Meu primeiro encontro com Antônio Houaiss foi em 1957 ou 58, na aula de português de um cursinho para candidatos ao Itamaraty, que funcionava à noite na Avenida Almirante Barroso. Na época eu não sabia quem era ele, mas admirei a verve do professor que perguntava aos alunos seu nome de família e discorria longamente sobre seu significado, suas origens, seus membros importantes, etc. Dada a minha timidez, não me lembro se chegou a abordar o meu Barroso, que nada tinha a ver com o Almirante da avenida onde estávamos. Mas lembro-me claramente do encanto que me proporcionou sua digressão sobre a ave que para nós provinha da América do Sul (peru), para os ingleses da Turquia (turkey) e para os franceses da Índia (poule d´Inde). Hoje sei que um processo administrativo absurdo o afastara de suas funções diplomáticas — sem remuneração – e, para se manter, lecionava e escrevia nos jornais. Agora estava ali no curso Barata, que na verdade era bem caro e destinado a jovens da elite que se candidatavam ao corpo diplomático. Sem recursos para tanto, deixei o curso naquela primeira aula, e só vim a saber de Houaiss muitos anos depois.
Em fins de 1958 eu dava meio expediente de manhã na Editora Delta, na travessa do Ouvidor, enquanto trabalhava à tarde no Banco do Brasil, onde entrara por concurso em 1954. Não me lembro bem como fui parar nesse outro emprego (sem carteira assinada), mas na época procurávamos por todo canto quem nos desse verbetes ou artigos para traduzir. Um dos sócios da firma, Dr. Pedro Lorch, estava preparando uma enciclopédia infanto-juvenil “Nosso Mundo Maravilhoso” com base na edição americana do “World Book”. Fui trabalhar diretamente com ele e atuava sozinho na biblioteca da editora, que ocupava um lugar de prestígio no 4º andar, com ar refrigerado e tudo. Minha função: secretariar as reuniões dos conselheiros da enciclopédia – Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Péricles Madureira de Pinho, Otto Maria Carpeaux e outros cinco figurões, que rodeavam a mesa de trabalho presidida pelo editor-mor, Abraão Koogan. Cada capítulo do original americano era analisado por eles, que o consideravam apto para tradução ou sujeito a adaptação para o público brasileiro. Eu tomava nota das resoluções (de início sem saber para que), me sentindo no topo da glória em meio ao que havia de mais representativo da cultura brasileira de então. Lembro-me bem que um dos capítulos iniciais estampava trechos dos diários de Colombo e ficava evidente que deveriam ser substituídos por equivalentes da carta de Caminha. “Anote aí”, me disseram e anotei. Depois é que senti de fato qual era o gosto (ou o preço) da glória. No caso, competia a mim encontrar na carta de Caminha os trechos correspondentes, copiá-los e equacioná-los de modo a cobrirem o espaço substituído. De outra vez, sobrara uma página em que no original havia um poema sobre a América. Como não houvesse sugestões, arrisquei propor: Que tal a Ladainha, de Cassiano Ricardo: “Brasil cheio de graça / Brasil cheio de pássaros/ Brasil cheio de luz”. “Anote aí”, disse sr. Abraão, e corre o Ivo para a Biblioteca Nacional copiar do Martim Cererê o poema inteiro. Bem feito! Mas havia também a redação dos lides para todos os artigos brasileiros, a busca das gravuras, a cata dos trechos indicados nos livros de história e suas respectivas condensações. Com minhas idas e vindas ao ISEB em busca de esclarecimentos e orientações, acabei me tornando familiar de Anísio Teixeira, que mais tarde me honrou com demonstrações de amizade. [Anísio morreu tragicamente em 1971: seu corpo foi encontrado no poço do elevador da casa de Aurélio Buarque de Holanda, onde fora em visita protocolar de postulante à Academia. Com seu desaparecimento por 3 dias, a família supôs que tivesse sido sequestrado pela Ditadura, já que Anísio era considerado de esquerda e fora cassado pela Revolução. A hipótese de que teria sido silenciado criminosamente me horrorizou por muito tempo, até que. mais tarde, seu genro à época (Paulo Alberto M. Monteiro de Barros, o Artur da Távola) me garantiu que a família estava finalmente convencida de que fora de fato um acidente.]
