Em dezembro de 1998 fiz várias visitas ao poeta João Cabral de Melo Neto a fim de entrevistá-lo para o Suplemento Prosa & Verso de O Globo. Durante quatro quintas-feiras estive em conversa com ele em seu apartamento da praia do Flamengo, um belo prédio de estilo francês com pé-direito alto e amplas janelas dando para o Aterro. A aproximação com o poeta fora feita por sua esposa Marly de Oliveira, nossa antiga colega no Clube dos Doze, nos idos de ´50, quando todos queríamos ser poetas editados. João Cabral não passava por momentos favoráveis: com o agravamento de seus problemas visuais estava quase cego, atormentado ainda pelo velho estigma de uma dor de cabeça (enxaqueca) que o perseguia desde sempre. Logo no primeiro instante afastou a ideia de entrevista e disse que podíamos conversar à vontade pois queria saber muita coisa a respeito do que os leitores achavam de sua poesia. Chegou mesmo a me perguntar numa das vezes se ele seria lembrado depois de morto. Eu lhe disse, com toda a sinceridade, que sua obra era um divisor de águas da poesia brasileira: AC (antes de Cabral) e DC (depois dele). E tive de lhe mostrar o quanto nós, os poetas mais jovens, devíamos à sua estética seca e destituída de pieguismo. Mas creio que ele não gostou muito (pelo rictus da face) quando lhe disse que o considerávamos o nosso Ezra Pound. Certa vez, com dificuldade, levantou-se da sala e foi buscar os dois volumes de seus versos que tinham saído pela Nova Fronteira, no ano anterior: “Serial e antes” e “A educação pela pedra e depois”. Neles conseguiu escrever dedicatórias muito simpáticas, embora com letra irregular. Numa delas: “A Ivo Barroso, seu já amigo, João Cabral de Melo Neto”. Durante as conversas, que transformei em entrevista (com sua aquiescência) fiz-lhe uma pergunta que todos queriam saber naquela altura; se ele, apesar de não ter tratado do tema amor em seus livros, havia feito um retrato poético da esposa em “Sevilha andando”, um de seus últimos livros. A resposta está nesta entrevista que saiu no Prosa & Verso de 9 de janeiro de 1999, encimada pelo mesmo retrato que aqui reproduzimos.
─ João, como foi sua infância? Você era um menino triste?
JOÃO CABRAL DE MELO NETO: Tive uma infância feliz. Fui menino de engenho e lia muito desde criança. Havia livros em casa, meu pai era advogado e gostava de Eça de Queirós. Minhas primeiras leituras de poesia deixavam-me insensível, achava aquilo tudo muito chato. Só fui gostar de poesia depois que conheci os poetas modernos, principalmente Drummond e Bandeira, já então no Recife, quando meu pai vendeu o engenho e se mudou para a capital. Foi lá que fiz os primeiros estudos e encontrei duas pessoas que marcaram minha formação: Willy Lewin, que me iniciou na literatura, e Vicente do Rego Monteiro, nas artes plásticas. Lewin me emprestava livros franceses, e Vicente, que estava voltando de Paris, onde fora estudar pintura, trouxe uma coleção de livros sobre pintores. Também com relação à pintura, só fui achá-la interessante depois que conheci os pintores modernos. Quando morei na Espanha, conheci Miró, de quem fiquei amigo. Embora não os conhecesse pessoalmente, convivi com a pintura de Dali, que achava um charlatão, e a de Picasso, que considero o gênio das artes plásticas.
─Por falar em Espanha, acha que sua poesia teria sido a mesma se, em vez de ter passado ali uma grande temporada, tivesse sido designado para a França ou a Inglaterra?
JOÃO CABRAL: A literatura espanhola ajudou-me a fixar alguns objetivos a que eu me predispunha, deu-me coragem para prosseguir no caminho da concretude. Minha ida para a Espanha como primeiro posto e voltando a servir ali em várias outras ocasiões fez com que me identificasse com aquele país. Sevilha é das minhas admirações mais profundas, o que fez talvez com que não me importasse muito com outras paisagens culturais do mundo. Além disso, conheci em profundidade a literatura espanhola antes de conhecer bem a portuguesa e acho-a superior, mais rica que esta. Dentre os poetas portugueses, costumo destacar Cesário Verde, um dos poucos que me parece isento de sentimentalismos. Na verdade, sem a influência da poesia espanhola eu não teria feito o mesmo tipo de poema.
─ E quanto à literatura inglesa, quais são suas preferências?
JOÃO CABRAL: Quando fui servir em Londres, em 1950, comecei a ler os poetas ingleses desde Chaucer e me interessei principalmente pelos metafísicos, que de metafísicos não têm nada. Dos posteriores, os que mais me chamaram a atenção foram George Crabbe (1754-1832) e Wilfred Owen (1893-1918). Depois me interessei por W H. Auden (1907-¬1973), mas não posso dizer que os ingleses tenham concorrido significativamente para o rumo da minha poesia.
─ Além da poesia e da pintura, que outra atividade artística o atraía?
