Não sei se agradaria a Samuel Rawet ver agora [2008] sua obra reunida em dois belos tomos de mais de 300 páginas cada um. Isto porque – segundo informa André Seffrin, organizador e prefaciador dos contos — o autor gostava de “catar entre volumes isolados” o que lhe oferecia “em cheiro, tato e visão, a garra do monstro”. Os livros do próprio Rawet foram, em sua maioria, editados por ele, em restritas tiragens de magros volumes, que ficavam espalhados por sebos à espera do olfato, do manuseio e do olho rastreador de seus poucos, mas entusiásticos leitores. Daí que a reunião (também de ensaios, estes a cargo de Rosana Kohl Bines e José Leonardo Tonus) se impunha, para que um público mais amplo tomasse conhecimento da obra inclassificável e poderosa desse que foi, no dizer de Alberto da Costa e Silva, “o grande mestre que revolucionou, na segunda metade do século XX, o conto brasileiro”. Embora preferisse mostrar suas garras somente para os deserdados da tribo, o fato de ter vendido bens imobiliários para editar seus livros – por pequenas editoras quase desconhecidas – nos assegura da consciência que tinha da qualidade de sua obra e da necessidade de vê-la divulgada. Mais que isto, do que ela significava como princípio básico de sua própria existência de proscrito. Talvez só não se compenetrasse de que dera uma nova dimensão à prosa brasileira.
É oportuno falar em dimensão a propósito de Samuel Rawet que na vida profissional era engenheiro calculista de concreto armado. Pertencente à equipe de Lúcio Costa, Oscar Niemayer e Joaquim Cardozo — os mentores do planejamento e realização arquitetônica de Brasília –, foi ele o responsável pelo cálculo de estrutura para a construção do Congresso Nacional. A julgar por seu espírito demolidor, ele hoje certamente se arrependeria de ter projetado um edifício tão sólido…
A prosa de Rawet não é nada fácil. Exige do leitor quase uma iniciação de prosélito ou uma frequentação de adicto, para que se aceitem as mudanças bruscas e estapafúrdias de registros e conceituações. Se nos contos os arroubos da imaginação e as incongruências estilísticas são louváveis, já nos ensaios essa execução em claves dissonantes causa no leitor novato certa estranheza: é que neles o engenheiro “descontrói”, porquanto as oscilações chegam a subverter inteiramente o pressuposto de uma nitidez interpretativa. Alguns temas ficam às vezes só no título, como por ex. em Drummond: o ato poético, em que uma esperada análise da lírica de nosso poeta maior é substituída por uma série de considerações sobre a criatividade e a loucura. Um trecho: “O grande erro do louco é não perceber que a relação entre psiquiatria e loucura parou em Charcot. A partir daí os loucos continuaram na mesma, e uma indústria rendosa se estabeleceu única e exclusivamente apoiada na galinhagem e na frescura. Mas parece que até na Suíça as vacas tiraram férias por falta de capim.” Claro que esses “alheamentos do tema” são ocasionais, embora não se espere encontrar em nenhum desses ensaios algo que lembre a metodologia universitária, o desenvolvimento lógico, a frase conclusiva. Em lugar disso, temos o rolo compressor, a centrifugadora de cimento, o revolvimento inteligente, a transposição do enfoque. O leitor estará permanentemente atento a cada palavra da frase como se posto diante de uma linha de montagem acelerada pela inteligência brilhante e frenética do autor.
Porque estes ensaios deixam, às vezes, o leitor habitual num estado de perplexidade: está diante de um autor que domina de maneira absoluta os recursos da língua, mas não os utiliza de forma canônica; pelo contrário, procura conspurcá-la, aviltá-la, em busca de uma autenticidade que julga perdida com a elaboração literária; quer a linguagem reles (ele afirma ter aprendido o português na rua), grosseira mesmo, e apela sem reservas para o palavrão. Não que se exprima no diapasão popular, como o fizeram magistralmente João Antônio e Antônio Fraga, pois seu texto é quase sempre de alta recorrência, cheio de elucubrações filosóficas, que não raro se esfrangalham no vazio; mas é que Rawet parece temer uma escrita como a dos outros, a ser considerado apenas um escritor, e não o demolidor que quer ser em sua autoflagelação de rebelde, de intruso, de discriminado. Homem de vastíssima cultura, leu tudo, mas não se pavoneia com isto; cita com certa modéstia, até mesmo com constrangimento. Algumas de suas frases têm a compactação e a lucidez de um teorema matemático, como se traçadas a régua de cálculo; parágrafos que são verdadeiras pedras de toque, equilibrados e musicais, embora essa música seja mais chegada à dissonância de Schoenberg do que à melopéia de Verlaine.
Estamos diante de uma leitura que se impõe, que desnorteia mas que nos permite desvendar a outra face do convencional e do previsível. A Rawet seria possível aplicar as palavras de Polônio em relação a Hamlet: “Though this be madness, yet there is method in it”, embora em seu caso não se trate de método mas de uma transcendente perceptividade.
(Fonte: Cultura – O Estado de São Paulo – 29.06.2008 – mesmo título)