Também (re)corri muito ao Darcy Ribeiro, principalmente para cobrar as matérias que prometia sobre Lund e a gruta de Maquiné, sobre os quais, segundo o sr. Abraão, eu tinha que dar conta nos prazos estabelecidos. Carlos Scliar, que fazia a diagramação da obra, chegou certa vez lá e disse que precisava de uma foto das Furnas da Tijuca para fechar o caderno. “Hoje!” falou, e o sr. Abraão, em vez do “Anote aí” me disse apenas “Dá um jeito”. E lá fui eu com o fotógrafo e duas funcionárias da firma ao Alto da Boa Vista para conseguir a foto; nela apareço, no livro, magrinho, de costas, apontando ao que parece para alguma hipotética estalactite. Hoje, no ócio elástico da aposentadoria, fico pensando como era possível fazer tanta coisa em tão pouco tempo. O triste é que a enciclopédia não vingou. De repente, tudo parou: cessaram as reuniões, o poderoso comando, as terríveis anotações no bloco. E a presença impositiva de Scliar, que chegara a montar meia dúzia de cadernos que guardo como preciosidades junto à doce/amarga lembrança daqueles tempos afanosos. Num deles ainda posso ver o momento em que o anotador se extrapola em redator por necessidade de serviço: faltava a página de rosto do capítulo “A Terra Dadivosa”, não havia tempo para encomendas ou pesquisas, e em vez do “Anote aí” houve um “Escreva você”. Ei-lo aqui:
Eu ia ficar sem o “bico” que, confesso, graças à proteção de (são) Pedro Lorch, era bem remunerado. Por isso, vibrei quando me garantiu que eu não sairia da editora, talvez apenas da biblioteca. E a minha catedral refrigerada e silenciosa, onde eu fazia as minhas pesquisas e condensações, se viu um dia, de repente, invadida por uma turma ruidosa e descontraída que vinha criar a revista Senhor. O redator-chefe era Nahum Sirotsky que fumava cachimbo e dizia okie dokie para o Ivan Lessa, o Luiz Lobo e o Paulo Francis, todos empolgadíssimos como que antevendo a revolução gráfica que iriam causar no mundo editorial. Diferentemente do que ocorrera na enciclopédia, eu agora me sentia de todo sem função no meio daqueles rapazes agitados que se comportavam como estrangeiros (ou pelo menos com a ideia que eu fazia de estrangeiros). Continuei a ter uma mesinha com máquina de escrever que era, quando necessário, também compartilhada com os dinâmicos redatores. Mas antes de sair o primeiro número, em março de 1959, eu já tinha sido “reconhecido” pelo Francis que me encomendou a tradução de “As Neves do Kilimanjaro”, de Hemingway, para sair no lançamento da revista. Ele gostou da tradução e até escreveu uma nota de abertura dizendo que o tradutor havia propositadamente usado os tratamentos tu e você na mesma frase para dar aos diálogos maior fluência e naturalidade. Ei-la:
Aos poucos me integrava na equipe da Senhor e passei a traduzir sistematicamente todas as novelas e também alguns contos esparsos. Nahum chegou a me encomendar um artigo “Para inglês ver”, que saiu no número de abril de 1959. A revista era bancada por dois dos sócios da Delta, os irmãos Sérgio e Simão Waismann; Sérgio, que também fumava cachimbo, era entusiasmado com a dinâmica de Nahum e gostava de circular pela redação conversando com as figuras importantes que nos visitavam ou vinham trazer suas colaborações. Mas as finanças não andavam bem e os demais sócios resolveram estabelecer um dead line para saírem do vermelho. Contrataram então Ivan Meira e Edeson Coelho para comandar a publicidade e eles apareceram à frente de um grande séquito com a aura de trazerem consigo as contas publicitárias mais gordas do país. Contudo a vinda resultou apenas em acréscimo da folha de pagamento e a consequente redução do dead line antes imposto. Em fins de 1962, Reynaldo Jardim, que já havia assumido o lugar de Nahum, e o Edeson Coelho, o corifeu do gigante publicitário, assumiram o patrimônio da revista. Minha última colaboração foi a novela “Amor no trem”, de Mary Mac Carthy, em setembro de 1962, já com a nova direção da revista, que em seguida mudaria de endereço, deixando a travessa do Ouvidor.
