilar a “Poesia e Prosa de Charles Baudelaire”, e João Antônio, que trabalhava na Tribuna da Imprensa, quis fazer comigo uma entrevista, que respondi por escrito. Não mais nos encontramos. Ele veio a falecer no ano seguinte, em seu apartamento de Copacabana, absolutamente só, e o corpo só foi encontrado 15 dias depois.
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JA – Qual a importância, hoje, para o leitor brasileiro, da poesia e da prosa de Charles Baudelaire? Você não acha que, com a trepidação da vida moderna, toda aquela história de satanismo, de dandismo, de spleen já perdeu sua razão de ser?
IB – Baudelaire é o mais importante poeta internacional da França, sua influência se exerceu sobre a poesia de quase todos os países. O conhecimento de sua poética (e bem assim de sua estética) é e será imprescindível para toda pessoa, de qualquer quadrante e de qualquer época, que pretenda um mínimo de conhecimento no terreno da poesia e da estética modernas. Sem falar na pura exaltação lírica que o desfrute de sua poesia proporciona no leitor. Achar que suas concepções estéticas ou sensoriais perdaram a razão de ser seria o mesmo que condenar a leitura de Homero porque o homem de hoje não acredita mais em mitos.
JA – Mesmo em tradução ?
IB – Mesmo em tradução. Até as traduções menos fiéis e menos “baudelairianas” de certos poemas de As Flores do Mal carreiam para os leitores — seja pelo tratamento do tema, seja pelo inusitado das imagens, seja pelas palavras empregadas –- uma sensação de estranha beleza e excepcional sensibilidade.
JA – Barroso, depois de sua divulgação da obra poética de Rimbaud, por quê Baudelaire ? Por quê ?
IB – Bem, na verdade Baudelaire é o grande precursor de Rimbaud, a quem ele chamou de “un vrai dieu”. Meu interesse pelo autor de As Flores do Mal antecede a devoção à obra do poeta de Charleville. A primeira tradução que fiz de um poema francês foi precisamentea de L’Homme et la Mer, há exatamente meio século. Era natural que eu quisesse ver sua obra reunida num volume e surgiu-me a oportunidade de fazê-lo.
JA – Quer dizer que você não entra aí como tradutor…
IB – Não, o escopo foi mais abrangente. Meu trabalho foi o de organizador da edição, aquela função para a qual os italianos têm a bela expressão a cura di. Li tudo o que havia em português de e sobre Baudelaire, selecionei o que me pareceu melhor, mandei traduzir o que faltava para um conjunto de cerca de 80% de sua obra completa, procedi a uma harmonização estilística do conjunto, fiz a nota introdutória em que são expostos os critérios adotados e redigi um bom número de notas que aparecem no final do volume.
JA – Logo, nenhuma tradução sua em todo o volume ?
IB – Bem, ao rever os textos transformei em versos metrificados e rimados todas as citações de outros autores que haviam sido reproduzidas em prosa pelos tradutores e fiz o mesmo com o famoso soneto “libertino” de Théophile de Viau [vide abaixo] que serve de epígrafe a Meu Coração a Nu.
JA – E em relação a Flores do Mal, como foi sua escolha ?
IB – Desde cedo aprendi a amar as belas versões que Guilherme de Almeida publicou sob o título de As Flores das Flores do Mal. Mas ele só traduziu os poemas com que mais se identificava, que infelizmente são poucos. Há também algumas boas transposições de Dante Milano. Mas a tradução de Ivan Junqueira, além de ser completa, o que garante uma unidade estilística do conjunto, é sem dúvida a melhor que temos em português, graças à sua concepção da arte de traduzir versos.
JA – Melhor mesmo que a do Guilherme ?
IB – Pelo menos diferente. Ivan deixa passar mais da forma baudelairiana pois está concentrado em efetivamente traduzi-la, ao passo que Guilherme, mais pessoal, faz um poema próprio, maravilhoso, recriando Baudelaire.
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O SONETO DE THÉOPHILE DE VIAU (mencionado na entrevista)
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Je songeais que Phillis des enfers revenue ,
Belle comme elle était à la clarté du jour,
Voulait que son fantôme encore fit de l´amour
Et comme Ilion j´embrassasse une nue.
Son ombre dans mon lit se glissa toute nue
Et me dit: “Cher Damon, me voici de retour,
Je n´ai fait qu´embellir en ce triste séjour
Où depuis ton depart le sort m´a retenue.
Je viens pour rebaiser le plus beau des amants,
Je viens pour remourir dans tes embrassements”.
Alors, quand cet idole eut abusé ma flamme,
Elle me dit: “Adieu! Je m´en vais chez les morts.
Comme tu te vantais d´avoir foutu mon corps,
Tu te pourras vanter d´avoir foutu mon âme”.
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Eu sonhei que Philis do inferno retornava,
Tão bela quanto foi à clara luz do dia;
Que eu lhe fizesse amor seu fantasma queria,
Sentindo como Ixion, que uma nuvem abraçava.
Toda nua em meu leito a sombra se espojava;
“Caro Dâmon, estou de volta” – me dizia;
“Vê como embelezei na triste moradia
Onde, depois que foste, a Sorte me trancava.
Quero outra vez beijar meu amante perfeito;
E de novo morrer no espasmo de teu leito!”
E então, tendo esgotado o meu ardor, em calma,
Me disse: “Volto à Morte. Adeus! Tens-te exibido
Por haveres, em vida o meu corpo fodido:
Ora podes dizer que fodeste a minha alma.”
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