JOÃO CABRAL: 0 cinema, por exemplo. Em Londres, filiei-me a uma meia dúzia de clubes de cinéfilos, de modo que podia ver um filme importante por dia, variando de clube. Foi assim que vi todos os clássicos russos, franceses e ingleses que me interessavam. Depois disso, o cinema perdeu muito para mim, pois sempre tinha a sensação do déjà vu.
─ Quem ligado às artes você conheceu na Inglaterra?
JOÃO CABRAL: Estive num almoço literário em homenagem a Eliot, mas não houve uma aproximação entre nós. Fui lá a convite e levado por Beata Vettori, que era minha colega no consulado e conhecia muitas pessoas no mundo das letras inglesas. À porta havia um aboyeur que anunciava aqueles que chegavam, geralmente dizendo-lhes o nome, a atividade exercida ou a função que ocupavam. Pude observar que Eliot permanecia imóvel mesmo diante de nomes importantes da poesia inglesa, mas se levantava solícito e corria ao beija-mão de qualquer dama do society inglês que chegava. Claro que isso não diminuiu em nada a admiração que tenho por sua obra. Considero “‘The Waste Land” e os “Four Quartets” os livros fundamentais da poética de nosso século. Já suas peças, como “Murder in the Cathedral”, por exemplo, me parecem grandes discursos poéticos destituídos de dramaturgia.
─ Quais são os seus poetas franceses preferidos?
JOÃO CABRAL: Gosto principalmente de Baudelaire, e de Valéry, sobretudo o Valéry teórico, pois o poeta me parece um tanto preso à tradição melódica. E de Mallarmé, por seu cuidado com a construção do verso.
─E no Brasil, quem destacaria?
JOÃO CABRAL: Sempre achei Drummond, Murilo, Joaquim Cardozo e Bandeira grandes poetas. Sobre os vivos, é difícil opinar, pois se esqueço algum me sinto mal.
─Quando diplomata, gostava da vida social, teatros, restaurantes?
.JOÃO CABRAL: Frequentava os tablaos na Espanha. Nunca fui um “gourmand” e muito menos um “gourmet”. Nunca me preocupei com comida no sentido seletivo ou esnobe do termo, de bons restaurantes, cozinheiros famosos. Na Espanha, vez por outra, ia a Cádiz comer mariscos, mas sempre em função de algum convite ou dever de ofício. O mesmo em relação a bebidas. Não sou apreciador de vinhos de mesa. Além do uísque dos coquetéis diplomáticos. sempre preferi o xerez e a manzanilla, vinhos que se tomam para conversar.
─Você que é o poeta mais premiado do Brasil, qual sua atitude diante dos prêmios literários?
JOÃO CABRAL: Acho bom recebê-los. Um prêmio literário dá satisfação a quem o recebe. Mas nunca andei “cavando” nada para isso. Minha única interveniência na consecução de um prêmio — o que recebi com o poema “O Rio” — foi inscrevê-lo no concurso, o que era obrigatório. Os outros vieram por via natural.
─ E o que pensa do Nobel?
JOÃO CABRAL: Nunca pretendi recebê-lo. Creio que a Academia Sueca não tem acesso direto à língua portuguesa, lendo seus autores (se os lê) por meio de traduções. Pelo pouco que li da tradução de meus livros acho que as perdas são grandes e sempre achei que havia outros brasileiros que o mereciam mais que eu. Desconfiei da possibilidade de ele vir a ser dado a um escritor de língua portuguesa, mas agora que foi concedido a Saramago, certamente levará outro século para que se lembrem novamente de nossa língua.
─Que significa para você a poesia? Se não fosse poeta, o que seria?
JOÃO CABRAL: A poesia é um trabalho, uma função, um ofício. Sempre quis ser um crítico literário, mas nunca me senti com capacidade suficiente para exercer a crítica. Passei a escrever, a fazer, a construir poesia, aquela poesia que eu, como crítico literário, gostaria de ver que alguém fizesse. Se não tivesse sido poeta, talvez fosse um diplomata melhor.
─Qual o sentido da vida ?
JOÃO CABRAL: Não gosto dessas questões metafísicas. Posso dizer apenas que com a idade nossas certezas ficam um tanto duvidosas.
─Em sua poesia, como você próprio já disse, o tema do amor está ausente. Mas, “Sevilha andando” não será um grande poema de amor à Marly? Em outras palavras, Sevilha=Marly?
JOÃO CABRAL: É. Os críticos têm dito muita coisa sobre a minha poesia que jamais me passou pela cabeça. Mas você acertou. “Sevilha andando” é ela mesma.
─E podemos esperar outro livro, que você estaria ditando, já que não consegue mais escrever?
JOÃO CABRAL: Não, estes dois foram meus últimos livros. Escrever poesia era para mim um ato visual, de trabalho quase manual com a palavra. Sem isto não consigo fazer poemas. Nunca os fiz na mente, a não ser uma ou outra ideia, que em seguida guardava no papel. Também não consigo “ouvir” poesia, que só se concatenava em meu espírito mediante sua forma no papel. No entanto, todos os dias minha mulher lê algo para mim, sempre uma releitura de meus livros. Há alguns meses, minha filha Inez tem passado por aqui de manhã e sempre lhe peço também que me leia alguma coisa. Mas abandonei o fazer poético porque, além da vontade, também as forças me vão faltando com o tempo e o sofrimento.