E assim fiquei de novo sozinho na biblioteca, de volta ao trono, mas sem saber o que fazer.
**
O capítulo seguinte já é do conhecimento daqueles que leram meu post de 06.03.2012 intitulado Três Mementos,veja aqui. Em resumo: quando estava para deixar a firma, dr. Pedro Lorch me disse para ir ao 2º andar e procurar o prof. Rónai, pois talvez ele tivesse algum trabalho para mim na obra que estava dirigindo para a Delta. Fui, tivemos uma conversa de sondagens iniciais da qual acabaram resultando as duas obras abaixo:
Não sei bem como me mantive à sombra da Delta entre 62 e 66. Lembro-me que havia em curso na editora uma Enciclopédia Judaica, dirigida pelo dr. Elias Davidóvitch, o man for all seasons do sr. Abraão. A redação funcionava num prédio ao lado da Delta e eu ia lá com frequência apanhar verbetes para traduzir. O dr. Elias, que usava suspensórios, era uma figura singular: educadíssimo e modestíssimo, um dos maiores intelectuais que já encontrei, destes que sabem tudo, já leram tudo, nos ajudam na solução de problemas ensinando sem soberba e corrigindo sem reproche. Tradutor de Freud e de Stefan Zweig, de Goethe e Pierre Louÿs, foi o primeiro no Brasil a reivindicar seus direitos quando trabalhos seus apareceram com a nota “tradução revista por Fulano de Tal” e o pagamento passava a ser feito ao pseudo revisor e não a quem havia de fato traduzido. Muito aprendi com ele, com suas revisões, pois só admitia corrigir algo quando tinha uma solução melhor ou mais adequada para apresentar.
Em 1965, encontrei o sr. Abraão por lá, que ficou surpreso por me ver na Judaica. Queria saber se eu ainda estava na Delta, quanto ganhava, etc. Respondi que aprendera com ele a atuar em várias frentes. Mas ele me disse que dessa vez meus dias estavam contados porque a Delta se associara a uma grande editora francesa para levar a cabo um projeto monumental.
Em 1966, o dr. Pedro Lorch confirmou a informação. No segundo andar do prédio formava-se uma equipe totalmente independente para realizar um novo projeto sobre o qual ele não tinha qualquer injunção. Mas que eu desse um pulo até lá, procurasse a pessoa encarregada, me apresentasse como tradutor ou redator. Foi quando, pela segunda vez, me deparei com a figura messiânica de Antônio Houaiss.
(CONTINUA)
que fantástico! amanhã vou reler com calma. elias davidovitch me chamava muito a atenção, pois via traduções suas desde os anos 30 (e encontrei até uma acho que de 1926) – era também psiquiatra e psicanalista bem ativo, não?
Nem preciso dizer que fiquei louco pra ler a segunda parte, né?
Ivo, não sei se Vc. foi privilegiado por ter conhecido, convivido e trabalhado com todos essas figurões culturais ou se somos nós, hoje, privilegiados pela oportunidade de saber dessas epopéias e travessias já ordenadas, encadeadas e elaboradas com as lentes da sua memória e da sua verve literária.
Caro Ivo
vc mata qualquer um de inveja.
Eric
Bem, pela amostra dessas memórias, pode-se assegurar que você também pode confessar que viveu.
E sua jovem rapsódia em quatro movimentos – bem como a garra para vê-los impressos – não comovem apenas a você, comoveram a mim também.
Independentemente da riqueza das informações contidas em seus textos, Ivo, que prazer lê-los. Que prazer ler um texto bem escrito, cheio de colorido e nuances, e metáforas, e causos, que memória privilegiada essa sua. Afortunados somos nós de poder contar com o ócio elástico de sua aposentadoria, tão bem aproveitada a explorar essa riqueza literária. Obrigada!
Me chamo Gustavo Saboia sou pesqusador do projeto dispersos de antonio houaiss e procuro por mais registros já conto com ais de 100O registros sobre e de Houaiss.
Oi Gustavo,
que bom saber que vc está fazendo um trabalho sobre o grande e querido mestre Houaiss. Vc podia nos dar mais detalhes sobre o seu projeto? Estou pronto a colaborar no que possa.
Ivo Barroso